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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.10 no.2 Belém maio/ago. 2018

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n02ensaio40 

Ensaio

 

 

Mediando vidas na escola: reflexões acerca da inclusão escolar numa perspectiva gestáltica

 

Mediating lives in school: reflections on school inclusion in a gestalt perspective

 

Mediando vidas en la escuela: reflexiones acerca de la inclusión escolar en una perspectiva gestáltica

 

Leticia Marques de Oliveira; Eleonôra Torres Prestrelo

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 

 


RESUMO

O espaço escolar e as relações que ocorrem nele são de extrema importância para a formação social de crianças e jovens. Importante, portanto, se faz discutir como esse espaço pode ser construído para todos, principalmente para alunos com deficiência que por muitos anos passaram por um cenário de segregação social. O presente trabalho traz algumas reflexões sobre o novo modelo escolar inclusivo, levantando questões e abordando a importância da inclusão escolar para o desenvolvimento dos alunos. Para ilustrar a discussão, utiliza-se o recurso metodológico do diário de campo em diálogo com uma abordagem gestáltica da vida e de uma prática pautada no fazerCOM. Este trabalho propõe uma prática escolar realizada em rede, onde toda a comunidade escolar tem importantes contribuições para construção de uma escola inclusiva e, consequentemente, estruturar uma sociedade democrática e digna para todos.

Palavras-chave: Escola; Inclusão; Deficiência; Abordagem gestáltica; FazerCOM.


ABSTRACT

The school space and the relations that happen in it are extremely important for the social formation of children and they youth. It is important to discuss how this space can be built for all, especially for students with disabilities who for many years went through a scenario of social segregation. The present paper brings reflections about the new model of inclusive school, raising questions and approaching the importance of the school inclusion for the development of the students. To illustrate the discussion, it is used the methodological resource of the field diary in dialogue with a Gestalt approach to life and a practice influenced by doWITH. This paper proposes a school practice carried out in a network, where then tire school community has important contributions to the making of an inclusive school and, consequently, to structure a democratic and dignified society for all.

Keywords: School; Inclusion; Disability; Gestalt Approach; DoWITH


RESUMEN

El espacio escolar y las relaciones que ocurren em él son de extrema importancia para la formación social de niños y jóvenes. Importante, por lo tanto, se hace discutir como esse espacio puede ser construido para todos, principalmente para alumnos condis capacidad que por muchos años pasaron por um escenario de segregación social. El presente trabajo trae algunas reflexiones sobre el nuevo modelo escolar inclusivo, planteando cuestiones y abordando la importancia de la inclusión escolar para el desarrollo de los alumnos. Para ilustrar la discusión, se utiliza el recurso metodológico del diario de campo en diálogo con una abordaje gestáltico de la vida y de una práctica pautada enelhacerCOM. Este trabajo propone una práctica escolar realizada en red, donde toda la comunidad escolar tiene importantes contribuciones para la construcción de una escuela inclusiva y, consecuentemente, estructurar una sociedad democrática y digna para todos.

Palabras-clave: Escuela; Inclusión; Discapacidades; Enfoque gestáltico; HacerCOM.


 

 

INTRODUZINDO O TEMA

Neste artigo as autoras discutirão a inclusão e a mediação escolar abordando o histórico dessa prática e a importância desta para o desenvolvimento escolar e social de estudantes com deficiência em diálogo com uma abordagem gestáltica da vida. Justifica-se a escolha desse tema, como forma de entender como se processa a inclusão de pessoas com deficiência na escola, perante uma sociedade que ainda está enraizada em ideias de ineficiência e na dicotomia entre "normais" e "anormais".

Esse trabalho surgiu a partir de observação feita, por uma das autoras, durante estágio não obrigatório como facilitadora escolar em uma escola de ensino fundamental municipal no Rio de Janeiro e posteriormente problematizado em uma orientação de monografia de final de curso junto a sua orientadora, segunda autora desse texto. Diante da excelente avaliação do trabalho resolvemos publicar o relato dessa experiência, no intuito de podermos contribuir para o aprimoramento de nossas práticas.

A experiência nesse estágio levantou questionamentos, apontaremos aqui alguns deles: somente os professores são responsáveis pela inclusão? Será que o lugar do psicólogo é diagnosticar para orientar a prática pedagógica com crianças que possuam deficiência e/ou são consideradas problemáticas? A escola é um espaço meramente para aprendizagem do conteúdo acadêmico? Para pensar essas questões utilizamos como metodologia uma pesquisa bibliográfica, recorrendo a autores e materiais disponíveis sobre a inclusão escolar e social, o registro da experiência cotidiana de estágio num diário de campo e a busca de conexões com uma abordagem gestáltica da vida, visão de mundo que nos orienta a prática.

Iniciaremos com uma breve retrospectiva de fatos históricos que reverberam no presente e nos ajudam na compreensão do tema desse trabalho e na construção de novas formas de pensar.

Na Grécia e na Roma antiga, onde a perfeição do corpo era cultuada, os recémnascidos que possuíam alguma deformidade eram mortos ou abandonados com a justificativa que estas sociedades necessitavam de futuros adultos com boa estrutura física e mental para lutarem em possíveis guerras. Na Idade Média, esse olhar de inutilidade e reprovação sobre a pessoa com deficiência não mudou, pois com a grande influência do cristianismo e do poder da Igreja Católica, era repassada a ideia de que o homem deveria ser semelhante a Deus, um ser perfeito físico e mentalmente. Apesar disso, foi nesse período que surgiram as primeiras casas de assistência às pessoas com deficiência, pois alguns acreditavam que o assistencialismo promovia a salvação cristã.

As duas grandes guerras mundiais trouxeram consigo o aumento de pessoas com deficiência, já que muitos homens voltavam com alguma sequela que lhes dificultava a vida social e econômica no pós-guerra. Assim, na década de 60 surgiram as primeiras salas de aula para pessoas com deficiência, as famosas salas especiais que estavam inseridas em um sistema educacional separado dos demais. Nessa mesma época nascem também as primeiras vagas em serviço público reservadas para pessoas com deficiência. Para quem se interessar em aprofundar-se na história da inclusão social das pessoas com deficiência recomendamos os textos de Carneiro (2008), Sassaki (2007) e Nunes, Saia & Tavares (2015).

A partir desta brevíssima retrospectiva podemos identificar que por muito tempo as pessoas com deficiência foram segregadas de nossa sociedade, seja por um caráter de ineficiência que lhes era dado ou por barreiras postas nas adaptações necessárias para algumas delas. Assim, a sociedade postulava que pessoas com deficiência necessitavam de milhares de adaptações, mas será que só elas?

 

O HOMEM: UM SER DE RELAÇÃO

Na perspectiva gestáltica, por influência da teoria da autorregulação organísmica de Goldstein (1983), entendemos que o nosso organismo busca formas de se manter equilibrado em interação constante com o mundo a sua volta. Por esse mundo não ser estático, estar constantemente em mudança, o indivíduo precisa criar ou repetir respostas para cada nova situação do cotidiano. As repostas repetidas podem gerar frustrações e adoecimento, já que não são muitas vezes adaptativas. E ainda, a criação de novas respostas é necessária para o fortalecimento individual, pois "o normal não deve ser definido pela adaptação, mas, ao contrário, pela capacidade de inventar novas normas" (Goldstein, 1983 citado por Ginger; Ginger, 1995). Assim, segundo Perls (2002), um dos principais mentores da abordagem gestáltica, nós utilizamos um mecanismo denominado "ajustamento criativo" para reequilibrar nosso organismo, ou seja, ao longo da vida criamos formas de lidar com as solicitações do nosso dia-a-dia através dos recursos possíveis, fazemos adaptações quando acontecem imprevistos, algo que não planejamos e muitas vezes nem pensamos que poderia acontecer.

O ajustamento criativo é uma forma saudável de lidar com a vida onde todos nós deixamos de lado velhos comportamentos na busca de solucionar algum problema, já que o próprio meio exige isso de nós: "Ajustamento consistiria na capacidade/possibilidade de, em determinado espaço-tempo, podermos identificar a melhor forma de interagirmos num determinado momento. Criativa porque elástica, nova, exercício de possibilidades" (Prestrelo, 2008, p. 46). Deste modo, nós usamos esse mecanismo para criar e recriar novas formas diariamente, algumas vezes sem nem nos darmos conta:

 

Em síntese, pode-se descrever o ajustamento criativo como o processo pelo qual a pessoa mantém sua sobrevivência e seu crescimento, operando seu meio sem cessar ativa e responsavelmente, provendo seu próprio desenvolvimento e suas necessidades físicas e psicossociais. Diante de condições alteráveis, o mero ajustamento do organismo ao meio é insuficiente, requerendo respostas criativas [...] (Mendonça, 2007, p.21).

A chegada de um modelo inclusivo na escola fazendo emergir novas demandas pode requisitar a utilização, por parte dos agentes escolares, de ajustamentos criativos para dar conta das novas necessidades que aparecem na busca de incluir a todos que fazem parte dela.

Vivemos, no entanto, numa sociedade pautada na ideia que todos falam, andam, ouvem e devem se comportar de uma mesma forma seguindo normas pré-estabelecidas. Quando encontramos alguém fora desse padrão tomamos um susto e tentamos, de alguma forma, encaixá-lo em alguma categoria ou fazer com que ele siga alguma norma, não nos é fácil lidar com o diferente. A nossa estranheza pode ser causada por um olhar somente para o que falta, para as limitações logo identificadas como deficiência, olhar enraizado numa cultura e num histórico de exclusão como apresentado no início desse texto, um olhar para as limitações que cria inúmeras formas de aprisionamento do sujeito. Esquecemos que todos nós, com ou sem deficiência, temos nossas próprias dificuldades e estamos o tempo todo nos refazendo e criando ajustamentos criativos necessários à sobrevivência.

O encontro com o outro é essencial para o desenvolvimento humano, pois o homem é um ser de relação e segundo Perls (1988) é importante olhar para o outro em sua totalidade e para o contexto em que ele está inserido, pois "organismo e meio se mantêm numa relação de reciprocidade. Um não é vítima do outro. Seu relacionamento é, realmente, o de opostos dialéticos". (p.32)

Assim como dito por Moraes (2010) "É no estranhamento do encontro com o outro que um pensamento pode advir." (p.26), é a partir do encontro com o novo que somos mobilizados a pensar e repensar. O ambiente escolar é um espaço onde há encontros significativos e na escola inclusiva, especialmente, os encontros muitas vezes causam estranhamentos, o que, por sua vez, pode produzir novas idéias, pensamentos, sentimentos, atitudes, afetações que, quando elaboradas, produzem ajustamentos criativos para lidar com o novo.

 

DIFERENÇA E PRECONCEITO

Mas o que faz com que o encontro com pessoas com deficiência seja muitas vezes uma experiência desagradável? Ou o que leva os seres humanos a verem algum tipo de diferença como algo ruim?

Acompanhando os olhares para a questão da deficiência ao longo do tempo, vemos que estiveram marcados por estigmas, estereótipos e preconceitos produtores de discriminação e da não aceitação do outro como ele é, atestando essas diferenças como ineficiência. No caso das pessoas com deficiência os estigmas se expressam em perguntas curiosas com as quais convivi no estágio acompanhando alunos com deficiência na escola: "Ele copia o dever tia? E faz?" "Ué, ele entende o que a gente tá falando?" (Diário de campo de 14 de julho de 2017)

Amaral (1998) postula que há três critérios que tornam algum tipo de diferença significativa e eles estão relacionados às características físicas, funcionalidades consideradas universais e a comparação de alguém ou de um grupo com um padrão ideal. É o olhar a partir desses critérios que torna alguém fora da norma como ineficiente ou anormal. Logo, o atestado de ineficiência dado a pessoa com deficiência é influenciado pela ideia de que as pessoas necessitam ter corpos fortes para o trabalho e também por um padrão corporal que a mídia e a sociedade enfatizam todos os dias: "Além do corpo útil para o trabalho, valorizase também o corpo falsamente belo, porque padronizado em limites estéticos de peso, altura, cor e forma que favorecem a rejeição dos diferentes corpos fora dessas especificações" (Silva, 2006, p. 118). Quem se afasta desse modelo de corpo perfeito físico e mental é colocado como anormal e não saudável, produzindo uma "patologização do desvio" (Velho, 1989, citado por Amaral, 1998).

Com isso, alguns estudiosos discutem que a deficiência não é somente inerente ao indivíduo, ela possui um caráter social como defendido por autores como Moraes (2010), Oliver (1996), Silva (2006) e Amaral (1998). Na Inglaterra nos anos 70 surgiu um movimento que preconizava o chamado "Modelo social da deficiência" e que vem sendo retomado nas discussões sobre inclusão escolar. Esta modelo parte da premissa que a deficiência não seria um aspecto biológico isolado, mas sim o resultado da interação entre as pessoas com deficiência e a sociedade. Quando a pessoa com deficiência se depara com uma barreira impeditiva dentro da nossa sociedade, sejam elas físicas ou sociais, ela experiencia a situação de deficiência: "[...] o meio determina o efeito de uma deficiência ou de uma capacidade sobre a vida cotidiana de uma pessoa. Ela pode se perceber relegada à invalidez se lhe são negadas oportunidades necessárias aos aspectos fundamentais da vida, tais como trabalho, educação [...]" (Silva, 2006, p. 117).

É importante frisar que essa visão sobre a deficiência não nega o lado biológico, mas ele passa a não ser mais o limitador, pois os limites estão no social. É no modelo social que a inclusão ganha espaço, não basta só a reabilitação das pessoas com deficiência, mas a sua inserção na esfera social através de estratégias e adaptações, bem como a ampliação de olhares sobre a deficiência.

A partir dessa proposição a escola pode ser um dos locais onde a criança ou o jovem com deficiência pode encontrar situações segregadoras e experenciar a exclusão. Essas situações podem advir da falta de acessibilidade do local, de atitudes que privilegiam as características biológicas das pessoas com deficiências e a categorizações e classificações, dividindo os alunos entre os eficientes e os ineficientes. Esse olhar dicotômico e limitador pode gerar preconceito e culpabilização do aluno com deficiência ao invés de gerar movimento na escola. Movimento este que pode vir a ser de adaptações de materiais e atividades escolares e um olhar sobre aquilo que o aluno conseguiu aprender e não sobre o que ele não conseguiu. E mais, lidar com a rede que alimenta essa exclusão!

Por isso alguns autores postulam que a educação inclusiva é uma arma contra a discriminação, pois ela vem trazendo a ideia de que a escola é um espaço para todos e é um lugar onde a criança irá encontrar a diversidade, pois ela "busca olhar a diversidade no grupo de alunos e não no aluno com deficiência" (Crochik, 2002 citado por Silva, 2006). E mais, se dentro desse espaço a criança aprende desde cedo a conviver e a valorizar a diversidade, esta que não se encontra mais só nas pessoas com deficiência, mas sim em todos que fazem parte da sociedade, e aprende a possibilidade de todos termos como contribuir para o desenvolvimento de nossa sociedade, ela leva essa prática para o mundo! A diversidade para ela não mais será algo que possa trazer estranhamento: "A segregação prejudica a todos, porque impede que as crianças das escolas regulares tenham oportunidade de conhecer a vida humana com todas as suas dimensões – e desafios. Sem bons desafios, como evoluir?" (Werneck, 1997, p. 55-56)

Assim, é na interação, no encontro com as diversidades que a criança com ou sem deficiência vai tendo novos aprendizados que serão significativos para a fase adulta. Parafraseando Moraes no final do tópico anterior, é a partir do encontro com a diversidade que o aluno produz um novo pensamento.

 

A ESCOLA, O SEU LUGAR E SEUS MEDIADORES... DE VIDA!

A escola envolve múltiplos agentes entre eles estão os professores, alunos, coordenadores pedagógicos, psicólogos, mediadores escolares, auxiliares de limpeza, auxiliares administrativos entre outros profissionais e é atravessada pelo mundo externo como a família dos alunos, normas sociais, leis e situação econômica da comunidade onde está inserida. Todos esses agentes internos ou externos possuem funções e em conjunto fazem com que o corpo escolar atinja seu papel de propiciar ensino acadêmico e social para os alunos... ou seja, mediar vidas! Uma vida se faz nas relações possíveis. Uma vida escolar também.

Contudo, a escola é um espaço onde o controle e o aprendizado racional são vistos como primordiais. O controle sobre as disciplinas dadas, as atividades realizadas em todo ambiente escolar até mesmo durante o intervalo, a disposição das salas, dos horários e sobre o próprio corpo do aluno. Souza (2004) descreve em seu estudo dentro de uma escola com as classes da terceira série do estado de São Paulo que o olhar dos profissionais da escola sobre as crianças é como se elas fossem "seres escolares" (p.103), pois "na escola só estaria havendo espaço para o racional, para a produção intelectual. O corpo é transformado ou misturado à carteira, onde deve permanecer o tempo todo" (Souza, 2004, p. 103). É através da disciplina e da concepção introjetada do "bom aluno", que os profissionais da escola exercem o domínio sobre os alunos.

Assim, a escola que valoriza a disciplina e o controle olha o outro como coisa e o encontro possui uma finalidade que precisa ser atingida a qualquer custo. É uma relação onde o processo do outro é ignorado e os fins são prioritários. Esse tipo de atitude em uma relação pode ser denominada de Eu-Isso, concepção que será abordada posteriormente nesse texto.

O que muitas vezes esquecemos é que a escola tem um papel ativo na inserção social e na constituição da identidade pessoal, pois ela é um dos primeiros espaços de convívio social que a criança passa a ter. Ela não se resume a um espaço de transmissão de conhecimento, mas também um espaço de formação integral de uma pessoa "[...] a educação abarca a própria instrução e a completa, formando o indivíduo intelectual e socialmente, duas realidades na verdade indissociáveis" (Gallo, 2000, p. 18).

O modelo de escola inclusiva, talvez mais do que outros, mobiliza a inserção social, pois assim como a escola pode propagar preconceitos, ela também pode desconstruilos. Desconstruir não só os preconceitos presentes em nossa sociedade, mas também práticas pedagógicas antigas que promovem a exclusão. No passado, por exemplo, a escola era dividida entre salas especiais e salas regulares perpetuando a segregação das pessoas com deficiência. Hoje, com a escola inclusiva, encontramos um modelo onde todos podem e devem frequentar a escola e as salas regulares. Mas como adaptar a escola para receber pessoas que foram delegadas a exclusão no passado? Para tanto, é necessário criar um espaço acolhedor às demandas de cada aluno conforme escrito na declaração de Salamanca:

 

[...] aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades, escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos [...] (Brasil, 1994, p.01).

Paulo Freire contribui para essa discussão quando traz em seu texto "Pedagogia da autonomia" (1997), a importância de ensinar a partir da realidade de cada aluno, isto é, aquilo que é ensinado deve valorizar a vida e a história do educando, pois o ensino passa a fazer sentido para ele e promove o senso crítico de cada um. Desta forma, a escola inclusiva não se constrói apenas com leis, mas sim no cotidiano, nos pequenos passos que são dados centrados no aluno com ou sem deficiência. Esses passos devem ser dados por todos que estão na escola, fazendo uma articulação dos vários saberes que circulam nesse espaço. Articulação esta que só é possível com mobilização e debate dentro da escola!

Quando falamos de crianças, sendo elas com deficiência ou não, e das interações no espaço escolar precisamos falar da fé no potencial de desenvolvimento humano. A Gestaltterapia é uma abordagem que fala sobre o potencial existente em cada um de nós para nos desenvolvermos e "fazermos o melhor possível a cada momento, seja numa perspectiva de crescimento, expansão, seja numa perspectiva de sobrevivência, preservação" (Prestrelo, 2008, p. 46). Levando-se em conta o que já foi dito, possuímos a capacidade de fazer ajustamentos criativos, de nos reinventar a cada momento numa busca pela sobrevivência e pelo desenvolvimento.

O próprio processo de aprendizagem depende da fé no potencial do aluno podendo só ocorrer de forma plena e significativa a partir da construção de um diálogo e da relação positiva entre professor e aluno que criam vínculos: "A aprendizagem ocorre por meio das interações sociais e estas são originadas por meio dos vínculos que estabelecemos com os outros, pode-se dizer que toda aprendizagem está impregnada de afetividade" (Goldani et al, 2010 citado por Francisco & Araujo, 2014). Já as expectativas negativas podem fechar portas e impedir o desenvolvimento e o encontro da criança com seus potenciais.

O processo de ensino-aprendizagem na abordagem gestáltica envolve as funções de contato. Contato é uma concepção central nessa abordagem, se refere à ação que performa a troca organismo-ambiente, movimento constante no fluxo da vida. Através dele assimilamos ou rejeitamos elementos necessários ao nosso amadurecimento (Perls, 1979), através de ajustamentos criativos. Na abordagem gestáltica estimulamos a troca através do contato ou a conscientização do como fazemos para evitá-lo. A aprendizagem está relacionada à compreensão que emerge da experiência de contato e quando ela ocorre há o fechamento de uma gestalten. Quando a criança possui alguma dificuldade nas funções de contato ela pode desenvolver mecanismos de resistência expressos no medo, na agressividade ou na timidez, por exemplo, dificultando sua interação na escola e no mundo. Na escola os agentes escolares, que são figuras motivacionais e referência de futuro para muitas dessas crianças, podem ajudar os alunos a ter consciência de suas potencialidades.

Outro ponto importante na escola inclusiva é a construção do ensino e de estratégias pedagógicas no cotidiano junto com o aluno. Segundo Serge e Anne Ginger (1995), a Gestalt terapia influenciada pelo existencialismo postula que cada ser é único e se configura a cada momento:

 

[...] do existencialismo, muito próximo da fenomenologia, a Gestalt-terapia reteve, entre outras coisas a singularidade de cada existência humana, a originalidade irredutível da experiência individual, objetiva e subjetiva... a noção de responsabilidade de cada pessoa que participa ativamente de seu projeto existencial e confere um sentido original ao que acontece [...] (p.36).

Então, o homem é um ser livre, indeterminado e inacabado. O homem é um ser ativo sempre em processo de construção e reconstrução de sua existência a partir de suas escolhas e experiências, como ressaltam Prestrelo, Araujo, Moraes e Marques (2016), "A visão de homem da Gestalt-terapia foi influenciada pelas ideias da fenomenologia e do existencialismo, assim, o homem é visto como um sujeito ativo, com potencialidades e possibilidades, isto é, ele se produz continuamente pela atualização do possível" (p. 90).

O aluno que está inserido na escola é esse homem postulado numa abordagem gestáltica, isto é, não é um ser pronto, estático, que não muda e se apresenta todos os dias de uma mesma forma. Pelo contrário, ele é um ser ativo, com características singulares e demandas únicas.

Portanto, tal como o cuidado postulado por Mol (2008) o ensino deve se fazer e refazer no cotidiano escolar, pois ele não é algo dado e sim construído nas relações, no contato com o outro, respeitando suas particularidades e a bagagem de experiência que ele traz para a escola. É um ensino fundamentado no fazerCOM, termo utilizado por Prestrelo, Araujo, Moraes e Marques (2016) inspiradas numa proposição metodológica do Laboratório pesquisarCOM (UFF), do qual duas das autoras do texto referenciado fazem parte, quando descreve uma prática de cuidado realizada no coletivo, ou seja, construída numa relação horizontal com cada sujeito no campo sem uma pré determinação.

O fazerCOM, inspirado na orientação metodológica de autores como Mol (1999), Law (1997), Moraes (2010), Despret (1999) e Moser (2000), preconiza uma forma de pesquisa que intervém na realidade e se faz com o outro e não sobre o outro. Segundo Moraes (2010) é uma prática performática, pois "fazem existir realidades que não estavam dadas antes e que não existem em nenhum outro lugar senão nestas e por estas práticas." (p. 35). Assim, a prática se coloca como fazedora de mundos. Colocando a prática como ponto de referência na escola iremos seguir as pistas dadas pelos próprios alunos e respeitar os vários modos de existir da pessoa com deficiência na construção de manejos educacionais inclusivos. O papel do psicólogo escolar, portanto, deve ser o de abrir brechas para novas formas de pensar as ideias introjetadas sobre a escola e a deficiência. A forma como nos comportamos, nossos valores éticos e morais se estabelecem através da relação com o meio. Nós, seres humanos, temos a capacidade de discriminar aquilo que é nosso e o que é do meio, porém utilizamos a introjeção quando não o separamos e aceitamos tudo que vem de fora sem refletir e criticar,

 

Os conceitos, fatos, padrões de comportamento, a moral, os valores éticos, estéticos ou políticos - todos nos chegam, originalmente, do mundo externo. Estas devem ser digeridas e dominadas se quiserem se tornar nossas de verdade, realmente uma parte da personalidade. Mas se simplesmente as aceitamos completamente e sem críticas, baseando-se na palavra de outra pessoa, ou porque estão na moda, ou são de confiança, ou tradicionais ou antiquadas ou revolucionárias - tornam-se um peso para nós. São realmente indigeríveis. Tais atitudes não digeridas, modo de agir, sentir e avaliar, a psicologia chama de introjeções e o mecanismo pelo qual estes acréscimos estranhos são anexados à personalidade, chamamos de introjeção (Perls, 1988, p.47).

Assim, a Psicologia e suas práticas podem quebrar as barreiras comportamentais que atrapalham o processo de inclusão. E a abordagem gestáltica tem muito a contribuir para essa "quebra", pois além de estimular a prática de um olhar que sempre se reconfigura, ela olha para cada ser humano como um ser com singularidades e postula a aceitação das mesmas, o que diminui a condição de exclusão e as problematiza.

Tendo em vista os aspectos apresentados, uma abordagem gestáltica através de seus conceitos fundamentais na prática escolar, pode trazer novos olhares sobre a realidade desse meio e construir a noção de diversidade nesse ambiente propiciando o espaço postulado pela Declaração de Salamanca, um espaço de acolhimento e respeito mútuos - o que é levado para além dos muros escolares, já que um dia as crianças e os jovens que compõem o espaço da escola irão transpô-los, interagindo e construindo outros espaços.

 

INCLUSÃO: UMA PRÁTICA FORJADA NO DIÁLOGO COLETIVO

Como dito no tópico anterior, a inclusão escolar é construída coletivamente por todos que compõem o corpo escolar com a confluência dos saberes de cada um. O grande marco político brasileiro sobre inclusão é a Lei Brasileira de Inclusão de 2015, a qual garante que o governo, a família e a comunidade ofereçam educação de qualidade para o desenvolvimento pleno do indivíduo através de projetos pedagógicos adaptados, professores especializados, apoio escolar e adoção de estratégias individuais e coletivas que supram as necessidades dele no espaço escolar regular e social. É importante frisar que a LBI traz a ideia de que não mais a pessoa deve se adaptar ao meio, mas sim o meio se adaptar a ela, pois a deficiência passa a ser vista através das barreiras sociais impostas por ele.

Desta forma, nessas mudanças no processo educacional ajustamentos criativos precisam ser constantemente utilizados. Buscando um modelo que inclua a todos, os profissionais da escola buscam adaptações curriculares, modificações nos espaços físicos e planejamentos de atividades que englobem e beneficiem todos os alunos. Esses ajustamentos desconstroem modelos instituídos e práticas pedagógicas antigas que promovem a exclusão, valorizando a vida e a história do educando.

Além disso, os agentes escolares ficam com o importante papel de mediar as vidas na escola visando a inclusão de todos nesse ambiente. Em que consistiria mediar vidas na escola? Pensamos que mediar vidas no contexto escolar seria servir de intermediário entre a educação e a formação do aluno como cidadão consciente dos seus direitos e deveres, promovendo o contato entre os alunos e o meio externo possibilitando o reconhecimento de diferenças e singularidades.

Buscando compreender como estamos realizando essa mediação, nos debruçaremos sobre algumas partes da Lei Brasileira de Inclusão que nos permitem pensar sobre isso, retirando o projeto de escola inclusiva da teoria e trazendo-o para a prática. Para tal serão apresentados trechos do diário de campo de uma das autoras durante estágio em uma escola municipal do Rio de Janeiro como facilitadora escolar, acompanhando alunos com transtorno do espectro autista em todas as atividades escolares e dando suporte a professora com alunos que apresentavam alguma dificuldade de aprendizagem. O diário de campo foi escolhido como forma de registro porque acreditamos em um tipo de pesquisa onde não há neutralidade e a prática é construída coletivamente com todos os atores do campo que são ativos e modificam a realidade. Assim, nessas anotações estão contidos deslocamentos, sentimentos, afetos e interações entre os atores encontrados pelo caminho, nas afirmações e reconstruções do conhecido, pois como nos alerta Goldman, "Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assume o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois, se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada" (2005, p. 160).

Na escola como facilitadora escolar Leticia participou de vários momentos, em alguns deles os alunos pareciam confusos sobre o conteúdo de provas e trabalhos, seja por conta de palavras desconhecidas que não faziam parte do seu vocabulário:

 

As provas são redigidas por uma equipe que não está dentro do ambiente escolar. Quando aplicadas se faz necessário que a professora leia cada questão e é nessa leitura que notei como o ensino acaba esquecendo-se da realidade na qual ele está inserido. Em várias partes as crianças questionavam os significados de palavras contidas no enunciado, muitas pareciam confusas e desconhecer alguma delas. Eu sentia a angústia delas de não entender o que estava sendo dito (Diário de Campo de 10 de abril de 2017).

Ou apresentavam dificuldades de leitura e interpretação mesmo já tendo passado pela classe de alfabetização:

 

Hoje meu aluninho faltou e fiquei acompanhando crianças com dificuldade de aprendizagem. Uma aluna me chamou atenção, pois ela copiava o quadro com avidez e foco. Quando finalizou, sinalizou para a professora que a parabenizou por ter copiado todo o exercício antes de seus colegas. Ela me chamou para mostrar seu caderno, talvez estivesse esperando receber um elogio meu, e foi quando notei que ela realmente havia copiado tudo, mas não havia feito nenhum dos exercícios. Foi então que eu a parabenizei e disse que agora ela tinha que fazer os exercícios, na mesma hora sua feição mudou. Um silêncio auditivo aconteceu, mas o seu corpo falava exatamente o que estava acontecendo. Nos entreolhamos, até que me ofereci para dar o primeiro passo e comecei a leitura do exercício. Ela timidamente tentou me acompanhar, mas falava o nome das letras, mas não as sílabas. Nesse momento percebi que ela ainda não sabia ler e tentei ensinar os sons de cada sílaba. Por fim, acabei lendo toda frase para ela e perguntei se ela sabia a resposta. Ela respondeu que não... Foi aí que me dei conta que ela havia copiado do quadro sem nem saber o que estava escrito nele e mesmo depois de saber pareceu que aquilo ainda não fazia nenhum sentido para ela [...] (Diário de Campo de 2 de maio de 2017).

No modelo escolar antigo quando o aluno estava fora do padrão havia a tentativa de encaixá-lo em alguma categoria ou de fazer com que ele seguisse alguma norma, a qual nem sempre ele possuía a capacidade ou estímulo necessários para seguir. A escola inclusiva tenta combater isso e preconiza a transformação do espaço e não do aluno fazendo com que ele se sinta parte desse ambiente e que este seja adaptado para ele. Como já apontado no texto, o processo de ensino aprendizagem na abordagem gestáltica depende da experiência de contato. Deste modo, é a partir da relação e do significado que o aluno dá para o mundo que ele vai eleger os seus interesses e identificar suas necessidades e assim, transformar as informações oferecidas pela escola em conhecimento. Quando o ensino leva em conta aquilo que é figura para o aluno, isto é, o que está em destaque em seu campo perceptivo, ele passa a aprender. Assim, é importante que o currículo seja organizado de maneira a envolver professor-aluno; escola-comunidade; ensino-aprendizagem.

Outro ponto importante para a construção de uma escola inclusiva é a implantação das salas de recursos a partir da política nacional de educação estabelecida no ano de 2008. Nela foi implementada o atendimento educacional especializado (AEE) através das salas de recursos multifuncionais (SRM) que são, teoricamente, um espaço dentro da escola para ser frequentado por alunos com deficiência, onde ocorreria o atendimento deste por um professor especializado. As SRM contam com equipamentos eletrônicos, recursos de acessibilidade e materiais pedagógicos que dão apoio ao ensino escolar, promovem a autonomia e o desenvolvimento das habilidades cognitivas, motoras e sociais do aluno.

Na prática, a sala de recursos também se configura num espaço no qual a criança se sente mais segura e relaxada, já que é um ambiente com um número menor de pessoas onde ela recebe maior atenção:

 

Ele chegou muito agitado, gritando, respondia às perguntas da professora bem alto e ainda repetia o movimento de um índio manuseando um arco e flecha. No fim da aula, ele foi para a sala de recurso, onde ficou até a hora do recreio. Nessa hora, ele retornou bem mais calmo. Contei para a professora da sala de recursos o comportamento dele no início da aula e perguntei como ela o havia acalmado? Ela relatou que percebeu a agitação dele, conversou tentando entender o porquê daquela agitação e resolveu fazer uma atividade em que ele recontou como estava se sentindo naquele dia [...] (Diário de Campo de 20 de abril de 2017).

Através desse relato podemos notar que a sala de recursos também é o espaço onde há uma escuta interessada que se torna terapêutica porque ela qualifica os sentimentos do outro, afirmando-o como legítimo. O tempo e o espaço nesse ambiente são mais centralizados no aluno, o que muitas vezes não é possível dentro da sala de aula. Aliás, esse é um dos desafios da escola inclusiva, as dificuldades encontradas no cotidiano escolar principalmente em escolas públicas, onde há muitos alunos por turma o que torna difícil atender a todos e ainda ao aluno com deficiência que requer mais atenção. Presenciamos algumas vezes essa dificuldade em sala de aula:

Hoje um fato me deixou mobilizada. Uma aluna que possui dificuldade de aprendizagem precisou fazer a segunda chamada de uma prova. A professora entregou a prova para ela e se dirigiu ao restante da turma para aplicar um ditado. [...] a menina, sem ter recebido nenhuma instrução, respondeu as questões da prova com o ditado que a professora havia realizado com seus colegas. Antes que a professora notasse, expliquei para ela o seu mal-entendido. Ela, mesmo sabendo que havia trocado as bolas, tentou pedir ajuda a professora, que por estar ocupada com outros alunos pediu para que eu a ajudasse. Fiquei pensando sobre a dificuldade da professora para gerenciar tantas crianças [...]. Será que a professora tendo que administrar quase trinta alunos sozinha teria tempo de ajudar essa menina?! (Diário de Campo de 13 de abril)

A qualificação desses profissionais se constitui num desafio, pensamos que a oferta de um espaço de fala e reflexão sobre os impasses vividos no ambiente escolar poderia ajudar. Um espaço onde poderiam acontecer palestras, oficinas e trocas de experiências entre profissionais no sentido de dar-lhes maior suporte.

Além disso, os recursos acionados na escola não são somente para modificar materiais pedagógicos e trazer benefícios para a aprendizagem, mas também para lidar com situações comportamentais, como no caso de alunos com transtorno do espectro autista quando se deparam com alguma situação que foge de sua rotina e de seu controle:

 

[...] para acalmá-lo a professora juntamente com a agente educacional criaram um dispositivo de pedir para o menino abaixar a cabeça e esticar um dos braços para receber um carinho nele [...]. Com esse recurso, aos poucos, ele foi se acalmando [...] (Diário de Campo de 17 de outubro de 2017).

Esses recursos são construídos na prática, na observação e nas afetações vividas no cotidiano. São formas criadas pelos agentes escolares de mediar uma crise e legitimar os sentimentos do aluno.Também há estratégias que contemplam a organização física do ambiente e promovem um espaço no qual os alunos se sentem acolhidos, seguros, apoiados e estimulam a interação e a colaboração entre eles:

 

No segundo andar da escola ficam as crianças maiores, do primeiro ao terceiro ano, distribuídas em quatro salas diferentes. As salas são ricamente decoradas com relógios coloridos e materiais didáticos lúdicos pregados na parede, como números e alfabetos com carinhas. Mas o que mais me chamou atenção foi que cada sala tem disposições de cadeiras diferentes. [...] a terceira sala possui carteiras agrupadas em quatro, formando mini grupinhos dentro da sala, e a mesa da professora fica quase que no meio delas, não na frente ou no centro. Senti que essa disposição traz uma interação constante entre professora-alunos e alunoaluno. Já na quarta sala as carteiras formam um semicírculo voltado para o quadro. As crianças estando umas perto das outras ficam o tempo todo ajudando o coleguinha do lado (Diário de Campo de 7 de abril de 2017).

É importante frisar que só colocar alunos lado a lado não assegura interações positivas, apesar da grande capacidade das crianças de colaborarem umas com as outras. Mas justamente para que essa capacidade apareça é necessário um mediador que saiba manejar e estimular esse processo e orientar discussões sobre o tema.

Um exemplo de como um espaço de debate pode ser um dispositivo inclusivo pode ser visto num colégio estadual do Paraná que selecionou conteúdos curriculares e fez a apresentação de filmes com temas como preconceito, etnocentrismo, segregação e bullying, seguidos de debates. A escola promoveu essas ações para que a comunidade escolar pudesse refletir sobre diversidade e preparar terreno para a inclusão de novos alunos com deficiência na escola. A avaliação final da escola foi que: "As estratégias planejadas permitiram que os estudantes percebessem que as estruturas sociais modulam nossa atuação [...] Eles puderam contestar, reconstruir, descrever e interpretar as relações sociais e de poder e relacioná-las com o cotidiano" (Gentilin, 2016). As ações dessa escola demonstraram como educadores podem ser mediadores na criação do senso crítico e no desenvolvimento de seres humanos ativos, promovendo a reflexão dos alunos através do próprio conteúdo escolar sobre os fenômenos sociais que fomentam a exclusão.

Além do mais, é preciso que a escola utilize uma abordagem dialógica, onde a relação e aquilo que se constrói a partir dela seja mais importante do que as técnicas. O principal precursor de uma abordagem dialógica foi Buber, um filósofo e educador que apontou que o uso excessivo de técnicas provoca o afastamento do homem do outro, de si mesmo e da natureza (Hycner,1995). A filosofia dialógica postula que quando o ser humano se relaciona com o outro ele pode assumir duas atitudes, a Eu-Tu e o Eu-isso. A Eu-Tu é uma postura interessada no outro, onde respeitamos a singularidade da pessoa e a nossa própria humanidade, ela é genuína, não é pré-determinada, não tem uma finalidade, portanto, não há como se preparar para ela e os dois personagens precisam estar disponíveis para esse encontro. Já na atitude Eu-Isso o outro é coisificado, é um objeto e esse encontro tem um objetivo. A atitude Eu-Isso faz parte das relações no mundo, é orientadora de nossas ações, se constitui num problema quando se torna a única forma de se relacionar! O uso excessivo de técnicas, por exemplo, consistiria na promoção de uma atitude Eu-Isso, pois limita as possibilidades de encontro.

Uma relação pautada nos princípios postulados por Buber acarreta um diálogo que olha para o outro no mesmo patamar e como um ser que tem habilidade de criar e recriar sua própria existência. Nesse tipo de relação há respeito às alteridades, o que para Buber, segundo Hycner (1995), consistiria no "reconhecimento da singularidade e nítida separação do outro em relação a nós, sem que fique esquecida nossa relação e nossa humanidade comum subjacente" (p.24). A alteridade não quebra só a confluência, mas também ajuda a lidar com o estranhamento do encontro com as diferenças e cria a abertura para a criação de novos sentidos para essas diferenças através de um fazerCOM que surge no cotidiano e não em teorias pré-concebidas:

 

A alteridade não se limita à consciência da existência do outro, mas comporta também o estranhamento e o pertencimento [...]. Ao lidar com o diferente, com aquilo que se altera em mim e no outro em um contexto dialógico, surge a possibilidade de um novo significado, que caminha no sentido contrário ao de uma construção que busca uma verdade absoluta (Pena, 2017, p. 13).

Por isso a importância de repensarmos de que forma estamos nos relacionando e mediando vidas na escola. É a partir do encontro genuíno que ocorre a transformação da realidade porque nele somos afetados criativamente, o que provoca mudanças no campo.

Portanto, podemos pensar que a mediação de vidas na escola tem como finalidade intervir nos encontros que a escola permite e para ela se tornar inclusiva é preciso utilizar ferramentas como o fazerCOM que, em si, já inclui uma abordagem dialógica. É preciso que todos sejam mediadores do encontro com a diversidade tendo como figura o processo, o COMO as interações acontecem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o aqui exposto, acho que podemos entender melhor a razão pela qual vários eventos e convenções mundiais buscam discutir a herança histórica da segregação visando a construção de uma sociedade mais justa para pessoas com deficiência. Pelo caráter recente da LBI que é um importante marco de políticas públicas no Brasil para as pessoas com deficiência, a inclusão escolar é um tema em voga no cenário brasileiro e sua discussão se faz importante porque a educação é uma ferramenta para a construção de uma sociedade melhor para todos.

A escola inclusiva é um dos espaços no qual ocorre o encontro com o outro, com o diferente e reafirma a importância de uma educação acessível para todos. Pensando dessa forma, a escola é um dos principais espaços de inserção social e de desconstrução de ideias introjetadas. Ela ajuda na construção da identidade pessoal e pode ensinar o respeito mútuo e a importância de uma relação onde o sujeito se interessa pelo outro e suas singularidades. É esse tipo de relação que ele vai levar para a vida e, assim, construir não só uma escola inclusiva, mas também uma sociedade fundamentada na inclusão.

Dito isso, como apresentado nesse trabalho, a escola pode utilizar os recursos disponíveis, alguns destes dados pela Psicologia, para promover a inclusão. Entre eles está uma prática de fazerCOM que possibilita estar atento e seguir as pistas dadas no campo favorecendo uma atitude ativa e coerente com a situação e viabilizar uma afetação mútua, já que todos são sujeitos ativos no campo e através da afetação é que há a oportunidade de mudança no meio.

Deste modo, o agente escolar se constitui num mediador de vidas na escola quando compreende que não há uma receita de bolo ou uma teoria acabada que possa resolver todas as dificuldades encontradas junto aos alunos e que as soluções se dão no cotidiano.

A título de fechamento das reflexões aqui colocadas, pensamos que a sociedade precisa rever valores introjetados, compreender a importância das diferenças e respeitar as potencialidades de crescimento de cada um. Assim, a inclusão escolar e, consequentemente, a social, ainda estão em construção, estas se conectam e devem ressignificar as visões sobre deficiência, valorizar a diversidade humana e os diversos saberes existentes na comunidade.

 

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Notas sobre as autoras:

Leticia Marques de Oliveira: graduada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: leticia_m_oliveira@yahoo.com.br.

Eleonôra Torres Prestrelo: professora de Gestalt-terapia no Instituto de Psicologia /UERJ; Coordenadora do Núcleo de Extensão do IP/UERJ; professora convidada de cursos de Especialização em Gestalt-Terapia no Rio de Janeiro. Doutora em psicologia pela UFF/RJ. Vinculada ao Grupo de Pesquisa Entre_Redes, UFF/RJ. E-mail: eprestrelo@gmail.com.

 

Recebido: 11/04/2018
Aprovado: 04/07/2018

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