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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.10 no.2 Belém maio/ago. 2018
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n02ensaio36
Ensaio
Relação entre sistema self e camadas de neurose em gestalt-terapia
The relationship between the self system and the layers of neurosis in gestalt therapy
La relación entre sistema self y capas de la neurosis en terapia Gestalt
Célia Cristina de Albuquerque BandeiraII; Luciana Machado SchmidtI; Virginia GrünewaldII; Francisco Antônio Pereira FialhoII
IComunidade Gestáltica – SC, Brasil
IIUniversidade Federal de Santa Catarina, Brasil
RESUMO
Este ensaio é um estudo teórico que tem por objetivo relacionar os conceitos da Gestalt-Terapia de "sistema self" aos de "camadas da neurose", categorias fundamentais no corpus teórico-metodológico da Gestalt-Terapia. Relacionamos a camada postiça à introjeção; a camada fóbica à projeção; o impasse à confluência; a camada implosiva à retroflexão; e a camada explosiva ao egotismo. A integração aqui efetuada pode ser considerada um instrumento teóricometodológico relevante para estudiosos de Gestalt-Terapia e psicoterapeutas em sua prática clínica. Os resultados obtidos contribuem tanto para o processo de psicodiagnóstico, quanto para o de psicoterapia, uma vez que esclarecem como as disfunções de contato específicas para cada camada podem ser mantidas na repetição neurótica, bem como as funções de contato podem servir de base em cada camada para a resolução do conflito neurótico, isto é, para a saída da repetição e o retorno ao fluxo criativo.
Palavras-chave: Self; Neurose; Gestalt-Terapia; Psicodiagnóstico; Prática Clínica.
ABSTRACT
This essay is a theoretical study that aims to bring together the concepts of Gestalt Therapy "self system" and "layers of neurosis". Both categories are fundamental in the Gestalt Therapy theoretical-methodological corpus. We relate the cliché layer to the introjection; the games layer to the projection; the impasse layer to the confluence; the implosive layer to the retroflexion; and the explosive layer to the egotism. The integration made here can be considered a relevant theoreticalmethodological tool for Gestalt-Therapy scholars and psychotherapists in their clinical practice. The results obtained contribute to both processes of psychodiagnosis and of psychotherapy, since they clarify how the specific contact dysfunctions for each layer can be maintained in the neurotic repetition, as well as how the contact functions can serve as a basis in each layer for the resolution of the neurotic conflict, that is, for the exit from repetition and the return to the creative flow.
Keywords: Self; Neurosis; Gestalt Therapy; Psychodiagnosis; Clinical Practice.
RESUMEN
Este ensayo es un estudio teórico que pretende relacionar los conceptos de la terapia Gestalt del "sistema self" a "capas de la neurosis", categorías fundamentales en el corpus teórico y metodológico de la Terapia Gestalt. Relacionamos la capa cliché a la introyección; la capa fóbica a la proyección; el impasse a la confluencia; la capa implosiva a la retroflexión; y la capa explosiva al egotismo. La integración aquí hecha se puede considerar una herramienta teórica y metodológica relevante para los estudiantes de la terapia Gestalt y para los psicoterapeutas en su práctica clínica. Los resultados obtenidos contribuyen tanto al proceso de psicodiagnóstico, como al de la psicoterapia, ya que aclaran cómo las disfunciones de contacto específicas para cada capa pueden ser mantenidas en la repetición neurótica, así como las funciones de contacto pueden servir de base en cada capa para la resolución del conflicto neurótico, es decir, para la salida de la repetición y el retorno al flujo creativo.
Palabras-clave: Self; Neurosis; Terapia Gestalt; Psicodiagnóstico; Prática Clínica.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio tem o objetivo de relacionar os conceitos da Gestalt-Terapia de ‘sistema de self’ aos de ‘camadas da neurose’, apontando algumas implicações para a prática clínica. A primeira seção trata dos principais conceitos da Gestalt-Terapia, principalmente a compreensão da neurose; na segunda seção apresentamos as camadas de neurose; na terceira, o sistema self; e na quarta seção, fazemos a relação entre as camadas de neurose e o sistema self, bem como uma reflexão crítica sobre tal relação, indicando o papel do psicoterapeuta nas diversas fases do processo.
A COMPREENSÃO DA NEUROSE NA GESTALT-TERAPIA
A abordagem Gestáltica enfatiza o ser humano como um todo (Polster & Polster, 1979; Ginger & Ginger, 1995) e como um ser-em-relação, em "sua existência no mundo, no seu tempo histórico e no espaço físico e social, com um potencial de ação transformadora de si e do mundo" (Tellegen, 1984, p.20). Cada pessoa é considerada como uma totalidade dinâmica que se modifica a partir das relações com outras pessoas em um determinado tempo histórico e espaço social, que também está se transformando rapidamente nos dias atuais. Dessa forma, pessoa e mundo estão em um processo de vir-a-ser constante.
A pessoa, como ser-em-relação, existe num campo onde o indivíduo influencia e é influenciado pelo meio. O conceito de campo é muito importante na Gestalt-Terapia. A indissociabilidade entre pessoa e ambiente é o que é chamado campo (Perls, 1981, 1977a, 1977b). Está em constante transformação, pois o meio social ou o ambiente físico estão em frequente mudança, sendo que as pessoas também estão transformando-se, ou em permanente movimento.
A neurose surge "quando o indivíduo está cristalizado num modo de atuar obsoleto [e] fica menos capaz de ir ao encontro de qualquer de suas necessidades de sobrevivência, inclusive das necessidades sociais". (Perls, 1977b, p. 40). Assim, ao desequilíbrio entre organismo e meio, no campo, dá-se o nome de neurose, que é a incapacidade do indivíduo de atender a sua necessidade fazendo o que seria mais apropriado no contexto em que está inserido. "O neurótico não pode ver claramente suas próprias necessidades e, portanto, não pode satisfazê-las. Não distingue adequadamente entre si e o resto do mundo e tende a ver a sociedade como maior que a vida e a si mesmo como menor" (Perls, 1977b, p.41).
É importante destacar que embora Perls tenha frequentemente tratado a neurose como uma disfunção, a visão atual em psicoterapia é que ela corresponde muito mais à presença de sofrimento psíquico do que a uma desfuncionalidade da pessoa com relação a seu contexto social. "A ideia da des-funcionalidade de uma pessoa inserida em um contexto social deve ser substituída pela ideia da existência de um sofrimento experienciado pelo indivíduo" (Barros & Holanda, 2007, p.85). O tratamento escolhido não deveria ter o mero objetivo de adaptar uma pessoa ao seu meio, mas de diminuir o sofrimento pessoal "devido à vivência de um processo preenchido por significados conflitantes construídos na interação entre esse indivíduo que sofre e seu meio, durante toda sua vida" (Obra citada acima, p.85).
Nesta perspectiva crítica com relação aos processos de subjetivação envolvidos na prática clínica, Vale e Pimentel (2017, p. 201) trabalham com o conceito de "clínica social engajada", o qual "focaliza o desvelamento da dialética sujeito-sociedade, em que a subjetividade é compreendida como produto e resultado dos jogos de normalização e marcação da identidade moderna". Assim, mesmo quando utilizamos expressões de Perls tais como "organismo saudável" ou "disfunções de contato", estamos corroborando a proposta de um olhar crítico com relação aos processos de subjetivação em psicologia clínica, considerando que o indivíduo não pode ser reduzido a uma patologia e nem tratado como se estivesse separado do contexto social que o constitui.
Na Gestalt-Terapia, um dos conceitos fundamentais é o de fluxo figura e fundo, conhecido também como campo de presença. Nele, as experiências humanas são percebidas como totalidades, ou estruturas unificadas definidas, segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997). "Na luta pela sobrevivência, a necessidade mais importante torna-se figura e organiza o comportamento do indivíduo até que seja satisfeita, depois do que ela recua para o fundo (equilíbrio temporário) e dá lugar à próxima necessidade mais importante agora". (Perls, Hefferline & Goodman, 1997, p. 35).
Segundo Perls et al. (1997), o indivíduo não tem uma neurose, ele é a própria neurose, quando a Awareness e a integração das polaridades não estão presentes. Como não existe uma tradução exata de Awareness na língua portuguesa, o termo em inglês é utilizado na literatura científica. O conceito de Awareness pode ser compreendido como um processo de tomar consciência de alguma coisa que pode levar à transformação de algum aspecto na vida pessoal. É a Awareness e o saber da experiência que permitirão uma reconciliação ou integração de opostos, ou uma unificação das polaridades existentes no psiquismo humano (Yontef, 1998).
Para Pinto (2009), a compreensão de neurose na Gestalt-Terapia ainda hoje se mostra inovadora, quando comparada a outras abordagens psicológicas, na medida em que Perls a percebe como uma tentativa de ajustamento criativo, isto é, uma manobra defensiva que foi a melhor forma encontrada pela pessoa numa situação em que se percebeu ameaçada ou em crise, para manter a sua integridade.
Perls (1977a) estruturou a neurose em cinco camadas, denominadas de "camadas de neurose". Na sequência, iremos apresentar os conceitos em Gestalt-Terapia sobre tais camadas.
AS CAMADAS DA NEUROSE EM GESTALT-TERAPIA
A base fenomenológica da Gestalt-Terapia possibilita uma visão do ser humano em integração com o mundo e a possibilidade de encontros genuínos entre pessoas, na prática clínica ou fora dela. Quando a capacidade para o crescimento pessoal fica obstruída, impedindo o encontro genuíno, a neurose se instaura como uma tentativa da pessoa de se ajustar criativamente ao meio. Entretanto, na busca para retornar ao seu desenvolvimento, pode ocorrer um ajustamento disfuncional, através das camadas de neurose: postiça, fóbica, impasse, implosão e explosão (Perls, 1977a). As camadas são referências, pois, na prática, elas aparecem processualmente e não linearmente.
A primeira camada da neurose é a postiça; nela, a pessoa costuma conservar-se no desempenho de papeis de forma estanque para representar uma fantasia, um conceito ou uma imagem ideal, muitas vezes distante daquilo que se é. Sua vivência carece de autenticidade, o que a impede de reconhecer a si mesma e de que os outros saibam quem ela é. No grupo social, podemos ver este fenômeno com maior clareza, uma vez que quando as pessoas estão fixadas nesta camada, desempenham papeis sociais rígidos, sem flexibilidade. O problema não é o desempenho de papeis, porque desempenhamos vários ao longo da vida. A dificuldade é quando as pessoas se tornam prisioneiras dos papeis e não têm consciência disso; ou quando estes são vivenciados fora do contexto; ou ainda quando a pessoa só consegue interagir socialmente através de um único papel, ou de poucos e limitados papeis.
Na camada postiça, a pessoa não tem Awareness; há uma ausência de consciência do que faz e do que evita. O indivíduo não reconhece a si mesmo, devido à cristalização do papel. Muitas vezes a pessoa busca psicoterapia nesta camada, porque o desempenho do papel dominante se torna inadequado em algumas situações, como em contextos profissionais (Perls, 1977a; Perls, 1977b; Cardella, 1994).
Na segunda camada, denominada de fóbica, o medo da vida é característica constante. A pessoa tem medo de ser quem é e demonstrar o que realmente sente e pensa nas relações. Tem pensamentos catastróficos e medo de se expor. Na medida em que o indivíduo vai experimentando maior consciência dos papeis representados e que estes são comportamentos postiços, é comum surgir ansiedade, pois a autenticidade lhe é desconhecida. Nesta camada, a pessoa costuma fazer cobranças aos outros que estão ao seu redor, dizendo como estes deveriam ser; é comum, na tentativa de controle, o indivíduo responsabilizar o outro pelo vivido e ao dar-lhe essa responsabilidade, perder a gerência da própria vida (Perls, 1977a; Perls, 1981; Cardella, 1994).
Despir-se dos mecanismos de autoproteção, das máscaras, papeis e jogos substituindo-os quando necessário, é o desafio de uma jornada de vida. Nesta camada fóbica, a pessoa ainda não é capaz de fazê-lo, pois os medos permanecem, ainda que por vezes camuflados, uma vez que as necessidades básicas de segurança e de afiliação às figuras na vida da pessoa mantém ativo um ciclo de comportamentos padronizados e repetitivos.
A próxima camada, a do impasse, se destaca pela vivência de uma dor profunda, quando não estamos prontos ou estamos resistentes a usar os próprios recursos e não se verifica o apoio ambiental. É um momento em que o referencial antigo não serve mais e um novo referencial ainda não foi construído (Perls, 1977b). Como a figura não está clara e nítida, o impasse se configura como uma paralisação frente a um conflito, em que uma figura não consegue se destacar. Internamente uma parte da pessoa diz sim e a outra diz não. A pessoa se vê sem suporte para estabelecer o contato. No impasse, a pessoa não vê a saída e tem a crença de incapacidade, ou seja, de que não pode resolver suas dificuldades. O indivíduo procura manter o status quo. É a consciência do impasse que permite a pessoa se libertar do mesmo; ou seja, quando a figura começa a se delinear, o indivíduo já saiu desta camada. "Aqui a mínima exteriorização, um leve tremor já leva à dissolução da camada" (Perls, 1977a, p.46). A consciência permite que o impasse se desmorone e a libertação ocorra.
A camada implosiva, como o próprio nome diz, é um estouro internalizado; as energias necessárias à vida continuam bloqueadas. O indivíduo psiquicamente pode se apresentar em estado semelhante ao catatônico. A pessoa se volta mais para si e concentrase mais no seu emocional, pois o momento é de introspecção. A sensação de vazio e de morte tendem a acompanhar esta camada. Sentimentos de aniquilamento e de desaparecimento também podem surgir em decorrência do não uso dos recursos pessoais e da falta de apoio ambiental (Perls, 1977a; Perls, 1977b; Cardella, 1994). A pessoa se encontra exposta; o antigo que era conhecido e que estava desatualizado ainda não foi substituído, mas já está identificado. Neste período, é possível aparecer doenças e somatizações. Há medo de ser quem se é e geralmente não há exteriorização na ação ou expressão de si.
A liberação de energia na camada explosiva diz respeito ao momento em que ocorrem explosões emocionais. Não são necessariamente fortes, é como se a pessoa começasse a vibrar e a entrar no viver autêntico, na capacidade de viver novamente, de forma mais integrada. Torna-se mais consciente do que faz e do que evita (Perls, 1977a; Perls, 1977b; Cardella, 1994). Deixa acontecer e permite que os outros sejam os outros. Esta experiência só é possível a partir do vazio, do nada, que caracteriza a implosão na camada anterior. "Só a ‘morte’ da falsa imagem fabricada, fundada em medos, em dor e desespero possibilita o amadurecimento, a atualização da individualidade, um verdadeiro renascimento que se dá através da explosão" (Cardella, 1994, p.55). Para quem está neste nível só existe uma saída, que é "subir". A sensação de liberação do que está reprimido através da ação se dá muitas vezes quando a pessoa descobre que não é dependente porque é incapaz, mas que é incapaz para poder ser dependente (Perls, 1977a). Ela volta a fazer escolhas.
A camada explosiva traz à luz as polaridades existentes. "Essencialmente, existem quatro tipos de explosão; explosão para a alegria, para a dor, para a cólera e para o orgasmo. Por vezes, as explosões são muito moderadas - dependem do montante de energia investido na camada implosiva" (Fagan & Shepherd, 1971, p.38). Na explosão, os aspectos psíquicos aprisionados e contidos afloram e há o resgate dos comportamentos e do contato genuíno. Para Spangemberg (1996) isto ocorre quando a pessoa se dá conta de como produz a sua vida, passando da compreensão para a expressão. Este é o primeiro e fundamental passo para a mudança, para a saída da neurose, mas não o único, pois é preciso que ocorram outras etapas que consolidem a nova ‘ordem’ vital. Para a saída da neurose, a pessoa precisa dedicar-se à percepção e à compreensão da estreita relação entre figura e fundo, entre defesa e defendido, que determinam a sua experiência.
Passar por todas as camadas da neurose resulta em um processo de saúde e desenvolvimento para a pessoa; tal processo exige maior consciência das polaridades contato e retraimento, em prol da organização de limites. (Alvim e Carvalho, 2010; Carvalho e Costa, 2010). É preciso distinguir retração ou retraimento, que é um processo saudável; de evasão, evitação ou fuga, que pode ser disfuncional. Quando a pessoa não consegue fazer o movimento de se retrair temporariamente de algo e voltar a fazer contato, ela passa a evadir, evitar ou fugir do contato, como uma estratégia para impedir o sofrimento. Neste caso, há uma dificuldade de autorregulação que pode ocasionar o adoecimento, porque o processo de evitação se cristaliza (Robine, 2006). Ao retomar o fluxo contato e retração, formando novas figuras e fazendo o seu fechamento, a pessoa supera as eventuais interrupções do contato, ampliando sua consciência e atualizando o self (Alvim, Bonbem e Carvalho, 2010; Carvalho e Costa, 2010).
É importante ressaltar que o conceito de self em Gestalt-Terapia é distinto daquele de outras abordagens psicológicas, uma vez que aquelas tendem a considerar o self uma estrutura psíquica da pessoa, enquanto que na Gestalt-Terapia, o self não está no indivíduo e nem no meio; ele é um processo. Isto significa que o self é um sistema de contatos, o qual pode ser acionado a qualquer momento. "O self é a fronteira-de-contato em funcionamento; sua atividade é formar figuras e fundos" (Perls, Hefferline & Goodman, 1997, p. 49). O self é considerado um processo integrador, que dá uma unidade sintética às experiências da pessoa e à sua vida. Neste processo, as necessidades são satisfeitas e as Gestalten que surgem como figuras são fechadas, na medida do possível.
O SISTEMA SELF EM GESTALT-TERAPIA
O sistema self é o campo de presença em ação e ocorre em um contexto delimitado pelo tempo e pelo espaço. Por acontecer numa fronteira, ele tem uma temporalidade manifesta pelas dinâmicas do tempo do self denominadas de pré-contato, contato, contato final e pós-contato. Pré-contato, como o nome já diz, é a fase inicial do contato; contato é quando o contato se estabelece; contato final é a fase em que o objeto escolhido é encontrado e ocorre o fechamento; e o pós-contato é a fase do retraimento, quando o contato acabou e existe uma nova possibilidade do fluxo figura e fundo se restabelecer (Robine, 2006).
As funções do sistema self, por sua vez, dizem respeito ao espaço e são denominadas de confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo; todas são processos criativos. Como fazem parte de um processo, cada função está atrelada à outra. Isto significa que a saída da confluência se dá via introjeção; a saída da introjeção se dá via projeção, e assim por diante (Polster & Polster, 1979).
O sistema self pode acontecer de modo saudável ou disfuncional, pois ele é a fronteira de contato em ação. O aspecto disfuncional está atrelado à interrupção do contato, o que pode ocorrer por uma figura mal delineada, por impedimentos do meio ou por um fundo indisponível. Quando o contato é interrompido, a emoção fica aprisionada. Como existem emoções diferentes e cada pessoa é única, isto significa que as perturbações do contato se apresentam de variadas formas e em cada estilo particular de ser (Santos Filho & Costa, 2016).
As funções de contato do self aparecem na literatura em quantidade e com características diversas (Polster e Polster, 1979; Ginger e Ginger, 1985; Ribeiro, 1997; Perls, 1981). Optamos pela versão de Perls (1981; Perls et al.,1997) que cita a confluência, a introjeção, a projeção, a retroflexão e o egotismo. Tais funções serão definidas a seguir.
A confluência no modo saudável é o que permite a pessoa desenvolver a empatia, a aproximação e a compreensão do "outro", no sentido do que nunca será "eu", ou do que é mais próximo do "nós", como eu + tu. Permite vivenciar o que Maslow (1954) define como experiência culminante, isto é, êxtase, comunhão profunda e sem fronteiras. Para Perls (1981, p.51), "quando o indivíduo não sente nenhuma barreira entre si e seu meio, quando sente que ele próprio e o meio são um, está em confluência com este meio. As partes e o todo são indistinguíveis entre si".
Robine (2006, p. 67) afirma que "os hábitos e os conhecimentos adquiridos são a base da confluência saudável" e que "a memória é confluência". Esclarece ainda que a distinção entre as confluências saudáveis e as neuróticas está no fato de que as primeiras são acessadas via memória e as últimas não, devido à repressão. No modo disfuncional, a pessoa não pode vivenciar a si mesma porque está no apego de algo que não é seu. Nesta forma de funcionar, a pessoa tende a exigir dos outros, comportamentos semelhantes aos seus, tendo dificuldade de compreender e aceitar as diferenças. Ainda segundo Robine (2006), na confluência não existem barreiras; tudo é fluido e permeável, pois não há figuras que se destacam do fundo. Fragmentos de sensações e pensamentos entram e saem da consciência; porém, a pessoa não percebe a diferença entre ela e o meio. Quando aparece a fronteira, ela sai da confluência.
A introjeção permite ao indivíduo discriminar, através da capacidade de ingerir e assimilar, o limite entre a pessoa e o meio; é a capacidade de estruturar e desestruturar, analisar, separar, e reunir o novo. É essencial aos processos de desenvolvimento, crescimento e aprendizagem. Já no modo disfuncional, torna-se incapaz de discriminar conceitos, padrões de comportamento e valores para cada situação vivida na relação com o meio, porque os assimila indiscriminadamente. Assim, os modos de agir, pensar e sentir tornam-se incongruentes, inautênticos, pois são incorporados do meio e internalizados sem compreensão, de forma automática. O que leva a pessoa a fazer falsas identificações, na maioria das vezes com o que é do outro (Perls, 1981; Perls et al., 1997). O indivíduo evita a expansão da energia ao aceitar um acordo "não mastigado", não processado ou refletido. Ao assumir os comandos externos como formas de funcionamento interno, distancia-se de quem ele é. Faz-se necessário destacar a distinção entre introjeção e introjeto. Segundo Robine (2006), o primeiro é o processo e o segundo é o resultado, ou o conteúdo resultante do processo de introjeção.
Na projeção a pessoa atribui características próprias a objetos, pessoas e relações. Contudo, segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 254), "normalmente a projeção é indispensável. A projeção no "espaço vazio" é o começo da criatividade gratuita (...) que, em seguida passa a elaborar um correlato da emoção livre ou da intuição". Assim, no seu aspecto saudável, ocorre na confrontação com o ambiente, isto é, quando temos consciência e nos apropriamos do que fazemos. É o que permite o planejamento do futuro no momento presente, pois a imaginação é utilizada para intuir o significado do que ainda não está visível, mas já está disponível como realidade (Perls, 1981). Perls (1981; Perls et al., 1997) considera a projeção o ponto de partida tanto da criatividade, quanto da intuição.
No seu aspecto disfuncional, a projeção impede o indivíduo de se reconhecer; levando-o a se alienar ou a desvalorizar aspectos de si mesmo. Geralmente são projetadas, sem consciência, as partes da personalidade consideradas pelo indivíduo como difíceis e pouco atrativas (Perls, 1981; Perls et al., 1997). Aspectos positivos também podem ser projetados, se a pessoa tiver dificuldade de atribuir características agradáveis a si mesma. No aqui-e-agora, ao fazer uso da projeção, o indivíduo pode fazer contato com suas emoções, porque ocorre o encontro do eu com o meio, na fronteira de contato. Quando a excitação é aceita e o meio é confrontado, aparece a emoção, que é "a Awareness integrativa de uma relação entre o organismo e o ambiente" (Perls et al.,1997, p.212).
A retroflexão faz com que o indivíduo consiga realizar uma distinção entre ele e o meio, fundamental para os processos de individuação. A pessoa faz uma parada para autoavaliar a situação e poder discriminar o que é dela e o que é do meio, mantendo-se responsável por suas ações, mas considerando o meio. É quando a pessoa contém em si o excitamento, para avaliar e organizar a melhor forma de ação. Neste momento há um reajustamento da emoção e a presença de autocrítica e autocontrole. Robine (2006, p. 68) afirma que "o pensamento, na medida em que é uma preparação para a ação, é retroflexão."
Perls et al. (1997) menciona que a retroflexão é o processo de autorreformação, uma vez que a pessoa reconsidera as possibilidades da emoção e faz os ajustamentos necessários para as ações ulteriores. Como disfunção, se traduz na dificuldade do indivíduo de ficar com o que é seu, priorizando o meio. A pessoa faz a si, o que gostaria de fazer ao outro; isto é, redirige a energia, se colocando como alvo da própria ação e dos próprios sentimentos (Perls, 1981; Perls et al., 1997).
O egotismo é a função de contato em que a pessoa prioriza a si mesma em relação ao meio, reconhecendo e satisfazendo suas necessidades. É a saída da retroflexão. O indivíduo já avaliou a situação, considerou o meio e optou por priorizar a si mesmo. Ocorre quando a figura, que já está delineada, se aproxima do contato final no fluxo figura e fundo. No seu aspecto disfuncional, se aproxima do egoísmo, definido como "amor exclusivo à pessoa e aos interesses próprios" (Dicionário Aurélio de Português Online, 2018). A pessoa tende a buscar exercer o controle sobre o meio através de manipulações, de forma a não ser atingida pelo mesmo. Tende a focar-se excessivamente em si mesma, não percebendo que coloca a si própria como centro de todas as coisas (Perls, 1981; Perls et al., 1997).
Uma outra forma de manifestação disfuncional do egotismo é a tendência à racionalização como uma forma de evitação do contato com as emoções. Por haver uma ansiedade pela perda do controle, há também uma evitação da entrega; dessa forma, os transtornos se dão devido à interrupção do contato final. Por outro lado, "o egotismo saudável possibilita uma verificação das fronteiras, reduz o contato final, mas não recusa o envolvimento" (Robine, 2006, p. 68). Permite à pessoa uma reflexão e elaboração antes de se comprometer com a ação.
Na próxima seção, ao apresentarmos as camadas da neurose, faremos uma relação das mesmas com o sistema self, que é a proposta original deste trabalho.
RELAÇÃO ENTRE CAMADAS DA NEUROSE E SISTEMA SELF: REFLEXÃO CRÍTICA
Vimos até o momento que, quando o fluxo figura e fundo for interrompido, o indivíduo pode fazer um ajustamento criativo, que é uma adaptação ao meio. Nas situações em que o meio continua persistindo no impedimento de que uma necessidade se realize, o ajustamento criativo inicial toma a forma de uma disfunção de contato. A falta de coordenação entre a ação, os sentimentos e os pensamentos, chamada de disfunção de contato, se reflete na interação da pessoa com o ambiente. E embora usemos o termo disfunção, compreendemos que a mesma está atrelada a um contexto que a torna dinâmica e contínua; sendo assim, não é um estado estanque, mas um processo que se adapta à situação que ficou em aberto.
Todo contato, portanto, é uma forma de ajustamento; e inicialmente, todo ajustamento é criativo; quando o meio interrompe sistematicamente a satisfação de suas necessidades, a pessoa faz uma adaptação; se esta se tornar repetitiva ou um hábito, a pessoa perde o contato com o novo e com a necessidade original. Passa a ocorrer repetição, rigidez e deformação de um processo que originalmente era fluido e criativo.
As disfunções ocorridas no contato podem ser consideradas mecanismos neuróticos que se manifestam através de modos singulares de pessoa para pessoa; isto implica em dizer que estas interrupções do contato podem atuar nas camadas da neurose de forma diferenciada e de acordo com o comprometimento dos sistemas de apoio da pessoa: psicomotor, cognitivo, afetivo e social (Perls et al., 1997). É importante destacar que se trata de um processo e que o contato ou suas interrupções irão acontecer no fluxo figura e fundo. Entre as camadas ocorre um fluxo e sua divisão é meramente didática.
A camada mais superficial ou postiça (Perls, 1981) é caracterizada pelo desempenho de papeis. Segundo Fagan e Shepherd (1971) nos comportamos "como se" - como se fôssemos… tal papel. Na camada postiça, a pessoa introjeta os "deves" e os "nãodeves" das estruturas sociais e procura atuar segundo tais regras, não tendo consciência de sua própria inautenticidade. Buscando a aceitação social, o indivíduo tende a repetir aqueles papeis que foram introjetados ao longo do ciclo de vida. Assim, podemos relacionar esta camada à introjeção, uma vez que a pessoa introjeta "deverias", isto é, modos de ser que ela acredita serem normativos. O indivíduo aceita o que o meio lhe traz, sem curiosidade sobre o que está ocorrendo e sem questionamentos. Geralmente são valores sociais ou familiares. Olhando mais atentamente para a pessoa na camada postiça, percebemos formas de ajustamento enrijecidas pela ação cristalizada de um "mecanismo de resistência". "Resistência não é apenas uma barreira inerte que deve ser removida, mas uma força criativa para administrar um mundo difícil. (...) No melhor, uma pessoa cresce ao resistir, e no pior, a resistência é ainda uma parte de sua identidade" (Polster & Polster, 1979, p. 67-68). Neste caso, na introjeção, a pessoa incorpora passivamente o que vem do ambiente como se fosse seu, sem Awareness de como isso lhe afeta. Para propiciar o ajustamento saudável é necessário que a pessoa amplie sua Awareness, já que se encontra entre a sensação e a consciência, segundo Zinker (2001). Ao fazer isso, a pessoa inicia um processo de individuação que lhe permite expressar sentimentos, pensamentos e ações e discriminar o que serve para ela e o que não faz sentido, processo que pode levá-la à integração.
Na camada postiça ou de desempenho de papeis, é mais perceptível a introjeção como figura interrompida. A pessoa toma os valores sociais como certos e tende a fazer muitas generalizações, tais como "eu tenho que ser bonzinho" ou "eu nasci assim e vou morrer assim", ficando presa em papeis. O indivíduo não faz questionamentos; não diz "eu quero" e sim "tem que ser assim". O trabalho terapêutico é rever os valores nesses papeis, propiciando novas experiências e olhares sobre os antigos, deixando que o excitamento siga seu curso. Ao ampliar a Awareness no processo de psicoterapia, a pessoa inicia um processo de individuação, que lhe permite sair das generalizações para a singularidade. O indivíduo tornase capaz de distinguir o eu do outro (Ribeiro, 1997).
Na segunda camada, a fóbica, o ajustamento neurótico se mantém basicamente pelo medo de ser quem se é. A ansiedade frente ao que ameaça, seja visível ou não, pode levar a pessoa a rejeitar aspectos pessoais projetando-os no ambiente. Este processo a torna impotente para propor mudanças intra e interpessoais e a paralisa no medo (Perls, 1977a; Polster & Polster, 1979). Para intervir junto à pessoa nesta camada, o psicoterapeuta foca na reintegração das partes que foram alienadas ou fragmentadas (Ribeiro, 1997). A camada fóbica pode ser relacionada à projeção, pois este é o momento em que a pessoa procura evitar o sofrimento e a frustração, projetando-os no meio. A projeção funciona como uma defesa contra algo ameaçador, que não pode aparecer (Perls et al., 1997).
Na camada fóbica, o medo de ser quem se é sustentado pelas fantasias catastróficas, é o que favorece a projeção. "O contrário de introjeção é a projeção. Assim como a introjeção é a tendência a fazer o si mesmo responsável pelo que na realidade faz parte do meio, a projeção é a tendência a fazer o meio responsável pelo que origina na própria pessoa" (Perls, 1981, p.49). O excitamento vem para fora, para o meio/outro; as queixas são grandes, pois a pessoa não se apropria do que é seu, e o lugar de vítima é o que é possível. Como o indivíduo espera que o outro modifique sua vida, este vira uma espécie de "tela" para suas projeções.
Na psicoterapia, o objetivo dessa fase é trazer o cliente para a fronteira de contato, para poder dialogar com as partes fragmentadas e fazer com que a pessoa se aproprie do que é seu e do que é real. O processo de Awareness possibilitado pela psicoterapia nesta camada é focalizado no como a pessoa projeta o que é seu em outros, favorecendo que o cliente perceba seu próprio poder pessoal e responsabilidade nas suas ações e relações. Neste processo, a pessoa sai da desconfiança para a curiosidade, permitindo que existentes polaridades e trocas de papeis sejam trabalhadas na psicoterapia. A proposta terapêutica nesta camada é que a pessoa saia do lugar de vitimização e deixe de utilizar o recurso projetivo com base na desconfiança, abrindo espaço para a curiosidade e para o encontro com o mundo.
O indivíduo passa a vivenciar o impasse quando não há alternância entre figura e fundo e uma figura não consegue se destacar. Podemos relacionar o impasse, portanto, à confluência. Nesta camada, é muito comum a pessoa chegar ao consultório do psicoterapeuta sem referência, pois os papeis que costumava desempenhar não servem mais e ainda não foram construídos os novos. Pode também fazer uso da ambiguidade, pois a figura ainda não se delineou. Neste caso, o psicoterapeuta buscará ampliar a Awareness da pessoa estimulando sua atenção para que ela possa delinear melhor a figura e discriminar o que é seu e o que é do meio (Polster & Polster, 1979).
Na camada do impasse, a pessoa ainda não tem uma figura clara, bem delineada. Aqui a pessoa não tem fronteira, pois está em confluência com o meio. Nesta camada existe uma dissolução da relação figura e fundo, e o indivíduo não consegue ter certezas ou suportes para fazer escolhas, geralmente pedindo ao psicoterapeuta que resolva seus problemas por ela.
No impasse, a contribuição do trabalho psicoterápico é a focalização da atenção do cliente no próprio vazio, na angústia e na confusão, para que uma figura possa ser delineada. Quando isto acontece, o impasse se dissolve e a pessoa passa para a camada implosiva. "Na terapia temos, então, que reestabelecer a capacidade do neurótico de discriminar. Temos que ajudá-lo a descobrir o que ele é e o que não é; o que o gratifica e o que o contraria. Temos de guiá-lo para a integração" (Perls, 1981, p.56). O trabalho psicoterápico envolve que o próprio cliente consinta que uma figura emerja, saindo do movimento de agradar o outro para poder satisfazer suas próprias necessidades. Para isso, necessita compreender as diferenças e semelhanças entre si e os demais, o que lhe permitirá sair da confluência.
Quando a figura começa a ser delineada, o cliente passa para a camada implosiva. Neste momento, a pessoa faz a retroflexão e o movimento "para dentro", para fazer a autoavaliação e a autocrítica. Na retroflexão, não há exteriorização; a pessoa "vai para dentro" e retroflete, o que por sua vez, pode levá-la à somatização, ao adoecimento e até ao suicídio, em casos mais complexos. A pessoa se fecha em si. Na camada implosiva, "para se tornar uma unidade separada e autossuficiente, ela reinveste a energia em um sistema exclusivamente intrapessoal" (Polster & Polster, 1979, p.79).
O psicoterapeuta tem duas funções, quando o cliente se encontra na camada implosiva: inicialmente fornece heterossuporte para possibilitar o contato do cliente com o próprio vazio, dentro de suas possibilidades. Deve saber ficar com o cliente na sua dor, não permitindo a evitação. Somente depois deste importante passo, o psicoterapeuta poderá estar com o cliente na ampliação do contato da pessoa com o mundo, disponibilizando, através de sua presença, que o cliente identifique aquilo que é nutritivo para ele ou ela, sem intermediações. Ao focar no contato direto da pessoa com o mundo, o psicoterapeuta incentiva as relações interpessoais e o "vir para fora", como movimento oposto à implosão e no sentido de estar presente (Ribeiro, 1997). Na retroflexão o cliente olha para si, para o meio e prioriza a si mesmo, atendendo à sua necessidade e liberando a tensão na camada explosiva. Quando isso ocorre, já houve a transição da camada implosiva para a explosiva.
Na última camada da neurose, a explosiva, o indivíduo passa da compreensão dos seus processos ocorrida na camada implosiva, para a expressão. Esta camada pode ser relacionada ao egotismo, uma vez que a presença do ajustamento egotista pode se manifestar através da concentração em si mesmo ou do autocentramento (Perls,1977a). Neste caso, o psicoterapeuta "estará com" o cliente durante o seu processo, a partir de uma ressignificação do vivido, favorecendo o fechamento da situação. O cliente busca a satisfação possível através da expressão e para isso deve poder identificar no meio o que é para ele fonte de nutrição, prazer e troca (Ribeiro, 1997). Perls (1977a) afirma que é possível às pessoas que chegaram à camada explosiva voltarem para a implosiva antes de começarem um viver autêntico, pois a liberação de energia na explosão pode ser parcial.
Na camada explosiva, aparece o resgate do fluxo vital e dos comportamentos genuínos e autênticos. É o retorno ao saudável, no sentido da reestruturação ou fechamento das Gestalten; é a retomada do fluxo figura e fundo. A energia vital contida, reprimida na camada implosiva, precisa ser liberada na explosiva. A saída se dá pelo egotismo saudável e esta é a única possibilidade de saída, uma vez que no egotismo disfuncional, a energia não é liberada e a Gestalt não pode ser fechada. No egotismo saudável, quando a pessoa passa a priorizar suas necessidades, também pode assumir a responsabilidade pelas suas escolhas.
É relevante destacar que cada função de contato só pode tornar-se figura em uma determinada camada de neurose, porque as outras funções de contato servem de suporte para ela, porque estão de fundo. Em nossa prática clínica, constatamos que as funções que se tornam figura no processo psicoterápico e que ficam evidentes nos comportamentos dos clientes, são a projeção, a retroflexão e o egotismo, uma vez que estas acontecem na fronteira de contato. Podemos afirmar que tanto a confluência, quanto os introjetos tendem a operar como o fundo que dá sustentação à projeção, à retroflexão e ao egotismo enquanto figuras.
Compreender quando as necessidades individuais não são satisfeitas no ambiente e a energia disponibilizada para a realização fica contida ou paralisada, é fundamental para propor uma intervenção adequada no processo terapêutico. É importante que o psicoterapeuta reconheça, através do tema protagônico do cliente, como este lida com o mesmo e em que camada está fixado – de forma processual. É relevante ainda perceber qual ou quais disfunções de contato o cliente emprega para lidar com a situação em que está, uma vez que estas podem dificultar a livre expressão e o ajustamento criativo.
O trabalho terapêutico observa a luta entre a espontaneidade e as forças que levaram à pessoa à paralisação, considerando as duas em oposição: a que quer sair e a que precisa ficar contida. Se a pessoa contém a energia, o "novo" não pode acontecer, e ela lida com ele como se fosse uma situação antiga, e assim mantém a neurose, tanto nas camadas como no sistema self. A saída possível de cada camada é a forma saudável do contato, permitindo que o excitamento siga o seu fluxo e que a figura possa ser delineada e fechada.
A psicoterapia reestabelece a capacidade da pessoa de identificar, discriminar, selecionar e integrar o que lhe é nutritivo e refugar o que lhe é tóxico; isto é, desenvolve a capacidade do cliente de reconhecer inúmeras possibilidades e de fazer escolhas de forma mais consciente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As seções anteriores deste trabalho apresentaram a neurose como uma situação que ocorre quando o fluxo figura e fundo está interrompido; vimos ainda que existem cinco camadas de neurose e cinco funções de contato que podem também tornarem-se disfunções. Em geral, todas as funções de contato, saudáveis ou disfuncionais, são recursos que a pessoa utiliza como possíveis para fechar suas Gestalten. O indivíduo faz o que pode, num determinado tempo e contexto específicos.
A proposta diferencial deste ensaio é a relação entre as camadas de neurose e o sistema self, demonstrando como se integram e interagem entre si. Desta forma, a camada postiça pode ser relacionada à introjeção; a camada fóbica à projeção; o impasse à confluência; a camada implosiva à retroflexão; e a camada explosiva ao egotismo.
A integração destas categorias conceituais pode ser considerada um instrumento teórico-metodológico relevante, para ser utilizado por estudiosos de Gestalt-Terapia e psicoterapeutas em sua prática clínica, tanto no processo de psicodiagnóstico, quanto no de psicoterapia.
Ao identificarmos a camada de neurose em que o cliente chega à psicoterapia, é possível fazer um trabalho mais específico, possibilitando que as necessidades presentes em cada etapa sejam atendidas. Em psicoterapia de casal, este processo fica ainda mais evidente, uma vez que existem duas pessoas se relacionando; neste caso, as diferenças entre cada uma aparecem nitidamente e o encontro entre as diferenças precisa ser trabalhado pelo psicoterapeuta.
No processo de psicoterapia, o cliente não permanece na mesma camada de neurose e nem utiliza as mesmas funções ou disfunções de contato. A proposta teórica aqui apresentada serve como um instrumento metodológico para que o psicoterapeuta acompanhe o cliente na sua jornada pelas camadas. A relação entre as camadas da neurose e as funções ou disfunções de contato oferece um panorama que possibilita ao psicoterapeuta simultaneamente uma visão geral do processo e uma visão específica de cada cliente, ao considerar as diferenças que podem ocorrer com cada um.
É importante ressaltar que a saída da neurose somente se dá pelo ajustamento criativo; se ele não pode ocorrer, a pessoa permanece no funcionamento neurótico, isto é, na repetição, reproduzindo novamente o ciclo de camadas da neurose ou aprisionada em uma das camadas. O trabalho do psicoterapeuta é diferente em cada fase; e o tempo de cada cliente também. O psicoterapeuta deve saber ser paciente e respeitar as diferenças e o ritmo de cada um.
Aqueles que fazem formação clínica ou que têm interesse na Gestalt-Terapia também poderão se beneficiar do presente trabalho, uma vez que procura esclarecer tanto como as disfunções de contato específicas para cada camada podem ser mantidas na repetição neurótica, quanto como as funções de contato podem servir de base em cada camada para a resolução do conflito neurótico, isto é, para a saída da repetição e o retorno ao fluxo criativo.
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Nota de Agradecimento: os autores agradecem a contribuição das professoras Doutoras Marina Keiko Nakayama (Universidade Federal de Santa Catarina) e Michelle Steiner dos Santos (Universidade Federal do Ceará) na parte inicial de elaboração deste artigo.
Notas sobre os autores:
Universidade Federal de Santa Catarina. Professora, Orientadora e Supervisora permanente do curso de Especialização da Comunidade Gestáltica, Clínica e Escola. Email: ccrisbandeira@gmail.com
Luciana Machado Schmidt. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutoranda em Gestão do Conhecimento no Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC) da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: schmidt.luciana@gmail.com
Virginia Grünewald. Pós-Doutora em Gestão do Conhecimento pelo Programa de Pós- Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC) da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em Engenharia da Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: virpsi12@gmail.com
Francisco Antônio Pereira Fialho. Doutor em Engenharia da Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Pesquisador Sênior no Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC) da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: fapfialho@gmail.com
Recebido: 19/04/2018
Aprovado: 20/07/2018