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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.22 no.1 Fortaleza jan./abr. 2022
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v22i1.e11970
ESTUDOS TEÓRICOS
Escritas de si: por uma ética da experimentação ficcional
Writings of the self: for an ethics of fictional experimentation
Escritas de uno: por uma ética de la experimentación ficcional
écrits de soi : pour une éthique de l'expérimentation fictionnelle
Luis Artur CostaI; Brida Emanoele Spohn CezarII; Moisés José de Melo AlvesIII; Pietra ManzoliIV; Ana Laura Baldini ReisV
IProfessor adjunto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIPsicóloga pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestre e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIIDoutorando em Psicologia Social e Institucional pelaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professor no Curso de Psicologia da Faculdade Anhanguera Kroton Educacional - Pelotas/RS e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IVPsicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
VPsicóloga no Serviço Especializado de Abordagem Social em Porto Alegre, Mestre no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucionalda Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
RESUMO
Este artigo propõe-se a discutir a ficção enquanto método de produção de conhecimento, apresentado a partir de recortes de pesquisas que habitam o território da psicologia social e que afirmam operações singulares para trabalhar e intervir sobre os seus campos problemáticos. As ferramentas aqui exploradas são cartograficamente delimitadas, desviando-se, portanto, dos enquadramentos prévios tanto quanto das generalizações que por vezes acompanham as práticas de constituição dos saberes. Os hibridismos entre arte, filosofia e ciência surgem da abertura à experimentação que acompanha cada um dos processos em vias de diferenciação, ou seja, não se pretende transformar a escrita em um espaço fadado ao já visto ou já pensado, mas em constante relação com as virtualidades e com a variação suscitada pelo próprio pesquisar. A intenção de criar um corpo heterogêneo, capaz de acolher o paradoxo e as múltiplas vozes que ecoam dos encontros, perpassa o movimento de reunir fragmentos díspares atravessados por uma experiência que não almeja fechar-se em si mesma, e sim reinventar-se a cada novo salto do pensamento, pautado por uma ética do desassossego e do incremento de possibilidades.
Palavras-chave: narrativa; metodologia; ficção; ético-estética; clínico-política.
ABSTRACT
This article proposes to discuss fiction as a method of knowledge production, presented from research clippings that inhabit the territory of social psychology and affirm particular operations to work and intervene in its problematic fields. The tools explored here are cartographically delimited, thus deviating from the previous frameworks and also from the generalizations that sometimes accompany the practices of the constitution of knowledge. The hybridisms between art, philosophy, and science arise from the openness to experimentation that accompanies each of the processes in the ways of differentiation, that is, it is not intended to transform writing into a space destined for the already seen or already thought but in constant relationship with the virtualities and with the variation raised by the research itself. The intention of creating a heterogeneous body, capable of welcoming the paradox and the multiple voices that echo from the encounters, permeates the movement of gathering disparate fragments crossed by an experience that does not aim to close in on itself but to reinvent itself with each new leap of thought, guided by an ethics of unrest and the increase of possibilities.
Keywords: narrative; methodology; fiction; ethical-aesthetics; clinical-policy.
RESUMEN
Este trabajo propone discutir la ficción mientras método de producción de conocimiento, presentado a partir de recortes de investigaciones que habitan el territorio de la psicología social y que afirman operaciones singulares para trabajar e intervenir sobre sus campos problemáticos. Las herramientas aquí exploradas son cartográficamente delimitadas, desviándose, por lo tanto, de los encuadramientos previos tanto cuanto de las generalizaciones que por veces acompañan las prácticas de constituciones de saberes. Los hibridismos entre arte, filosofía y ciencia surgen de la apertura a la experimentación que acompaña cada uno de los procesos en vías de diferenciación, o sea, no se pretende transformar la escrita en un espacio destinado a lo ya visto o ya pensado, pero en constante relación con las virtualidades y con la variación planteada por el investigar. La intención de crear un cuerpo heterogéneo, capaz de acoger la paradoja y las múltiples voces que resuenan de los encuentros, atraviesa el movimiento de reunir fragmentos dispares atravesados por una experiencia que no desea cerrarse a uno mismo, y sí reinventarse a cada nuevo salto de pensamiento, pautado por una ética de la inquietud y del incremento de posibilidades.
Palabras clave: narrativa; metodología; ficción; ético-estética; clínico-política.
RÉSUMÉ
Cet article propose de discuter la fiction comme méthode de production de connaissances. Cela est présenté à partir de fragments de recherches trouvés dans le territoire de la psychologie sociale. Ces recherches affirment des opérations singulières pour travailler et intervenir dans ses champs problématiques. Les outils explorés ici sont délimités à partir de la cartographie. Donc, on s'écarte des cadres précédents et, aussi, des généralisations qui accompagnent - parfois - les pratiques de constitution des connaissances. Les hybridités entre art, philosophie et science naissent de l'ouverture à l'expérimentation qui accompagne chacun des processus en voie de différenciation, c'est-à-dire qu'il ne s'agit pas de transformer l'écriture en un espace destiné à être déjà vu ou déjà pensé, mais en relation constante avec les virtualités et avec la variation soulevées par la recherche elle-même. L'intention de créer un corps hétérogène, capable d'accueillir le paradoxe et les voix multiples qui résonnent des rencontres, imprègne le mouvement de rapprochement de fragments disparates traversés par une expérience qui ne vise pas à se refermer sur elle-même, mais à se réinventer, guidé par une éthique de l'agitation et de l'accroissement des possibilités.
Mots-clés : récit ; méthodologie ; fiction ; éthique-esthétique ; politique-clinique.
Escrita-Acontecimento como Território de Experimentação e Contágio
A partir da presente escrita, buscamos compartilhar algumas caixas de ferramentas metodológicas com o objetivo de afirmar a relevância da prática ficcional como operadora de outro campo de métodos possíveis para a psicologia social e suas áreas afins. Apresentamos aqui algumas ferramentas metodológicas produzidas no decorrer de pesquisas, as quais se propuseram erigir seu próprio método em diálogo com a cartografia e com a ficção (Costa, 2014).
Compartilharemos, no decorrer do artigo, alguns operadores que podem auxiliar as/os demais pesquisadoras/es em suas próprias produções. No entanto, ressaltamos que tais ferramentas não pretendem ser mais do que isso, não incorrendo em formalizações metodológicas protocolares, mas sim elementos que buscam enriquecer nosso campo de possibilidades na artesanagem de métodos - sempre singulares e erigidos em íntimo contato com seus próprios campos problemáticos.
Partimos da perspectiva de que o pesquisar na diferença se faz ao caminhar: deslocar o metà-hódos em hódos-metà. (Passos et al., 2009). Como diria Nietzsche (1887/2009), os melhores pensamentos só nos assaltam quando em compasso ritmado com a estrada: pesquisar, desde esta perspectiva, não é apenas coordenar proposições e funções, mas compor-se com um campo de possibilidades de afetações e percepções (Deleuze & Guattari, 1997b). O encadear de nossos passos é sempre circunstanciado por uma multitude/multidão que nos escapa, transbordando a vontade da pesquisa que se queria soberana (problema de pesquisa, contexto, justificativa, método, resultados, conclusões), mas descobre-se parte de um, tão amplo quanto complexo, sistema parassimpático. Aqui, a ciência gagueja, tosse, se move de modo peristáltico, convulsiona e pode tropeçar vez por outra, quem sabe até cair em si e perceber a grande fantasia na qual se encontrava ao se afirmar e reafirmar como se fora um grau ontológico, epistemológico e ético superior aos demais saberes.
Tal ciência gagueja e hesita se abandonamos o esquadro moderno que avalia o conhecimento desde a exclusiva medida da sua capacidade de controle e previsão modulada em uma linguagem formalizada matematicamente e, por isso, passível (ao menos hipoteticamente) de desenhos experimentais e/ou estatísticos. Descartes (1641/1999) e Bacon (1620/1999) nos alertaram para o fato de que "querer é poder", erigindo uma estreita relação entre a pesquisa e a tecnologia, desde a meta de incremento da capacidade de prever e intervir sobre os fenômenos da natureza. Mas tal potência da replicação-generalização envolvida no prever e controlar tomadas como metas, não são as únicas estrias que organizam nossas práticas de produção do conhecimento: saber mais do singular, enriquecer tramas de articulação com o mundo, possibilitar outros olhares, visibilizar de modo crítico nossos próprios modos de ver e dizer, entre outros estilos, também são parte deste fazer que denominamos ciência.
Nesse sentido, a nossa pesquisa não consegue sustentar-se mediante apenas o sistema basal da veracidade cartesiana baseado na simplificação-homogeneização, destinadas ao incremento de previsão e controle. Trabalhamos no perspectivismo e na polissemia dos encontros quando nos colocamos a pensar e caminhar, em um percurso sem uma rota preconcebida. Ao tentarmos hibridizar ciência, arte e filosofia, nos deparamos constantemente com o imenso e assustador campo de possibilidades da criação. Invenção de sentidos, mundos, pesquisas e, como não poderia deixar de ser: métodos em variação, constituindo diferentes séries que, por sua vez, cartografam diferentes campos problemáticos em uma escrita-mundo rizomática. Cada pesquisa, aqui, é um trajeto singular, um caminho artesanado durante dois anos de uma trajetória não pré-delimitada, o que, portanto, requer seu próprio e irreplicável instrumento. Tais ferramentas podem ser de grande utilidade na confecção de outras metodologias também singulares, mas possuem linhas de agenciamento com o campo problemático do qual as pesquisas aqui apresentadas emergiram.
Metodologia como Artesanagem do Objeto: Estratégias para Hibridizar Artes e Ciências
Neste item, apresentaremos uma série de operações híbridas que agenciam de modo intrínseco o Plano de Coordenadas das Ciências e de Composições das Artes (Deleuze & Guattari, 1997b). Cada uma delas traz a experiência de uma produção elaborada em nosso grupo de pesquisa, estando articulada a um campo problemático singular. Assim, as compartilhamos sem o intuito de que sirvam como protocolo para investigações futuras, mas sim, como ferramentas abertas à reinvenção em outras experimentações por vir. Dessa forma, em cada subseção abaixo, extraímos uma operação utilizada em uma pesquisa como ferramenta para operar no hibridismo entre artes e ciências.
Cut-up como Dilaceração e Abertura Intensiva de Virtualidades
O processo de escrita de uma narrativa poética não passa por uma delimitação prévia e calculada, em que a linha do começo ao fim já foi cuidadosamente tracejada. Por não partirmos do método previsível das ciências, nos colocamos no território de uma dúvida, de um não-saber, em que a palavra seguinte é um porvir incerto e não delimitável (Fonseca et al., 2010). Durante a escrita destas narrativas, os rumos e sentidos produzidos não formavam um corpo circunscrito anteriormente, mas surgiam no próprio ato de escrever. Assim, a experiência que se coloca aqui é singular e criada no ato da escrita, durante o qual ela vai tomando uma forma - e, mesmo quando terminada, nunca para de se metamorfosear. Destarte, a angústia da dúvida dos rumos a seguir é constituinte do método aqui proposto, ao nos colocarmos no ponto de indefinição que torna possível a inscrição de virtualidades e singularidades. Estas talvez não viessem a ser inscritas de outra maneira, mas poderiam passar a existir como acontecimentos ao nos colocarmos nesse lugar de abertura e nos tornarmos efeitos de superfície. (Fonseca et al., 2010). Assim, uma das formas de intensificar tal afirmação de uma indefinição, de um inacabamento em variação, é a utilização da estratégia do fragmento através da técnica do cut-up popularizada por William Burroughs e Brion Gysin (1978). Ele convocava artistas a cortarem palavras de frases preexistentes para que pudessem tecer outros sentidos, que não estavam postos anteriormente: "Os poemas rearranjados fazem com que as palavras girem sozinhas; ecoando enquanto palavras de uma frase potente são trocadas em uma crescente ondulação de significados, que não pareciam ter quando estavam riscadas e presas naquela frase" (p. 34).
Em uma das pesquisas desdobradas desde o projeto Método e Criação: Hibridismos entre as Artes e a Psicologia Social, a pesquisadora implementou a estratégia do cut-up como modo de intensificar a potência de abertura e composição de um plano de coordenadas previamente delimitado (Manzoli, 2017). Primeiramente, fez uma imersão em um banco de dados erigido anteriormente em pesquisa, no qual são listados mais de 800 artigos analisados, segundo suas dinâmicas de agenciamento diversos entre as artes e as ciências. Explorou estas coordenadas a partir de um estriamento do banco de dados desde o recorte de sua escolha: artigos que versam acerca da desinstitucionalização da loucura em agenciamento com as artes. E assim, de modo calculado, a pesquisadora construiu nós de sentidos coordenados que visibilizavam diferentes modulações das relações entre as artes e a reforma psiquiátrica presentes nos artigos. Entre eles, a arte como aprimoramento pessoal, arte como expressão do delírio, arte como produtora de deslocamentos no conceito de loucura. A partir deste esquema podemos visibilizar alguns sentidos trazidos pelos artigos, porém sempre pensando que os agenciamentos que estes nós fazem entre si e entre outros elementos fora do esquema são ilimitados. Ou seja, o objetivo da formação de tal plano de coordenadas sempre fora deformá-lo, permitindo combinatórias outras, nas quais pudessem emergir diferenças insuspeitas e intempestivas, para além do antevisto e esperado.
Para poder compor com o plano de coordenadas, a pesquisadora fez uso do método de cut-up, optando por escolher não palavras, mas frases inteiras retiradas dos artigos selecionados que trouxessem de maneira mais evidente as diferentes formas de pensar a arte, de acordo com cada nó de sentido antes citados. Assim, recortou e extraiu as frases selecionadas dos artigos originários, e pôde estabelecer com elas novos campos de sentidos possíveis. Com essa seleção de elementos, misturou as frases entre si e criou novos textos com novos sentidos, deslocando e problematizando as proposições originais das quais tinham provindo. Dessa forma, os fragmentos compuseram-se por meio de uma nova escrita, com a qual se traçou um personagem a partir do reordenamento dos fragmentos justapostos. Entretanto, a composição transbordou as possibilidades que a análise combinatória de enfileiramento das frases permitia, já que houve uma costura dos fragmentos a partir da narrativa ficcional autoral da pesquisadora - o texto, portanto, passava a ser composto dos artigos recortados e misturados, mas também de novas frases e palavras. Desse modo, a partir da própria escrita da pesquisadora foi possível engendrar novos sentidos àqueles dos recortes originais. Criou-se, então, uma narrativa ficcional que, ao falar sobre uma mão que segura um pincel, traz pedaços dos artigos que a constituíram, compondo junto com eles, costurando-os com novas linhas que problematizam as práticas de agenciamento entre reforma psiquiátrica e as artes.
Os nós de sentido, que anteriormente pareciam discerníveis e esquematizados, misturaram-se de tal forma que a sua diferenciação tornou-se secundária. As frases deixaram de ser um pedaço de um inteiro perdido - o artigo - e tornaram-se elementos por si só que, ao se relacionarem entre si e entre as novas frases escritas, puderam ir além das possibilidades de enunciação anteriormente colocadas na sua escrita original. A mão, que no início da escrita parecia a mão de um louco que pintava, passa a ser muitas a partir da narrativa e, ao mesmo tempo nenhuma - a mão de um psicólogo, de um estudante, ou de um qualquer. Os traços feitos pelo pincel, que poderiam ser de paranoia, descuido ou instinto criador, indiferenciam-se e tornam-se uma massa de tinta cinzenta que, pelo trajeto da mão, contamina e transforma a cidade em tela.
Criou-se, assim, uma narrativa ficcional, mas que também trazia elementos do plano de coordenadas anterior - possibilitando que ele pudesse variar em outras séries de sentidos e tecer outras possibilidades (Deleuze, 1975) a partir do seu deslocamento-tensionamento em novas problematizações. Desta forma, a pesquisa fez uso do cut-up para, pela fragmentação das coordenadas anteriormente estabelecidas, permitir a abertura e inacabamento necessários para o uso da ferramenta da narrativa ficcional. Finda, portanto, por operar um hibridismo entre as ciências, que produzem coordenações, e as artes, que produzem afectos e perceptos (Deleuze & Guattari, 1997b): as frases saem do contexto coordenado dos seus artigos e servem, então, para compor a história de uma personagem que contamina o/a leitor/a com seu campo sensível de experiência. Nessa experimentação, "o pensar se contamina com o sentir, ambos tornam-se cúmplices de um estranhamento repentino, que os convocam a uma abertura e a uma nova imbricação" (Fonseca et al., 2010, p. 178). Essa é a sensação que percorre o corpo durante a composição de uma narrativa em pesquisa - um trecho teórico começa a soar poético, e uma rima passa a ser feita de sentidos coordenados.
Os Exercícios de Estilo como Composição de Coordenadas por Diferenças e Repetições
Se no caso anterior vimos a fragmentação e a montagem de parcialidades que não sugerem completude, aqui falamos também de fragmentos, mas em uma montagem específica colocada como um imperativo de criação para tensionar nossa capacidade do dizer e do pensar: a constituição de séries de variação a partir da repetição deslocada. Referimos o próprio processo criativo dos fragmentos e estabelecemos uma linha de articulação destes em uma série de variações: os exercícios de estilo de Raymond Queneau (1947/1995).
Queneau (1947/1995) inicia sua escrita a partir de um fragmento narrativo (o encontro com uma pessoa em um ônibus), delimitando o campo de possibilidades inicial. A partir dele, sucessivos deslocamentos vão promovendo novas possibilidades a partir do seu agenciamento com outros moduladores, constituindo um plano problemático. São noventa e nove variações-repetições de uma narrativa atravessada por diversos operadores em constantes (re)modulações da história original: conta o caso no modo de uma profecia, de um sonho, uma metáfora, interjeições, através de odores ou cores, entre outras noventa e três variações.
No caso da pesquisa desenvolvida dentro do projeto Método e Criação: Hibridismos entre a Psicologia Social e as Artes, o ponto de partida foi o conto A Saúde dos Doentes, do autor Julio Cortázar (1966/2009), sobre uma família que forja cartas de um parente morto para que sua velha mãe não viva o desgosto do luto. Tal conto emergiu de um campo problemático um tanto nebuloso e inespecífico: o cuidado. Diante da dificuldade em coordenar um problema nítido, o pesquisador definiu que tal conto seria o ponto de partida de um exercício de estilo ao modo proposto por Queneau, pois seria a trama de fragmentos produzida por tal série de variações que nos daria a possibilidade de delimitar de forma anexata (Deleuze & Guattari, 1997a) qual era o campo problemático da pesquisa. Houve uma produção de dezesseis fragmentos, todos em agenciamento com alguma singularidade sensível (uma música, um acontecimento, um quadro, um estilo ou escola da arte e/ ou filosofia, etc.) que adentrava o campo do conto anterior e auxiliava na produção de sua variação. No decorrer da série, os blocos de perceptos e afectos produzidos pelos fragmentos produziram tensionamentos e articulações entre si, formando um plano pré-filosófico e pré-coordenado (Deleuze & Guattari, 1997a), a partir do qual foi possível delimitar uma trama de questões e objetos. Assim, foi composto um campo problemático possível para a questão do cuidado: cuidado definido como uma operação de dar visibilidade-corpo às relações que articulam os corpos uns aos outros na produção-modulação de um comum. Assim, em tal plano, magia e técnica, psicanálise e xamanismo agenciaram-se em um campo imanente e heterogêneo no qual espíritos, afetos, pulsões, estados psíquicos, orixás, pedras, plantas e palavras estabeleciam não relações de igualdade, mas sim complexas articulações das semelhanças de família (Wittgenstein, 1953/1999): trata-se de formas de dar nome ao invisível que nos afeta transformando sua própria potência de afetação, ou seja, é um gesto poético-científico-mágico de denominar para transformar as nossas possibilidades de relação com algo que nos move, mas que, até tal gesto, não podíamos ver ou divisar na paisagem de nossas existências, e que, por um lado, nos proporciona uma experiência de concretude e certo controle (coordenação), ao mesmo tempo em que afeta e transforma intensamente nossa experiência de nós e do mundo (composições).
Muitos eram os nomes, objetos e modulações utilizados para dar corpo-visibilidade ao invisível que nos permeia e permite nossa articulação em diferentes tramas comuns de humanos e não humanos, mas o cuidado se visibilizou pelos exercícios de estilo enquanto esse plano de imanência pleno de singularidades em atravessamentos mútuos. Afinal, tais formas (palavras, objetos, settings, gestos, ritos, protocolos) utilizadas para dar corpo-visibilidade ao invisível é que permitem o governo-modulação-produção deste, segundo certas estilísticas e éticas singulares afirmadas por cada conjunto de ferramentas. Unimos, deste modo, o xamã que dá corpo ao mal que assola um corpo por meio de pedras retiradas deste (Strauss, 1949/1975), pouco importando se a compreensão de tal encenação é por nós vista como truque ou "fato" (se as pedras já estão escondidas nas mãos do xamã ou se realmente saem de dentro do corpo adoecido), sendo relevante seu campo de efetuação sobre a relação dos corpos com suas forças intensivas não visíveis e, muitas vezes, não nomeadas. Do mesmo modo, nas artes e na psicanálise são os efeitos das intervenções, sua capacidade de produzir afetos e percepções na modulação destas conexões "invisíveis" (afetos, sentimentos, palavras, pensamentos, expectativas, etc.) que nos interessam.
Vemos, assim, o quanto no desenvolvimento deste trabalho a utilização de uma estratégia própria do Plano de Composições (a operação dos exercícios de estilo de Queneau) nos permitiu erigir um campo problemático rico em singularidades díspares, de diferentes disciplinas e culturas, a partir da nossa autossubmissão ao método inventado por Queneau para forçar nossa capacidade de deslocar nosso regime do que é visível e dizível. As segmentações duras das disciplinas coordenadas são aqui deslocadas em uma geometria anexata que já não permite sua separação em distintos campos de modo nítido a partir de seus objetos e métodos: as operações de composição (singulares e heterogêneas, mais afeitas ao afetar do que ao comunicar) fazem as vezes dos eixos delimitadores dos quadrantes nas coordenadas, que aqui já não têm linhas e ângulos retos, mas sim a delimitação de uma topologia sensível e complexa na qual constituímos um novo dispositivo do fazer ver, dizer e pensar. Arte, religião, ciência, entre outras produções, passam a compartilhar aqui o mesmo plano de composições-coordenadas e estabelecer uma imanência complexa que nos provoca novas sensibilidades e pensamentos, novas possibilidades do ver, dizer e fazer práticas de cuidado para além dos regimes já estabelecidos, por exemplo, nas ciências da saúde.
Narrativas como Desenquadre Institucional: Problematizando Políticas Públicas
Tendo como ponto de partida o trabalho de conclusão de curso de Reis (2015), o qual foi pensado e produzido junto à sua experiência de estágio curricular em psicologia, pretende-se visibilizar as operações metodológicas engendradas nessa produção acadêmica. Desse modo, como uma experiência localizada junto a uma instituição escolar, destinada prioritariamente às pessoas em situação de rua na cidade Porto Alegre/RS, provocou a pesquisadora/estudante/estagiária à construção de uma escrita acadêmica?
Na tentativa de abrir possibilidades mediante tal questionamento, pontua-se a questão do encontro como um disparador para essa escrita. Deleuze (1970/2002), em seu diálogo com Spinoza, ajuda a pensar o encontro como uma produção, a qual não emerge apenas da junção e soma de diferentes corpos. Para ele, encontrar é agenciar um campo de possibilidades, operando com os acontecimentos singulares que passam a produzir conexões entre si, em uma perspectiva de abertura à composição junto aos efeitos gerados por esse encontro.
Nessa zona intersticial de composição com o outro, a partir das linhas de movimentações e afetos, o que pode um corpo ao deparar-se com a potência do encontro? Nesse jogo de encontrar, movimentações abruptas e estranhamentos podem operar como ferramentas importantes, problematizando e tensionando mundos até então desconhecidos. Desse modo, a composição com o outro se torna potente a partir das conjugações realizadas entre os pontos de intensidade e singularidade agenciados entre esses corpos.
Durante a realização do estágio curricular da pesquisadora, com duração de um ano, o encontro produzido entre ela e a estudante Maria1 possibilitou pensar uma questão importante em seu trabalho de conclusão de curso. Esse encontro foi produzido em meio às diferenças, embates e afetações entre elas, em um processo de tecer vínculos entre a estudante e a estagiária. O posicionamento da pesquisadora não era de realizar um trabalho dando voz a Maria, tampouco de ser uma interpretação sua acerca da vida da estudante. A intenção era de perceber como o contágio, as afetações e as diferenças de mundos, presentes nesse encontro, abriam brechas que possibilitavam problematizar um tema caro a ambas: as políticas públicas.
Maria agenciava um corpo que, por meio de uma linguagem artística e performática, encenava e contava seus "causos", e de tantos outros companheiros de rua, além de suas relações e conflitos com as políticas públicas - especificamente com os serviços da assistência social, da saúde mental e da segurança pública. Ao mesmo tempo, a pesquisadora se encontrava em uma relação de desgaste e de tensionamento no que se refere à lógica de normalização do cuidado, sobretudo tão presente nas relações estabelecidas entre os serviços e as pessoas em situação de rua, e tão corriqueiras nos debates de reuniões de rede.
A partir desses encontros com Maria, a problematização sobre os modos como os serviços das políticas públicas lidavam com estes sujeitos passou a provocar ainda mais e a produzir novos pensamentos à pesquisadora. Dessa maneira, buscou-se produzir uma narrativa com algumas cenas (fragmentos de histórias) que permitiam ficcionalizar as trajetórias urbanas de Maria, articuladas aos seus vínculos e suas circulações pelos serviços das políticas públicas. Esse exercício ficcional se fez possível como uma tentativa de perceber e tensionar os modos como a rede de serviços olhava para as movimentações da estudante e pensava seu processo de acolhimento e cuidado.
Nesta narrativa ficcional, Maria não se tornou uma entidade individuada (intrapsíquica), tampouco uma entidade social a qual representava. Esta escrita permitiu um descentramento do sujeito, potencializando essa Maria qualquer2 e impessoal que circula pelos serviços das políticas públicas. Essa Maria que carrega múltiplos modos de existência, num plano imanente em que os processos de singularização não se reduzem a sobrecodificações, à lógica da normalização do cuidado.
No plano da ficção, essa Maria qualquer passa habitar uma composição literária, em que se torna a equilibrista de um circo. Em suas andanças pela cidade, junto com as movimentações e o nomadismo circense, Maria entra em contato com os serviços das políticas públicas e nesta relação iniciam-se os embates entre ela e os espaços de cuidado pelos quais transita. Os processos de ensaio de Maria, em relação a suas tentativas de cuidado não hegemônicas, não são visibilizados pelos serviços. Maria é vista somente pelos espetáculos e "barracos" que monta nas salas de acolhimento das instituições. A partir dessa montagem da narrativa, a pesquisadora abre os conceitos, fazendo com que eles operem na própria escrita, dando corpo aos tênues limites entre cuidado em liberdade, norma, tutela e controle, os quais estão em jogo na produção desse trabalho.
Delírios e Escrituras de Si: Figura Estética e Personagem Conceitual como Estratégia de Acontecimentalização
Continuando o caminhar pelas trilhas metodológicas, é preciso agora abrir a mochila e pegar mais alguns mapas. O nó problemático desse fragmento parte de um grande cruzamento entre as políticas de subjetivação no contemporâneo e busca seguir algumas de suas linhas: a do governamento das condutas, da psicologia e das políticas de construção do "eu". Mais especificamente: em meio à sociedade do controle (Deleuze, 2013a), quais as tecnologias e estratégias de subjetivação utilizadas pela governamentalidade contemporânea que, através dos aparatos psi, atuam para inventar o processo de dobragem desses "Eus"?
Colocando de outra maneira, as perguntas que movem esta seção gravitam em torno das tecnologias de si, das técnicas e práticas próprias da indústria de individualização do controle que são utilizadas para a gestão de nossas vidas. Esse emaranhado teórico inquieta o pesquisador mediante o horizonte ético foucaultiano do não querer ser governado - assim, em sua busca por um ethos de liberdade.
Para dar conta das tecnologias de subjetivação a partir do suposto saber neutro sobre o psicológico, foram escolhidos três livros de autoajuda dentre os mais vendidos3 como material empírico da pesquisa. Assim, nesse ponto da trilha, finalmente pode-se compartilhar alguns dos métodos utilizados.
O primeiro deles foi a constituição de uma personagem: o Bento. Este se apresenta e dispõe o seu corpo para que se possa deslocar o olhar e fazer emergir as questões quanto ao governamento das condutas a partir das sutilezas das experiências da personagem. Ele permite dar carne aos conceitos, operando com eles através da metodologia da narrativa ficcional (Costa, 2014). Bento é o que Deleuze e Guattari (1997b) tratam por figura estética, próprio do campo das artes, do que se apresenta e faz ressoar o campo de afectos e perceptos.
Dessa forma, a pesquisa passou a girar em torno das vivências do rapaz. Um estudante cotista formado em Ciências Sociais no interior do estado e que faz mestrado em Psicologia Social na Capital. Como todo bom pós-graduando, está em crise. Aquilo que pesquisa é mesmo relevante? Terá tempo? Valem mesmo a pena todas as suas madrugadas regadas a café e mate? Além de figura estética, continuando com Deleuze e Guattari (1997b) durante as tentativas de hibridizar os campos do conhecimento, Bento também auxilia o pesquisador enquanto "personagem conceitual": o sujeito em crise. A tal "oni-crise" do presente, como cita Hardt (2000), em que somos tomados de assalto por essa modulação instável e fluída. Assim, esse não lugar da crise constante é o reflexo do desmantelamento das instituições disciplinares clássicas e seu deslocamento às lógicas de funcionamento ao ar livre, já que elas ainda insistem em um mundo com diferentes modulações - como bem lembram os muitos cárceres que vicejam nos bairros periféricos de países centrais e cidades centrais de países periféricos.
Caminhando mais adiante, no transcorrer das crises e das inúmeras doses de cafeína, a saúde mental de Bento acaba por se esvair tal qual o seu estômago. A produção delirante da máquina esquizofrênica do capital emergiu durante a narrativa como estratégia de escrita. Desterritorializar para reterritorializar em um território mais descodificado - é em meio a esse constante processo que a dobragem da personagem se rompe ao delírio. Desse modo, o mestrando ficcional passa a compor ficções de si, criando novos personagens para conseguir lidar com as pequenas e constantes derrocadas da bolsa de valores de seu cotidiano. Essa operação do delírio como método também permite colocar em xeque tanto o bom senso (previsão e ordem) como o senso comum (individualização das ações), possibilitando abertura à produção de novos sentidos, tal como propõe Deleuze (1975), mediante o constrangimento do conhecimento linear e individualizado da verdade científica.
Para finalizar esse breve passeio, dada a grande semelhança entre Bento e do próprio pesquisador, talvez seja possível aproximar a personagem como uma quarta forma do que Foucault (1978/2014a) trata por "escrita de si" - ou sobre como o pesquisador fez seu personagem delirar para que ele mesmo não o fizesse. Durante o processo de escrita das páginas do Bento, este opera como um alter ego radical - o qual não serve como repositório para o já vivido, mas sim como espaço de experimentação para o vivível - e que possivelmente se possa afirmar que foi realizado um exercício que o pensador francês identifica como um relatar a si mesmo, um trabalho que necessariamente impele a inquietação constante tanto do presente como a do próprio processo de subjetivação do pesquisador.
A Ficção como Operação para Descarrilhar o Trem: Memória e a Ética-Estética do Trágico
No percurso da graduação em Psicologia, a pesquisadora retornou para a sua terra natal com a intenção de reunir os antigos moradores da cidade que testemunharam o tempo da ferrovia e o cotidiano singular que esta produzia. Acompanhou, na condição de cartógrafa, a formação de um grupo que compartilhava do interesse em narrar e reinscrever as suas histórias no presente, embarcando para isto no trem da memória. A intervenção, que se estendeu por aproximadamente um ano, traçou linhas no território que permitiram vislumbrar uma paisagem heterogênea, onde os restos de outrora sobrevivem em meio às necessidades e urgências do agora. Ocupou-se coletivamente o espaço de um antigo armazém, utilizado pela viação férrea para carga e descarga de utilitários, e perambulou-se pelas ruas na medida em que os corpos extrapolaram o círculo que lhes havia sido delimitado. A aproximação e experimentação de uma linguagem sonora e visual tornou-se possível a partir do questionamento dos sujeitos envolvidos com a pesquisa, que denunciavam sua forma acadêmica e tecnicista de se reportar à comunidade na ocasião de oferecer-lhe uma devolução. Aos diários de campo somaram-se as fotografias, as filmagens, as faixas de áudio, os recortes dos jornais, das revistas, dos arquivos pessoais, os objetos, os rastros e as afetações.
No momento em que adentrou as margens da pós-graduação, carregando esta bagagem acumulada durante os meses que antecederam a defesa do seu trabalho de conclusão de curso, a ficção possibilitou-lhe seguir em frente apostando na duração enquanto variação. Já não se tratava de resgatar, retomar, descrever ou representar os passos percorridos até então, flertar-se-ia com o acaso e com o impensado para complexificar as tramas da escrita e potencializar os fragmentos que continuavam a reverberar e a inquietar o pensamento. Ao mergulhar em tal processo e sustentá-lo sem definições ou enquadres apriorísticos, corria-se o risco necessário de implodir as âncoras constituídas e submeter-se, ainda que provisoriamente, aos movimentos efêmeros, delirantes e obscuros que a vida incita e propaga. A raspagem do campo anteriormente habitado impulsionou a criação e a reinvenção das linhas e dos trajetos reiterados, favorecendo o desmoronamento e, ao mesmo tempo, o alargamento das narrativas cerzidas por entre as malhas do pesquisar. A dimensão ética da memória, presente no grupo através do eterno retorno da cidade e da ferrovia em sua constante diferenciação, reaparece aqui na repetição, elaboração e esquecimento das marcas deste trabalho precedente. O plano de coordenadas da intervenção, no contato com a ficção, desloca-se e rearticula-se num plano de composições que hibridiza artes, filosofia e ciências, ética, política e estética da existência.
Metaforicamente, poder-se-ia dizer que, neste caso, a ficção embarcou no trem em uma estação longínqua, situada na cidade de Salvador do Sul, e viajou junto dos antigos moradores desta comunidade que por longos anos contestaram o fechamento da linha férrea. Em seguida, após o desembarque dos passageiros, ela impulsionou a locomotiva a seguir desbravando terras e paisagens que ultrapassavam os limites da localidade, aproximando-a, portanto, de outros enredos e personagens. O itinerário em questão dispensou as certezas e as rotas concebidas de antemão, atravessando os espaços num ritmo vacilante, cambaleante e desviante, sem a pretensão de ordem, precisão e previsibilidade. No transcorrer da viagem, o tempo e a memória continuaram a dobrar-se, desdobrar-se e redobrar-se, constituindo camadas ou platôs que ressoam uns nos outros e nas costuras que a dissertação fez e ainda faz. A capacidade de pluralizar, alterar, romper e rachar os caminhos e as verdades instituídas permite afirmar a ficção enquanto uma operação de descarrilhamento, que impõe aos vagões da máquina novos rumos e aos pesquisadores novas perspectivas, de modo que cada um, em sua singularidade, vai compondo os trilhos sobre os quais está disposto a caminhar. A produção de conhecimento revela, assim, o seu caráter inacabado, inconcluso e provisório, visto que assegura certa abertura ao devir e as virtualidades do atual passíveis de atualização.
Certamente, enfrentam-se desafios, a começar pela matéria-prima utilizada na escrita e que não se encontra senão em meio aos pequenos eventos do cotidiano, nos detalhes, nos rastros, nas cicatrizes da pele ou nas marcas sutis da avenida, nas impurezas dos aromas, nas misturas dos versos, no descompasso das melodias, no pulsar salutar da vida. Assim, ao articular os conceitos com os elementos sensíveis da experiência, concede-se passagem para a efemeridade do concreto e para os afetos que arremessam ora para dentro, ora para fora do texto.
A própria inscrição transforma-se num campo de ação, que está sujeito aos efeitos de sua efetuação descontínua e passeante. Avistamos um viajante que não cessa de emaranhar-se em fluxos e embrulhar-se em estórias, seu fazer carrega uma dimensão de pertencimento momentâneo, que lhe permite o distanciamento de quem versa sobre o impessoal: trata-se do sino que se agita em alguma estação, comunicando que a chegada e a partida se aproximam, porém, não é o sino de uma estação específica, ao passo em que são todos os sinos de todas as estações ao mesmo tempo. Os ecos que persistem retornam em fragmentos, em notas díspares, que ao se relançarem tornam-se outras, e, desta forma, ao modo do ritornelo4, traçam contornos que em seguida serão abandonados, ultrapassados, desmanchados e reconfigurados.
Escrita e Concreção: Por uma Ética da Experimentação e Multiplicação de Sentidos
Escrita de Si: Heterotopia e Acontecimentalização
Ao buscar tecnologias de produção de Si no campo da escrita, Foucault (1978/2014a) identifica três tipos de técnicas: 1) as anotações feitas nos monastérios durante o primeiro e o segundo século depois de Cristo, uma imposição institucional aos monges de que escrevessem sobre o seu íntimo, quase uma expiação escrita dos pecados; 2) os Hupomnêmata, cadernetas de anotação da Grécia Antiga, em que colecionava-se fragmentos e citações que exprimissem brevemente como havia sido o dia que se findou; e, por fim, 3) a prática epistolar na antiguidade clássica, quando um correspondente transcrevia seu dia a dia, descrevendo fidedignamente aquilo de que se ocupava, inclusive aconselhando acerca do bem viver aqueles aos quais a carta se destinava.
Ao fazer a aposta metodológica pela composição de figuras estéticas que estão intimamente ligadas com a própria experiência das/os pesquisadoras/es, pode ser observado que, conjuntamente ao exercício da escrita, é estabelecido um espaço de crítica sobre as linhas do presente que atravessam o processo de subjetivação daqueles que escrevem. Cerzir uma figura estética é elaborar um dispositivo que compõe blocos de perceptos e afectos outros, deslocando assim o campo de experiência possível a partir da ficção. Ou seja, um personagem opera naquele e através daquele que está sentado atrás das teclas do computador, como uma dobra de operações sensíveis que contagiam e deslocam nosso regime do dizível, visível, sensível e pensável. Como dispositivo de composição, tal personagem não é somente o reflexo ou projeção do que há, mas principalmente um território de tensionamento e deslocamento - não apenas do que as/os pesquisadoras/es são, mas do que podem ser. Do mesmo modo, enquanto dobra da dobra em variação, tal figura estética não fala de uma subjetividade íntima e tampouco de um tipo biopsicossocial ou de uma identidade coletiva, pois sua matéria prima narrativa é a montagem das singularidades que atravessam de modo parcial e fragmentário as tecnologias de subjetivação. Nesse sentido, o perambular do texto a partir das figuras estéticas, entendidas aqui como quarta pessoa do singular-impessoal,inventanessa escrita um lugar heterotópico de proposição de novos sentidos e de novas virtualidades da ficção de nós mesmos. Assim, pensando a produção de figuras estéticas enquanto operação do campo das artes, tais composições pretendem complexificar as tramas das relações tecidas entre sujeito e objeto, colocando em jogo os processos de singularização que permeiam tal encontro. Deseja-se criar um corpo heterogêneo que seja cerzido junto aos paradoxos, carregando consigo polifonias de vozes, perturbações e tensões.
Dessa maneira, a função do alter ego é tomada como um espaço de heterotopia, ou seja, não como a forma ficcional da projeção de um "Eu", mas sim como exercício de outramento de si. Há um certo deslocamento da função moderna de autor, (Foucault, 1969/2009b) ao passo que a ordem dos fatores é relativamente revertida: a figura estética, aqui, torna-se a autora da escrita de si das/os pesquisadoras/es. Nesse jogo de visibilização dos processos/tecnologias de subjetivação/Si, a personagem faz ver que o "íntimo" é algo da ordem do maquínico e não meramente individual. Assim, como cita Orellana (2004), em sua tese doutoral acerca da vida-obra filosófica de Foucault, a constante busca pela problematização do presente está intrinsecamente ligada com a ética e com a estética da existência, pensadas a partir da invenção de novas possibilidades de vida frente às linhas de força daquilo que é da ordem do intolerável. A ética da experimentação é tomada a partir da suspensão dos juízos, deixando de lado a questão moral da dicotomia entre bem e mal. Ou seja, a ética da busca por espaços de maior liberdade traz o conceito de liberdade não como uma propriedade do sujeito, mas sim a partir de seus constantes exercícios de resistência frente às relações de assujeitamento do jogo de forças de saber/poder.
Dessa forma, torna-se possível uma ética de pesquisadoras/es e escritoras/es que buscam produzir também a partir da lógica da resistência mediante a abertura à experimentação no presente. Essa proposição vai ao encontro do ethos em não querer ser governado de e por determinada forma, como uma atualização possível da arte da vida, posto que para o pensador francês a liberdade seja a condição ontológica da ética. É nessa perspectiva que Orellana (2004) propõe a tradução de cuidado de si por inquietação consigo. O colocar-se em questão é a condição de possibilidade da visibilização das linhas contingenciais em que se está imerso, mas que não se consegue enxergar dada a proximidade em que elas se encontram do olhar. A inquietação com o Si, com as forças que forjam as singularidades, é parte do posicionamento ético e político para a criação de novos espaços.
Desse modo, a narrativa ficcional mediante personagens que se confundem com a experiência de quem as escreve pode ser pensada como um novo espaço heterotópico (Foucault, 1983/2009c), que existe no mundo da imanência e que faz visibilizar o que foi e o que segue constantemente invisibilizado. Quando se problematiza o presente a partir da caixa de ferramentas cerzida nessa metodologia, compõe-se uma dobra do lado de dentro do lado de fora - um processo do qual a/o pesquisadora/pesquisadorsai necessariamente transformado. Pensamos, assim, tanto no navio como dobra do mar (Deleuze, 2013b), quanto na pesquisa como dobra do corpo da/o pesquisadora/pesquisador. Nessa perspectiva, o pesquisar é acontecimentalizar, "[...] a 'acontecimentalização' consiste em reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força e as estratégias etc., que, em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará como evidência, universalidade, necessidade". (Foucault, 1978/2014b, p. 332). Dialogando com a questão dos universais (como algumas filosofias e algumas histórias que se portam como projetos totalizantes e irrefutáveis), o pensador afirma que suas análises precisam ser multifacetadas, a fim de destronar as causalidades de seu império do universal. A problematização de presente é da ordem do intensivo, da presença, não se pode voar às alturas da metafísica. Por isso, ao colocar o campo empírico em questão, volta-se o olhar às condições de possibilidade que fizeram emergir o problema. Ou seja, não se pode tomar o objeto de pesquisa como apartado do jogo de forças, como algo unívoco e evidente. A composição de sensíveis da metodologia da narrativa é da ordem da singularidade. Dessa maneira, como já citado anteriormente, o pesquisador se transforma no meio do processo, de modo que não há projeto prévio. Assim, escrever o presente mediante as andanças encarnadas de personagens estéticas faz desse exercício um lugar outro para pensar e construir experimentações e escritas de Si que acarretam em um ethos multiplicador.
Escrita como Ação Poética: Fuga, Fragmento e Composição
A obra como fragmento subverte as noções de identidade e de totalidade, retirando-nos, portanto, do âmbito da produção circunscrita a uma falta ou ausência e, ao mesmo tempo, semelhança arduamente afirmada. Na repetição, encontramos as notas incongruentes que não são mais ignoradas, e sim visibilizadas por um conhecimento que se pensa e se faz enquanto diferença: "é o fim da filosofia, a da representação" (Foucault, 1969/2005, p. 143). A variação desliza por entre as margens de um tempo avesso a linearidade, aberto ao instante irreversível e singular, pelo campo de possibilidades que inaugura e pelos movimentos que engendra sem cessar. A memória, em sua duração, atesta a implosão das formas estabelecidas, uma vez que é tensionada pelo esquecimento e pela criação, despindo-se das amarras do reconhecimento e da reapresentação ordinária do mesmo. A conservação do passado que se desdobra em expansão está diretamente envolvida com a digestão e a elaboração do vivido, proporcionadas por uma força plástica regeneradora: "um homem tal sacode de si muitos vermes que em outros se enterrariam" (Nietzsche, 1887/2009, p. 28). Neste sentido, o ressentimento aparece justamente como um entrave ao presente e à transformação, visto que não há acolhimento e aceitação do transitório e fugidio. As linhas sobre as quais transitamos e nos equilibramos não garantem a constituição de um território homogêneo e simetricamente coordenado: à deriva vagamos e nos enroscamos ao acaso, aceitando o convite para desnaturalizar mundos e saberes, práticas e discursos, nossos próprios corpos e nossas próprias pesquisas. A ficção nos auxilia nesta experimentação de tornar a pele superfície de inscrição para os modos de subjetivação da contemporaneidade, narrando os efeitos e os afetos que devém desta ação. Os desejos e apostas que nos levam a determinados lugares situam-se nas malhas de uma implicação feita de carne e chão, ou ainda, matéria através da qual somos tocados e espaços por onde os nossos pés caminharam. Já não é mais de um universo abstrato que se trata, e sim das incontáveis fissuras que os sensíveis descobrem em meio às inteligibilidades, cerzindo aí sua trama complexa de heterogeneidades.
O processo de escrita aqui operado não se dá como na construção do Livro de Mallarmé, como descrito por Blanchot (1959/2005). Este, antes mesmo de ser escrito, já está finalizado, pois existe a partir de uma essência prévia. Em si mesmo, contém tudo que pode ser dito sobre ele, portanto qualquer adição ou explicação seria apenas um soneto nulo, vazio de significado. A obra é colocada como uma figura quase estática, que não engendra novos sentidos a si mesma e busca suprimir o imprevisto e o acaso - ela é cuidadosamente planejada para que possa exprimir a essência que, em outras obras literárias, apareceria apenas como faíscas.
O Livro nunca chegou a ser finalizado, já que Mallarmé, após trinta anos de trabalho, faleceu sem terminá-lo. Seus supostos manuscritos foram encontrados em fragmentos, ordenados ao acaso sem que produzissem um sentido claro entre si. Fomos deixados com folhas fragmentárias, sem uma estrutura circunscrita, e ordenados ao acaso - aquele mesmo que o autor buscava suprimir. Dessa forma, é aberto um espaço de composição para o leitor, que pode ordená-los como quiser, montando os sentidos ali presentes e os conectando a outros. Assim, a leitura feita deixa de ser composta de rastros que remetem ao Livro perdido, e os leitores passam à criação de infinitos livros por inventar.
Ao afirmarmos metodologias como o cut-up e a escrita de fragmentos de memória, estamos abdicando do ideal do Livro que tudo contém. Não propomos a construção de um decalque - aquilo que já está dado e constituído sobre um eixo arborescente (Deleuze & Guattari, 1997a). Buscamos abrir os sentidos ao acaso, deixando que ele modifique as frases e as costure a outras; transforme as figuras da memória e crie rupturas com a linearidade temporal. Trabalhamos com os fragmentos a partir de uma lógica rizomática, mutável e aberta - assim, as frases que são recortadas podem criar tramas de sentido além do decalque dos artigos às quais pertenciam, agora rasgados e recortados, puxando linhas de fuga da lógica arborescente. Ao criar mapas da memória, ela perde seu caráter de decalque como mimetismo e rastro de um passado, e passa a compor linhas de fuga em um rizoma que a divisão temporal torna-se secundária. Não se trata do fragmento como resto de um todo perdido e que buscamos reconstruir - ele não é afirmado como uma falha ou falta, mas como uma escolha estilística que cria, em oposição a um plano já composto com relações limitadas, outro plano que está sempre engendrando novos sentidos.
Deslocando Coordenadas em Composições e Representações em Ações: Por outras Políticas do Narrar nas Ciências
Vemos a partir dos métodos erigidos pelas pesquisas o quanto as práticas de composição, próprias das metodologias presentes nos processos poéticos de diferentes modalidades artísticas, possuem uma potência ainda pouco explorada no que se refere a sua capacidade de promover uma operação usualmente denominada como Crítica (Foucault, 1978/1990): acontecimentalizar nossos sistemas do que é aceitável, do que somos capazes de pensar, sentir, ver, fazer, de modo a multiplicar os possíveis do mundo em uma prática de liberdade (Foucault, 1978/2014a). Neste caso, visibilizamos características próprias do que se denomina por vezes como paradigma ético-estético (Guattari, 1992), posto que a epistemologia deixa de circunscrever o território que ultrapassa o saber na direção do conhecimento concebido como verdade justificada racionalmente (Descartes, 1641/1999; Platão, 1833) e passa a modular-se pelas questões colocadas nos campos da ética e da estética: a modulação da produção do conhecimento se dá por uma questão de estilo, ou seja, problematizando a clínico-política ético-estética que estamos promovendo por meio dos nossos trabalhos. Assim, desde uma ética do desassossego, (enquanto prática de liberdade pela constante acontecimentalização de nossos regimes do ver, dizer, pensar, fazere sentir) se faz possível compreender os métodos aqui elencados enquanto experimentações, desde uma mirada que não almeja o desvelar da verdade ou produção do bem, mas sim o anseio de seguir construindo e problematizando diferentes formas de governarmos a nós mesmos e constituirmos comuns.
Visibiliza-se também o caráter de ação-produção (e não de representação) do conhecimento como parte de nossas tecnologias de subjetivação (Blanchot, 1976; Costa, 2012; Foucault, 1966/2009a). Faz-se nítido aqui o foco na escrita como território empírico pelo qual se constitui a pesquisa, não como plano representacional que apenas refere ao campo empírico externo à prática. Assim, escrever é experimentar, é tensionar nossas tecnologias de subjetivação, é perturbar os processos autopoiéticos de nossa dobra com o mundo: etografia de nós (Foucault, 2014c). Escrita e conhecimento aqui não são abstrações, mundo dos símbolos designando ou significando coisas no mundo real, pois aqui a escrita é tomada como ação, exercício e experimentação - ou seja, como istidade (movimentação) concreta partícipe das tecnologias de subjetivação que estão a produzir nós, eus e mundos, sem cessar. Prática concreta de concreção (Simondon, 2003; Whitehead, 1929/1956), ou seja, ação de multiplicar relações, de adensar mundo ao variar perspectivas possíveis (Costa, 2014).
Evidentemente, tal perspectiva não pretende apresentar-se como panaceia investigativa, do mesmo modo em que as operações acima não são protocolos prontos para replicação: cada uma das operações dos métodos aqui apresentados são ferramentas que enriquecem uma caixa de possibilidades para erigir cartograficamente métodos sempre singulares, sempre produzidos-agenciados com seus campos problemáticos. Desse modo, não falamos de métodos capazes de qualquer coisa em qualquer contexto. Aliás, esta é uma diferença importante com relação à metodologia da ciência tradicional, posto que esta última se guia pelo imperativo do controle-previsão e replicação-generalização, ao passo que os presentes trabalhos se guiam por uma possibilidade de compreensão-deslocamento e singularização-concreção. Assim, como referido antes, tais modos de investigar não se constituem em tecnologias para domínio dos fenômenos (controle-previsão), mas sim como tecnologias ético-estéticas para uma clínico-política do comum ao constantemente promover problematizações e acontecimentalizações em nosso campo de possibilidades do existir. Assim, é possibilitada a abertura de novas de composições (de "si" e "nós") em outras estilísticas-éticas ainda não experimentadas. Obviamente tal perspectiva se sustenta apenas diante da compreensão de que nosso interesse ético é afirmar práticas de exercício da liberdade e que estas, aqui, são a multiplicação de possibilidades. Resta-nos a multiplicação de dependências-contingências como modelo único possível para uma concepção de autonomia-liberdade (Costa et al., 2012).
Deste modo, tais experimentações ético-estético-metodológicas não nos permitem aperfeiçoar práticas de controle e previsão, não conseguem erigir tecnologias replicáveis ou delimitar protocolos gerais, passíveis de utilização em diversos contextos para promover maior segurança em intervenções futuras. Sabemos da extrema relevância da produção de manuais, normas técnicas, protocolos e instrumentos que estabilizam controvérsias e provém relativa segurança e unidade comunicacional na delimitação de metodologias estandardizadas. No entanto, de fato, a perspectiva aqui explicitada, é incapaz de possibilitar dispositivos de intervenção unívocos, homogêneos e gerais como estes, exatamente por conta da sua estreita articulação tanto com o campo de experiência das/os pesquisadoras/es quanto com as singularidades dos campos problemáticos isolados, fazendo com que características como o inacabamento, parcialidade, fragmentação, sejam companheiras íntimas da sua produção. Em que pese sua potência crítica e singularizante, estas experimentações não possibilitam a delimitação de coordenadas que constituam territórios estriados simetricamente nos quais somos capazes de nos orientar a partir de pontos fixos a servirem de pontos cardeais de nossas práticas, incorrendo, inevitavelmente, em uma intensa experiência de vertigem durante sua produção e em seus efeitos como obra. Vertigem que nubla evidências, mas é aqui bem-vinda por promover a clínico-política da crítica.
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Endereço para correspondência:
Luis Artur Costa
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Ana Laura Baldini Reis
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Recebido em: 10/12/2020
Revisado em: 25/04/2021
Aceito em: 15/05/2021
Publicado online: 29/04/2022
1 Nome fictício inspirado na protagonista do livro infantojuvenil "Corda Bamba" (Bojunga, 1995).
2 Qualquer é utilizado para desindividualizar o caso, colocando em jogo um sentido de comum que se apresenta nos processos de singularização agenciados por Maria. Comum aqui se refere a "[...] essa experiência coletiva em que qualquer um nela se engaja ou em que estamos engajados pelo que em nós é impessoal. Mesmo quando vivido, enunciado, protagonizado, emitido por uma singularidade, a narrativa não remete a um sujeito. O sujeito é ele próprio um agenciamento de enunciação, isto é, ele se constitui num plano de consistência por agenciamentos, ele só existe em face de certas engrenagens, de determinados agenciamentos" (Passos & Barros, 2009, pp. 167-168).
3 "Como fazer amigos e influenciar pessoas", Dale Carnegie (1936/2012); "Ansiedade: como enfrentar o mal do século: A Síndrome do Pensamento Acelerado", Augusto Cury (2014); "O Monge e o Executivo", James C. Hunter (2004).
4 "Num sentido geral, chamamos de ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motores, gestuais, ópticos, etc.)" (Deleuze & Guattari, 2012, p.139). Esse é um dos conceitos mais relevantes encontrados nos Mil Platôs, o ritornelo é a maneira como são realizados os jogos entre territorializações e desterritorializações que vão concedendo consistência à existência, através dos sons, dos versos melódicos, das paisagens sonoras com as quais vamos nos agenciando ao longo da vida: "o território é, ele próprio, lugar de passagem" (Deleuze & Guattari, 2012, p. 139).