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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.21 no.4 Brasília out./dez. 2021
https://doi.org/10.5935/rpot/2021.4.21865
10.5935/rpot/2021.4.21865
"Por causa da liberdade que eu tenho": trabalho e cotidiano de mulheres pipoqueiras
"For the freedom I have": work and daily life of female popcorn makers
"Por la libertad que tengo": trabajo y vida cotidiana de mujeres fabricantes de palomitas
Chiara Gomes Costanzi; Alexandre de Pádua Carrieri; Thaís Zimovski de Oliveira; Gabriel Farias Alves Correia
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Informações sobre o autor principal
RESUMO
Esta pesquisa buscou compreender, por meio dos discursos que atravessam o fazer pipoca, como se (re)produzem as identidades de gênero no cotidiano de mulheres pipoqueiras em Belo Horizonte. Para tanto, foi realizada uma análise do discurso de vinte e oito entrevistas semiestruturadas com mulheres pipoqueiras, além da observação participante e do diário de campo. Em consonância com as teorias discutidas, notamos que a divisão sexual do trabalho faz com que essas sujeitas sofram duplamente as consequências do cenário de precarização e informalidade do trabalho. À guisa de conclusão, estratégias de liberação e resistência caracterizadas por táticas singulares no cotidiano do fazer pipoca foram observadas e analisadas.
Palavras-chave: gênero, trabalho informal, pipoqueiras.
ABSTRACT
This work sought to understand how gender identities are (re)produced in the daily lives of female popcorn makers in Belo Horizonte through the conversations that surround the popcorn making. For this purpose, a discourse analysis of twenty-eight semi-structured interviews with female popcorn makers was carried out, in addition to participant observation and a field diary. In line with the theories discussed, it was noted that the gender division of labor makes them suffer twice the consequences of the precarious and informal work scenario. By way of conclusion, strategies of liberation and resistance characterized by singular tactics in the daily life of making popcorn were observed and analyzed.
Keywords: gender, informal work, popcorn makers
RESUMEN
Este trabajo buscó comprender, a través de los discursos que atraviesan la elaboración de las palomitas de maíz, cómo se (re)producen las identidades de género en la vida cotidiana de las mujeres fabricantes de palomitas en Belo Horizonte. Para ello, se realizó un análisis del discurso de veintiocho entrevistas semiestructuradas con mujeres fabricantes de palomitas, además de la observación participante y un diario de campo. En línea con las teorías discutidas, se observó que la división sexual del trabajo les hace sufrir el doble de las consecuencias del escenario de precarización e informalidad del trabajo. A modo de conclusión, se observaron y analizaron estrategias de liberación y resistencia caracterizadas por tácticas singulares en la vida cotidiana de hacer palomitas de maíz.
Palabras clave: género, trabajo informal, fabricantes de palomitas.
Este artigo resulta de um projeto que teve como propósito a discussão histórica, cotidiana, territorial e identitária de trabalhadores pipoqueiros da região central da cidade de Belo Horizonte. Neste artigo, nós nos ativemos ao objetivo de compreender, por meio dos discursos que atravessam o fazer pipoca, como se (re)produzem as identidades de gênero no cotidiano de mulheres pipoqueiras belorizontinas. Para tanto, assumimos que o trabalho desenvolvido por essas sujeitas não envolve somente uma produção física, mas também um trabalho doméstico. Com essa proposta, enfatizamos que resgatar para os estudos sociais do trabalho os saberes de grupos que tiveram suas práticas deslegitimadas por conhecimentos hegemônicos pode contribuir para ampliar os conceitos de cotidiano (Carrieri, Perdigão, Martins, & Aguiar, 2018), de gênero (Diniz, 2016; Scott, 1995) e de trabalho (Lima, 2018).
As trabalhadoras pipoqueiras são denominadas ambulantes neste estudo a partir da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) (instituída por portaria ministerial n.º 397, de 9 de outubro de 2002). Nesta classificação, enquadram-se as sujeitas que realizam o comércio de seus produtos em logradouros públicos com autonomia em todo o processo de trabalho, que envolve todo o processo, desde a compra dos insumos e equipamentos, até como, em que local e de que forma ocorrerá a entrega do produto final ao cliente. Ao mesmo tempo, o processo de trabalho envolve uma série de precariedades, como a inexistência de legislação trabalhista específica e a insegurança previdenciária, o que nos motiva a compreender as peculiaridades cotidianas desse grupo.
Nossa proposta se torna relevante ao realçarmos as vivências de sujeitas renegadas ao segundo plano no mainstream dos estudos sobre o trabalho (Carrieri, Santos, Pereira, & Martins, 2016). Buscamos realçar o protagonismo de histórias e práticas de trabalhadoras informais que procuram modos de sobreviver frente às crises do sistema capitalista (Araújo & Morais, 2017) e às violências sobre o feminino (Federici, 2016). Partimos, então, da tese de que essa dupla instabilidade impacta as formas com que as sujeitas reutilizam as imposições cotidianas, conforme a base teórica de Michel de Certeau (1994).
As vivências cotidianas localizadas na experiência de mulheres nos espaços domésticos e públicos podem, igualmente, contribuir para compreender como os saberes localizados dessas sujeitas têm influenciado suas práticas organizativas na informalidade urbana e nas relações que estabelecem nas múltiplas interações sociais. No Brasil, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), na pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, demonstrou que o número de lares brasileiros chefiados por mulheres subiu de 23% para 40% entre 1995 e 2015, sendo que, nos setores urbanos da região Sudeste, esse aumento foi de 284% (Fontoura, Rezende, Mostafa, & Lobato, 2017).
A divisão sexual que permeia as relações de trabalho faz com que as mulheres de classes sociais mais baixas, como as pipoqueiras, ocupem as profissões socialmente menos reconhecidas e sofram, frequentemente, abusos diversos em sua existência por estarem em posição de vulnerabilidade social, com longas jornadas de trabalho e baixos salários. De fato, a incapacidade dos setores formais de absorver toda a mão de obra provoca reconfigurações sociais e econômicas nas práticas que os sujeitos e sujeitas empregam para sobreviver nas cidades modernas (Duclos, 2018). Ademais, a atuação enquanto trabalhador por conta própria, responsável por 25,3% do total ocupado no país, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), é a principal alternativa que mulheres de baixa renda encontram aos trabalhos subalternizados formais para obter renda.
Para compreendermos em maior profundidade as influências do recorte de gênero nas práticas observadas, realizamos vinte e oito entrevistas semiestruturadas com mulheres pipoqueiras em Belo Horizonte. As entrevistas foram realizadas nos pontos de vendas de pipoca nas ruas, entre os meses de março e julho de 2017. Também elaboramos a triangulação dos dados utilizando, além da técnica já mencionada, a observação participante e as anotações do diário de campo (Zacarelli & Godoy, 2010).
Dando prosseguimento à compreensão do material resgatado, optamos pelo uso da técnica da Análise Linguística do Discurso (ALD), uma vez que esta é capaz de proporcionar uma melhor compreensão da realidade social de cenários particulares e dos conflitos ideológicos quando utilizada em conjunto com a pesquisa qualitativa (Carrieri et al., 2016). Para a apresentação dos resultados obtidos, a pesquisa segue linhas teóricas em que contextualizamos as noções de cotidiano, trabalho informal e gênero. Posteriormente, têm-se os métodos utilizados, vistos como caminhos percorridos na pesquisa de campo, seguidos pela análise dos resultados e, por fim, pelas considerações finais sobre o estudo.
Cotidiano e Trabalho Informal: as Novas Formas de Praticar o Estabelecido
O ponto de vista sobre o cotidiano tratado nesta pesquisa parte da perspectiva proposta por Certeau (1994). Trata-se de uma concepção que considera o cotidiano como lugar do exercício da criatividade, recriação, reinvenção e resistência, pelo qual, como explica Carlos Ferraço (2017), os sujeitos e sujeitas comuns não absorvem ideias de forma passiva. Certeau (1994) chamava anteriormente atenção para o fato de que estudar esses sujeitos historicamente colocados à margem é destacar os constantes reusos, reinterpretações, reinvenções, reconsiderações que são possíveis de serem realizados a partir de ações astuciosas e novas formas de praticar o que está estabelecido. Partimos, portanto, do princípio de que o "cotidiano não é um terreno estanque, pelo contrário é um território móvel, rico em interações sociais em que se tece a história e se reconstroem as memórias" (Gouvêa, Cabana, & Ichikawa, 2018, p. 301).
Gouvêa et al. (2018) também frisam que o cotidiano possibilita processos de ruptura daquilo que é posto por leis e normas, na medida em que compõe um espaço passível de pequenas subversões pelos mais "fracos" muitas vezes despercebidas pelos detentores de poder, já que os indivíduos podem criar e recriar ações a partir de suas práticas cotidianas. Isso converge com a proposta de Norberto Guarinello (2004) ao considerar o cotidiano como tempo presente, reconhecendo uma extensa gama de situações que permitem interconectar passado, presente e futuro. Ao fazer isso, esse presente deixa de ser encarado como simples reprodução para ser reconhecido como o que possibilita outros projetos de futuro, já que, para o mesmo autor, o cotidiano seria o tempo que unifica estrutura e ação.
No campo das ciências sociais, Barros e Carrieri (2015) destacam que estudar o cotidiano possibilita que os "outros", historicamente marginalizados, possam ser ouvidos a partir das experiências vivenciadas no dia a dia e da realização de tarefas rotineiras. Os trabalhadores informais, no nosso ponto de vista, são um grupo que possui o seu saber marginalizado. Mesmo que, conforme apontado por Dalberto e Cirino (2018), a partir de mais de uma década de expansão de renda a informalidade tenha se reduzido, ela ainda possui impactos significativos sobre os trabalhadores, principalmente sobre aqueles que possuem menores rendas e que, por isso, são mais vulneráveis economicamente. O estudo dos autores demonstra diferenças substanciais entre os rendimentos dos trabalhadores que se alocam nos setores formais e informais, sendo que os últimos também não poderão desfrutar dos sistemas de seguridade.
Além disso, o fenômeno se altera de acordo com regiões e classes de rendimento (Dalberto & Cirino, 2018), e, por isso, as mulheres pipoqueiras serão duplamente afetadas pelas vulnerabilidades, violências e abusos presentes nas relações sociais que se estabelecem nesse meio. O Brasil possui um contingente significativo de trabalhadores das classes sociais mais baixas que, por falta de qualificação e recursos, se insere e se submete a condições de trabalho mais precárias, proporcionando um avanço da acumulação de capital para as classes mais abastadas. Reforçam-se, por meio dessas práticas, as desigualdades sociais, de exclusão e de concentração de renda. Com relação às ações políticas promovidas pelas instituições, Passos e Lupatini (2020) apontam como a chamada contrarreforma trabalhista, estabelecida pela Lei n.o 13.467 de 13 de julho de 2017, justificada como meio de combater o emprego informal, ao flexibilizar as exigências fiscais, na verdade "em nada alterou os índices de desocupação e, além disso, aumentou o número de trabalhadores com relações de trabalho informais" (Passos & Lupatini, 2020, p. 139).
Dessa maneira, justificamos o esforço na busca pela compreensão das ramificações do problema, devido ao fato de ser essa uma realidade social que o campo de estudos sobre mulheres não pode deixar de observar, visto que qualquer horizonte de mudança deve alcançar o mundo das mulheres periféricas, as quais não dominam a linguagem hegemônica sobrevalorizada pelas instituições que promovem visibilidade na sociedade (Arruzza, Bhattacharya, & Fraser, 2019). A noção de cotidiano certeauniana mostra-se, nesse contexto, como um caminho profícuo para compreender as estratégias e táticas empregadas na dinâmica das relações de poder nesta pesquisa. Mais especificamente, o autor esclarece em sua obra que "as estratégias são as ações que desvelam certa resistência na relação tempo e espaço, enquanto as táticas "apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder" (Certeau, 1994, p. 102).
Por sua vez, Gouvêa et al. (2018) mostram como estas duas dimensões, táticas e estratégias, são fundamentais na compreensão do cotidiano. Isso porque, para os autores, as táticas são as artes de manobrar em que sujeitos e sujeitas lançam mão de pequenos acontecimentos do dia a dia: fissuras deixadas por outro em suas ações, conseguindo, assim, impactar as relações de forças que transitam entre ambos. Já as estratégias, por outro lado, seriam o esforço que busca uma organização em nível macro colocada em uma situação de dominação e que procura construir uma rede de referências que dê suporte a uma nova organização da realidade dada.
Com base em Certeau (1994), procedemos à análise dos trabalhos das sujeitas e suas experiências particulares, observando que elas não se curvam frente às imposições com passividade e disciplina. Diferentemente da ótica da apatia, partimos da concepção que vislumbra as ações diversas, múltiplas e plurais das sujeitas, as quais ocupam espaços, podem criar lugares e alterar formas de sobrevivência heterogêneas, pautadas em concepções emergentes e ordinárias. No próximo tópico, buscamos discutir como as construções de gênero afetam as experiências de mulheres no trabalho informal e, com isso, possibilitam novas estratégias e táticas no cotidiano destas trabalhadoras.
Construções de Gênero e o Lugar do Feminino na Re(Produção) Social
A partir de acordos constantes dos indivíduos sobre ideais culturais do que se considera adequado para homens e mulheres na vida em sociedade, constroem-se os dispositivos de gênero. Distante de ser algo dado, gênero, na perspectiva de Certeau (1994), é uma construção negociada cotidianamente entre atores sociais. Expoentes nomes dos estudos feministas como Scott (1995) mostram que os gêneros podem ser compreendidos como categorias construídas na história como base da epistemologia e da moral ocidental, subjugando não apenas os corpos femininos, mas delimitando toda a construção de conhecimento científico ao padrão binário da modernidade.
Questionando a noção de neutralidade política do saber, Jaggar e Bordo (1997) evidenciam como a tradição filosófica "continua a exaltar" características percebidas culturalmente como masculinas, como razão e dualidade, e a "depreciar e suprimir" características culturalmente percebidas como femininas, como emoção e subjetividade (Jaggar & Bordo, 1997, p. 2). Segundo as autoras, isso decorre de "todo um aparelho capaz de produzir discursos verdadeiros sobre o sexo" (Souza & Carrieri, 2010, p. 52) os quais reduziram o corpo e a natureza a um regime binário ao estabelecer uma divisão das pessoas em homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, entre outros binarismos.
Para Butler, o gênero acompanha a lógica ambígua das relações de poder, as quais constituem os processos de subjetivação dos indivíduos em sociedade. Nas palavras da autora, isso se trata precisamente da "dependência fundamental de um discurso que nunca escolhemos, mas que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossa ação" (Butler, 2017, p. 10). Mais especificamente, de acordo com Scott (1995, p. 21), gênero se trata de:
[...] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de significar as relações de poder [...] O gênero é, portanto, um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana.
Desse modo, em estudos nessa perspectiva, empenha-se um esforço para desconstruir a binaridade utilizada para tratar homens e mulheres como polos opostos a partir do resgate da complexidade de cada sujeito. Devemos observar que as masculinidades e as feminilidades são fragmentadas e divididas (Scott, 1995) e que, dessa forma, gênero operaria por meio de uma construção social de representações, utilizada socialmente para articular regras entre sujeitos. Os processos de produção de sentidos da experiência existencial a partir dos quais são geradas relações de significação suprimem as ambiguidades para criar uma ilusão de coerência entre o masculino e o feminino. Por meio dessa supressão das diferenças, cria-se um padrão de práticas que permite que a dominação da masculinidade hegemônica se perpetue (Diniz, 2016).
É importante também observar como as feminilidades são afetadas por outros marcadores sociais como raça, sexualidade e classe, os quais não podem ser resumidos a algo dado, por estar em constante negociação entre sujeitos em campos de poder (Diniz, 2016). Da mesma forma, dentro dos estudos sobre trabalho, a análise sobre as diferenças de gênero não pode ser resumida apenas ao âmbito profissional, mas deve incorporar também as demais esferas da vida cotidiana na tentativa de compreender como o dispositivo de gênero atua sobre as práticas desses sujeitos, bem como sobre suas relações e práticas de trabalho (Teixeira, Saraiva, & Carrieri, 2015).
Na busca por explicações, Lima (2018) assevera que, atualmente, as diferenciações impostas às mulheres ocorrem por características que se estabeleceram em nível cultural e, por isso, acontecem em todos os ambientes da sociedade. O universo de relações de poder no qual as pipoqueiras se inserem não se associa apenas ao patriarcado, mas também a uma sociedade de classes e racista, e, portanto, são tão complexas as formas de diferenciação entre homens e mulheres (Carneiro, 2015; Lima, 2018). O feminino, pelo fato de estar ligado à domesticidade, à privacidade, ao conforto e ao bem-estar da família, foi naturalizado durante séculos (Federici, 2016), bem como se associou a figura do homem ao papel de provedor (Diniz, 2016). Mulheres de classes sociais mais altas, para se deslocarem da esfera do trabalho reprodutivo, delegam a função doméstica dos cuidados com a casa, família e com as crianças a outras mulheres, comparativamente mais desprovidas de recursos, que, por sua vez, necessitam trabalhar para sustentar suas famílias ou complementar a renda doméstica (Teixeira et al., 2015).
Como demonstra Hirata (2016), o primeiro grupo de mulheres depende do outro para existir, e, nas classes mais baixas, parentes e vizinhos são um recurso importante para as menos favorecidas economicamente que precisam sair para trabalhar fora de casa (Hirata, 2016). Em paralelo, para Federici (2016), o processo histórico de constituição da sociedade capitalista baseou as relações de trabalho em uma dinâmica de exploração como condição necessária para a reprodução do capital. Historicamente, as mulheres, além de serem consideradas como responsáveis únicas pelo trabalho reprodutivo, tiveram sua mão de obra desvalorizada dentro das relações de trabalho (Federici, 2016). A cultura sexista no capitalismo faz com que exista, além das diversas formas de assédio que se encontram em todos os ambientes, igualmente uma diferenciação salarial entre homens e mulheres; por conseguintes, a elas são destinadas as maiores fatias de trabalho informal, mal remunerado e não qualificado (Lima, 2018).
Essa inferiorização do trabalho das mulheres tem amplas implicações para as políticas sociais e econômicas, para instituições legais e outras, assim como para o status das mulheres em geral. Mulheres de classes sociais mais baixas, segundo Degraff e Anker (2015), têm suas atividades laborativas pouco reconhecidas socialmente e são engajadas na força de trabalho durante um período substancial. Além disso, segundo os mesmos autores, em visão que já foi destacada também por Hirata (2016), as mulheres experimentam desvantagens em relação aos homens nesses contextos por causa de uma segregação ocupacional por sexo existente no mercado e pelo fato de a maior parte dos cargos se inserirem em um contexto de subordinação à figura masculina.
A corresponsabilidade das mulheres pelo trabalho do cuidar é construída socialmente. Dessa forma, além de exercer longas horas em trabalhos que são pouco reconhecidos, elas devem, ao voltar para casa no fim do expediente, ainda se dedicar ao trabalho para o consumo doméstico (Degraff & Anker, 2015). Nesse contexto, o contrato de casamento se apresenta como a grande finalidade existencial na vida das mulheres socializadas em culturas colonizadas, sendo idealizado no imaginário desde a infância, com os contos de fada e outros valores patriarcais reproduzidos historicamente por meio da imposição e violência contra o corpo feminino (Almeida, 2014; Federici, 2016; Lerner, 1986). Diante disso, numa sociedade patriarcal, os contratos de casamento reforçam opressões de gênero na medida em que indicam para as mulheres uma subordinação aos homens e uma limitação de suas possibilidades de escolha, além de legitimar um controle sobre a atuação e sobre os seus corpos pelos seus maridos (Pateman, 1993).
Contudo, não se pode ignorar a conjunção dinâmica e dissimétrica entre as relações de poder de sexo, raça e classe, visto que provoca a complexidade e o desafio que é trabalhar dentro de uma proposta epistemológica feminista que busca apreender esse ponto de vista próprio e situado de mulheres (Hirata, 2016). Compartilhamos ainda da preocupação evidenciada por críticas da perspectiva intersecional de que essas categorias que atuam como dispositivos de poder não devem ser tomadas como posições físicas, por correr o risco de simplificar e naturalizar a complexidade das relações, que são dinâmicas e estão em constante evolução e negociação (Diniz, 2016). A despeito dos avanços conquistados, o caráter estrutural da desigualdade de gênero e a resistência das mulheres na história ainda são ofuscados pelos canais de comunicação, cujo foco normalmente recai sobre os eventos escandalosos de violência explícita contra mulheres (Solís & Pintos, 2002).
Enfim, a relação entre poder, resistência e liberdade, tema fundamental da filosofia, é essencial aos estudos sobre as mulheres e à liberação das limitações impostas na constituição do sujeito em seu cotidiano, como mostra Butler (2017) evidenciando a ambivalência das relações de poder, especialmente do sujeito sobre si mesmo em um campo de possibilidades. Se poder e resistência podem ser entendidos como faces diferentes de uma mesma moeda, para Foucault (2004, p. 268), "nós sempre seremos livres". O desafio está, como mostra Orellana (2008, p. 41), no fato de que "quanto mais profundo e envolvente o labirinto do poder, mais intrincado e complexo será o trabalho da liberdade" (Orellana, 2008, p. 41). Se o poder tende a se sofisticar exercendo-se de maneiras cada vez mais articuladas, as práticas de liberação tendem a demandar estratégias cada vez mais acuradas. Isto remete às possibilidades de desnaturalização das desigualdades de gênero as quais tomam formas cada vez mais sofisticadas de perpetuação e culpabilização das próprias vítimas (Butler, 2019).
Método
Para alcançar o objetivo de observar a dinâmica de gênero na trama de relações de poder que constituem a experiência de vida e trabalho no cotidiano de mulheres pipoqueiras da cidade de Belo Horizonte, o artigo se valeu de uma abordagem qualitativa de pesquisa. González Rey (2005), teórico de referência das epistemologias qualitativas, esclarece que o processo de fazer ciência tem como parte a construção de aspectos culturais que se iniciam nas subjetividades dos pesquisadores e que, ao mesmo tempo, adquirem significação para o conhecimento social. Essa abordagem possibilita que pesquisadores das ciências humanas e sociais possam compreender o fenômeno estudado sob uma visão mais aprofundada acerca do funcionamento dos fenômenos sociais, indo além da visão generalista proporcionada pelas principais correntes quantitativas e estatísticas (Rey, 2005).
Reconhecendo a inexistência de neutralidade no processo de fazer pesquisa, caminhamos também para uma visão crítica de gênero ao localizar o trabalho fora das "definições vigentes de neutralidade, objetividade, racionalidade e universalidade da ciência, que, na verdade, frequentemente incorporam a visão do mundo das pessoas que criaram essa ciência: homens - os machos - ocidentais, membros das classes dominantes" (Löwy, 2009, p. 40). Resgatando a visão das mulheres marginalizadas sobre a realidade, tanto nos saberes que foram objeto desta pesquisa quanto na análise que buscou não os adequar a modelos preexistentes, uma vez que tiveram visões ordinárias da realidade excluídas dessa teorização. É por essa razão que consideramos que tal perspectiva epistemológica parte de uma visão da construção de conhecimento como uma reflexão ética, na qual se busca uma relação o mais horizontal possível entre pesquisadores(as) e entrevistados(as), ainda que se tenha como ponto de partida o fato de que uma simetria completa se trata de um ideal irreproduzível nas relações sociais, como elucida Foucault (1974). Cabe ainda posicionar o leitor que esta pesquisa se localiza dentro de um projeto maior que buscou ainda compreender o território e a identidade de trabalhadoras pipoqueiros da cidade de Belo Horizonte.
Participantes
Para a investigação relatada neste artigo, debruçamo-nos sobre as vinte e oito mulheres trabalhadoras ambulantes, que sobrevivem da produção e do comércio de pipoca nas vias e logradouros públicos da região central e da área hospitalar de Belo Horizonte.
Instrumentos
Foram utilizadas as seguintes técnicas: a entrevista, a observação participante e as anotações do diário de campo. Tais anotações, para Zaccarelli e Godoy (2010), referem-se ao registro individual que ocorre diariamente e que abarca emoções, sentimentos e ideias do pesquisador, além de eventos e situações que ocorreram no período da pesquisa. Na observação participante, segundo Márcio Marietto (2018), o pesquisador fica imerso no grupo investigado, participando de seu cotidiano e se relacionando por longos períodos com os sujeitos pesquisados. Neste estudo, isso foi realizado por meio do auxílio nas atividades de nossas entrevistadas. Assim, empurramos os carrinhos de 80 quilos, aprendemos e preparamos as pipocas doces e salgadas, os amendoins e os coquinhos. Ficamos em pé, sentamos em seus banquinhos, vendemos, conversamos com seus clientes, almoçamos com as entrevistadas no próprio carrinho de pipoca, enfim, participamos da vivência dessas pipoqueiras na cidade de Belo Horizonte.
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
As entrevistas foram realizadas no próprio local de trabalho dessas ambulantes, ou seja, em seus pontos de venda, na rua. Ademais, realizamos as entrevistas seguindo critério aleatório com o objetivo de alternar os pontos dentro da região pesquisada com a finalidade de manter em sigilo o logradouro de trabalho, e consequentemente, a identidade das trabalhadoras. Além disso, é válido destacar que foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelas entrevistadas tendo em vista a perspectiva ética da pesquisa, conforme Padilha, Ramos, Borenstein, & Martins (2005), que ressaltam o respeito à autonomia e identidade de sujeitos entrevistados como princípio ético fundamental da pesquisa científica.
As entrevistas foram realizadas entre os meses de março e julho de 2017, e, para preservar a identidade das entrevistadas, seguindo a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), foram atribuídos aleatoriamente números a cada uma delas. Assim, a identificação das mesmas foi feita da seguinte forma: "Entrevistada 01 (E1)", "Entrevistado 15 (E10)", "Entrevistada 28 (E24)" etc. A coleta de dados ocorreu por meio de questionário semiestruturado com perguntas que instigassem as mulheres a compartilhar dilemas próprios de suas existências enquanto ambulantes e membros de um grupo que foi sistematicamente oprimido pela divisão sexual do trabalho. A realização de todas as entrevistas aconteceu por meio de uma entrevistadora também mulher, por acreditarmos que, assim, as entrevistadas sentir-se-iam mais confortáveis para compartilhar suas experiências. Vale ressaltar que se realizou, ainda, a triangulação destes dados utilizando, além da técnica já mencionada, a observação participante e as anotações do diário de campo.
Procedimentos de Análise de Dados
Após construir o corpus das entrevistas, optamos pelo uso da técnica da Análise Linguística do Discurso (ALD), tendo em vista que proporciona, de acordo com Mariana Souza e Alexandre Carrieri (2014), melhor compreensão da realidade social e dos conflitos ideológicos quando utilizada em conjunto com a pesquisa qualitativa. A análise do discurso, segundo José Henrique de Faria (2015), permite compreender como a palavra se transforma em discurso a partir das condições sócio-históricas de produção, revelando, assim, seus sentidos ocultos, ideologias, sentidos e significados. Dessa forma, a técnica permite que o discurso se torne objeto de análise, com enfoque nos processos de construção de sentido sobre a própria existência a partir das vozes já existentes no mundo social.
Elementos que dialoguem polifonicamente com as construções de gênero e revelem resistências e ressignificações dessas dinâmicas de poder por meio das estratégias e táticas cotidianas empenhadas pelas sujeitas nos interessam, particularmente, na análise. Nesse sentido, a criatividade da vivência cotidiana permite desvelar novas formar de gerir, que, no caso deste artigo, foram identificadas em dois percursos semânticos principais: As trajetórias das mulheres até o encontro com o carrinho de pipoca e (Re)construindo as relações de gênero.
Resultados e Discussão
Contextualização do Lócus de Pesquisa: as Trajetórias das Mulheres até o Carrinho de Pipoca
Ao relembrarem as experiências e amadurecimentos de trajetórias profissionais anteriores que permitiram que se estabelecessem socialmente como vendedoras ambulantes de pipoca no centro da cidade, as mulheres entrevistadas apresentaram pontos convergentes em suas falas. O trabalho doméstico aparece como um percurso semântico na fala da maior parte das entrevistadas, bem como o ingresso precoce no mercado e trabalho e o silenciamento sobre oportunidades de estudo e de aperfeiçoamento profissional.
Algumas caracterizações específicas das participantes devem ser sublinhadas. Entre todas essas mulheres, apenas uma entrevistada tinha menos de 30 anos de idade, e as demais possuíam idade entre 30 e 40 anos. A maioria era negra, e apenas uma não tinha filhos e não se identificava como heterossexual.
Para as entrevistadas 7 e 24, o trabalho doméstico simbolizou, em um primeiro momento, a concretização do desejo que compartilhavam de sair de suas respectivas cidades do interior para ganhar a vida na capital. De fato, no Brasil, as ocupações de empregada doméstica e faxineira representam as primeiras opções de renda para mulheres de camadas econômicas baixas no contexto urbano e são importantes na sobrevivência das famílias mais pobres (Teixeira et al., 2015).
No entanto, por causa dos diversos abusos que sofreram enquanto atuavam como domésticas, não demonstram o desejo de voltar a atuar na profissão, conforme podemos observar nos fragmentos abaixo:
(01) [...] eu já chorei muito. Trauma com casa de família. Só que eu falar que nunca vou porque você nunca sabe. Se tiver precisando, você vai, mas eu peço a Deus que eu nunca precise. (E07)
(02) O que mais me incomodava que as pessoas achava que era escravo. Quando você vem do interior, eles acha que você é obrigado a fazer tudo, sabe? Empregada doméstica tinha que pagar uns dez salário mínimo, porque o que passa é muito complicado. (E24)
A entrevistada 07, no fragmento 01, resgata o trabalho como estratégia de sobrevivência no contexto urbano. Para essas sujeitas, inseridas em contextos de vulnerabilidade social, muitas vezes não existe a possibilidade de escolha entre as profissões (Lima, 2018), por estarem limitadas pelo contexto de escassez de condições materiais de existência e pela necessidade de atuar em qualquer profissão que encontrarem. Para se referir à experiência que teve em casa de família, a entrevistada utiliza o léxico "trauma" e o verbo "chorar", indicando que a experiência provocou processos de significação negativos. Porém, ao afirmar que "se você estiver precisando, você vai", retoma o aspecto de negociação das relações sociais, a partir da qual os termos são renegociados constantemente entre os atores sociais (Diniz, 2016). Nesse sentido, apesar de não ter boas lembranças do seu tempo como doméstica e não querer voltar, "nunca", ela afirma que trabalharia como doméstica, se fosse necessário.
O extrato 02 torna explícito, a partir da conexão semântica estabelecida entre a palavra "escravo" e a expressão (ser) "obrigado a fazer tudo", como o discurso produzido pela entrevistada 24 se relaciona a construções sobre o trabalho doméstico. Resgata, interdiscursivamente, vozes que dialogam com a obrigatoriedade de que o empregado cumpra todas as exigências dos patrões no serviço doméstico e com um contexto social de produção dos discursos de desvalorização econômica das tarefas desenvolvidas no âmbito doméstico e relacionadas ao cuidar (Hirata, 2016; Diniz, 2016; Teixeira et al., 2015). Isso se evidencia também, no mesmo fragmento discursivo, ao afirmar que "tinha que pagar uns dez salário mínimo" para uma empregada doméstica.
A desvalorização econômica destes trabalhos é a materialização de uma desigualdade simbólica, que, em uma sociedade capitalista, acontece principalmente na esfera econômica (Foucault, 1992). Tal construção é subjetivada nas pipoqueiras desde a época da infância, como evidenciado pelos fragmentos:
(03) Eu tinha que arrumar casa e fazer comida. Pus minha outra irmã pra arrumar cozinha, essas coisa, mas eu tinha que lavar roupa, que passar..." (E03).
(04) Meu irmão, ele acha que, porque ele é home, aí não precisa ajudar. Tem homem que é assim, né?! (E12).
(05) A minha mãe adulava muito ele. Um filho home, né? (E17).
No fragmento discursivo 03, todas são as práticas associadas ao cuidado são resgatadas, quando a participante relembrar as tarefas que eram de sua responsabilidade quando morava na casa do pai: "arrumar casa", "fazer comida", "lavar roupa" e "passar" (AD03). Na perspectiva de estudos sobre o cotidiano de Certeau (1994), torna-se possível perceber que, a partir do seu lugar de poder enquanto irmã mais velha, a estratégia que E03 encontrou para diminuir a carga de trabalho que pesava sobre si foi delegá-la também à irmã mais nova, quando afirma: "aí [coloquei] minha outra irmã pra arrumar cozinha, essas coisas" (AD03). Porém, essa estratégia acaba por reforçar as dinâmicas de poder que o dispositivo de gênero articula socialmente ao invés de quando a participante reproduz, com a irmã, aquilo pelo qual era responsabilizada simplesmente por ser mulher (Hirata, 2016; Diniz, 2016).
Já nos trechos 04 e 05, fica claro como essa construção é diferente entre os irmãos homens e mulheres na casa. Quando, no trecho 04, a entrevistada afirma que "tem homem que é assim", dialoga interdiscursivamente sobre a relatividade destas construções sociais, que não são dadas, mas reproduzidas, por supor a possibilidade de existência de homens que não sejam assim (Scott, 1995). Esta possibilidade, contudo, é silenciada no fragmento 05, que contribui discursivamente para a existência de uma masculinidade hegemônica (Diniz, 2016).
Entre as outras formações socioculturais que marcam as existências e a trajetória profissional da maioria das entrevistadas, encontram-se o casamento e os diferentes tipos de violências provenientes desse contrato (Pateman, 1993). A violência de parceiros se torna outra prática que marca o cotidiano da maioria das mulheres das camadas mais pobres. Quando se recordam dessas situações, as entrevistadas afirmam:
(06) Tava namorando com ele, aí foi, eu fiquei com ele. Ele foi um bom homem pra mim, sabe? Não tenho nada a reclamar dele não. O ruim dele é que ele me batia muito, aí num deu certo. Eu apanhava." (E09)
(07) Ele usava alguma coisa que ficava muito agressivo do nada, sem motivo nenhum, entendeu? Ele chegou a me bater, aí eu terminei com ele (E16).
Uma vez que as mulheres foram historicamente construídas na sociedade capitalista como objetos sexuais e subordinadas hierarquicamente à figura dos homens (Federici, 2016), principalmente por meio dos contratos de matrimônio (Pateman, 1993), muitas vezes estiveram expostas a violências físicas. Foi a fuga das violências domésticas, materializada na busca por autonomia financeira, que fez com que os caminhos dessas mulheres se encontrassem no carrinho de pipoca, algumas com mais urgência, pois, ao se separarem dos companheiros, assumiram a guarda dos filhos sem apoio da figura paterna. Porém, todas, a partir dessa profissão, foram capazes de conquistar um espaço e lugar próprios e de se apropriar de enunciados no cotidiano através de uma nova posição social e de uma outra elaboração sobre si mesmas (Barros & Carrieri, 2015).
Apresentação dos Resultados: (Re)Construindo as Relações de Gênero
Um dos primeiros desafios que se apresenta para as pipoqueiras no seu cotidiano é onde deixar os filhos. Para as mulheres, envolver-se na esfera do trabalho produtivo significa também ter que criar soluções para a sua ausência no privado (Hirata, 2016), conforme podemos observar nos trechos abaixo:
(08) Minha mãe olhava quando eu precisava fazer evento de madrugada. Eles eram pequenos, e ela ficava. Eu nunca deixei meus menino com minha mãe pra sair. Geralmente eu tava trabalhando. (E06)
(09) Minha vó fica com a menina pra mim vir trabalhar. Hoje tá com ela. (E19)
(10) Ele [o filho] morava comigo, sempre morou comigo. Agora ele tá ficando lá [com o pai], mas é temporário, até eu arrumar esse [outro] serviço, entendeu?" (E21)
(11) Ele ficou morando com minha mãe que lá tem a escola, tem creche de manhã. (E23)
A principal tática das mulheres pipoqueiras é contar com o apoio de membros da família para deixar os filhos que ainda não têm idade para ficarem sozinhos em casa. Em um contexto de produção de discursos em que as atividades associadas ao cuidar são classificadas socialmente como tarefa feminina (Hirata, 2016; Teixeira et al., 2015), muitas vezes são as avós as responsáveis por cuidar das crianças pequenas enquanto as mães saem para trabalhar.
Se considerarmos as formulações de Bakhtin (1992) sobre a fala de um indivíduo sempre ser dirigida para um auditório social próprio bem estabelecido, no trecho da entrevistada 06, podemos observar que ela busca evidenciar, por meio do advérbio de negação "nunca", um esforço de se adaptar a um canal de interação estereotipado, que poderia classificá-la como uma mulher irresponsável, que não cumpriu com suas atividades próprias da maternidade. De forma semelhante, a entrevistada 21, justifica que o filho sempre morou com ela e que estaria com o pai só até ela arrumar outro emprego, com horário fixo. Dessa forma, ocorre um silenciamento acerca da responsabilidade que ele possuiria sobre a criança.
Apenas a entrevistada 05, das que são separadas, usou como tática a responsabilização financeira do pai, uma vez que não poderia recorrer à avó da criança: (E12) Ele é que paga ela [a babá] e compra fralda. A responsabilidade é toda dele (E05). Na perspectiva de Carrieri et al. (2016), a responsabilização do homem pela paternidade é uma forma de subversão empregada pelos sujeitos de menor poder contra as estratégias dos sujeitos de maior poder. Não é uma norma, visto que as outras entrevistadas que são separadas e têm filhos não mantêm contato com os pais das crianças devido às violências físicas a que foram expostas e não recebem nenhum tipo de auxílio financeiro deles. Nas particularidades das condições materiais de cada sujeita, as táticas encontradas para subverter as obrigações que recaem sobre cada uma são diferentes. As que não contam com uma rede de apoio da família estão ainda mais vulneráveis neste sentido.
As entrevistadas que possuem filhos pequenos mobilizam elementos negativos em suas narrativas sobre a rotina no carrinho de pipoca que as impediria de estar presentes no crescimento. A tática que elas empregam nesse sentido é a busca por novas ocupações que, apesar de diminuir suas rendas, permitiria passar mais tempo em casa.
(13) Não, eu não quero ficar mexendo com isso muito tempo. Se não, eu vou acabar perdendo a fase dos menino pequeno. (E01)
(14) Eu quero ficar em casa pela idade do meu filho. Lá no meu bairro, eu vejo muito menino se perdendo nessa idade, doze anos, fumando, vendendo drogas. Eu não quero isso pra ele (E18)
Estar no carrinho de pipoca requer que elas fiquem grande parte do dia fora de casa, deixando o cuidado dos filhos aos encargos de terceiros. O cotidiano é o tempo que unifica e estrutura a ação e, nesse sentido, permite ser pensado como a interconexão entre o passado, o presente e o futuro (Certeau, 1993). A perspectiva sobre o uso adequado do tempo (Gouvêa et al., 2018) ideal para a vida destas pipoqueiras com filhos pequenos não envolve o carrinho de pipoca.
Para estas mulheres, ter um parceiro dentro de casa representa um fardo a mais no cotidiano, conforme podemos observar nos trechos 15 a 17. Isso pode ser percebido como uma estratégia para poder manter sua autonomia, já que casar, nas condições de produção destes discursos, significa comprometê-la (Pateman, 1993).
(15) Ah, casar não. Eu num tenho aquela paciência assim mais com home, entende? A cabeça que eu tenho é de trabalhar pra chegar em casa e dormir (risos)." (E11)
(16) Ah, não. Por causa da liberdade que eu tenho. Eu num preciso esquentar a cabeça. O que tiver lá em casa, meus menino comem. Homem não. Eles quer arroz, feijão, tem que ter comida. Tudo eles começa a falar das coisas, entendeu? Tipo assim: Nossa, você num vai arrumar o quarto não? Você num vai fazer isso não? Ah, seu filho num deu a descarga no banheiro hoje. Ah, porque o seu filho é um folgado. Eu prefiro preservar os meus filhos, deixar eles com a liberdade deles. (E16)
(17) Arrumar home? Cê é doido. Home nunca é tranquilo. (E20).
A partir dos enunciados, as percepções das trabalhadoras sobre como o casamento, uma das principais construções sociais que afeta as relações de gênero na nossa sociedade, modificariam seu cotidiano por meio de atividades que foram atribuídas socialmente como obrigação das mulheres (Hirata, 2016). A possibilidade de perder a autonomia conquistada, do espaço que lhes é próprio, provoca reações negativas tanto nos aspectos relativos às expressões das sujeitas quanto nas suas afirmações propriamente enunciadas. Nesse sentido, subvertem o discurso de que o casamento seria a finalidade última da existência das mulheres, por meio de novas relações afetivas que preservem a sua autonomia.
Considerações Finais
Estudos do cotidiano buscam entender como as estruturas sociais que são negociadas pelas sujeitas constantemente se relacionam e impactam as ações de sujeitos simples e comuns. Especificamente no caso desta pesquisa, nosso foco foi investigar como a profissão de pipoqueira é atravessada pelo dispositivo de poder socialmente construído de gênero. Percursos semânticos comuns foram observados nas narrativas das mulheres sobre os caminhos que as conduziram até o carrinho de pipoca.
Em primeiro lugar, o trabalho doméstico, subjetivado como uma obrigação desde a infância, para muitas foi a primeira possibilidade de ingresso no mercado. Além disso, é comum que essas mulheres tenham sofrido violências domésticas de seus parceiros e família de origem, bem como violências nos seus ambientes de trabalho anteriores. Após iniciarem a sua rotina como pipoqueiras, além das estratégias de planejamento da rotina normal de trabalho com a pipoca, como o conhecimento do fluxo de venda dos pontos, expectativas de gasto de insumos, planejamento financeiro e controle dos resultados, as mulheres têm sua condição social influenciada por suas práticas e, por isso, adotam cotidianamente táticas e estratégias que ultrapassam os limites dos horários, dos dias de trabalho e das atividades envolvidas na prática de fazer pipoca.
A mobilização de uma rede de apoio familiar é tática fundamental para que as mães solo possam se dedicar à rotina intensa dos carrinhos de pipoca. O casamento, no cotidiano dessas sujeitas, também foi ressignificado, deixando de ser, para essas mulheres, uma finalidade última da sua existência, mas algo a ser evitado, devido ao potencial intrínseco de comprometimento da autonomia social que duramente conquistaram. Possibilidades de pesquisas futuras envolvendo essa temática são diversas, e, em especial, ressaltamos a fundamental importância em ouvir em maior profundidade as narrativas dessas mulheres visando compreender a interseccionalidade entre raça, gênero, sexualidade, classe social e territorialidade em pesquisas participativas, cuja produção do conhecimento vai além das fronteiras estabelecidas pelo campo acadêmico hegemônico.
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Informações sobre os autores:
Chiara Gomes Costanzi
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Gabriel Farias Alves Correia
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Submissão: 05/11/2020
Primeira Decisão Editorial: 22/04/2021
Versão Final: 03/08/2021
Aceite: 17/08/2021