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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.19 no.2 Brasília abr./jun. 2019
https://doi.org/10.17652/rpot/2019.2.15467
Ser policial militar: reflexos na vida pessoal e nos relacionamentos
Being a military police officer: effects on personal life and relationships
Ser policía militar: repercusiones en la vida personal y en los relacionamientos
Thamires Sousa de Oliveira; Carla Júlia Segre Faiman
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo é compreender possíveis impactos da profissão de policial militar nos aspectos sociais da vida deste profissional, incluindo ambiente familiar, vida afetiva e relacional. Foram realizadas entrevistas com cinco policiais militares, independentemente de sua patente, que tinham pelo menos 10 anos de profissão em um batalhão da polícia militar (PM) na cidade de São Paulo. As entrevistas foram semidirigidas, com utilização de roteiro, realizadas em espaço privado não determinado previamente. Foram registradas por gravação de áudio, mediante a autorização dos participantes e transcritas posteriormente. As entrevistas foram analisadas nas seguintes categorias: carreira, impacto social, impacto familiar e impacto pessoal. Os resultados mostraram que a exposição aos riscos inerentes à profissão e à violência tem repercussões importantes na forma como os policiais estabelecem e mantêm os laços sociais, os relacionamentos, a inserção na comunidade e o contato com a família.
Palavras-chave: policial; militar; trabalho.
ABSTRACT
The goal of this study is to understand the impact of following a military police officer career on the aspects of life for this professional, including family environment, affective and relational life. Five military officers, regardless of their rank, all of whom had a minimum of 10 years experience at a Military Police Battalion in the city of São Paulo, were interviewed. The interviews were semi-directed using a script and were conducted in a non-pre-determined private area. The interviews were audio recorded, with the authorization of the participants and transcribed later. Interviews were analyzed in the following categories: career, social impact, family impact, and personal impact. This report points towards the repercussions of being exposed to the risks and the violence inherent in their work, on their relationships, life in the community, and family contacts.
Keywords: police; military; job
RESUMEN
El objetivo de este estudio es comprender las posibilidades de impactos de la profesión de policía militar en los aspectos de la vida de ese profesional, incluyendo el ambiente familiar, vida afectiva y relacional. Se han realizado entrevistas con cinco policías militares, independientemente de sus patentes, que tenían por lo menos 10 años de profesión en un Batallón de la Policía Militar de la ciudad de São Paulo. Las entrevistas fueran semi-dirigidas con utilización de guion y realizadas en espacio privado no determinado previamente. Fueron registradas por grabación en audio mediante autorización de los sujetos, y posteriormente transcritas. Las entrevistas fueron analizadas en las siguientes categorías: carrera, impacto social, impacto familiar e impacto personal. Los resultados apuntan que la exposición a riesgos inherentes a la profesión y a la violencia intervienen de manera importante en la forma como los policías establecen y mantienen los vínculos sociales, los relacionamientos, la inserción en la comunidad y el contacto con su familia.
Palabras-clave: policía; militar; trabajo.
O trabalho desempenha papel central na vida das pessoas. Além de garantir a subsistência, proporciona inserção social, desenvolvimento pessoal e possibilita que o indivíduo pratique ações úteis, construtivas e significativas para a coletividade em que se insere. É também um importante elemento organizador na vida pessoal e participa na composição da identidade. Em geral, no trabalho, ou em função dele, despende-se a maior parte do tempo que se passa acordado. Além disso, para entender a sua importância, podemos acrescentar os anos e a formação que o precedem. Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno e Kato (2010) consideram, ainda, que o trabalho é mediador de integração social, sendo fundamental na constituição da subjetividade.
Segundo Dejours (2015), dada a mobilização e o envolvimento necessários para a sua realização, o trabalho nunca é neutro para o indivíduo que o realiza. Seus efeitos podem ser favoráveis para a promoção do equilíbrio psíquico, mas podem ser, também, bastante deletérios, chegando a ameaçar a saúde do trabalhador em algumas situações. Fatores como o grau de satisfação e o dimensionamento das cargas físicas, mentais e emocionais relacionados ao trabalho influenciarão no seu impacto sobre o indivíduo. Azevedo (2003) salienta o caráter estruturante do trabalho, apontando a importância da identificação do trabalhador com aspectos de sua atividade: há os que "vestem a camisa da empresa", pois estabelecem vínculos inconscientes com valores, normas e práticas da instituição. Quando se identificam com o trabalho, sentem-se representantes da instituição à qual pertencem frente à comunidade, aos amigos, à família, entre outros. As repercussões dessa situação podem ser observadas tanto no sentido que o indivíduo atribui pessoalmente às suas ações quanto na importância da relação emocional que se estabelece entre o trabalhador e seu ofício, seus colegas, seus superiores hierárquicos. Assim, compreende-se que a percepção da forma como o indivíduo é reconhecido na comunidade como representante de sua atividade também terá repercussões importantes em seu funcionamento emocional.
Todos os tipos de trabalho apresentam, em alguns momentos, situações que desafiam o indivíduo, colocam à prova suas capacidades, sua resistência e sua habilidade para lidar com adversidades. A fadiga e a frustração, em menor ou maior grau, compõem a experiência de quem trabalha. A frustração alimenta a agressividade reativa, e esta, não sendo elaborada psiquicamente ou extravasada, desempenha importante papel no desencadeamento de adoecimento, seja mental ou somático (Dejours, 2015).
Dejours, Abdoucheli e Jayet (2014) afirmam que o trabalhador tem uma história pessoal e é permanentemente sujeito a estímulos que repercutem como excitações no aparelho psíquico. Sua história passada é integrada pela "qualidade de suas aspirações, de seus desejos, de suas motivações e de suas necessidades psicológicas" (Dejours et al., 2014, p.24). Quando uma tarefa favorece o emprego de aptidões psíquicas, fantasmáticas ou psicomotoras, possibilitando a descarga de energia (excitação), ela gera bem-estar e é favorável ao equilíbrio psíquico. Em contrapartida, há situações que sobrecarregam o indivíduo quanto ao seu funcionamento psíquico por representarem um aumento de tensão. O confronto com a atividade demanda do indivíduo que ele dê conta de determinadas situações, o que se reflete em mobilização subjetiva. Quando não existe possibilidade de direcionamento e/ou escoamento da energia e dos afetos mobilizados, a tensão aumenta, dando margem à frustração.
Diferentes aspectos relacionados ao trabalho mobilizam as pessoas. Entre eles podemos destacar a experiência de medo, que pode ser muito diversificada, dada a multiplicidade de fatores que se relacionam às profissões. Pode-se ter medo de não corresponder às exigências da tarefa, de não ser reconhecido ou compreendido, de sofrer algum tipo de violência, de causar algum acidente, de ser injustiçado ou demitido, entre outros. Há, de qualquer forma, inúmeros fatores que se apresentam como dificuldade nas diversas atividades.
O trabalho do policial militar é considerado um dos que geram mais estresse e desgaste, de acordo com a literatura em geral (Dantas, Brito, Rodrigues, & Maciente, 2010; Souza & Minayo, 2005). Trata-se de uma profissão que tem visibilidade na sociedade e é constantemente julgada por ela, já que a polícia tem o dever de proteger o cidadão e trabalha nas ruas, em contato direto com a população. Diversas opiniões são formadas, às vezes positivas, vendo-se o profissional como uma figura de autoridade e respeito, às vezes negativas, quando ele é associado à Ditadura Militar e ao poder abusivo. Ainda é uma categoria pouco estudada e que demanda maior compreensão acerca de seu funcionamento. Lazzarino (2008), citado por Sousa e Morais (2011, s/n.), define a polícia e sua função como "organização administrativa (vale dizer da polis, da civita, do Estado = sociedade politicamente organizada) que tem por atribuição impor limitações à liberdade (individual ou coletiva) na exata (mais, será abuso) medida necessária à salvaguarda e manutenção da ordem pública".
No Brasil, entre policiais militares, civis e guardas municipais, a categoria de policiais militares é a que mais sofre agressões, com altas taxas de mortalidade e morbidade. Essa categoria apresenta a maior taxa de mortalidade por violência e risco de morte (Souza e Minayo, 2005). Além disso, de acordo com uma pesquisa realizada por Almeida, L. F. D. Lopes, Costa, Santos e Corrêa (2016) com policiais do Rio Grande do Sul, foi registrada insatisfação em relação ao salário e às promoções na carreira, gerando nos profissionais o sentimento de desvalorização.
Por características da profissão, os policiais estão mais sujeitos a ter proximidade com criminosos. Segundo Souza e Minayo (2005), comandantes das corporações militares do Rio de Janeiro relatam que existe envolvimento de policiais da cidade com criminosos e, muitas vezes, eles são executados, geralmente em emboscadas, por diversos motivos, incluindo roubo de armas. Análises realizadas apontam que o crescimento das mortes de policiais civis e militares do Rio de Janeiro é muitas vezes devido ao envolvimento entre eles e criminosos da rede de tráfico de armas e drogas. Para os policiais, existe uma forte identificação com a profissão e ser afastado do trabalho pode significar ser uma pessoa improdutiva e incapacitada para o exercício militar (Lopes & Leite, 2015). A aposentadoria dos policiais militares ocorre mais cedo do que em outras profissões, o que lhes possibilita encontrar-se com a capacidade produtiva preservada ao aposentar-se. O vínculo com a vida militar normalmente envolve muito investimento emocional, então, quando há essa ruptura laboral, os aposentados por vezes enfrentam sofrimento psíquico, questionando seu próprio valor (Kleger & Macedo, 2015).
Pelo propósito da profissão, que é manter a ordem pública, escolher ser policial militar e fazer parte da corporação envolve uma valorização pessoal de aspectos associados à moralidade e à disciplina. O regime interno exige disciplina rígida entre seus componentes, tendo como método de trabalho a punição ocasionada pelo descumprimento das regras do regimento militar. Além disso, devem-se considerar as situações de risco e de exposição à violência a que esses profissionais estão submetidos cotidianamente. Como afirmam Silva e Vieira (2008), o aumento da violência e a precarização do trabalho geram sofrimento psíquico nos policiais. As pressões da organização do trabalho e da sociedade também podem influenciar no aumento da fadiga e nas crises mentais. Mais um aspecto é o fato de os policiais militares tenderem a acumular horas de trabalho por ser comum entre eles a realização de trabalhos extras ("bicos") para complementar a renda mensal, comprometendo, assim, os seus momentos de repouso, lazer e convívio familiar.
Em oposição à consideração de que o estresse sofrido na atividade do policial pode causar sofrimento e, assim, favorecer o surgimento de doenças, esse trabalho também pode ser prazeroso, sendo considerado, principalmente pelos mais jovens, fonte de prazer e de satisfação (Minayo, Assis & Oliveira, 2011). Derenusson e Jablonski (2010) relatam aspectos citados como satisfatórios por policiais que fazem serviço externo que se relacionam, sobretudo, à satisfação de fazer parte da corporação, ao orgulho de alcançar patentes mais altas e ao sentimento de fazer um trabalho de importância para a coletividade.
Supõe-se que o trabalho do policial militar possa influenciar sua vida pessoal, considerando que a rigidez militar e as tensões características do ofício possam influenciar o modo de ser e de se relacionar desses profissionais. Tanto o rigor disciplinar quanto os efeitos da exposição à violência podem ser transportados para outras áreas da vida, passando a ser incorporados no funcionamento pessoal. Essas mudanças certamente repercutem nos relacionamentos do policial com seus familiares e com as pessoas em geral, o que nos faz pensar na amplitude dos efeitos que este trabalho pode ter.
Aspectos vividos como satisfatórios e relacionados ao sofrimento articulam-se na experiência de trabalho de cada indivíduo de forma particular. A psicodinâmica do trabalho, proposta por Christophe Dejours, é um campo teórico e de ação voltado às articulações entre a atividade de trabalho e o funcionamento psíquico/emocional de quem o realiza. A psicopatologia do trabalho buscava encontrar e relacionar aspectos da penosidade do trabalho com formas específicas de adoecimento. Já a psicodinâmica do trabalho, segundo Dejours (2014), parte da observação de que, apesar das pressões desestabilizadoras sofridas em decorrência de organizações de trabalho hostis, as pessoas, em geral, mantêm certa normalidade. Então, a questão passa a ser compreendida como se dá a dinâmica psíquica que permite esse estado em que é possível manter uma adaptação e continuar trabalhando apesar das pressões e do sofrimento. A psicodinâmica do trabalho pode, portanto, ser entendida como um refinamento da psicopatologia do trabalho e ambas, de alguma forma, têm raízes na psicanálise, área de formação de Dejours, e na ergonomia, que leva em conta as cargas e pressões que o trabalho representa para o trabalhador, incluindo a carga psíquica.
O presente estudo parte do referencial da psicodinâmica do trabalho, buscando compreender as injunções psíquicas representadas pelo trabalho do policial militar, seu impacto, aspectos da dinâmica psíquica envolvida e suas repercussões. Nesta pesquisa, enfatizou-se especialmente as repercussões da carreira nas relações de convívio desse profissional. Mais especificamente, o objetivo consistiu em compreender como aspectos relacionados ao trabalho do policial militar impactam suas relações familiares, afetivas e sociais. Espera-se, assim, poder contribuir para o conhecimento a respeito de eventuais dificuldades vividas por esses profissionais e, consequentemente, por seus familiares, chamando a atenção para a questão.
Método
Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, transversal, baseado em entrevistas semidirigidas em que se buscou conhecer aspectos da vida dos entrevistados a partir de seu ponto de vista subjetivo. Pela natureza do estudo, não se pretendeu ter uma amostra estatisticamente representativa da população estudada, mas obter informações que possibilitassem analisar aspectos importantes relacionados à carreira do policial militar a partir de diferentes profissionais que a vivenciam. O estudo tem como base os princípios da psicodinâmica do trabalho, isto significa que se buscou uma compreensão de efeitos do trabalho considerando a dinâmica psíquica envolvida no enfrentamento de suas injunções.
Para a análise, as entrevistas, inicialmente gravadas em áudio, foram transcritas e, utilizando-se o referencial de análise proposto por Bardin (2011 como citado em Câmara, 2013, p. 187), categorias foram definidas para a análise de seu conteúdo.
Participantes
Foram entrevistados cinco policiais militares, sem patente específica, que tinham pelo menos 10 anos de profissão, em um batalhão da PM na cidade de São Paulo. A opção por incluir apenas participantes com mais de 10 anos na profissão deve-se à ideia de que esses profissionais já estariam familiarizados com a instituição militar e teriam tempo de carreira suficiente para que as repercussões de longo prazo do ofício pudessem ser identificadas em sua vida cotidiana.
Instrumentos
Para as entrevistas, foi elaborado um roteiro em que, na primeira parte, havia questões objetivas voltadas a aspectos sociodemográficos (idade; estado civil; patente; função; histórico profissional; tempo de atuação; com quem mora atualmente; constituição familiar) e, na segunda, questões que propiciavam relatos subjetivos relacionados à experiência pessoal na profissão. O roteiro da entrevista continha as seguinte questões:
"Como é ser policial militar?/Quando você escolheu a carreira de policial militar?/Por que você escolheu ser policial militar?/Tem algum policial militar na família?/Como a sua família reagiu a essa decisão?/Qual era a sua percepção sobre a corporação da PM antes de ingressar nela?/E agora? O que mudou?/Como é ser policial militar?/Você acha que esse tempo como policial trouxe mudanças no seu modo de ser?/ Como seus amigos reagiram a decisão de se tornar policial militar?/Perdeu ou ganhou algum amigo por ser policial militar?/Já pediram favores?/Como é a sua rotina com seus amigos?/E os relacionamentos dentro da instituição?/Você faz algum "bico"? Se sim, por quê?/E na sua saúde?/Algo a mais que você gostaria de falar?" Cada entrevista teve duração aproximada de uma hora, com gravação em áudio e, posteriormente, transcrição para análise.
Procedimento de coleta de dados e cuidados éticos
As entrevistas foram realizadas em espaço privado não determinado previamente, individualmente com cada participante, de acordo com sua disponibilidade de horário, em dependências do próprio batalhão. Mediante a autorização dos participantes, foram gravadas em áudio e transcritas posteriormente. Os policiais colaboraram com a pesquisa de maneira voluntária e foram informados de que poderiam interromper sua participação a qualquer momento, caso desejassem. Se sentisse necessidade, o participante poderia vir a ter suporte psicológico oferecido pela pesquisadora no Serviço de Saúde Ocupacional do Hospital das Clínicas-FMUSP após o período da pesquisa ou ser orientado a buscar atendimento psicológico no Hospital da Polícia Militar. O projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - protocolo nº 1.675.960.
Procedimento de análise de dados
Godoy (1995, citado por Câmara, 2013, p.182) considera a análise de conteúdo proposta por Bardin uma técnica metodológica que se pode aplicar em discursos englobando todas as formas de comunicação. A análise é feita por meio de procedimentos sistemáticos envolvendo três etapas: (1) pré-análise, (2) exploração do material e (3) tratamento do material, em que se fazem a inferência e interpretação do conteúdo das mensagens da pesquisa.
Foram definidas, para a análise das entrevistas, as seguintes categorias temáticas: carreira, impacto social, impacto familiar e impacto pessoal. A partir do conteúdo das entrevistas, foram divididas nas subcategorias: histórico ocupacional; família em relação à escolha profissional; percepção da PM antes e atualmente; em relação aos colegas de profissão; condições de trabalho; sentimentos referentes à profissão; vida afetivo-relacional; e influência da profissão nas relações afetivas e sociais.
Resultados
Neste relato, foram dados nomes fictícios aos entrevistados a fim de preservar suas identidades. Os cinco participantes eram do sexo masculino e suas idades variaram de 29 a 41 anos. Os policiais entrevistados trabalhavam em uma companhia/batalhão em um bairro da periferia da cidade de São Paulo no momento da entrevista.
Roberto e Carlos atuavam no policiamento ostensivo, ou seja, na rua, no período noturno (das 17h às 6h), e os outros três entrevistados atuavam no setor administrativo em horário comercial (das 8h às 17h) da companhia/batalhão onde foram realizadas as entrevistas. Todos os entrevistados trabalharam na rua em algum momento da carreira.
Histórico ocupacional
Entre os policiais entrevistados, quatro trabalham em funções que não eram relacionadas ao trabalho militar antes de ingressar nessa carreira. Eles trabalharam como mecânico, office boy, taxista, segurança de boate, vendedor de diversos itens, entre outros. Apenas João buscou a função de policial como primeiro emprego, afirmando acreditar ser uma vocação. Ele escolheu atuar em uma divisão renomada da PM após ouvir comentários de que os melhores policiais estariam lá, sendo sua escolha, portanto, devida ao status atribuído a essa divisão. Porém, ficou apenas dois anos nessa divisão, sendo transferido em seguida para o batalhão em que trabalha atualmente devido a conflitos com seus superiores. Ele e Alex têm formação em Direito e ambos são aprovados no exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), mas são impedidos de atuar na área por serem servidores públicos/policiais militares, de acordo com as normas da OAB. Alex afirmou que pretende abandonar a PM para poder exercer a carreira de advogado, pois não se identifica mais com sua atual profissão.
Os dois entrevistados que atuam no policiamento ostensivo (Roberto e Carlos) trabalham na rua desde o início da carreira, mudando apenas os locais de trabalho. Os outros três policiais entrevistados atuam no setor administrativo do batalhão há pelo menos um ano, mas antes trabalharam na rua em diferentes funções e divisões da PM. Marcelo está afastado da rua pois deslocou a clavícula; João contou ter sido transferido por dois motivos: por conflito com seu antigo superior e pela proximidade de sua residência; e Alex afirmou ter tirado a "armadura" de policial após ter realizado tratamento psicológico e psiquiátrico devido ao estresse causado por trabalhar na rua. Os relatos apontam que a escolha da profissão de policial militar não tem necessariamente relação com a reflexão sobre o significado de pertencer à corporação militar e o que isso pode acarreta na vida do sujeito.
Família em relação à escolha profissional
Roberto é o único dos entrevistados que tem algum familiar na PM e relata que o fato de crescer acompanhando as ações do pai, policial, em sua vida profissional o influenciou de forma decisiva na escolha da carreira. Apesar de seu pai ser muito "fechado" em relação à profissão, ele atribui suas conquistas a ela, fazendo-o querer trilhar o mesmo caminho. Roberto considera-se motivo de orgulho do pai, pois ficou em primeiro lugar na classificação da lista de aprovados para ingresso na carreira. Os outros quatro entrevistados não consideram ter tido influências familiares positivas ou negativas quanto à escolha da carreira.
Percepção da polícia militar anterior ao ingresso na carreira
Carlos e João prestaram o concurso para a PM por conselhos de amigos. João afirmou que quis entrar na PM por ter um colega de faculdade policial que lhe contou sobre a rotina da profissão e o porte de arma, despertando o seu interesse. Carlos e Marcelo apontaram que não sabiam exatamente o que era a profissão e ingressaram por ser por meio de concurso público, enxergando nisso uma oportunidade de estabilidade profissional e financeira. Carlos afirmou que prestou o concurso sem saber que era para a PM, pois achava que era para trabalhar como guarda de trânsito, mas admirava a postura que os policiais militares passavam para as pessoas. João não gostava de policiais e mudou de opinião após o ingresso na corporação.
Roberto, que ingressou na PM por influência de seu pai, que é militar aposentado, relatou que admirava a carreira, apesar de perceber em seu pai certo sofrimento relacionado a aspectos da atividade-fim. Já Marcelo afirmou que não conhecia nada sobre a PM e, durante a entrevista, disse com paixão que gosta muito ser policial militar, mesmo trabalhando em áreas afins. Em contrapartida, Alex relatou que tinha uma visão idealizada sobre o que era ser policial militar, e hoje, com mais conhecimento, não se identifica com a PM.
Percepção da polícia militar atualmente
Roberto e Alex criticaram a negligência em relação à saúde mental dos policiais. Segundo eles, a corporação não cuida do profissional de maneira preventiva, pois a carreira militar gera muito estresse e o aspecto psicológico não é pensado antes de o policial já estar doente e precisar de afastamento da função. Roberto e João mencionaram o idealismo presente nos policiais e Roberto citou o conteúdo do hino da PM como evidência desse comportamento.
Roberto, Carlos e Alex relataram a mudança na valorização que a sociedade lhes atribui por serem policiais militares, ou seja, consideram uma questão social que transforma a figura do policial em algo negativo, pois não seria mais uma profissão respeitada como afirmaram já ter sido quando ingressaram na carreira. Alex comentou sobre a valorização que a criança dá para um traficante ao vê-lo tendo uma "vida fácil". João usa um jogo de palavras ao se referir à recente limitação da atuação do PM: "direito aos manos".
Todos os entrevistados apresentaram críticas negativas em relação à corporação militar em diferentes momentos da entrevista. Carlos e Marcelo relataram sobre o regimento interno que prejudica a atuação do policial por limitar seu trabalho e Alex considera que esse regimento não se adaptou às mudanças sociais que ocorreram nos últimos anos. João considera que a corporação se tornou um ambiente político por aqueles que o comandam. Carlos considera que as leis e os governantes sejam a causa da precariedade da instituição militar.
Em relação aos colegas de profissão
Carlos referiu a importância dos vínculos de confiança que devem existir entre os policiais que atuam em conjunto no policiamento, mas que isso nem sempre acontece devido às diferenças pessoais. Roberto afirmou que falta tempo para estabelecimento de vínculo entre os policiais da mesma corporação, que compartilham o mesmo espaço. Considera que ele deve escolher com quem ficará na viatura, pois seu parceiro é seu subordinado e tem de obedecê-lo. Este policial acredita que deva selecionar aqueles com quem trabalhará a partir do seu julgamento, de valores morais e do entrosamento. Também afirmou que não dá liberdade para certos policiais, permitindo brincadeiras apenas daqueles que julga aptos para tal intimidade.
João, que atua na área administrativa, ressaltou a importância da integração entre o trabalho realizado internamente (administrativo) com o de quem está na rua, e disse que confia no potencial dos novos policiais para melhorar a corporação. Ele contou que não mantém contato com seus colegas que atuam no setor administrativo com ele, pois dedica seu tempo aos estudos para conseguir subir de patente e alcançar suas ambições na corporação. Apesar disso, considera manter bom relacionamento com seus colegas.
Alex afirmou que mantém um bom relacionamento com todos os seus colegas e que frequenta a casa daqueles com quem criou maior vínculo. Relatou que a companhia é muito unida e que o comandante é próximo de todos e um profissional centrado, tornando o trabalho tranquilo, diferente de como era quando trabalhava na rua.
Condições de trabalho
Ao relatar sobre suas condições de trabalho, Carlos afirmou que considera o policial militar responsável por manter a ordem na sociedade, apresentando sentimentos de onipotência relacionados à sua profissão. Contou que gosta de atender ocorrências, mas, em momentos diversos da entrevista, apontou a importância de se impor diante dos outros, incluindo as pessoas atendidas nas ocorrências e seus colegas de profissão, que são seus subordinados.
Trabalhar com o público foi a maior queixa entre os policiais entrevistados. Alex afirmou que o policial se prejudica diante da sociedade e na relação com o público que atende por não dominar as leis, que deveriam estar a favor do profissional em sua atuação. Roberto e Carlos referiram que há pessoas que tratam os policiais de maneira desrespeitosa, gerando estresse durante a jornada de trabalho. Roberto citou situações que o sobrecarregam emocionalmente pelo caráter da ocorrência, que gera tristeza. Ele relatou a importância do cansaço físico e psicológico durante a jornada de trabalho do profissional que atua no policiamento ostensivo e o quanto esses aspectos influenciam suas ações durante o trabalho e, consequentemente, sua vida pessoal.
Além do trabalho com o público, quatro entrevistados têm atividades fora da jornada na PM. Ou seja, a atividade policial é complementada com outras atividades laborais para aumentar a renda. Para os policiais que atuam 12 horas na rua e têm folga de 36 horas, há a possibilidade de ocupar o tempo livre com outras atividades em vez de investir na vida pessoal. Aqueles que trabalham no setor administrativo no horário comercial (das 8h às 17h) de segunda a sexta-feira, têm maior restrição quanto ao tempo para realização de outras atividades remuneradas.
Em relação à saúde, somente os entrevistados que trabalham na rua apontaram queixas relacionando a atividade e a saúde física: Roberto falou sobre a alimentação de baixa qualidade durante o policiamento na rua, pois não é possível parar para comer de maneira saudável e em horário regulado, principalmente quando se trabalha no turno da noite, e Carlos afirmou que fuma desde que ingressou na corporação. Todos os entrevistados relataram sentirem-se estressados devido à intensa carga horária de trabalho dentro e fora da corporação, ao atendimento ao público, à preocupação com a própria segurança e ao regimento interno da corporação. Roberto e Alex consideram que o regimento que deve ser seguido na PM é obsoleto, prejudicando a atividade-fim dos policiais em geral. Marcelo considera que o regimento mudou de maneira a limitar a atuação dos policiais na rua. Carlos considera que o regimento interno da PM, enquanto instituição, não mudou, porém, considera que os comandantes diretos mudaram suas formas de atuação, dificultando o trabalho dos subordinados que atuam na rua. Ele utilizou o termo "direito aos manos" para demonstrar sua insatisfação com as ordens dadas por seus superiores em relação à prática na rua.
Sentimentos referentes à profissão
Os entrevistados apresentaram sentimentos diversos em relação à profissão e à função que exercem atualmente. Quatro deles afirmaram sentir prazer no que fazem, apesar do estresse e das críticas em relação à PM como instituição. A profissão de policial exige muito deles, sendo difícil não misturar problemas pessoais com os problemas que enfrentam na rua, ou até mesmo as consequências que sofreram em suas vidas pessoais devido à profissão, mesmo para aqueles que atuam no setor administrativo atualmente. No entanto, esses quatro afirmaram que a satisfação pessoal de ser policial supera as dificuldades encontradas no cotidiano.
Apenas Alex afirmou que tem planos de deixar de ser policial e atuar como advogado, pois é o que tinha em mente quando decidiu ingressar na PM. Está investindo em sua pós-graduação e pretende pedir demissão quando concluí-la. A rotina diária, as mudanças de opinião a respeito da instituição e, portanto, a falta de identificação com a PM o fizeram buscar uma alternativa profissional.
Vida afetiva-relacional
Dos cinco participantes entrevistados, quatro se divorciaram em algum momento da vida. Roberto e Marcelo, que estão atualmente casados, afirmaram ter casamentos estáveis e felizes. Apenas João está namorando e nunca se casou. Aqueles que se casaram tiveram filho(s) em seu primeiro casamento. Ao que se refere a filhos, todos demonstram cuidado e proteção em relação a eles. Roberto e Alex têm a guarda de seus respectivos filhos e contam que estes optaram por ficar com eles por ter "relacionamento mais forte" do que com suas mães. Ambos contam que as ex-esposas não se opuseram à decisão, mantendo a relação sem conflitos. Roberto contou que sua atual esposa tem uma relação muito próxima com sua filha e isso o deixa feliz. Marcelo também afirmou que sua atual esposa tem um bom relacionamento com seus filhos e considera como fator determinante o rompimento de seu segundo casamento o fato de sua ex-esposa não gostar de seus filhos, que são do primeiro casamento.
De acordo com os relatos dos entrevistados que são pais, o vínculo afetivo mais significativo de seus filhos é com eles. O entrevistado que está solteiro pouco falou de seus vínculos afetivos, mencionando apenas o apoio de sua mãe em suas atitudes e decisões, e a relação de parceria com sua namorada para as realizações conjuntas em atividades que envolvam o Direito.
Influência da profissão nas relações afetivas e sociais
João sente que ter se tornado policial lhe trouxe benefícios como comportamento ativo, malícia e visão madura da vida. Roberto e Alex afirmaram que se tornaram mais frios com o passar dos anos na carreira. Eles consideram que esse comportamento e a maneira de lidar com as situações cotidianas influenciaram no rompimento de seus relacionamentos com suas ex-esposas. Carlos e Marcelo afirmaram que suas personalidades não foram influenciadas pela carreira de militar, apesar das mudanças na rotina.
Roberto e Alex afirmaram que a carreira de policial militar foi determinante para o rompimento de seus primeiros casamentos por tê-los tornado mais fechados quanto aos próprios sentimentos, tendendo a responder de maneira pouco emotiva às situações cotidianas e a demonstrar pouco envolvimento afetivo. Carlos acredita que nenhuma companheira aguenta ter o marido policial tanto tempo fora de casa devido ao trabalho, e por isso os casamentos não duram. Apesar desse comentário, afirmou que a carreira não influenciou no término de seu casamento. Roberto considera que as mulheres se aproximam dos policiais militares pela segurança e pela estabilidade financeira que elas consideram que eles podem lhes proporcionar. Ele afirmou, também, ser diferente estar com um homem fardado e com alguém de profissão comum.
Os entrevistados relataram que não conseguem se dedicar muito à família, pois, quando estão de folga, sentem-se cansados e estressados. Roberto e Carlos, que ainda trabalham no policiamento, afirmam não conversar sobre sua rotina com seus familiares e amigos e dizem adotar esse comportamento como uma forma de proteção. Em relação à família, desejam protegê-la da realidade que encaram cotidianamente, das ocorrências a que são chamados e dos riscos a que estão expostos ao lidar com indivíduos armados.
Em relação aos amigos, os policiais pretendem proteger a si mesmos, pois consideram arriscado confiar em supostos amigos levianamente. Foram citados exemplos de colegas policiais que foram mortos durante o serviço e em locais públicos, por vingança de indivíduos que foram presos por eles, ao terem suas identidades profissionais reveladas. Eles apontam, assim, receio de que suas conversas possam ser ouvidas por qualquer pessoa quando estão em locais públicos e escassa confiança em pessoas próximas. Todos afirmaram que seu círculo social diminuiu drasticamente após o ingresso na carreira de militar e que seus relacionamentos sociais se restringem a amigos de infância e/ou amigos da mesma profissão. Relatam que evitam falar sobre a rotina da profissão com seus amigos próximos e familiares, mas trata-se de uma tentativa de se "desligar" de suas funções e conseguir descansar.
Eles relatam sentir que, devido à carreira, muitas pessoas, incluindo familiares e amigos, se aproximam deles por interesses relacionados a possíveis vantagens que a profissão pode lhes oferecer. Todos os entrevistados relataram que seus conhecidos os procuram por interesse, para que eles eventualmente ajudem a resolver alguma situação envolvendo multa, apreensão de carro, informações burocráticas sobre procedimentos realizados pela PM, entre outros. Todos afirmaram que se incomodam com esses pedidos e que o máximo que ajudam é dando informações sobre o que pode ser feito legalmente, mas que não realizam esses favores que lhes são solicitados.
Os entrevistados contaram que seus familiares sentem medo pelo que pode lhes acontecer, considerando que aumentaram os ataques a policiais nos últimos anos, pois, segundo eles, não existe mais o respeito a esses profissionais como existia antigamente. Todos os entrevistados demonstraram viver em estado de alerta e afirmaram que o policial está em constante risco, pois agora "os policiais que devem viver com medo e não os criminosos". Carlos afirmou que anda sempre armado e, dependendo do local para onde vai, anda com duas armas guardadas em diferentes lugares do corpo. Em compensação, o policial Alex afirmou que não anda mais armado para lugar algum.
Discussão
Nas entrevistas, entre os fatores relacionados à profissão que influenciam a vida dos policiais destacaram-se a exposição ao risco e o medo decorrente. Esses riscos não se restringem às situações que ocorrem no período de trabalho, em que se está exposto e identificado pela farda. Eles invadem os aspectos relacionais à vida em geral. Estando à paisana ou trabalhando, ser policial militar apresenta-se como algo perigoso, que se traduz na sensação de estar sempre em risco.
Todos os entrevistados citaram exemplos de situações em que colegas foram mortos em ação da polícia ou foram vítimas de homicídio premeditado. O policial está em contato direto com a morte, que ocorre, por exemplo, ao presenciar um colega levar um tiro, ou até ser morto. Para aqueles que atuam no policiamento ostensivo, o risco é maior, pois eles estão mais expostos e são, eventualmente, alvos de vingança, fato que contribui para o sentimento de medo. Sentir que a atividade profissional expõe a riscos sem que sejam tomadas atitudes de proteção pode originar sentimentos de menos valia, de humilhação, em forma de vivência depressiva, ou de raiva, podendo alimentar comportamentos destrutivos variados.
Os relatos de Roberto e de Carlos demostraram ser grande a preocupação com seus colegas de viatura, sendo necessário ter sintonia e rápido entendimento para se obter sucesso nas demandas que surgem no cotidiano. Ao se encontrarem em situações perigosas, eles consideram a parceria entre eles um fator determinante para protegerem uns aos outros e para conseguirem realizar seu trabalho. A vivência de desamparo diante da fragilidade da vida e a necessidade de contar com o colega ficam claros pela natureza do trabalho policial. A responsabilidade pela vida do colega e a ideia de ter que confiar a própria vida a ele representam expressiva carga emocional.
Carlos e Marcelo citaram os limites que a ação do policial militar tem hoje em dia. Para eles, o controle da atuação militar é percebido negativamente, pois perderam sua autonomia e o poder de resolver as situações à sua própria maneira. Eles relataram que não há negociação entre policiais que atuam na rua e seus superiores. As regras são impostas, e não discutidas. A corporação da PM segue um regimento interno único em todo o Estado, delimitando o trabalho prescrito, porém, o trabalho real depende da região em que se trabalha e do tipo de situações que ocorrem no cotidiano, havendo variações nos níveis de risco. Esses entrevistados demonstraram entender que está havendo um movimento de perda de autoridade por parte da PM. Cabe ao profissional conseguir elaborar maneiras de adequar o seu trabalho às regras institucionais estabelecidas. Isso significa que eles sentem que não há, nas decisões, consideração pelo saber de ofício próprio de quem vive no cotidiano de atuação profissional as situações sobre as quais se delibera, o que resulta em medidas cerceadoras e nem sempre adequadas.
Apesar dos riscos decorrentes da profissão, quatro dos cinco entrevistados apresentaram motivação para continuar atuando na área. Roberto citou o hino da PM que se refere à "legião de idealistas", termo também utilizado por João ao se referir aos seus companheiros. Para esses quatro policiais, a atividade profissional, apesar de todas as dificuldades apontadas, colabora para a constituição de uma identidade em que eles se veem inseridos em um trabalho e em uma corporação que tem sentido e importância, e no qual reconhecem a função de utilidade, que pode propiciar orgulho e satisfação. Assim, é possível perceber que esse trabalho responde a alguns dos anseios emocionais de quem o realiza.
Dos entrevistados, Alex foi o único que afirmou não se identificar mais com a PM e falou de sua pretensão de mudar de profissão. Ele também foi o entrevistado que mais contou exemplos de situações em que os policiais sofreram ataques. O desgaste no trabalho não se atribui somente ao cansaço físico, mas, principalmente, ao psicológico. Roberto denunciou que o aspecto psicológico do policial só é visto quando ele precisa ser afastado do trabalho. Atuar em uma profissão que envolve riscos e diversas situações imprevistas exige preparo físico e emocional.
Mesmo com as dificuldades encontradas pela imposição de regras institucionais que eles questionam, os policiais militares que atuam na rua dizem encontrar mais liberdade para realizar seu trabalho, já que o controle institucional não é tão direto como quando se está dentro do batalhão. Enquanto estão na rua, o trabalho é pautado em parceria com um colega, as regras institucionais aparecem, mas de forma menos cerceadora. Isso aponta para uma relação de confiança e cumplicidade que possibilita ter uma margem para deliberar com os colegas a respeito das ações a serem realizadas. A psicodinâmica do trabalho atribui grande importância para a confiança entre os pares e para a possibilidade de deliberação do grupo de trabalhadores sobre o próprio trabalho (Dejours e Gernet, 2011). Esse aspecto mostra ser algo que promove a saúde psíquica ao possibilitar que se melhore alguma condição do trabalho a partir de relações de confiança entre colegas. C. S. Lopes, Ribeiro e Tordoro (2016) apontaram que a resistência à aplicação dos princípios dos direitos humanos é maior entre os policiais que atuam na rua dos que atuam em funções administrativas. Pode-se pensar que, além da distância física em relação às chefias contribua para isso, a exposição mais direta à violência e as reações emocionais por sentir-se mais exposto ao perigo gera e/ou alimenta impulsos agressivos.
A falta de reconhecimento social também se apresentou como um dos fatores importantes para os policiais militares, pois eles lidam, ou lidaram, diretamente com o público e sentem-se rejeitados na sociedade. Segundo Zilli e Couto (2017), a avaliação da população a respeito do trabalho dos policiais militares está relacionada aos níveis de efetividade das corporações. A confiança e a legitimidade percebida são responsáveis pela colaboração (ou não) entre a população e a PM. Alguns dos policiais, como Roberto e João, ao ingressar na carreira, tiveram expectativas idealizadas quanto à função e ao reconhecimento social do militar. Ao perceberem que o policial não é uma figura respeitada, admirada e temida como eles imaginavam, eles se frustraram. Atualmente, o Brasil está sofrendo fortes mudanças políticas e sociais que envolvem os grupos militares e como ele são percebidos. O policial militar, em princípio, está em posição de autoridade, sendo aquele que tem o papel de manter a ordem e a segurança na sociedade, mas, atualmente, os militares viraram alvo de críticas de maneira geral, perdendo seu reconhecimento social. Gernet e Dejours (2011) afirmam que o reconhecimento do outro contribui para a construção do sentido do trabalho, dando significado para o sofrimento, que pode ser, assim, transformado em prazer. Quando isso não ocorre, há o risco da desestabilização da identidade do trabalhador e de perda do sentido subjetivo do esforço empenhado. O silêncio sobre o trabalho realizado é um aspecto do fracasso do reconhecimento.
Antes do ingresso na corporação, apenas Roberto tinha contato direto com a profissão em si. Os outros entrevistados apontaram ter percepções idealizadas sobre a corporação, tanto positivas quanto negativas. Sales e Sá (2016) consideram que na formação e no trabalho do policial há aspectos repetitivos e que não há qualquer espaço para a criatividade. Os autores frisam, também, a importância que a hierarquização e a doutrina militar têm no funcionamento da corporação e concluem que esses aspectos contribuem para a construção de identidades mais rígidas.
A priori, nas entrevistas, a escolha profissional pareceu mais pautada pela oportunidade de emprego estável do que em alguma ideia de vocação. Apesar disso, exceto Alex, todos relataram ter satisfação com seu trabalho. Para os policiais, desempenhar um papel de poder diante da sociedade pode tornar-se parte de sua identidade, estabelecendo o que Azevedo (2003) descreve como vínculos inconscientes com valores, normas e práticas da instituição.
Ingressar na PM trouxe aos participantes da pesquisa sentimentos de pertencimento, ou seja, representou um lugar na sociedade. A vontade de ajudar e o poder atribuído pela profissão foram as motivações apresentadas pelos entrevistados para a escolha da carreira. A importância da sensação de poder para a escolha da profissão pode ser exemplificada tanto na valorização do porte de arma quanto no comentário do entrevistado que explica que os bandidos se escondiam de medo quando a polícia chegava.
No que se refere aos efeitos da profissão sobre os relacionamentos, que é o foco deste estudo, os entrevistados apontaram desconfiar daqueles que se aproximam deles. Citaram a situação de conhecidos que os procuram apenas por interesses ligados à profissão de policial militar, buscando a realização de favores, assim como interesse afetivo por parte de mulheres. Em suma, eles perceberam que o fato de ser policial militar pode despertar interesse em algumas pessoas, fazendo-as se aproximarem com segundas intenções, sem um interesse genuíno no contato pessoal. Como reação, eles podem evitar novas aproximações, desconfiar da qualidade dos vínculos que formam e, eventualmente, assumir posturas mais arredias.
Por permanecerem muitas horas trabalhando, seja como policial, seja nas atividades laborais extras, os profissionais dispõem de pouco tempo para investimento afetivo na família e no círculo social ao qual pertencem. Para aqueles que atuam no policiamento ostensivo, a organização de uma rotina nas atividades e, inclusive na alimentação, encontra desafios a serem superados. Além do longo período dedicado ao trabalho, o constante estado de alerta proporciona restrição de vínculos afetivos relacionados à confiança. Todos os entrevistados relataram manterem-se distantes de lugares que possam envolver alguma situação adversa relacionada ao papel militar.
Não poder comentar com familiares e amigos mais próximos sobre a vida no trabalho, que os afeta tanto, é um fator de distanciamento que prejudica os relacionamentos, colaborando para o isolamento emocional. Sem diálogo e compartilhamento de experiências não há empatia e compreensão, o que aumenta o distanciamento e o sofrimento. Os entrevistados afirmaram que se tornaram mais frios com seus familiares e ao lidarem com situações adversas após o ingresso na PM. Nas entrevistas, fica claro o esforço para reprimir as emoções como estratégia de enfrentamento das adversidades do cotidiano profissional. Eles atribuem a isso dificuldades conjugais que tiveram.
Derenusson e Jablonski (2010, como citado em Paixão, 2013, p.21) realizaram uma pesquisa com esposas de policiais militares e observaram que 32% das entrevistadas percebiam seus maridos mais quietos e distantes e 30%, mais irritados. No entanto, dois dos entrevistados têm a guarda de seus filhos, enquanto outro afirmou ter se divorciado devido a conflitos entre sua ex-esposa e seus filhos. Esses dados apontam para o envolvimento afetivo mais profundo, com sentido de cuidado e proteção em relação aos filhos, contrariando o que dizem a respeito das outras relações interpessoais. Pode-se inferir que esse envolvimento afetivo com os filhos seja mais profundo devido à confiança na genuinidade de seus laços. O investimento emocional demonstrado pelos entrevistados ao falar da relação com os filhos contrasta com o isolamento social e com a falta de confiança referida às outras relações.
A parceria com colegas de confiança, as estratégias colocadas em prática para dar conta das adversidades do trabalho e a qualidade dos relacionamentos, especialmente com os filhos, parecem ser fatores da maior importância para o bem-estar desses policiais. Observa-se, pelos relatos, que ser policial militar repercute amplamente na vida profissional, interferindo na forma como se estabelecem e se mantêm seus laços sociais, relacionamentos, inserção na comunidade e contato com a família. A vida do policial pareceu ser bastante marcada pela preocupação com a segurança, pela sensação de ameaça e pela necessidade de controle dos riscos que a cercam, podendo influenciar no comportamento da família. Paixão (2013) observou que famílias de policiais militares evitam contato com notícias sobre violência e sobre operações policiais levando à sugestão de que, quanto maior o risco vivido pelo profissional militar, menos diálogos a família tem sobre os riscos. Mesmo com a tentativa dos policiais de poupar a família, os adolescentes entrevistados demonstraram preocupação constante com o pai policial enquanto ele está trabalhando. Paixão (2013) apontou, também, para a prevalência de transtornos psiquiátricos, como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e transtorno de estresse pós-traumático em adolescentes filhos de policiais na cidade do Rio de Janeiro, alertando para a influência que a profissão tem sobre os filhos dentro e fora de casa.
Com o ingresso na corporação, eles sentem que perderam a possibilidade de criar vínculos de confiança com pessoas que não são policiais, de frequentar qualquer ambiente sem discriminação e de se sentirem seguros. A natureza do trabalho os coloca em contato direto com a violência e com a necessidade de seu controle. A percepção da exposição a riscos e a sensação de impotência representam importante sobrecarga emocional. Como medida de segurança, ou por desconfiar da genuinidade de laços, os policiais parecem costumar manter um distanciamento maior das pessoas do que lhes seria natural. Isso influencia também seus relacionamentos familiares, colaborando para isso o fato de sentirem que não convém falar sobre sua rotina para as pessoas que lhes são mais próximas. As relações que apareceram com maior significado emocional são aquelas com os filhos. A esse respeito podemos pensar que os filhos mobilizam tanto o senso de responsabilidade quanto a possibilidade de realização de projeto voltado para o futuro, como é a criação de uma nova geração.
Os policiais falaram a respeito de esfriamento emocional e falta de diálogo com familiares. Eles demonstraram, também, importante ligação emocional com seus filhos. No entanto, não houve menção de possíveis repercussões dessas mudanças no modo de reagir e de interagir com seus filhos. Podemos pensar em uma falta de percepção a esse respeito, eventualmente baseada na negação. Deve-se considerar, também, que no roteiro de entrevista não havia uma questão específica sobre esse aspecto.
O desgaste da imagem da polícia também pesa sobre os policiais, sobre a forma como se sentem reconhecidos e na maneira como se relacionam com as pessoas em geral. O maior tempo de exercício profissional esteve relacionado, nas entrevistas, com uma situação subjetiva mais favorável no que se refere ao bem-estar do policial em seu exercício profissional.
O trabalho do policial militar parece afetar sensivelmente a vida desses profissionais. A proximidade com a violência, a experiência de sofrer riscos e a rigidez no seguimento das normas são fatores que marcam a sua experiência. A imagem pública da PM também aparece como importante fator na forma como esses profissionais sentem que são reconhecidos e, portanto, na maneira como vivem o próprio trabalho. A esse respeito, pode-se citar tanto a expectativa de ser uma figura respeitada, de autoridade, quanto ser alvo de crítica e desprestígio. Destacaram-se, nas entrevistas, a vivência do medo, que extrapola o período em que o profissional está em atividade, e a necessidade de cautela, que, entre outros aspectos, impede a comunicação livre das experiências vividas no trabalho. As relações mais próximas dos policiais, em especial as conjugais, parecem ser prejudicadas pelo que eles denominam como frieza emocional desenvolvida como característica para suportar a profissão.
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Recebido em: 29/3/2018
Primeira decisão editorial em: 8/6/2018
Versão final em: 30/10/2018
Aceito em: 10/11/2018