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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.10 no.2 Belém maio/ago. 2018
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n02ensaio41
Ensaio
Vítimas de violência sexual intrafamiliar: uma abordagem gestáltica
Children victims of domestic sexual violence: a gestalt approach
Niños víctimas de violencia sexual doméstica: un enfoque gestaltico
Sheila AntonyI; Ediléia Menezes de AlmeidaII
I Universidade de Brasília (UnB)
IIInstituto de Gestalt-Terapia de Brasília (IGTB)
RESUMO
O artigo aborda a violência sexual intrafamiliar contra crianças à luz da Gestalt- Terapia, enfocando a transmissão transgeracional do ciclo abusivo, a partir da experiência clínica. A violência ocorrida na geração presente é figura emergente de um fundo com histórias de maus-tratos, negligências, exclusões, no qual o abuso é sintoma de um sistema disfuncional. Situações traumáticas deixam uma gestalt aberta que leva à compulsão de repetição, base do processo de transmissão transgeracional. A criança vitimizada vem descortinar segredos familiares, denunciar a fragilidade dos vínculos íntimos da família, de papéis invertidos, pais não comprometidos com o cuidado, o amor e a proteção da criança. Há um universo familiar a ser conhecido, uma dor familiar a ser trazida à consciência, para que deixe de ecoar na mente dos futuros membros familiares. A tarefa do terapeuta é desvelar o segredo instituído sobre os assuntos inacabados da família que são perpetuados de geração a geração.
Palavras-chave: Violência Sexual; Crianças; Gestalt-Terapia.
ABSTRACT
The article discusses the domestic sexual violence against children in the perspective of Gestalt Therapy, focusing on transgenerational transmission of the abusive cycle, from the clinical experience. The violence that occurrs in this generation emerges from a background of mistreatment, negligence, exclusions, in which the abuse is a symptom of a dysfunctional system. Traumatic situations leave a gestalt opens that leads to the compulsion to repeat, the base of transgenerational transmission process. The child victimized comes uncover family secrets and to expose the fragility of the family's close ties, the reversed roles of parents not committed to the care, love and protection of the child. There's a familiar universe to be known, a familiar pain to be brought to consciousness to stop to reverberate in the minds of future family members. The task of the therapist is to unveil the secrety of the unfinished business of the family that are perpetuated from generation to generation.
Keywords: Sexual Violence; Child; Gestalt Therapy.
RESUMEN
El artículo aborda la violencia sexual contra los niños por la perspectiva de la terapia Gestalt, centrado en la transmisión transgeneracional del ciclo abusivo, de la experiencia clínica. La violencia producida en esa generación surge de un fondo de historias de malos tratos, negligencia, exclusiones, en la cual el abuso es síntoma de un sistema disfuncional. Situaciones traumáticas dejan una gestalt abierta que conduce a la compulsión de repetir, la base del proceso de transmisión transgeneracional. El niño victimizado viene a revelar los secretos de familia, a exponer la fragilidad de los lazos familiares, los papeles invertidos, los padres no comprometidos con el cuidado, amor y protección del niño. Hay un universo familiar a ser conocido, un dolor familiar para traer a la conciencia, para que deje de resonar en las mentes de los futuros miembros de la familia. La tarea del terapeuta es desvelar el secreto existente acerca de los asuntos inacabados de la familia que se perpetúan de generación en generación.
Palabras-clave: Violencia Sexual; Niño; La Terapia Gestalt
INTRODUÇÃO
O abuso sexual é um evento devastador que abala profundamente a saúde emocional e física das vítimas, quer sejam crianças, adolescentes ou adultos. Aqueles que a sofrem jamais esquecem a violência vivida no corpo e no mais íntimo da alma, carregando marca indelével do trauma.
A definição de violência sexual é bastante ampla na literatura. Berger (2003, p. 293) considera "qualquer situação na qual uma pessoa envolve outra numa atividade sexual, seja verbal ou física, sem que ela dê livremente seu consentimento". De acordo com Azevedo e Guerra (citado por Marques, Amparo & Faleiros, 2008, p.201), "a violência sexual acontece quando se exerce um ato ou jogo sexual – heterossexual/homossexual – entre um ou mais adultos com grau de parentesco e consaguinidade, responsável legal ou apenas responsável, ou mesmo que tenha uma relação de afinidade, versus uma criança ou um adolescente, até 18 anos, para obtenção ou estimulação de prazer", constituindo assim uma relação abusiva de poder, em que uma das partes exerce a força sobre outro menor e frágil para gratificação pessoal.
Nessa perspectiva, a violência sexual deve ser tratada como grave violação do direito humano que traz significativa implicação social e severas consequências psicológicas. É uma ofensa brutal contra a alma pueril da criança, sendo difícil imaginar porque alguém tão próximo (pais, padrastos, tios, primos, irmãos), que deveria cuidar e proteger, sente o ímpeto de machucá-la e tem desejos sexuais dirigido a um corpo ainda em desenvolvimento que, em princípio, é destituído de apelo erótico.
O abuso sexual contra crianças na família é considerado uma traição ao princípio da lealdade familiar. Para Werner (2009, p.366), "o ofensor é aquele que rompeu com todas as expectativas de proteção, confiança, aconchego, cuidados, trato, deveres e fidelidade aos seus no grupo familiar", que vem provocar sentimentos de pertencerem a uma família desestruturada, doente e pervertida. Esses sentimentos são tão fortes que geram cisões no grupo familiar, cuja intenção é afastar o perigo e assim evitar danos psíquicos e sociais em seus membros.
Castanho (2013) relata que o abuso sexual intrafamiliar se repete ao menos por quatro gerações, revelando "um padrão de complacência que se transmite de pais para filhos" (p.53). A conduta de silêncio e tolerância para com a situação abusiva por parte das figuras parentais tem o fim de preservar a família, o que acaba por desproteger a criança.
A criança vitimizada traz à luz situações abusivas físicas, emocionais e/ou sexuais que ocorreram no passado e se mantêm presente no sistema familiar. Ela funciona como um porta-voz da dor emocional do sistema familiar, silenciada por muitos anos. Essa criança vem descortinar segredos familiares, denunciar a fragilidade dos vínculos íntimos da família, não alicerçados em sentimentos de amor, cuidado e confiança, base de todo relacionamento humano.
A Gestalt-Terapia sedimentada em uma visão holística, de todo-parte, em que cada indivíduo constitui uma parte que afeta a identidade do todo e a identidade do todo é determinada pelas partes que o compõem, influenciando na formação da subjetividade de cada um, postula que não somos um puro "eu", somos parte de diversos outros "eus" e temos partes desses outros "eus" em nós (parentes com quem convivemos e nos relacionamos ligados a esse todo ao qual pertencemos), dando rosto a um self pessoal e familiar que tem dinâmica própria, e é desenhado transgeracionalmente. Wheeler (2002) elucida com clareza essa afirmativa, dizendo: "Cada parte do campo é uma parte de nós mesmos. Nós somos profundamente parte um do outro e, em nosso pertencimento, um ao outro e ao campo, o qual compartilhamos, repousa nossa completa humanidade e o desenvolvimento total do nosso self" (p.78).
Para a Gestalt-Terapia um problema emocional não se situa apenas no indivíduo, ele é fruto de um sistema de relações disfuncionais. Perls e Goodman (1977) pontuam que o distúrbio está no campo organismo/ambiente, na fronteira de contato, no "entre" eu-outro-mundo. O sintoma de um membro da família é um fenômeno relacional que muitas vezes "traz à tona uma disfunção mais ampla do sistema familiar como um todo" (Fernandes, 2010, p. 182).
A partir dos referenciais teóricos da Gestalt-Terapia abordaremos os danos psicoemocionais causados na vítima de violência sexual. A visão holística da Gestalt- Terapia enseja o terapeuta a adentrar nos múltiplos campos relacionais, no sistema familiar transgeracional da criança para compreender os comportamentos saudáveis e não saudáveis apresentados no e pelo sistema, procurando estabelecer interconexões com experiências traumáticas não resolvidas em gerações passadas, que deixam gestalten abertas. E, assim, é perpetuada a ferida emocional do sistema familiar.
GESTALT ABERTA: A TRANSMISSÃO TRANSGERACIONAL DO CICLO DE VIOLÊNCIA
A criança e sua família estão intimamente interligados e os pais, com sua história passada vivida no campo familiar transgeracional, exercem uma forte influência na formação da subjetividade e identidade da criança. Kempler (1978) enfatiza que "a família é o Tu imperativo: o outro essencial" (p. 17). Aprendemos a nos relacionar por meio do contato e do vínculo construídos com os membros familiares, os quais são responsáveis pelo surgimento dos sentimentos de pertencimento, inclusão e identificação com o todo familiar. Quando algum membro familiar é rejeitado, violentado, excluído, ou se um indivíduo aliena certas experiências, nega características e comportamentos pessoais, não tem uma existência plena, seu potencial cognitivo é bloqueado e parte de sua personalidade é mutilada, deixando significativas gestalten abertas na identidade do indivíduo e do grupo familiar.
A criança, ao sofrer um trauma, tem a unidade integrada corpo-mente rompida. O corpo, sede das emoções e sensações, passa a ser objeto temido/negado/alienado e, para defender-se do medo, da angústia aterrorizante, a criança corta a conexão com a mente, lugar dos pensamentos e imagens. Ao bloquear o contato com os pensamentos e sentimentos dolorosos, dá origem às somatizações (dores e enfermidades no corpo), aos sintomas de ordem cognitiva (como desatenção, falhas de memória, pensamento lentificado) e aos de fundo psicológico, como depressão, fobias, ansiedades, ideias obsessivas, condutas compulsivas, transtornos alimentares.
As situações mal resolvidas deixam uma gestalt aberta, cuja necessidade primordial não atendida permanece no fundo, retendo energia emocional e mental, as quais exercem pressão psíquica para a restauração do equilíbrio do organismo. Essa gestalt, ao não ser fechada de maneira satisfatória, leva a pessoa a colocar-se repetidamente em situações semelhantes àquela que deflagrou o mal-estar, tendo por fim alcançar a resolução do dilema.
Situações traumáticas tomam conta da mente com pensamentos intrusivos, imagens repetitivas, sentimentos angustiantes produzindo uma circularidade viciosa para atender a necessidade primordial persistente, o que gera a compulsão de repetição de fatos e situações dolorosas. Perls (1947/2002) elucida esse fenômeno ao afirmar:
A compulsão é sinal de que uma situação inacabada no passado ainda está inacabada no presente [...] as repetições compulsivas não são automáticas e mecânicas, ao contrário, são tentativas vigorosas de resolver problemas de vida relevantes [...] Se simplesmente sobrepomos uma gestalt à outra, aprisionamos, reprimimos, mas, apesar disso, mantemos viva a gestalt errada; dissolvendo a última, liberamos energias para o funcionamento da personalidade total (pp. 157- 160).
Uma importante gestalt aberta cria então compulsão de repetição, ossificação mental, rigidez de comportamentos, base do processo de transmissão transgeracional de conflitos, distúrbios, traumas, o qual existe como tentativa de o sistema autorregular-se, restaurar o funcionamento saudável de todo o campo familiar.
A Teoria da Transmissão Transgeracional de Boszormenyi-Nagy (2001) referese à herança psíquica arcaica do vivido em gerações passadas. O membro de uma família é um herdeiro de experiências passadas não conscientes, um transmissor de mensagens constitutivas da subjetividade individual e grupal, que lhe dá o lugar de portador de uma história familiar. Tais mensagens e vivências podem ser tanto nutritivas para o desenvolvimento do indivíduo quanto negativas, carregadas de dor, de forma que venha "atá-lo à história e demanda de outros, tornando-o prisioneiro" (Mandelbaum, 2007, p. 176) de um destino familiar. As gerações têm urgência de transmitir aquilo que não foi possível elaborar, representar ou pensar. E o que urge transmitir é referente ao traumático, ao danoso, ao excessivo, com a esperança de que as gerações seguintes possam transformar o evento intolerável em fenômeno passível de ser revelado, pensado e assim interrompido. "Quando o herdado é apenas acatado, sem elaboração, sem ligação, estamos no território da compulsão à repetição, da alienação. O herdado passa a ser, então, como um destino a cumprir" (Piva citado por Mandelbaum, 2007, p. 176).
Há um universo familiar a ser conhecido, uma dor familiar a ser descoberta e trazida à luz para que deixe de ecoar na mente dos membros familiares que estão por vir. A tarefa do terapeuta é, junto com a pessoa em sofrimento, clarificar o sentido do trauma e desvelar o segredo instituído sobre os assuntos inacabados e temidos da família que são perpetuados de geração a geração.
A DINÂMICA FAMILIAR DA CRIANÇA VITIMIZADA: QUE PAIS SÃO ESSES?
A violência sexual intrafamiliar é descrita como os atos abusivos de ofensa sexual cometidos contra a criança por pessoas que possuem grau de parentesco com a vítima, incluindo padrastos, tutores, pais, tios, primos e até irmãos. Nas palavras de Marques, Amparo e Faleiros (2008) trata-se de um relacionamento interpessoal sexualizado, privado, de dominação perversa, mantido em silêncio e segredo.
Os maiores índices de abuso sexual ocorrem dentro do próprio lar. Mais de 80% dos casos são registrados no âmbito intrafamiliar, sendo que 90% deles não deixam vestígios no corpo da vítima (Leite, 2009). Geralmente os agressores escolhem crianças menores de 7 anos, mais vulneráveis, para que elas não revelem o abuso, além daquelas que lhes parecem carentes afetivamente e que são zombadas (Lamour, 1997).
Amazarray e Koller (1998) apontam o incesto como o abuso mais frequente na sociedade brasileira, sendo o mais comum o que envolve pai ou padrasto e filha ou enteada. Segundo as autoras, a dinâmica familiar geralmente é disfuncional, apresentando problemas em relação a moral, a ética, a proteção, ao respeito, ao cuidado, e distúrbios emocionais nos pais (depressão, abuso de substâncias, agressividade marcante), os quais permanecem presos no passado, incapazes de lidar com os próprios problemas da infância e terminam projetando seus dramas infantis no próprio filho.
Serafim, Saffi, Rigonatti, Casoy e Barros (2009), em seus estudos sobre o perfil psicológico e comportamental de abusadores sexuais de criança, afirmam que os crimes sexuais não acontecem ao acaso. A maioria dos agressores sexuais age de maneira premeditada, planejando "o ataque" sobre a criança elegida. Inicialmente corteja, presenteia e seduz. Busca conversas frequentes com a criança, passa algum tempo em sua companhia, brinca e faz-lhe carinhos com toques corporais diversos para ir conhecendo suas reações. "Tudo vai acontecendo em um clima de intimidade e conluio" (Castanho, 2009, p. 55). O molestador convence a si mesmo de que a criança deseja se relacionar sexualmente com ele, ao projetar os pensamentos e sentimentos que tem por ela. Chega a interpretar a reação da vítima aos seus atos preparatórios e manipulatórios como resposta positiva aos seus desejos sexuais, acreditando que seu comportamento não causará dano algum à criança.
Quando a situação de abuso sexual intrafamiliar é revelada, ocorre uma implosão na família, tamanho o choque emocional sentido. A conduta reveladora faz eclodir sofrimento, medo, angústia, deixando todos em estado de vulnerabilidade e exposição. As repercussões da revelação dentro do sistema familiar decretam mudanças nas relações e interações e, muitas vezes, ocasionam rupturas do vínculo familiar.
Furniss (1993) discute sobre a possibilidade de o abuso sexual infantil ter a função de evitar ou regular conflitos de ordem conjugal e sexual. Os membros da família, quando sentem alguma ameaça que possa destruir a unidade familiar, ferir a alma da família, gerar o caos, agem protetoramente para restaurar o equilíbrio, a aliança, a organização do grupo familiar, realizando um processo de autorregulação do sistema, o que pode justificar o motivo pelo qual o abuso é geralmente mantido em segredo.
É comum encontrarmos, como características comportamentais das figuras parentais e da dinâmica familiar, a existência de violência doméstica, negligência psicológica, mãe ausente e passiva. Marques, Amparo e Faleiros (2008) complementam a observância no contexto familiar de: pai ou mãe abusado ou negligente em suas famílias de origem; pai ou mãe alcoolista; pai autoritário ou moralista; pais que acariciam demais seus filhos e exigem determinadas carícias; cônjuges com relacionamento sexual inadequado; filhas que desempenham papel de mãe, quando a própria mãe trabalha fora e passa tempo demais ausente de casa.
Nos vários casos de incesto, as mães vítimas de violência doméstica, cujas infâncias foram marcadas por violência, não conseguem perceber a situação de abuso vivida por seus filhos, por ainda estarem envolvidas emocionalmente com as próprias carências e dores sofridas quando criança. Experimentam uma cegueira parcial ligada à filha ou ao filho, funcionando como uma blindagem do trauma. Projetando-se na criança, a mãe nega enxergar as imagens das cenas aterrorizantes vividas.
Miller (1997) ilustra com clareza essas projeções ao se referir aos pais, que buscam o alívio da própria dor e frustração, por ainda carregarem sentimentos de fraquezas, fracassos, impotências e ódios, agindo inconscientemente, de forma destrutiva: "Podemos nos livrar das velhas feridas ao delegá-las ao próprio filho" (p. 74).
Na dinâmica familiar, ainda encontramos mulheres que optam pelo homem para si, em vez do pai para a vida familiar, relegando os filhos ao segundo plano. São inúmeras as situações em que fingem não ver as violências impingidas aos filhos e não escutar as denúncias e os pedidos de socorro. Devido à própria história na infância de negligência materna, algumas vezes a mãe empurra a filha para os braços do pai-homem (negando-se a exercer o papel de mulher sexualizada), ou senão disputa o lugar de mulher com a filha, criando uma relação de rivalidade, baseada na inveja e no ciúme, o que favorece a manutenção do ciclo perverso de violência sexual.
Há também as mães que entregam seus filhos aos cuidados de um amigo, com a confiança e esperança de que ocupará o lugar do pai ausente. Permite que o filho passe o final de semana com o amigo ou permaneça alguns períodos do dia em sua casa, que vai tornando-se íntimo e, aos poucos, o provedor da família (dá presentes e dinheiro para o sustento da criança). Diante desses benefícios obtidos, a mãe disfarça a cegueira para o crime de abuso em andamento, sinalizando o valor que dá à criança como corpo-objeto de troca.
Por outro lado, o pai ou padrasto abusador, ao tomar a criança em seu reino de fantasias, como objeto de desejo, perverso e proibido, revela questões conjugais mal resolvidas de ordem sexual e afetiva. Como homem com sua mulher, não se satisfaz com a relação adulta homem-mulher, não alcança o gozo pleno, por não exercer o poder absoluto, sádico, perverso que obtém ao molestar a criança. E quando violenta o filho-homem, desvenda seus desejos homossexuais, os quais são temidos, contudo, ao não conseguir reprimi-los, atua sobre o menor vulnerável e frágil.
Para Hellinger e Hovel (2007, p.121), "o abusador é alguém que, geralmente, tem medo de mulher e o medo é dissimulado pela violência" São homens que viveram a relação mãe-mulher, na infância, com sentimentos ambivalentes de perigo e grandeza, na qual experimentaram desproteção e ódio, tanto pela mãe passiva que apanhava do marido e não se defendia (e às vezes não intervinha para protegê-lo quando agredido), quanto por aquela mãe agressiva que o humilhava, depreciava e maltratava. Ao identificar-se com o agressor, sai da posição de vítima, assume poder sobre o outro, reconectando-se com os sentimentos de perigo e grandeza.
A ocorrência do abuso sexual intrafamiliar traz à existência relações disfuncionais na família com falhas no desempenho das funções parentais quanto a proteção, cuidado e amor. Os papéis exercidos muitas vezes são confusos e invertidos em algumas famílias, em que a filha atua como mãe, o filho protege a mãe das agressões do pai alcoolista, a mãe estabelece laços confluentes, de interdependência com o filho, o qual é conduzido para "uma situação de parentalização com ela, cujo processo é assumir um papel desfocado de seu verdadeiro lugar, em relação a outro membro da família" (Costa, Penso, Conceição, Junqueira, Meneses & Stroher, 2014, p. 138).
Cabe ao terapeuta fortalecer as fronteiras de contato, definir os papéis de cada um na organização familiar, enfatizar o princípio "amar é cuidar", com orientações comportamentais claras sobre contatos corporais, expressões afetivas carinhosas, responsabilidade quanto à segurança e bem-estar da criança, de modo que possam ocupar verdadeiramente o lugar de educadores e protetores.
A CRIANÇA VITIMIZADA: O CORPO TRAÍDO E A ALMA FERIDA
Nossos grandes dramas existenciais interpessoais ocorrem devido às interrupções do fluxo de amor, quer sejam por privações do amor, quer por rejeição, quer por exclusão, quer por abandono. Todo conflito psicológico emerge de um dilema psicológico entre o indivíduo e o campo ambiental. Em se tratando de violência sexual, ocorre um profundo bloqueio do sentimento do amor, com o qual é perdida a crença na capacidade de amar e ser amada. Segundo Salazar (2013, p. 164), "Todas as dores humanas são dores na alma e surgem do desamor que se vive ao não ser visto, ao não ser escutado, ao ser negado em um espaço relacional no qual a pessoa espera ser vista e ter presença na sua legitimidade".
As mulheres e homens que sofreram violência sexual na infância testemunham a dilacerante dor não cicatrizada. Ao longo de suas vidas, viram-se perdidos na imensidão do sofrimento, chegando a desejar a morte, como fim do tormento vivido. Blanchard (1996) descreve o processo psíquico desenvolvido pela criança após o corpo ser violentado e assim maculado:
Ter vivido um trauma físico e psicológico faz com que a vítima questione sua capacidade de defender-se. Ela aprende a odiar seu corpo porque ele a faz lembrar de más experiências. Ela tem respostas dissociadas, apresenta dificuldade de intimidade e é emocionalmente distante. Ela aprende que não pode controlar seu corpo e que outra pessoa pode tocá-la sem o seu consentimento. Ela não confia na sua memória, nos seus pensamentos e no seu senso de realidade. (p.7).
A criança carrega internamente uma constante sensação de ameaça e perigo, daí vem a dissociar o corpo da mente, realizando ajustamentos defensivos para aliviar sua imensa angústia, os quais produzem distorção do senso de eu, da percepção da realidade e da imagem corporal.
Onde há trauma, há dissociação, divisão, cisão. A dissociação corpo-mente corresponde à fragmentação da totalidade integrada da personalidade. É quando a organização da estrutura psíquica sentir-pensar-agir deixa de funcionar em conexão e coerentemente, o sentir é reprimido pelo pensar, causando uma ação inapropriada que impede a expressão original do indivíduo. Quando o indivíduo recorre à dissociação, inevitavelmente, empregará a dessensibilização de uma parte do corpo, como tentativa de expulsar a dor que se expressa.
Perls (1981) tratou a dessensibilização como uma forma de disfunção sensorial, um embotamento dos sentidos, uma "aniquilação mágica" (via corporal) de certos objetos ou experiências, em que a awareness é necessariamente evitada. Clarkson (1989) compreende a dessensibilização como uma necessidade de o indivíduo evitar experienciar a si mesmo e ao ambiente por meio da diluição e negligência de suas sensações físico-corporais e emoções, equivalendo a um estado de morte e anestesia do self. Furniss (1993) ilustra o funcionamento do processo de dessensibilização ao falar da criança que, para suportar o abuso, amortizou seu corpo: "Essa forma de defesa leva a estados alterados de consciência para desligar-se da dor. A criança finge sair do seu corpo, como se estivesse olhando à distância para a criança que está sofrendo o abuso" (p.26).
Em outro processo de dissociação, a criança pode desenvolver formas de mutilação em nome da sua sobrevivência psíquica. Incapaz de enfrentar o adulto em posição de igualdade, por ser superior, mais alto e forte, utiliza a retroflexão, como processo de defesa: faz a si aquilo que gostaria de fazer ao outro – mutilar, infligir dor. Perls, Hefferline e Goodman (1969/1997) explicam que na retroflexão as energias e ações são redirecionadas e voltam-se contra a própria personalidade e o próprio corpo, em razão do medo de ferir (destruir) ou ser ferido, podendo produzir enfermidades psicossomáticas. Segundo Polster e Polster (1979), a origem da retroflexão está relacionada a uma forma de contato parental baseada na ausência de cuidados e atenção às necessidades afetivoemocionais da criança que aprende a aliviar a si mesma, tendo como sentimentos principais a culpa e a necessidade de reformular as ações. Essa dinâmica defensiva explica o surgimento de diversas dores físicas, distúrbios corporais e sentimento de culpa presente na vida psíquica da criança.
Diante desse funcionamento mental e de sua pouca capacidade de elaboração, a criança fica confusa sem saber o que de fato acontece em seu corpo, sobre o que é certo ou errado e quanto a sua percepção de mundo e de si mesma. Penso e Neves (2008) expõem que "são as sensações sentidas pela criança no próprio corpo com o dito e o nãodito, que vêm do campo do outro, que formarão o fundo em que a figura de ter sido vítima de um abuso sexual irá se formar" (p. 137). Essa dificuldade na simbolização do ocorrido repercutirá negativamente na futura vida amorosa, no senso de eu, na autoestima, na relação com o corpo.
Yancey e Hansen (citados por Williams & Habigzang, 2014) apontam as desastrosas consequências para as vítimas de abuso sexual, como: sintomas depressivos e passividade em decorrência de sentimentos de culpa e vergonha; comportamentos agressivos e abuso de substâncias ilegais, fruto da raiva e indignação; sintomas de ansiedade, estresse pós-traumático e distúrbios da alimentação (anorexia, bulimia, obesidade). Eisenstein (2009) as complementa com sequelas físicas, cognitivas e sociais, tendo como destaque: alteração no peso, dores abdominais, dores de cabeça, cólicas, problemas menstruais, diminuição da capacidade de concentração, baixa no rendimento escolar, dificuldade nas relações íntimas com os colegas.
Quanto mais repetido for o abuso sexual na infância e, mais íntimo da família o agressor, maior o dano emocional. Quando o ofensor é o pai, mais a criança mergulha em um poço de emoções e sentimentos contraditórios de medo, culpa, raiva, desconfiança e prazer. Inicialmente, no intercurso do ato manipulatório abusivo, experimenta simultaneamente sensações de prazer e desprazer/dor, as quais confundem seu juízo crítico da realidade, despertam culpa e obscurecem seu discernimento quanto a ser amada ou desejada. A criança tem amor pelo pai, porém, passa a sentir medo e raiva com a repetição do ato abusivo, além de ansiedade pelo fato de ser incapaz de deixar a cena. O uso do corpo como objeto de prazer, pelo pai, institui o conflito entre amor e sexo, o qual pode levála, quando adulta, a crer que fazer sexo é sinônimo de obter o amor do outro. Ou pode "congelar" o corpo, especificamente, a parte genital, vindo a desenvolver aversão ao ato sexual. Como distúrbios psicológicos resultantes da violência, pode apresentar relações sadomasoquistas, frigidez, dispareunia, impotência.
Portanto, a criança que sofre violência sexual deve ser considerada em situação de risco, requerendo que os profissionais e familiares tomem medidas imediatas de proteção, denunciando o crime impetrado.
A SÍNDROME DE ACOMODAÇÃO DO ABUSO SEXUAL
Summit (1983), buscando elucidar o imenso conflito psicológico vivido pela criança vitimizada, elabora cinco categorias para descrever a síndrome de acomodação da violência sexual: o sigilo, o desamparo, o aprisionamento, a revelação tardia e a retratação. Trata-se de um conjunto de comportamentos desenvolvidos pela criança no intercurso da violência sexual para lidar com a experiência traumática intolerável.
O sigilo
O segredo é mantido devido às ameaças reais feitas. O sigilo é tanto fonte de medo, quanto de pseudossegurança, gerando sentimentos ambivalentes em relação ao fato abusivo. Ao mesmo tempo, em que protege a criança, deixa-a temerosa. O segredo torna-se negado e reprimido na família, transformando-se em segredo até mesmo para a própria criança. "Aqueles que conhecem o segredo tornam-se ansiosos, uma vez que temem constantemente a sua revelação e precisam controlar a direção das conversas, e aqueles que são mantidos fora do segredo, também se tornam ansiosos porque experienciam a tensão interpessoal que envolve o segredo" (Imber-Black citado por Oliveira & Negozio, 2013, p.197).
Muitas vezes as crianças não denunciam porque não foram acreditadas anteriormente ou por terem sido castigadas ao tentarem revelar. Os adultos que não acolhem a revelação do abuso agem em nome de proteger a família, o que acaba por desproteger a criança. É essa dinâmica de "proteção desprotetora" que cria o impedimento da capacidade de autoproteção dos membros familiares.
O desamparo
A incidência do abuso sexual na maioria dos casos é cometida por pessoas que deveriam proteger a criança. O sentimento de desamparo surge diante do não acolhimento da revelação por parte da mãe ou responsáveis. Assim a criança sofre um duplo trauma, no que tange à violência sexual perpetrada pelo pai: o evento traumático em si do abuso sexual e o do não reconhecimento do abuso por parte das figuras parentais significativas, que deveriam dar-lhe suporte. Diante disso, a criança vê-se tendo que se submeter aos atos abusivos. A criança, para suportar essa situação, pode fingir estar dormindo, puxar as cobertas e entrar no reino da fantasia, onde as cobertas adquirem poderes mágicos de aliviar o medo e a angústia. Esse fazer de conta retrata o ajustamento defensivo da deflexão cujo intuito é a evitação do contato e da consciência com uma situação de tensão, por meio de condutas evasivas, distraídas, alienadoras. Para Polster e Polster (1979), a deflexão é uma fuga ativa do contato com a realidade, uma forma de retirar "o calor" do contato real com o ambiente, desviando energia do objeto gerador de ansiedade.
O aprisionamento
Quando a criança é submetida a longos períodos de abuso sexual sem revelar a ninguém o segredo, ou quando tentou revelar e não recebeu a atenção devida e a proteção imediata esperada, a única opção que lhe resta é aprender a aceitar passivamente a situação. Para entender melhor o que está lhe acontecendo, procura conferir se a situação abusiva também ocorre com amigas da mesma faixa etária. Diante da negativa das outras, vai tomando consciência de que algo errado está ocorrendo entre ela e o pai. No entanto, é difícil para ela aceitar o fato abusivo, por ser intolerável pensar o pai como mau. Passa então a culpar-se pelo ocorrido e, como forma de reparação, torna-se "boazinha" para evitar punição e rejeição, recorrendo à proflexão. Para Crocker (1981) o processo de interrupção do contato da proflexão "é o fluxo de energia para fora (outro) com o objetivo de conseguir que o outro ou imite seu ato, ou responda de alguma forma desejada pelo self" (p. 26). Explica que as relações interpessoais do profletor apresentam certo tipo de mutualidade por acreditar que seu bem-estar depende da outra pessoa. Desse modo, a criança comporta-se para agradar o outro, assume a culpa pelo erro alheio, torna-se passiva, o que a fará sentirse frustrada em suas relações afetivas, esperando receber do outro o amor e a compreensão que não recebeu.
A revelação tardia
Muitas vítimas não revelam a violência sexual que sofrem ao longo dos anos. Geralmente a violência na infância é descoberta por terceiros (quando a criança revela à professora) é revelada mediante um conflito familiar (quando ocorrem discussões e brigas entre os pais). Na adolescência, vem a ser revelada devido à conquista do senso de autonomia que permite ao adolescente ter uma vida mais independente e de enfrentamento. Há casos revelados somente na vida adulta, o que traz significativos danos emocionais à pessoa na vida afetiva, social e sexual. Alguns, ao expor seu intenso sofrimento, queixam de não ter recebido o suporte e a compreensão do cônjuge, ao invés, sofreram rejeição e condenação.
A retratação
De acordo com Summit (1983), caso não haja uma intervenção eficaz frente à situação abusiva no momento da revelação, a vítima virá a se retratar, ou seja, a criança vêse compelida a voltar atrás na sua revelação, afirmando que mentiu quanto à situação abusiva. Dessa maneira, são reavivados os sentimentos de medo e culpa, recaindo novamente sobre a criança a responsabilidade de salvar ou destruir a família. Ela pensa sobre o afastamento do pai da família, do risco de o pai ser preso, a mãe acusá-la e rejeitála, os familiares a recriminarem e não aceitá-la mais como membro da família.
São esses os complexos processos de sofrimento psíquico vivido pela criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, a qual se percebe emaranhada nas tramas e nos dramas não resolvidos da família, anunciando o abuso como sintoma do sistema familiar.
O CAMINHO TERAPÊUTICO
O processo terapêutico com vítimas de violência sexual não é simples por envolver questões de ordem corporal, emocional, cognitiva, social e ambiental. Algumas famílias chegam com vergonha e constrangimento, resistindo a expor situações tão íntimas e dolorosas. A vulnerabilidade e a fragilidade da vítima e da família são centrais nos encontros terapêuticos, sendo importante o terapeuta agir com respeito, conhecimento e ciência, a fim de despertar a confiança de todos.
Quando o abuso ainda não foi revelado e a criança chega para avaliação por estar apresentando alguns sinais típicos de violência sexual (pedir estimulação sexual de outros, manifestar curiosidade sexual excessiva, colocar objetos no ânus ou na vagina, ter brincadeiras sexualizadas inapropriadas para a idade, expor os genitais) é fundamental que o terapeuta tome condutas protetivas e judiciais apropriadas. Conforme dito por Philippi (2010, p. 21), "precisamos estar informados dos marcos legais que envolvem a atuação profissional com crianças e adolescentes". Havendo suspeita e observando-se os sinais comportamentais na avaliação ou em terapia, o psicólogo deve agir conforme preconiza a Lei nº 8.069/90, artigo 13, do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças ou adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da 197 respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. (ECA, 2010, p. 15).
O terapeuta primeiramente deve sugerir que a família realize a denúncia, como meio de já promover a atenção e proteção da criança. Caso haja resistência por parte dos responsáveis, cabe ao profissional tomar a iniciativa em defesa da vítima. O que não pode ocorrer é o segredo de casa tornar-se também segredo de consultório, o terapeuta agir com temor e omissão.
O processo terapêutico deve incluir a família, sendo direcionado para oferecer apoio e orientação, de maneira a evidenciar a importância de os responsáveis ou a mãe realizar a denúncia para dar início à interrupção do ciclo abusivo transgeracional. É necessário o terapeuta trazer à consciência que proteger a família é desproteger a criança. Manter condutas de respeito à "sagrada família" não ajuda a romper o pacto nocivo do silêncio. O terapeuta poderá realizar sessões somente com os pais e/ou com cada pai individualmente, a fim de orientar sobre as consequências físicas, psicológicas, cognitivas do trauma, as condutas de proteção e cuidado, os limites no contato corporal, e ainda propiciar a reconexão com a própria criança ferida, cenas de sua infância, os padrões destrutivos dos pais, como oportunidade de se conhecerem e curarem.
Já a terapia com a criança deve ser conduzida para trazer-lhe consciência de seus medos, angústias e conflitos emocionais oriundos do abuso sofrido. O terapeuta poderá utilizar desenhos, pinturas, argila, histórias de animais com conteúdo de violência e rejeição; bonecos com órgãos genitais para serem manuseados livremente, intencionando promover a expressão de sentimentos bloqueados, pensamentos proibidos e ações reprimidas.
É importante realizar atividades para o contato com o segredo, a culpa, a raiva, o medo da punição e rejeição, por meio de histórias com fantoches, animais selvagens, livros. O terapeuta não precisa dramatizar a cena propriamente dita do abuso, pode utilizar esses recursos terapêuticos para reproduzir histórias de perseguição, traição, agressão. É mais fácil para a criança ver, observar, pensar, agir e interagir com os fantoches e animais do que entrar em contato direto com a cena intolerável, por meio de bonecos humanos ou conversa direcionada pelo terapeuta.
O trabalho de desculpabilização é fundamental, uma vez que culpa é angústia e, ao perdurar no mundo psíquico da criança, gera autocondenação, sentimentos de menosvalia, tristeza e impotência, os quais são base da formação da depressão. A criança, embora vítima, acaba por julgar-se culpada, responsável pelo crime, por todas as palavras de sedução e ameaças que ouviu do abusador e dos familiares que não acolheram sua denúncia e condenaram seus comportamentos. Por trás do sentimento de culpa, há muita raiva retrofletida e reprimida em relação à pessoa que é objeto de amor (o pai), gerando o conflito inconsciente do amor e ódio. A culpa tem origem na ambivalência da fantasia de destruir o objeto de amor, ao mesmo tempo em que ama o objeto, o que leva ao medo de sentir raiva e à necessidade de reparação/retratação.
A raiva, portanto, é uma emoção que merece a atenção do terapeuta no atendimento com crianças violentadas que se tornaram agressivas, tanto quanto com aquelas que se retraíram, intimidaram, tornaram-se passivas. O fato é que essas crianças perderam a habilidade de regular e expressar a raiva. Uma aprendeu a conter e esconder a raiva, como defesa contra as ameaças, repreensões e condenações sofridas. A outra extravasa a raiva para expressar sua indignação, revolta, intolerância com a situação de submissão, desamor, humilhação que vivenciou. O terapeuta deve propiciar experimentos com a energia agressiva cujo objetivo é fortalecer o eu para exercer o poder de oposição, discriminação e enfrentamento ao outro, necessário para a autoafirmação e autoaceitação. A criança precisa reconhecer, validar e se permitir expressar a raiva temida, com o suporte do terapeuta, para reorganizar a personalidade como uma totalidade integrada. Alice Miller confirma esse passo terapêutico: "No momento em que o ódio for finalmente vivenciado e percebido em sua legitimidade, ele acabará. Retornará apenas, e com razão, assim que houver novos motivos para tal" (p. 106).
Outro foco terapêutico é o trabalho corporal, posto que o corpo tornou-se fonte de tensão e temor. Realizar intervenções com experimentos sensório-corporais para desbloquear sensações, mobilizar emoções reprimidas e resgatar a conexão mente-corpo, por meio do manuseio da argila, de recursos artísticos (pintura, desenho), mímicas e movimentos expressivos corporais, é o fio condutor da terapia. A criança necessita entrar em contato com as imagens, fantasias e emoções, referentes ao drama vivido, para elaborar, compreender e dar novo significado à experiência traumática. O aprendizado e a conscientização só ocorrem por meio da experiência. "A criança só compreende bem aquilo que faz, aquilo que vive a partir do que vê, toca e experimenta" (Antony, 2012, p.48).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A criança vítima de violência sexual traz à tona o ciclo de abuso existente transgeracionalmente. A revelação é fundamental para a interrupção do segredo, do medo, do modo complacente de a família tolerar a dor. Os pais necessitam ocupar a função de proteção e cuidado na criação dos filhos para desobstruir o fluir do amor no sistema famíliar.
A Gestalt-Terapia possibilita que os membros de uma família tomem consciência da totalidade do sistema familiar presente e transgeracional, ao buscar elucidar as gestalten abertas que guardam feridas e retêm forças emocionais e mentais transmissoras de conflitos psicológicos, sintomas e patologias. As crianças são portadoras de uma história familiar com suas dores e virtudes. São partes que contribuem na manutenção ou transformação da identidade do todo em seus aspectos saudáveis e não saudáveis.
O gestaltista, conduzido pelo olhar holístico da abordagem, deve buscar a libertação da criança dos fardos e legados da família, para que não venha repetir a história de outros, para que não fique prisioneira dos dramas dos ancestrais e de seus pais, para que possa construir criativamente o próprio caminho, com confiança em ser capaz de amar e ser amada.
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Notas sobre as autoras:
Sheila Antony. Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Membro fundador e docente do Instituto de Gestalt-Terapia de Brasília (IGTB). E-mail: sheilagestalt@gmail.com.
Ediléia Menezes de Almeida. Especialista em Gestalt-Terapia pelo Instituto de Gestalt- Terapia de Brasília (IGTB). Servidora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT, Núcleo de Perícias Psiquiátricas. E-mail: edileiamenezesdf@gmail.com
Recebido: 11/04/2018
Aprovado: 04/07/2018