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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.10 no.2 Belém maio/ago. 2018
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n02ensaio38
Ensaio
Supervisão em Gestalt-Terapia: da delicadeza de ensinar à aventura de aprender
Supervision in Gestalt-Therapy: From the Delicacy of Teaching to the Adventure of Learning
Supervision em Gestalt-Terapia: De la Delicidad de Enseñar a la Aventura de Aprender
Laura Cristina de Toledo Quadros; Erika da Silva Araujo; Deborah da Silva de Souza
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
RESUMO
Este artigo pretende compartilhar o encontro entre ensinar e aprender no espaço de supervisão, a partir de um relato de experiência de estágio clínico em Gestaltterapia em uma universidade pública. Nossa proposta não é constituir um modelo de um fazer, mas sim narrar uma experiência situada, marcada por um contato vivo. Apoiando-nos nessa vivência, apresentaremos questões que foram emergindo desse e nesse diálogo entre supervisora e estagiárias, suscitando descobertas sensíveis, através da articulação teórico-prática em Gestalt-terapia e dos cuidados experimentados em supervisão. Traremos à discussão a importância do acolhimento nesse espaço, possibilitando que as alunas encontrassem suas formas de ser terapeutas, acessando uma dimensão criativa e singular. Enfatiza-se que essa iniciação na universidade deve ser um processo de formação e cuidado para a construção de uma prática e de um aprender que não cessa, mas nos acompanha enquanto profissionais e para qual essa primeira marca reverbera ao longo da trajetória.
Palavras-chave: Experiência de Estágio; Supervisão Clínica; Gestalt-Terapia.
ABSTRACT
This work shares the meeting between teaching and learning in the supervision space, from an experience report of a internship in Gestalt-therapy at a public university. Our proposal is not to built a model of practice, but to narrate a situated experience, marked by a live contact. Supported by this experience, we will present questions that emerged from and in this dialog between supervisor and interns, raising sensitive discoveries, through the theoretical-practical articulation of Gestalt-therapy and the care experienced in supervision. We bring to discussion the importance of acceptance in supervision, enabling the students to find their own way of being a therapist, accessing a creative and singular dimension. We emphasize this initiation at the university as process of formation and care for the construction of a practice and a learning that never ends, but stands at alongside as professionals and for that this first mark reverberates through the trajectory.
Keywords: Internship Experience; Clínical Supervision; Gestalt-Therapy.
RESUMEN
Este artículo pretende compartir el encuentro entre enseñar y aprender en el espacio de supervisión, a partir de un relato de experiencia de práctica clínica en Gestalt-terapia en una universidad pública. Nuestra propuesta no es constituir un modelo de un hacer, sino narrar una experiencia situada, marcada por un contacto vivo. Apoyándonos en esa vivencia, presentaremos cuestiones que surgieron de ese y en ese diálogo entre supervisora y pasantías, suscitando descubrimientos sensibles, a través de la articulación teórico-práctica en Gestalt-terapia y de los cuidados experimentados en supervisión. Traemos a la discusión la importancia de la acogida en ese espacio, posibilitando que las alumnas encuentren sus formas de ser terapeutas, accediendo a una dimensión creativa y singular. Se enfatiza que esta iniciación en la universidad debe ser un proceso de formación y cuidado para la construcción de una práctica y de un aprendizaje que no cesa, pero nos acompaña como profesionales y para qué esa primera marca reverbera a lo largo de la trayectoria
Palabras-clave: Experiencia de Etapa; Supervisión Clínica; Terapia Gestalt.
A Gestalt é principalmente uma postura diante da vida, que implica um contato vivo com o mundo, com a pessoa do outro, na sua singularidade, sem pré-concepção de qualquer ordem. Esse contato apoia-se sobre a vivência, na experiência de primeira mão, no aqui e agora, o que estimula uma presença constante e atenta, com ênfase na percepção sensorial; focaliza o fluxo e a direção da energia corporal. (Juliano, 1999, p. 26).
APRESENTANDO NOSSA PROPOSTA: RISCOS E DESAFIOS DE UMA ESCRITA
Esse trabalho se constitui através de trajetórias de um viver gestáltico na academia, na vivência encarnada do encontro entre o ensinar e o aprender, entre a experiência e o novo naquilo que possuem de mais singular: a delicadeza do encontro. O encontro vivido como uma aposta ética e metodológica no espaço de supervisão. O artigo é um relato vivo, narrado a partir das experiências vividas pelas autoras de forma colaborativa e não hierárquica. Portanto, ainda que em alguns momentos a supervisora seja a voz da narrativa sobre o processo de ensinar, e em outro momento, as então estagiárias de graduação (hoje profissionais formadas) tenham composto a narrativa sobre o processo de aprender, tanto as contribuições iniciais quanto as considerações finais foram feitas a seis mãos, articulando a teoria, a prática e a experiência vivida. Supervisora e estagiárias caminham juntas na formação performando diferentes versões do que acontece nesse espaço de aprendizagem de uma prática profissional de dimensão frequentemente solitária, a clínica em psicologia. A aposta no potencial criador no processo de tornar-se um terapeuta capaz de apropriar-se de seus recursos tão singulares e preciosos nos guiou na elaboração desse texto. Texto que, ao ser narrado em primeira pessoa - às vezes singular, às vezes plural, como as nuances da própria vivência desse encontro - permite a expressão na dimensão única da experiência vivida, uma expressão polifônica capaz de transmitir o vivido e toda potência e intensidade da linguagem narrativa. Dessa forma, esse artigo traz como proposta não estabelecer um modelo de um fazer, mas sim compartilhar uma experiência encorpada, uma prática representativa de uma realidade situada do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com seus recursos, singularidades e limitações. Consideramos pertinente essa discussão tanto pelo crescimento da abordagem gestáltica como disciplina e estágio nas universidades, quanto pelos desafios que essa tarefa nos impõe ao ocuparmos espaços institucionais gestalticamente.
A escrita desse texto já nos traz em si um desafio. Falamos de lugares diferentes a partir de um mesmo espaço: o estágio supervisionado numa universidade pública no Rio de Janeiro. Essa é uma das etapas obrigatórias da graduação em psicologia e o estagiário pode escolher seu campo e sua abordagem, além de precisar ser escolhido através das seleções de estágio. O que parece simples e óbvio torna-se também um problema, já que diante de tantas variáveis - obrigatoriedade da disciplina, escolha da abordagem como campo inicial, limite de vagas, limite de tempo para seleção e inscrição, etc. - esse é também um processo marcado pelas incertezas, pelas apostas e, por que não dizer, pelo risco de todos os envolvidos. Assim, a delicadeza e a aventura se interpõe antes mesmo do percurso a ser trilhado.
Partimos então da experiência da supervisora, seu percurso de amadurecimento acompanhando futuros psicólogos na aprendizagem de um fazer cuidadoso e sensível, para então seguir com duas de suas então estagiárias, compartilhando os desafios encontrados no percurso. Incluímos também o campo, tão importante quando pensamos no caráter local de toda prática, e que envolve características estruturais do curso, do próprio serviço-escola, aqui chamado de Serviço de Psicologia Aplicada (SPA), das aprendizagens teórico-práticas em Gestalt-terapia, das articulações entre os outros alunos da psicologia e no nosso próprio descobrir nossos modos de existir nesse espaço em um trajeto construído no encontro com o outro e consigo mesmo. Esperamos a partir do presente trabalho povoar com nossas vozes outras possibilidades de um fazer e um aprender vividos de forma gestáltica.
ENSINAR, LECIONAR, ACOLHER, SUPERVISIONAR: UMA RELAÇÃO TÃO DELICADA
O tema supervisão na clínica nos remete a um interessante resgate histórico. Ary Band (2004) ao discorrer sobre esse assunto na psicanálise, aponta que o embrião dessa prática reside na discussão realizada por J. Breuer junto ao seu então pupilo S. Freud acerca do caso de Ana O. (Berta Pepperheim), onde Freud interviu promovendo desvios na condução do caso pelo seu mestre. É curioso destacar que o caso discutido era o do professor e não o do aluno, e que os dois publicaram juntos, em pé de igualdade, os resultados desses diálogos. Freud reproduziria esse modelo com Fliess, seu discípulo, levando o caso Dora para que este opinasse e até criticasse a condução por ele realizada. Portanto, em seu nascedouro, a prática da supervisão emergiu da necessidade de se estabelecer uma troca de impressões e discutir os casos clínicos a partir de diferentes escutas.
Com a institucionalização da psicanálise, emerge um modelo hierárquico onde um analista mais experiente orientava um iniciante mantendo-o sob sua supervisão. Constituindose aí, uma inversão do que ocorria nos primórdios dessa prática. Os institutos formadores iniciaram, então, uma espécie de verificação da prática instituindo a figura do "controlador" que vinha a ser um praticante mais experiente com certos poderes de fiscalização em nome de um ato pedagógico.
O candidato controlado tendia a ser submisso e a se identificar ao iniciador, sob jugo de um supereu forte, ao invés de lhe ser propiciada uma relação da mesma ordem da que existia entre analista e analisando, isto é, em que se trabalha para a constituição de um eu forte, liberal e crítico do analisando. Trata-se de um novo espaço onde é o ensino de estilo acadêmico que se processa, e não de um campo em que seja levada em conta sua dimensão transferencial (Band, 2004, p. 55).
O autor ressalta que embora esta ideia de "controle", relacionada nesse contexto ao "poder de controlar", seja uma ideia anti-psicanalítica e passível de ser questionada dentro da própria esfera de constituição da psicanálise, ela não conseguiu sucumbir às contraposições que reconheciam nesta ação um paradoxo. Se a psicanálise visava uma relação transformadora entre analista e analisando, como na dinâmica de suas formações, criaria ela mecanismos de assujeitamento de seus aspirantes a analistas? A institucionalização pode forçar uma brusca passagem de uma relação de troca para uma relação de vigilância contornada pela repressão, pela hierarquia e pela normatividade. Os analistas supervisores tinham, inclusive, o poder de retirar os casos dos supervisandos se julgassem que eles não correspondiam às expectativas.
Nas universidades e, às vezes, também nos cursos de formação de terapeutas, o modelo hierárquico assim considerado é o predominante. Vale ressaltar, inclusive, que na graduação de Psicologia o supervisor/professor é o responsável técnico pelo aluno/estagiário respondendo por suas ações junto ao Conselho de Psicologia (CFP/CRP, respectivamente, o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Regional de Psicologia), segundo a legislação vigente. Desse modo, não é raro que essa atuação se aproxime de uma atitude de tutela ou até mesmo de controle nas relações entre supervisor e supervisando.
Considerando-se esses aspectos como fundo, que especificidades podemos contornar como figura quanto a essa prática no contexto da abordagem gestáltica na universidade?
A abordagem gestáltica é uma abordagem inspirada na fenomenologia e no existencialismo, e enfatiza a relação como um dos fundamentos de suas intervenções. Assim, nesse enfoque relacional influenciado pela perspectiva dialógica de Martin Buber, considerase a dinâmica da relação terapeuta/cliente a partir das ideias de presença, inclusão, reciprocidade, acolhimento e confirmação (Hycner, 1997). Portanto, uma proposta de supervisão nessa abordagem aproxima-se de uma forma mais simétrica de relação, buscando construir um conjunto de possibilidades onde o terapeuta iniciante possa reconhecer-se e expressar-se como aquele que se apropria de seu fazer. Isso deve ser compreendido como um processo que emerge em um campo de afetações e não como um treinamento de habilidades.
Nessa perspectiva, a construção de um suporte para atuar como terapeuta envolve a articulação entre o conhecimento (a conceituação teórica), a sensibilidade (a ativação dos sentidos e do sentir) e a intuição (a abertura para perceber o que está no campo de experienciação). Isso exige um manejo refinado, visto que não se trata de uma aplicação de métodos ou técnicas. O casal de terapeutas, Erving e Miriam Polster (2001), ressaltam que o gestalt-terapeuta se constitui como seu próprio instrumento de trabalho e, por isso, deve aproximar-se de si mesmo, sintonizar-se com seu próprio corpo e suas próprias questões que atravessam o setting terapêutico. Pois "É inerente à abordagem dialógica a disponibilidade do terapeuta para entrar, o mais completamente possível, na experiência ‘subjetiva’ do cliente" (Hycner, 1995, p. 111). Nesse sentido, a prática em supervisão clínica não deve ser compreendida como uma ação de cunho meramente pedagógico. Na verdade, ela apresentase mais como um processo de reconhecimento e de confronto. E o que isso significa?
Consideramos que na prática da supervisão no âmbito da formação universitária a realidade se apresenta através de algumas peculiaridades. O aluno estagiário que nos chega nem sempre traz uma base teórica consistente, dado que ele passa por uma ou no máximo duas disciplinas de caráter conceitual sobre a abordagem. Frequentemente esse aluno também não viveu a experiência de ser cliente em psicoterapia. Legislar esses prérequisitos como exigências é recusar o real cenário onde tais questões estão inseridas. Sim, é com esse fato que devemos nos confrontar ou, por que não dizer, nos desafiar. Esse aluno nos chega querendo aprender uma técnica para aplicar, querendo saber o que dizer mais do que se dispor a escutar, querendo aliviar a própria angústia do não saber. Encontra-se aí, portanto, nosso primeiro estranhamento: estabelecermo-nos nesse enfrentamento coletivo do não saber, das idealizações cristalizadas e do risco que todos nós iremos correr, posto que essa é uma prática sem certezas ou garantias. É desse lugar que falamos. A despeito das diferenças de intervenção entre as diversas abordagens em psicologia, creio que o contexto acadêmico não aprofunda as discussões acerca desse fenômeno que transcende a teoria, produzido no enfrentamento de "fazer psicologia", e mais especificamente aqui, no "fazer clínica".
Voltando à abordagem gestáltica, a prática de supervisão é uma prática processual, onde buscamos acessar a dimensão sensível desse terapeuta que está ali se constituindo. Com isso, nosso objetivo não é o de levá-lo a reproduzir uma prática, mas sim criar possibilidades para que ele se desenvolva a partir de seus próprios recursos. É na realização de seu possível que ele pode desenvolver uma prática encarnada, inventiva e ética.
Laura Perls (1977) nos aponta a delicadeza de nos constituirmos como terapeutas a partir de uma apropriação de nosso próprio estilo, considerando nossa sensibilidade, singularidade e experiência de vida, que nos conferem peculiaridades que podem ser ativadas como recurso para intervenção. O espaço terapêutico é um espaço vivo! O fazer gestáltico exige de nós uma abertura para o novo e, sobretudo, um reconhecimento dos nossos próprios recursos para o intervir sem meramente reproduzir. De modo mais contundente, Zinker (2007) nos alerta para o enfraquecimento de nossa prática caso ela fique restrita a um modelo único, mesmo que com a marca forte de Perls:
Se Fritz Perls estivesse vivo hoje, ficaria decepcionado ao ver uma multidão de terapeutas imitando seu trabalho como se este fosse a última palavra em psicoterapia. O que faltou a muitos de nós foi coragem para aprender com ele como acionar a inventividade, como criar situações de intenso aprendizado a partir de cada situação humana. Para Fritz, os conceitos gestaltistas de cadeira vazia "[hot seat] e dominador/dominado "[top-dog/under-dog] eram percepções momentâneas a serem exploradas e depois deixadas de lado, para que outros experimentos e metáforas pudessem emergir (Zinker, 2007, p. 32).
Há de se ter coragem para trazer novos olhares sem descaracterizar o frescor da abordagem e, ainda assim, manter a humildade de reconhecer nossos limites e nossa condição de aprendizes, mesmo quando ocupamos institucionalmente o lugar de mestres. Esse saber é difícil de ensinar pois convoca a nossa própria forma de estar no mundo e o nosso modo de compreender esse ofício que pode facilmente trazer armadilhas que nos capturam, tanto pela sedução de um poder, quanto pela tentação da vaidade. O fundo que contorna essa figura reside na consciência das dificuldades, no conhecer os espinhos que compõem o todo das rosas.
A tarefa do supervisor torna-se uma experiência artesanal na medida em que não nos propomos nem à modelagem, nem ao controle, mas sim a abertura para a confiança que pode ali se estabelecer. Walter da Rosa Ribeiro (1991), ao referir-se ao processo psicoterápico, fala-nos da metáfora do chacareiro que prepara a terra e cuida das sementes, criando condições para que estas possam florescer. Transponho tal metáfora para a prática de supervisão de terapeutas iniciantes. Um dos momentos mais difíceis instala-se quando esse jovem terapeuta se depara com seus próprios limites, advindos muitas vezes pela falta de intimidade consigo mesmo, e isso só é revelado no encontro com o outro – o cliente. Cabenos apontar esse impasse sem invadir esse aluno nem encobrir esse momento em que ele se depara com a possibilidade de revelar-se a si mesmo. Com isso, esse aspecto coloca-nos no exercício da ética que transcende o que está na escrita do código. Respeitar o que se revela, confirmar uma existência que se mostra num espaço híbrido como é a supervisão, é o ponto fundamental para o despertar de uma atitude ética inerente ao processo relacional que constitui o espaço de supervisão. Ao atuarmos inspirados na fenomenologia e no existencialismo, assumimos a responsabilidade de não inibirmos o que de potente ali se revela. Em vista disso, ao nos afastar da onipotência que esmaga o supervisando (e também o cliente), e não nos manter na impotência que impede o fluxo livre da relação, criamos condições para o emergir de uma potência singularizada em cada processo, o que nos aproxima muito mais da artesania do que de uma técnica pré-concebida.
Como recurso de trabalho, G. Boris (2008) nos traz o uso da "versão de sentido" proposta por Amatuzzi. Nesse procedimento, o estagiário relata o que ocorreu nas sessões com seu cliente a partir dos impactos vivenciados por ele mesmo, sendo este um relato de si e não dos fatos. Esse é um instrumento interessante para reconhecermos as sensibilidades envolvidas nesse fazer.
Há também alguns colegas que preferem nomear a supervisão de "outra visão", retirando-lhe o caráter hierárquico ou normativo. E nessa perspectiva ainda mais dinâmica, constituem-se os grupos de intervisão, onde o processo é distribuído entre todos, sem uma figura centralizadora. Ressaltamos, porém, que em ambas as versões, é a atitude que as contorna que pode fazer a diferença. Referimo-nos a uma ação de compartilhamento, acompanhamento e acolhimento a essa construção de um fazer que se constitui no risco, nas errâncias e não nas certezas.
Essa é uma discussão que vai além da questão da nomenclatura e concentra-se, conforme já afirmamos, na atitude que assumimos diante dessa prática. Na abordagem gestáltica esse desafio é ainda maior quando consideramos a relação como uma totalidade integrada, como um encontro ativo onde todos somos afetados. O supervisor também habita esse campo e, nesse sentido, essa é uma experiência reflexiva. Tornar-se terapeuta é uma aventura que nos leva a diferentes terras onde aprendemos a respeitar diferentes povos absorvermos diferentes culturas, nos colocando num fluxo dinâmico, constante de diferenciação e rediferenciação de processos.
O terapeuta torna-se, na maioria das vezes, acompanhante e, mais raramente, guia de uma enorme jornada. A sensação, de início, é de excitação e susto, já que ele sabe que não pode sair ileso dessa aventura: quanto retornar ao ponto de partida, também estará transformado. (Mas é exatamente essa a riqueza do empreendimento terapêutico) (Juliano, 1999, p. 22).
Tanto a atuação na supervisão quanto a atuação na clínica são uma experiência de provocação. Embora nos atenhamos aqui a prática de supervisão na formação universitária, ressaltamos que a formação clínica é ininterrupta e a troca de experiências nos coloca em circunstância de aprendizado ímpar.
EXPERIENCIANDO A GESTALT-TERAPIA: uma prática de cuidado na graduação de Psicologia
O momento da escolha de um estágio clínico, dentro da formação em psicologia, é um momento de grande tensão e insegurança para os alunos, já que além de ser um procedimento obrigatório, é também um momento de aprendizagem e de escolha para um futuro exercício profissional. A partir da escolha feita, o que é vivido e construído dentro do trabalho clínico, é de extrema relevância para a formação acadêmica e profissional do discente.
A partir de um relato de experiência vivido por duas de nós enquanto alunas, iremos expor como foi o processo de escolha do estágio dentro da universidade, o que imaginávamos ser a experiência em clínica com a abordagem gestáltica e como o concreto dessa vivência foi se revelando e tomando forma com o passar do tempo no estágio. Mostraremos como foi estar em contato com o cliente, o experienciar dessa relação e o que emergiu antes e durante a aprendizagem dentro do setting terapêutico. Iremos embasar nossas percepções com conceitos que são fundamentais para a abordagem gestáltica, para podermos da melhor forma, dialogar a teoria com a prática. Além disso, apresentaremos a importância do momento de supervisão para sermos cuidadas e oferecermos o melhor suporte ao cliente que nos chega.
A partir dos ensinamentos da abordagem gestáltica em consonância com o que nos deparamos no fazer clínico, entendemos que o organismo vive em um constante ajustarse, onde através da fronteira de contato, a pessoa pode entrar em contato com o diferente, com o novo, para assim, conseguir assimilar o que é necessário para sua vida (Peruzzo, 2011). Ribeiro (1998) nos lembra que "Somos, pois, inelutavelmente, seres-em-relação: crescemos, nos desenvolvemos, nos constituímos e nos formamos nela. Somos os ajustes, a integração criativa de nossas idiossincrasias em confronto com as forças e as possibilidades externas" (p. 30). Em vista de tal perspectiva, a Gestalt-terapia trabalha visando favorecer um ajustamento criativo do ser ao meio, intensificando o contato criativo do indivíduo com ele mesmo, com o outro e com o mundo. É uma abordagem que se constitui na ação, compreendendo o ser humano em um processo passível de transformação constante e constituído pelas suas potencialidades do "vir a ser" (Prestrelo & Quadros, 2009, p. 12). Vale ressaltar, assim como coloca Perls (1981), que as pessoas que procuram atendimento são aquelas que estão presas em suas ansiedades, inadequações e insatisfações, estão presas na infelicidade de suas vidas. Isso nos levou a perceber, dentro do setting terapêutico, que talvez as questões que nos deparamos a partir do cliente que nos chega, não sejam apenas questões que clientes específicos nos trazem, mas sejam temas comuns, que estão presentes atualmente na relação com o mundo. Desse modo, as pessoas buscam um suporte para o tipo de contato que será desejável e até mesmo necessário para a situação em que se encontram, já que um aspecto importante da capacidade de contato, vem da possibilidade de estar em contato com você mesmo (Polster & Polster, 2001). Assim, torna-se necessário oferecermos um espaço de cuidado, expressão, criatividade e acolhimento para os clientes que nos chegam, e é esse espaço, que foi construído ao longo de nosso estágio, que iremos também abordar.
Pensamos na importância de expormos a nossa experiência com a abordagem gestáltica valorizando o espaço da mesma, não apenas em nossa formação teórica e prática, como também na escolha de uma atuação futura na profissão. Desse modo, torna-se relevante mostrarmos como a nossa formação foi se construindo ao redor da Gestalt-terapia. Assim, outros graduandos têm a oportunidade de conhecer e se identificar com a experiência de estágio na abordagem, podendo se interessar e compreender as inseguranças e confirmações que qualquer aluno pode vivenciar na construção inicial de um saber e fazer clínico.
A ESCOLHA DO ESTÁGIO: entre a fantasia e o concreto da formação
No quinto período do curso de psicologia, quando escolhemos o estágio em Gestalt-terapia, não tínhamos muita noção acerca do que iríamos nos deparar. Apesar de "Gestalt-terapia" ser uma disciplina obrigatória para os alunos que escolhem a ênfase de clínica em sua formação, nossa opção pelo estágio a ser seguido ocorre antes. Dessa maneira, consideramos que nossa escolha fez parte de uma aposta. Como tivemos contato com os pressupostos filosóficos básicos das principais vertentes clínicas, nos identificávamos com as propostas que possuíam em sua base a fenomenologia e sua visão do humano. Cursar as disciplinas "Psicologia e Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial" e "Psicologia e Bases do Pensamento Gestáltico", assim como participar de eventos promovidos por projetos de extensão na UERJ sobre o tema, foram nos dando pistas de como era a Gestalt-terapia, o que já foi suficiente para nos despertar interesse e curiosidade, nos mobilizando na busca de um estágio na abordagem gestáltica.
Chegamos ao estágio com muitas certezas, como por exemplo: ali aprenderíamos a teoria e a prática, que combinadas, nos deixariam "prontas" para "ajudar" as pessoas que estavam em busca de cura e solução para seus problemas psíquicos. Esse é um pensamento muito comum ao aluno que entra na universidade procurando o curso. Ao chegarmos ao estágio, a supervisão foi um momento de conhecermos mais sobre a teoria da Gestalt-terapia. Dessa maneira, trabalhamos com diversos textos para ter a base da qual precisávamos. Tínhamos a ideia de que a teoria seria muito importante antes de irmos para a parte prática, e que ela daria conta de tudo. Iríamos sentar, ouvir e ter total controle da situação no setting terapêutico.
O tempo passou, o momento de atender chegou, e as dúvidas sobre o cliente não eram poucas, como por exemplo: "O que eu faço se ele ficar em silêncio?"; "E se ele não gostar de mim?"; "E se ele me fizer uma pergunta que eu não tenho nada a responder?"; "E se chorar na minha frente?"; "O que devo vestir?"; "E se ele não aparecer?"; "E se ele fizer perguntas pessoais?"; "Se quiser me adicionar no Facebook?", entre outras. Enfim, dúvidas, perguntas e inseguranças eram o que não faltavam, e teríamos que lidar com tudo isso utilizando a bagagem que tínhamos aprendido ao longo do curso e dentro da supervisão. Logo fomos percebendo que o tão sonhado encontro com o cliente ao longo do curso poderia não ser algo tão simples para nós.
O primeiro atendimento foi algo muito difícil de decidir. Parecia que o momento certo, em que poderíamos dizer para nós mesmas que estávamos preparadas, nunca iria surgir. Todas hesitávamos em entrar em contato com o livro de inscrições de triagens dos clientes no SPA. Entretanto, várias situações vivenciadas dentro e fora da supervisão, que agora consideramos como medidas de cuidado (Mol, 2008) nos ajudaram a ter mais segurança para os atendimentos. Foi necessário que fôssemos trabalhadas como grupo e hoje percebemos o quanto ali, naquele trabalho inicial, onde éramos preparadas para conseguir nos assumir nessa desejada escolha, que começamos a entender os sentidos da Gestalt-terapia em nossa vida e nossa prática. Fizemos simulações em grupo como cliente e terapeuta, fizemos estudos de casos, conversamos muito sobre as nossas principais dúvidas, criamos roteiros de apoio para as primeiras entrevistas e até mesmo reconfiguramos uma forma clássica de atendimento, de apenas terapeuta e cliente, para um modelo de duplas nos primeiros contatos com a pessoa a ser atendida.
O momento de estarmos diante do cliente chegou e toda a fantasia que construímos acabou. Percebemos que a teoria é sim um instrumento muito importante, mas que ela está longe de dar conta de tudo. A certeza de que teríamos controle da situação foi embora e deu lugar para a clareza de que nada está sob controle. Percebemos também que a nossa sensibilidade e percepção tem um papel central no experienciar da relação terapêutica, pois é no encontro genuíno, dialógico, entre terapeuta e cliente, que o contato pode acontecer e favorecer a emergência da awareness. Assim como Marina Ribeiro coloca, essa relação terapêutica, é tida como um "experimento em si" (Ribeiro, 1991).
Nossas perguntas foram mudando ao longo do processo: "Por que o cliente não voltou?"; "Pareço não estar fazendo nada pelo meu cliente?"; "Como fazer quando me identifico demais com a vivência do meu cliente?"; "Como fazer quando a vivência do meu cliente é tão diferente e desconhecida da minha?"; entre outras. Mas a percepção de tudo isso só foi possível com os diálogos, as vivências, a disponibilidade e a humildade de aprender com cada cliente que atendemos, aliado à experiência da supervisão.
A IMPORTÂNCIA DA SUPERVISÃO PARA A PERMANÊNCIA DO CUIDADO E O ESTAR NA RELAÇÃO COM O CLIENTE
A supervisão feita com os demais estagiários junto com a supervisora ajudou a compartilhar as inseguranças, dúvidas e a mostrar que o diálogo entre a teoria e a prática acontece de forma a contribuir para a experiência clínica. Desse modo, a supervisão teve um papel central, como um fortalecedor, não apenas de nossa aprendizagem, como também de vínculos entre as estagiárias e a supervisora, pois com um ambiente acolhedor, todas conseguiam expressar o que estavam sentindo e as dificuldades que estavam vivenciando. A disponibilidade de nossa supervisora para lidar com o inesperado, com pequenas angústias relacionadas aos atendimentos, frequentemente fora de seus horários na universidade, nos permitia enfrentar as situações que estariam por vir com a garantia de presença e acolhimento.
A troca de experiências na supervisão a partir de assuntos que eram falados e tratados com tanto cuidado e respeito, aliada à disposição de todos em ouvir uns aos outros, fazia com que cada "estreia" de uma pessoa no atendimento fosse uma vitória de todo o grupo. Ao atender, levávamos um pouquinho de coragem, força e motivação de cada uma, o que nos deixava ainda mais confiantes em estar no setting terapêutico. Saber que teríamos aquele espaço de supervisão para nos sentirmos cuidadas nos dava suporte para seguir apesar das inseguranças que surgiam. Fomos percebendo que todas as dúvidas que tínhamos antes de atender não cessavam, mas estavam a todo momento sendo reformuladas. Fomos nos dando conta que elas são um modo de nos percebermos naquele espaço e nos encontrarmos com nossa própria forma de ser terapeutas. Elas nos ensinam que não podemos ter o controle de querer planejar, saber a resposta de tudo, pois é na situação vivenciada dentro da clínica que as respostas vão se construindo na relação com o cliente e a partir do que ele traz. Nos apoiando em uma presença viva, uma escuta presente, com disponibilidade em acompanhar cada história que nos é confiada.
Aprendemos que um experimento pode ganhar forma ao longo de uma sessão, mesmo que não planejado, e que somos capazes de perceber e conduzir de acordo com cada cliente e do que emerge na relação terapêutica. Aprendemos também a nos constituir como grupo ao longo de dois anos e meio de estágio, compartilhando nossas experiências e angústias nos intervalos entre as supervisões, nas conversas de corredor. Momentos preciosos onde era possível perceber, através das vivências do outro, novas questões, possibilidades e conforto. Em especial para aqueles momentos em que nos encontrávamos após um atendimento difícil ou mesmo após um atendimento onde a sensação é de aridez, sendo construídos espaços de acolhimento e aprendizado com o outro.
Uma prática de cuidado como essa que experimentamos não deve se constituir apenas em uma única direção, mas pode ser distribuída nessa relação que envolve as estagiárias, a supervisora, os funcionários e os usuários. Descobrimos através dessa experiência, que o cuidado pode circular entre nós e ser potencializado nas relações que estabelecemos.
No setting terapêutico aprendemos a desconstruir junto com a Gestalt-terapia, noções como cura, ajuda e diagnóstico, entendendo as potencialidades e recursos do cliente em reconhecer sua situação a partir de si mesmo. Aprendemos a desenvolver um grande respeito por aquele que compartilha conosco sua vida e seu sofrimento. Descobrimos a possibilidade de nos presentificarmos ali com humildade, reconhecendo que o que acontece naquele espaço só é possível se conseguirmos construir um vínculo de respeito e confiança, se conseguirmos estar em contato, cientes do cliente, de nós mesmos e do que é produzido nessa relação. Essa é uma forma de construção de conhecimento e crescimento, pois o contato é um modo de transformar a si mesmo e a experiência que se tem do mundo; ele é incompatível com permanecer o mesmo e a mudança simplesmente acontece (Polster & Polster, 2001).
Percebemos que ter uma escuta atenta e estar ali, apenas presente e disponível ao outro, é algo muito potente. Aprendemos ainda a reconfigurar nosso conceito sobre o "fazer pouco" ou "fazer muito" em um encontro. O que inicialmente era concebido como "parece que não estamos fazendo ‘muito’ por ele", se transformou na apreciação de uma escuta restauradora, confirmatória e inclusiva, como já nos era falado por autores clássicos como Martin Buber e Gestalt-terapeutas como Hycner (1995), mas que ainda não tínhamos vivenciado em um processo terapêutico em andamento. Esse movimento de escuta se constituía não apenas no possível para aquele momento, mas exatamente no necessário para muitas experiências que ainda surgiriam. A importância de um lugar seguro que possa ser ocupado, um dar-se conta de novas possibilidades de ocupação dos lugares e potencialidades em sua vida. Um dar-se conta do que limita e afeta. Pois a escuta interessada do terapeuta é por si só curativa, uma vez que faz emergir o interesse da pessoa por si mesma (Juliano, 1999).
Algumas vezes, podemos nos deparar com questões nossas que vem através do relato do cliente, visto que são questões que estão circulando na nossa relação com o mundo e que estamos em uma profissão paradoxal, "Porque o terapeuta confronta as questões da vida de outras pessoas que talvez não estejam resolvidas em sua própria vida" (Hycner, 1995, p. 30). O cliente, apesar de ter tido experiências diferentes, uma vida díspar, ele vive no mesmo mundo, no mesmo tempo, no mesmo contexto social que o terapeuta, e assim, algumas questões dele podem ser identificadas de alguma forma na vida desse "curador ferido" (Hycner, 1995, p. 30). Logo, vamos ter que sustentar cada dificuldade que vai de encontro com nossas próprias questões de forma a usar o nosso afeto e sensibilidade para lidar com aquilo.
Compreendemos que buscar saber muito sobre o ser humano na nossa profissão é essencial, mas ter a delicadeza e a humildade de perceber que você não conhece nada da pessoa que está na sua frente faz a diferença no nosso trabalho como terapeuta. Reconhecemos que muitos profissionais sintam, como nós, que a formação se inicia na academia, mas não termina nessa. Ela nunca termina, e esse é um processo contínuo de desenvolvimento profissional. É isso que torna a nossa profissão tão bonita, única e ao mesmo tempo desafiadora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: (re)unindo campos de nossas experiências
Serge e Anne Ginger (1995) em seu livro "Gestalt uma terapia do contato" nos apresenta a Gestalt dizendo:
Gestalt é uma palavra alemã, hoje adotada no mundo inteiro, pois não há equivalente em outras línguas. Gestalten significa dar forma, dar uma estrutura significante. Na realidade, mais do que Gestalt, exato seria dizer Gestaltung, palavra que indica uma ação prevista, em curso ou acabada, que implica um processo de dar forma, uma 'formação' (Ginger & Ginger, 1995, p. 13, grifo dos autores).
Nos apoiamos em Ginger e Ginger (1995) e em outros autores como Joseph Zinker (2007) que compreendem a Gestalt como algo que não se limita a um fazer psicoterápico, mas como uma filosofia de vida, uma autorização para ser criativo, um fazer que se assemelha à arte. Pois "A prática da arte terapêutica torna-se não somente uma expressão do nosso ser, mas uma etapa do nosso vir-a-ser" (Jacobs, 1997, p. 94). Quadros (2014), ao referir-se à clínica dos pequenos acontecimentos, traz como metáfora o crochetar e a artesania ao falar da prática clínica. Isso tanto pela sua impossibilidade de produção em larga escala (o que nos leva a pensar menos em uma clínica da mudança e nos deslocarmos a uma clínica do possível), quanto pelas peculiaridades que trazem a cada peça uma beleza e singularidade genuínas, de impossível reprodução em seus detalhes.
No entanto, essa autorização para ser criativo não é algo dado, natural ao aluno que inicia sua experiência clínica na universidade, como mencionado acima. Para ser criativo é necessário afirmar as potencialidades desses alunos, acolher inseguranças, medos e cobranças sobre um fazer que escapa a reprodução de protocolos, mas que também escapa a outras ferramentas de formação. Referenciais presentes em outras profissões, onde estar em contato, observando outros profissionais em ação, faz parte do processo de construção profissional. A clínica tradicional acontece diante de um setting composto de um terapeuta e um cliente. Professores aprendem a dar aulas vendo outros professores lecionando e dessa forma tendo um modelo a ser seguido, usado como inspiração. Enfermeiros e médicos, aprendem vendo seus preceptores praticando e mostrando durante a ação como deve ser feito, corrigindo ali pequenos desvios. Assim segue com engenheiros, advogados, profissões onde a presença de um terceiro durante a atividade não provoca muitas alterações no campo de atuação e permite correções do fazer profissional em situação, e um outro olhar e uma outra comunicação imediata é possível durante o fazer. O ensino da clínica em psicologia tradicionalmente envolve a solidão, o impacto de se ver sozinho diante de um estranho em sofrimento. Assim, na clínica em psicologia, essa supervisão é uma comunicação, uma conversa narrada de forma única pela percepção do estagiário do evento vivido, uma avaliação solitária do que aconteceu e permeada pelos afetos de cada estagiário. Não existe uma confirmação in loco das seus acertos e erros, e onde a sensibilidade é ferramenta fundamental a ser calibrada para a prática. É necessária uma comunicação genuína, dialógica, entre supervisor e seus alunos, para afirmá-los em seu lugar diante dos clientes que chegam, para avaliar o que não foi visto, mas foi transmitido através de uma narrativa viva, cheia de afetos, surpresas, sustos, medos e inseguranças. Por vezes cheias de risos e boas surpresas também. Para permitir emergir no espaço de supervisão situações onde o encontro com momentos de impotências e onipotências sejam percebidos e então possam ser trabalhados e estar a favor do processo de formação. Hycner (1995) nos permite refletir o quão paradoxal a profissão de terapeuta é:
É uma profissão paradoxal porque o terapeuta confronta as questões da vida de outras pessoas que talvez não estejam resolvidas em sua própria vida. Nos últimos anos isso tem sido amplamente discutido sob a rubrica de 'o curador ferido'. Ou seja, é a natureza não resolvida de suas próprias dificuldades que sensibiliza o terapeuta para a vulnerabilidade do outro. Isso lhe permite empatizar profundamente com as dificuldades do cliente. Ainda assim deve haver discernimento: se uma certa vulnerabilidade torna o terapeuta mais aberto, um excesso de feridas pode trazer à tona suas defesas e fechar as portas para a possibilidade de um encontro genuíno (Hycner, 1995, p. 30).
O espaço de supervisão se apresenta de forma metafórica e sentida por nós como um espaço de afinamento de um instrumento no qual por vezes os barulhos produzidos no entorno, não nos permite, como estudantes, ouvir nota a nota enquanto tocamos. Não substitui todos os sons do campo, nem pretende dar o tom da música, mas permite que quem for performar, possa acreditar na potência de fazer uma boa música do instrumento que ali se encontra. É um espaço de confirmação dialógica do outro enquanto profissional. Portanto é um espaço de criar e recriar recursos que nos fortaleçam para o intervir, para o movimento do encontro. Daí a importância da simetria e da dimensão criativa, não meramente reprodutiva e muito menos controladora no espaço da supervisão. Para finalizar, recorremos ao alerta de Zinker (2007) que captura a essência e a responsabilidade na transmissão desse fazer gestáltico:
Para que a Gestalt-terapia possa sobreviver, ela deve defender essa espécie de processo integrativo de crescimento e essa generosidade criadora; deve continuar entrelaçando, para constituir novos conceitos, as várias descobertas sobre a musculatura, as origens arquetípicas e os gritos primais. Se nós, mestres do ofício, esquecermos esse princípio essencial da experimentação criativa, abdicarmos da criação de novos conceitos gestados pela nossa própria audácia e por uma conduta ousada e destemida, a Gestalt-terapia morrerá, assim como tantos outros modismos terapêuticos passageiros (Zinker, 2007, p. 32).
Referências
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Notas sobre as autoras:
Laura Cristina de Toledo Quadros. Psicóloga (UFRJ). Mestre em psicologia (UFRJ). Doutora em Psicologia Social (UERJ). Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ (Graduação e Pós-graduação). Coordenadora do projeto de extensão COMtextos: Arte e livre-expressão na abordagem gestáltica e vice-coordenadora do Laboratório Gestáltico: Configurações e práticas contemporâneas. Email: lauractq@gmail.com
Erika da Silva Araujo. Psicóloga (UERJ). Mestre em Ciências Biológicas (UFRJ). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ. Profissional colaboradora do Laboratório Gestáltico: Configurações e práticas contemporâneas. Email: esaraujo.psi@gmail.com
Deborah da Silva de Souza. Psicóloga (UERJ). Mestranda do Programa de Pós- Graduação em Psicologia Social da UERJ. Profissional colaboradora do projeto de extensão COMtextos: Arte e livre-expressão na abordagem gestáltica. Email: deborah_de_souza@yahoo.com.br
Recebido: 19/04/2018.
Aprovado: 04/07/2018.