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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.10 no.3 Belém set./dez. 2018
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n03artigo40
ARTIGOS: DOSSIÊ "Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica na atualidade: conceitos e temas"
DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n03artigo40
Buytendijk e o fenômeno do primeiro sorriso na criança
Buytendijk and the phenomenon of the first smile in the child
Buytendijk y el fenómeno de la primera sonrisa en el niño
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
RESUMO
O artigo reconstitui, em linhas gerais, o texto da aula inaugural de F. J. J. Buytendijk ministrada, em 1947, na universidade de Nijmegen, sob o título O Primeiro Sorriso da Criança. O autor holandês reaviva esse acontecimento não só como uma das mais belas e singelas manifestações da experiência humana, já na primeira infância, mas sob um giro de análise fenomenológica, perspectiva a significação última desse gesto originário ao lado de outros aspectos ou de formas de sorriso. A tese conclusiva consiste em advogar que, mais que um simples "fato" a ser "explicado", o evento do primeiro sorriso se revela como um "fenômeno" a ser "compreendido".
Palavras-chave: Buytendijk; Fenômeno; Primeiro sorriso; Criança.
ABSTRACT
The article reconstructs, in general, the text of the inaugural lecture of F. J. J. Buytendijk ministered in 1947 at the University of Nijmegen, under the title The First Smile of the Child. The Dutch author revives this event not only as one of the most beautiful and pure manifestations of the human experience since early childhood, but in a turning phenomenological analysis perspective the ultimate significance of this gesture originating alongside other aspects or forms of smile.The conclusive thesis consists in advocating that, rather than a simple "fact" to be "explained", the event of the first smile reveals itself as a "phenomenon" to be "understood".
Keywords: Buytendijk; Phenomenon; First smile; Child.
RESUMEN
El artículo reconstituye, en líneas generales, el texto de la clase inaugural de F. J. J. Buytendijk ministrada, en 1947, en la universidad de Nijmegen, bajo el título La Primera Sonrisa del Niño. El autor holandés reaviva ese acontecimiento no sólo como una de las más bellas y sencillas manifestaciones de la experiencia humana, ya en la primera infancia, pero bajo un giro de análisis fenomenológico, perspectiva la significación última de ese gesto originario al lado de otros aspectos o formas de sonrisa. La tesis conclusiva consiste en abogar que, más que un simple "hecho" a ser "explicado", el evento de la primera sonrisa se revela como un "fenómeno" a ser "comprendido".
Palabras-clave: Buytendijk; Fenómeno; Primera sonrisa; Niño.
INTRODUÇÃO
Há um tema que passaria desapercebido pela psicologia infantil, ainda mais sob um sugestivo toque fenomenológico, se não fosse o fino olhar de dois mestres cujas obras impactaram, decisivamente, os estudos científicos que recobrem boa parte do século passado. Trata-se da questão relativa ao primeiro sorriso da criança abordada, respectivamente, por F. J. J. Buytendijk (1947/1988) e por Kurt Goldstein (1957/1971). Eles avivam, à luz de um debate multidisciplinar, o fenômeno sui generis desse germinal gesto como um evento que está longe de ser uma simples curiosidade psicológica.
A fim de melhor situar tal estado de questão, nossa atenção se debruçará, dessa vez, na memorável aula inaugural de Buytendijk pronunciada na universidade de Nijmegen, em 1947, com o título homônimo O Primeiro Sorriso da Criança. Para tanto, antes mesmo de reconstituirmos os passos principais da conferência, demarquemos, a seguir, seu escopo metodológico de cariz, em rigor, empírico-fenomenológico.
EMPIRIA E FENÔMENO: QUESTÃO DE MÉTODO
Como cientista, de orientação fenomenológica, Buytendijk é um autor que jamais permanece indiferente à práxis metodológica de suas pesquisas. É assim que o tema relativo à experiência do primeiro sorriso na criança recebe, pelas suas mãos, um cuidado teóricoprático todo especial. Ora, é com o mesmo esmero que Goldstein retrata o sentido e o alcance de seus estudos à medida que se intenta trazer à luz "[...] um acontecimento vivido, uma espécie de ‘visão’ no sentido de Gœthe, visão que não perde jamais contato com os fatos mais empíricos" (Goldstein, 1983, p. 313). Desse modo, se, de um lado, é verdade que Goldstein (1983) confere estatuto a essa "[...] aproximação a uma forma original do organismo (Urbild) [...]" (p.320), apostando, em sentido estrito, numa "[...] abordagem fenomenológicoontológica [...]" (Goldstein, 1971, p. 479), de outro, ele problematiza até que ponto podemos tomar tal análise com a mais absoluta exclusividade metódica no estudo dos fenômenos. Quanto a isso, reconhece, então, que não há melhor resposta senão a dada pelo próprio Buytendijk quando revisita Heidegger:
Mesmo que se considere o ser-com como "existencial", como a base ontológica de todo o entendimento, da empatia e do sentimento de unidade, não se deve ignorar o fato de que há também fenômenos como a percepção, o sentimento, a memória, a imaginação, etc., de modo que é próprio da tarefa da psicologia esclarecer o significado especial de cada um em vista do "encontro" (Buytendijk, 1948, p. 438).
É demarcando os limites da analítica existencial de Ser e Tempo (2012) que o mestre de Utrecht emplaca:
A menos que houvesse, pelas descobertas da ciência empírica, um recurso constante à evidência demonstrável dos fatos, a análise ontológica da existência humana ("Dasein") ter-se-ia perdido nas incertezas do fundamento, isto é, nas "opiniões" intuitivas imediatas que aparecem na forma de intuição eidética da essência sem que uma seja conhecida (Buytendijk, 1948, p. 438).
A questão metodológica está então posta, quer dizer, não se trata de negligenciar o alcance da abordagem fenomenológico-existencial, mas, sim, de promover um vínculo dialético com nossas vivências sem se desprender de sua significação efetivamente empírica. É preciso unificar, aqui, na esteira de Merleau-Ponty, o ontológico ao ôntico1. Ora, é tendo em vista essa aliança mais profícua que a psicologia pode, de maneira inequívoca, convergir com a fenomenologia, como volta a atestar Merleau-Ponty (2001, p. 451) ao comentar os trabalhos de Goldstein; convergência, aliás, que se estende igualmente à obra de Buytendijk.
Isto posto, passemos, doravante, a reconstituir, em seus traços mais gerais, os passos da conferência no sentido de situar seu verdadeiro núcleo hermenêutico em que o tema ganha peculiar vislumbre.
O PRIMEIRO SORRISO
Buytendijk nota, desde já, que a
[...] fenomenologia descobre que existe uma aliança secreta entre a corporeidade animal e a existência espiritual. Tal aliança está exclusivamente presente em cada função e expressão observável, mas nada é tão evidente como o movimento animal à medida que se torna a expressão do que há de mais humano no ser humano: a alegria de estar no mundo (Buytendijk, 1988, p. 15).
Estar no mundo apenas confirma essa "aliança secreta", qual seja, o elo intercorpóreo tanto animal quanto espiritual – o que só pode ser gratificante pelo sentimento de alegria que tal evento é capaz de revelar. Ora, um dos exemplos que melhor ilustra essa expressividade existencial é um fenômeno que, embora experienciado ao nível do senso comum, nem sempre mereceu, em geral, o devido reconhecimento dos teóricos da psicologia: o primeiro sorriso da criança. Sim, observa Buytendijk (1988), "[...] o primeiro sorriso do recémnascido já merece nossa atenção especial, porque este sorriso inicial nos confronta com um duplo mistério que deve ser sondado tanto do ponto de vista biológico quanto de um ponto de vista psicológico" (p. 15). Só por isso já "[...] valeria a pena estudar fenomenologicamente muitas formas de sorriso" (Buytendijk, 1988, p. 22). Por essa razão, "[...] o sorriso não é apenas uma expressão; ele é também uma resposta para a pessoa ou objeto em direção a quem o nosso coração está afetuosamente aberto" (Buytendijk, 1988, p. 18). Mais: não se trata de um fato biológico puro e simples, mas de um fenômeno que "[...] nos impele a investigar a sua origem e sua gênese, bem como o seu significado e o seu sentido" (Buytendijk, 1988, p. 15).
Isso posto, outras condições preliminares são requeridas, conforme dita Buytendijk (1988):
Se quisermos compreender a gênese da linguagem, do jogo ou da inteligência, precisamos chegar a uma compreensão acerca da natureza essencial desses fenômenos. Só então será possível ver como o estágio mais primitivo constitui o desenvolvimento precedente da última fase. Portanto, se quisermos considerar o sorriso como uma forma inicial do riso, então não é suficiente simplesmente observar como o primeiro fenômeno se transforma no segundo fenômeno. O ponto é que devemos ser capazes de ver como, nessa transformação, algo vem a ser diferente e ainda permanece, essencialmente, o mesmo. Além disso, para explicar a origem do sorriso não é suficiente estudar os fatores que o precedem, sejam eles psicológicos, tais como a alegria, ou fisiológicos, tal como a estimulação de certas partes do córtex (p. 15).
Essa abordagem, de princípio, já sugere um argumento decisivo. Qualquer interpretação puramente neurofisiológica, determinista ou causal se mostra insuficiente em face do fenômeno singular que é o primeiro sorriso na mais tenra infância. Aqui, tudo se passa como se Buytendijk postulasse o aspecto essencialmente hermenêutico desse acontecimento, já que, como ele próprio adverte, "[...] a alegria ou estimulação podem ser os antecedentes imediatos que dão origem ao sorriso, mas, para dizer que o sorriso é a consequência da alegria ou do estímulo, só faz sentido quando temos compreendido em que essa alegria ou essa estimulação consiste" (Buytendijk, 1988, p. 15). O que o cientista holandês foca, de maneira contundente, é a dimensão de sentido que recobre essa primacial experiência da criança.
Nessa direção, ainda, convém "[...] determinar qual é a natureza do organismo que é alegre ou estimulado, como um movimento funcional humano, que espécie de movimentos existem e, finalmente, como o sorriso é um ato expressivo e o que é que esse ato expressa" (Buytendijk, 1988, p. 15). Aqui, é claro, é necessário também ultrapassarmos a explicação darwinista2 radicada na genealogia da vida humana quando se trata de explicar os movimentos expressivos. É propriamente esse argumento antinaturalista que dá o devido alcance metódico da fenomenologia buytendijkiana em curso ou, como profere o conferencista holandês: "[...] se existe tal conexão inseparável entre uma função aparentemente independente de um organismo e seu significado, então é claro que podemos tentar compreender o seu significado a partir da maneira como ela aparece" (Buytendijk, 1988, p. 16). Isso coloca à psicologia uma dupla tarefa, como bem ajuíza Buytendijk (1988):
A chamada e o som do alarme de uma galinha, o balbucio de uma criança, o jogo de gatinhos, a inteligência de um rato ou de um macaco, tudo isso são expressões de seres vivos em que cada um tem um certo modo de ser no mundo, encontrando, nessa maneira de ser, a sua significação. Ao refletir fenomenologicamente sobre a aparência e a essência de um fenômeno, deve-se ter em vista que essa relação de significação tem que ser continuamente realizada. Dessa forma, deve-se tentar responder à questão acerca do que é a essência e a importância significativa de uma certa expressão, como o sorriso (p.16).
Já em face dessa primeira tarefa, não há, seguramente, como ignorar, em tais linhas, certo traço marcadamente heideggeriano. Estar ou ser-no-mundo é o horizonte desde onde se vislumbra o sentido último de cada um desses gestos, seja do comportamento animal, seja do humano. Cada ser manifesta uma maneira de existir ou de se exprimir, de forma que a essência do sorriso só se revela à luz dessa condição de realidade encarnada, existencialmente inscrita em cada estilo único e inconfundível. Em segundo lugar, Buytendijk chama a atenção para o seguinte aspecto:
Talvez se pudesse supor que a questão da essência e do significado do primeiro sorriso do recém-nascido fosse simplesmente respondida tendo como base o fato de que nós, adultos, também sorrimos. E, portanto, devesse ser capaz de dar conta da significação vivida do sorriso. Nós devemos ser capazes de dizer em que condições nós sorrimos e o que expressamos por eles (Buytendijk, 1988, p. 16).
A bem da verdade, a psicologia comparativa também adverte quanto ao fato de que os comportamentos observáveis dos animais, das crianças e dos adultos às vezes parecem semelhantes. Ora, um olhar mais atento mostra que eles são, em essência, muito diferentes. Se observarmos, por exemplo, uma piscadela de olho, é provável que sejamos persuadidos sobre o fato de que podem ser similares comportamentos como a ação reflexa de um hábito, de um gesto expressivo ou de um ato simbólico.
Por isso, visando uma compreensão mais adequada do fenômeno do primeiro sorriso na criança, duas razões ainda são levadas em conta com extremo cuidado por Buytendijk (1988):
Em primeiro lugar, é bem possível que, durante os primeiros meses após o nascimento, o impulso humano na criança ainda dorme em estado latente. No momento em que o primeiro sorriso aparece, a criança ainda pode funcionar em um estado não animalesco, mas que é, no entanto, uma existência fisiologicamente fechada; uma existência sem ainda uma vida interior. Se este for o caso, então não podemos realmente comparar o choro e o sorriso da criança com as nossas expressões adultas (p.16).
Em segundo lugar,
[...] precisamos ser cautelosos em nossa descrição porque os adultos podem sorrir por razões completamente diferentes e, possivelmente, podem ter perdido o sorriso infantil. A vida cotidiana nos mostra que podemos distinguir entre vários tipos de sorriso. Nenhuma outra expressão mímica assume uma ampla margem de sentimentos, estados de espírito e características pessoais. E nenhuma outra expressão mímica pode aparecer em tão variados tons e nuances. Por exemplo, nós conhecemos o real e o inautêntico sorriso, um sorriso que é reprimido, aberto, determinado, doloroso, desdenhoso, falso, zombeteiro, amargo, sarcástico, lamentável, inteligente, estúpido, bem-humorado, simpático, tímido, carinhoso, alegre, contente e feliz, para citar apenas alguns. Conhecemos o sorriso misterioso da Mona Lisa e o sorriso imóvel da máscara mortuária da desconhecida jovem do rio Sena (Desconhecida do Sena) (Buytendijk, 1988, p. 16-17).
Incorremos numa espécie de ilusão de ótica ou julgamos erroneamente que esses diferentes tipos de sorrisos são tão facilmente reconhecíveis ao ponto, inclusive, de identificar o sorriso da criança como um desses. O que Buytendijk parece evocar, à letra dessa passagem, é o caráter polissêmico da mímica e do gesto do riso, convidando o leitor a uma espécie de ensaio hermenêutico, haja vista que "[...] a maioria dos sorrisos só pode ser compreendida a partir do contexto em que o sorriso toma lugar" (Buytendijk, 1988, p. 17). Precisemos bem essa última passagem. Buytendijk alude à ideia de "contexto" ou, para empregar outra categoria inspirada na tradição fenomenológico-existencial: "situação". Desconsiderar esse pressuposto fundamental significa arbitrariamente baralhar as diferentes figuras nas quais o fenômeno do sorriso pode tomar forma. E, com isso, perdemos, de uma só vez, o essencial, que é o sorriso inicial da criança.
Buytendijk ainda empreende mais uma acurada sondagem. Ele segue rastreando, via a riqueza de outros exemplos (situações), a múltipla dimensão em que o sorriso se insere. Ilustra ele:
Antes, devemos aceitar o primeiro sorriso do bebê como uma expressão psicológica de alguma coisa – seja ela qual for – precisamos considerar se as contorções faciais envolvidas no sorriso não são processos fisiológicos que simplesmente só acidentalmente se parecem com o sorriso. As manifestações de pais e mães que afirmam ter presenciado um sorriso real não devem impedir-nos, assim como a manifestação dos amantes de cães não deve impedir-nos de questionar se os cães podem conhecer o sentimento de fidelidade e ciúme. (Buytendijk, 1988, p. 17).
Parece, saltar aos olhos, reconhece Buytendijk, que tais situações bem poderiam ser retratadas sob o prisma de uma teoria das emoções3. Assim, por exemplo, quando um papagaio diz "bom dia", o que se manifesta aí é, apenas, algo acusticamente similar ao mesmo cumprimento de um ser humano. De todo modo, em se tratando da experiência humana, só o primeiro sorriso da criança poderia ser aparentemente semelhante ao sorriso do adulto. Tal possibilidade deve ser seriamente considerada, porque os adultos também podem apresentar expressões mímicos que realmente não possuem o sentido que elas parecem enunciar. Como descreve Buytendijk (1988):
Toda excitação ou irritação de natureza não-específica é acompanhada por estímulos do sistema nervoso central, que, em seguida, envia uma avalanche de impulsos aos músculos faciais. Por exemplo, emoções fortes, como raiva, medo, choque ou alegria incontida podem produzir expressões físicas súbitas que diferem das emoções subjacentes às quais podem ser contingentes de certos fatores situacionais. Também podemos observar contorções faciais (como, por exemplo, o movimento da língua), quando uma criança está envolvida numa tarefa difícil, como a escrita (p. 17).
Buytendijk se pergunta se tudo isso seria o resultado visível de um processo fisiológico do sistema nervoso central!? Para tentar responder, ele evoca uma curiosa tese de Duchenne (1876), notável neurologista francês. É que esse autor havia demonstrado que uma estimulação do sistema nervoso facial com uma leve corrente elétrica pode facilmente produzir contrações dos músculos faciais que se assemelham completamente ao sorriso. Não apenas a boca exibe sinais de felicidade e contentamento, mesmo que os olhos participem no sorriso. Já Dumas (1937) chegou à conclusão, a partir de experimentos de Duchenne, de que cada estimulação leve tende a acomodar nos músculos faciais uma resposta semelhante ao sorriso. Ora,
Mesmo a estimulação de uma brisa fresca ou a aplicação de uma loção pós-barba no rosto pode induzir tal expressão. Da mesma forma, pode ser que a estimulação do álcool ou de uma boa refeição produza nos músculos faciais uma resposta expressiva de satisfação. Contra Dumas, alguém poderia objetar que algumas respostas faciais em tais situações se parecem mais como uma careta do que com um sorriso real, quando, portanto, uma pessoa está andando em uma tempestade de neve. Mesmo, contudo, se quisermos desconsiderar as sutis nuances na resposta mímica, precisamos perguntar o que exatamente deve ser entendido pelo termo "leve estimulação" e se existem características comuns que provoquem um efeito de sorriso-típico (Buytendijk, 1988, p. 17-18).
Buytendijk, acima, apoiando-se em observações empíricas, não deixa, mais uma vez, de perder de vista o elemento contextual. As várias expressões faciais, bem como as múltiplas formas de sorriso, possuem nuances próprias de certa mímica ou típica existencial. Para que, então, esse contexto ganhe luz, é preciso acercar-nos de outro fenômeno não menos importante, haja vista ser um dos conceitos mais trabalhados na obra do mestre holandês, a saber, a noção de encontro (cf. Buytendijk, 1952; Silva, 2014).
O ENCONTRO
Buytendijk também sinaliza, em sua palestra, que o fenômeno do encontro não redunda numa mera aparência ou percepção sensorial da presença de outra pessoa. Noutras palavras, a noção de encontro jamais é comparável aqui a certa colisão ou contiguidade espacial de corpos. Isso tudo até pode ser a pré-condição de um encontro, mas
[...] a essência do encontro consiste na descoberta de um "Tu" que se envolve comigo numa relação, por assim dizer, que entra no limiar da minha vida interior como algo revelador para mim próprio. Qualquer um que saiba o que significa o conceito de "pessoa" vai compreender como um encontro é pessoal e, portanto, um acontecimento existencial (Buytendijk, 1988, p. 18).
A dinâmica do encontro se revela, antes de tudo, como um "acontecimento existencial". Os movimentos vivos ou gestos, os júbilos e toda a luz que irradia com os olhos constituem expressões dessa simpatia radicada na existência concreta interpessoal. Eis aí a sua essência! Como bem retrata Buytendijk (1988), "[...] há muitas expressões de alegria. O sorriso, no entanto, não é apenas uma expressão, é também uma resposta para a pessoa ou objeto em direção a quem o nosso coração está afetuosamente aberto" (p.18).
Ora, fato é que essa abertura do afeto é reconhecida por Buytendijk sob outro conceito fenomenológico corolário: a noção de simpatia. Convém lembrar que essa noção foi uma categoria recorrente entre os teóricos da psicologia do século XIX, a ponto de, além de Scheler (1973) e de Edith Stein (2004), Husserl (1935/2017) reconstruir toda uma teoria crítica a respeito. Nessa perspectiva, chama atenção, por exemplo, a edição de um curioso manuscrito husserliano que data, originalmente, de 1935, em formato de apêndice, intitulado A Criança, a Primeira Empatia. O texto, além de ser traduzido na França, em 1993, acaba de receber uma versão vernácula aqui, no Brasil, em 2017. Examinemos, mesmo que brevemente.
EMPATIA, CRIANÇA
Husserl descreve, fenomenologicamente, a experiência empática da criança. Ele distingue duas dimensões da primeira infância. Inicialmente, há a "criança originária; primordial", na qual encontramos ainda a "criança dentro da carne materna" que já tem cinesteses e suas "coisas" por meio de uma "[...] mobilidade cinestésica, possuindo, pois, uma primordialidade se formando em estado originário" (Husserl, 2017, p. 375). A segunda dimensão é a da "criança real", ou seja, a do "recém-nascido". Nesse segundo quadro, o filósofo alemão passa a problematizar, perguntando: "[...] o bebê, como eu de seus dados, é constituído para si mesmo por estes dados tanto quanto é afetado por eles e pelos atos egoicos?" (Husserl, 2017, p. 375). Ora, volta a ilustrar o autor, o "[...] bebê já é um eu em um estado mais elevado, superior, que produz experiência; ele já adquiriu experiência desde sua existência na carne materna, ele já tem suas percepções com um horizonte de percepção" (Husserl, 2017, p. 375). A questão aqui a não perder de vista é a de que Husserl está trabalhando com um conceito fenomenológico capital, a noção de empatia (Einfühlung). Por isso, julga ele, nem toda relação é empática, pois, quando, por exemplo, a criança se dirige à mãe mediante um puro desejo de satisfação, não se pode reconhecer ainda aí, qualquer vínculo empático. Como, então, se transfiguraria a primeira empatia?
Husserl (2017) admite que existem "[...] dificuldades em compreender quando ela ocorre, mesmo depois que a carne já é constituída como um órgão" (p. 376). Um de seus comentadores, o francês Toulemont (1962), por seu turno, situa a empatia num segundo estágio, em que temos a criança "mundana", isto é, propriamente "humana", diversa do primeiro estágio supramencionado em que se circunscreve o recém-nascido. O que Husserl (2017) reconhece é que:
Eu tenho o outro em meu modo de aparição; sua carne como corpo me aparece no horizonte dos modos primordiais de aparição, como substrato da empatia (Einfühlung), na qual o mesmo corpo aparece ao outro em seus modos particulares de doação como carne e como órgão. Mais longe: o outro tem um mundo circundante dentro de seus modos de aparição, aí se compreende o eu como dentro de seu campo, e aparecendo em meus modos de consciência dele; ora, tudo é incluído nesses modos de consciência, o que eu disse dele é como que se incluísse em sua consciência (p. 377).
Essas passagens, acima em destaque, não deixam, por um lado, de escamotear o idealismo fenomenológico do autor como pano de fundo, mas, por outro, como bem entrevira Merleau-Ponty (1960), acenam para algo significativamente decisivo: o fenômeno da intersubjetividade carnal. Husserl, nesse fragmento, confere todo um acento fenomenológico à primeira experiência infantil; experiência essa que já anuncia certa práxis, certa fluidez do comportamento corporal. É bem provável que nem Buytendijk, nem Goldstein conheceram esse manuscrito; no entanto, no caso desse último, vale transcrever, a seguir, essa longa, mas instrutiva observação:
O nascimento modifica, essencialmente, a situação da criança. A unidade básica entre mãe e filho é rompida. Logo, em seguida, ocorre um comportamento desordenado ou catastrófico, provavelmente relacionado com sentimentos de tensão e angústia. Em grande medida, a criança normal retorna brevemente num estado ordenado; ela dorme a maior parte do tempo e, uma vez acordada, não parece estar tão perturbada. Desde o aparecimento precoce do sorriso, podemos supor que uma nova adequação está se elaborando. Por um lado, este é o efeito de novas relações corporais entre a mãe e a criança que se desenvolvem, desenvolvem,
especificamente, a partir das expressões de amor por parte da mãe. Por outro lado, isto é o efeito de vários mecanismos inatos que são postos em movimento por novos estímulos permitindo o organismo reagir, de forma adequada, frente à situação perigosa. [...]. Não há dúvida, contudo, de que, neste período, as experiências não representam um "mundo" em torno da criança, nem, ainda, se postula aí a existência de um "ego" ou de um "mundo externo" (Goldstein, 1971, p. 475).
Ao desenvolver essa rica análise, Goldstein parece estar se posicionando não só contra certo psicologismo dominante, mas, inclusive, para além ainda de Husserl ou até mesmo de Scheler, fontes das quais, como se sabe, Goldstein (1983) foi um implacável crítico. É Goldstein quem, de imediato, observa que o sorriso primordial do recém-nascido junto à mãe fora muitas vezes interpretado como uma forma de encontro simpático entre o bebê e outra pessoa. Ora, julga ele: "[...] nossa análise do fenômeno não nos permite assumir isso" (Goldstein, 1971, p. 478-479). O ponto nevrálgico aqui, uma vez posto em termos goldsteinianos, reside precisamente nas teorias psicológicas que, grosso modo, partem da ideia de que o conhecimento intersubjetivo se opera por meio de uma relação puramente analógica, ou, se quiser, "simpática". Trata-se, amiúde, de uma constatação factual na qual alguém apenas percebe afetivamente os sentimentos do outro sem, no entanto, implicar uma verdadeira participação em sua existência pessoal. O problema dessa análise é que ela se radica num falso pressuposto, qual seja, a alusão a certa dependência e passividade em meio aos estados vivenciados por outrem.
Seja como for, essa crítica talvez pareça se dirigir, até de maneira velada, contra Buytendijk, cujo texto aqui analisado era de pleno conhecimento de Goldstein. De todo modo, não se pode perder de vista o que exatamente Buytendijk objetiva quando fala em simpatia. Desde cedo, ele parece emancipar outra hermenêutica acerca desse conceito cuja dinâmica mantém considerável reserva com qualquer modelo de explicação subjetivista ou idealista. Ao dar vazão a esse acontecimento originário, o pensador holandês não está tão somente descrevendo o estatuto fenomenológico que a experiência do encontro institui, mas preparando, desde já, um terreno a fim de melhor situar novamente o nosso tema aqui em voga: a vivência do primeiro sorriso na criança.
A HERMENÊUTICA DO PRIMEIRO SORRISO
É o lastro propriamente hermenêutico do primeiro sorriso que importa na experiência infantil. Esse lastro, não percamos de vista, é, fenomenologicamente, contextual. Por isso, Buytendijk insiste num ponto capital: o de que a experiência vivida se revela, em sentido primordial, em nosso ser ou estar no mundo, quer dizer, na condição mesma de um "[...] corpo vivido como um meio para agir e se expressar" (Buytendijk, 1988, p. 19).É nessa perspectiva que Gregory (1924) nota que "[...] o riso não é um ato como um golpe é um ato de raiva ou como voo é um ato de medo. Também não é, propriamente falando, um ato de aceitação" (p.61). Mais: "O riso simplesmente mantém seus lados e risadas, o riso é uma ação suspensa" (Gregory, 1924, p. 158). Isso porque, em certos aspectos, "[...] o riso se torna um prazer de relaxamento, uma explosão, e exuberância" (Buytendijk, 1988, p. 19). É ainda verdade que "[...] o sorriso externa um dia ensolarado, uma entrega silenciosa via um alargamento da face, pela expressão dos olhos, e pelos lábios fechados, isto é, tudo o que o encontro contém como possibilidade" (Buytendijk, 1988, p. 19).
É sob essa perspectiva que Buytendijk traz à baila outro conceito nuclear de sua pesquisa: a categoria de jogo. Ele mostra que o equilíbrio flutuante do gesto do sorriso se relaciona à maneira de uma situação lúdica. Assim como o jogo é sempre um jogo com algo que também joga como jogador (Buytendijk, 1935), também encontraremos alguém que simplesmente nos encontra. Ora, observa nosso autor, há, na experiência lúdica,
[...] a mesma reciprocidade de antecipação de alegria que se reflete no sorriso. O ser humano é uma fonte inesgotável de felicidade a fim de explorar o poder de afeição simpática e, portanto, vemos o sorriso mútuo como a mais convincente expressão do amor puro. Ora, não é esse o significado de muitos ícones de sorriso como o do puro amor maternal da Santa Mãe que responde ao nosso sorriso de criança com a expectativa de um encontro? (Buytendijk, 1988, p. 19).
Buytendijk, ao mesmo tempo, reconhece que a estimulação que nos toca pessoalmente sempre possui um caráter qualitativo. "Assim", examina ele,
[...] quando dizemos que a estimulação é ‘leve’, queremos então dizer que não só é quantitativamente pequena, mas também que ela deve ser mantida sob controle em relação a outra coisa. Esse "algo mais" é o que experienciamos como antecipação do encontro. Nós notamos então que, na menor alegria, no contentamento do momento, há uma enorme alegria futura sem saber, no entanto, como isso pode ser cumprido. É por isso que o "estímulo leve", que nos faz sorrir, é realmente ambivalente – ele relaciona-se à timidez que também nos faz sorrir facilmente. Ainda mais claro é o caráter de uma "estimulação suave" na segunda situação típica que mencionei: quando alguém ameaça fazer cócegas. Todo mundo sabe que não podemos deixar de sorrir em uma situação como essa – e que o sorriso geralmente se transforma numa espécie de riso, risadinha ou gargalhada, quando a ameaça de fazer cócegas se transforma em realidade (Buytendijk, 1988, p. 19-20).
Buytendijk não deixa ainda de observar algo essencial acerca desse último estímulo, o das cócegas. Tal sensação pode bem sugerir uma situação ambivalente contendo elementos de prazer e de desprazer, ou incitando um jogo de recurso e de repulsão, de desejo e de repulsa, conforme Plessner (1941) havia demonstrado. Ademais, para além dessas variadas situações, não escapa à lente de Buytendijk o fenômeno da carícia, momento em que somos forçados, por assim dizer, a sorrir. É claro, avalia ele, que há uma diferença entre o sorriso do encontro amigável e o sorriso relativo à antecipação de ser agradado. Fato é que um mesmo caráter de ambivalência também se mostra presente nesse mesmo quadro contextual:
Este caráter de ambivalência já está presente na ligeira estimulação da pele, por exemplo, na bochecha ou no queixo, que tão facilmente cria um sorriso na jovem criança. Nós chamamos isso de "carícia". A carícia é mais superficial do que fazer cócegas, mas ambos possuem uma qualidade motora definitiva. A carícia deve ser distinguida da coceira, que provoca uma reação mais localizada de arranhamento. Experimentamos mesmo um leve acariciamento da mão de alguém como uma afeição que nos envolve totalmente, isto é, que nos toca pessoalmente, mas a que não sabemos como responder e, portanto, muitas vezes nos leva a um estado de timidez ou modéstia. Portanto, podemos qualificar melhor acariciando e fazendo cócegas como uma "timidez sensorial" (Buytendijk, 1988, p. 20-21).
Buytendijk descreve essa "timidez" como uma condição igualmente ambivalente a que estamos sujeitos, afetando, pois, a nossa própria existência. Ele reconhece as várias condições existenciais que tal comportamento manifesta. É o que constata:
A fim de experimentar a timidez, várias condições existenciais, entretanto, devem ser atendidas. Estas condições só podem ser descritas negativamente: não podemos ser retirados da situação ou de nós mesmos; não podemos ser intencionalmente ativos; não podemos estar dormindo, distraídos ou preocupados. Essas mesmas pré-condições devem ser cumpridas para que os afetos e os modos de existência relacionados à timidez sejam possíveis (como no jogo, em fazer cócegas ou na experiência de um encontro amigável) (Buytendijk, 1988, p. 21).
É levando em conta essa condição inalienável, argumenta ele, que Agora compreendemos porque o bebê atinge uma idade em que ele ou ela pode ficar silenciosamente acordado sem estar com fome, sono ou descansar menos. Só, então, o primeiro sorriso pode aparecer. Somente quando a criança existe em um estágio neutro, o não-envolvimento flutuante e lábil constitui a timidez sensorial e sua resposta possível. Em seguida, a criança pode sorrir e levemente corar (uma expressão típica de timidez) quando ele ou ela está sendo agitada, ou está ouvindo os sons de tá-ta-tá, ou quando a criança sente um aperto incerto sob o braços, ou ainda é abordada pelo rosto amigável da mãe ou do pai. Ora, por que o rosto humano reage com um sorriso em estimulação tão leve? (Buytendijk, 1988, p. 21).
Para dar conta dessa questão, Buytendijk se reporta, novamente, ao trabalho de Duchenne (1876), que mostrou que o sorriso aparece (e não qualquer reação fisiológica) quando o rosto ou o corpo é estimulado (pelo frio, pela brisa, por cócegas, etc.). É, pois, evidente que o rosto humano reage mais facilmente com a imagem de um sorriso ou de uma careta do que com qualquer outra resposta facial-muscular fisiológica. Assim, no caso, em especial, "[...] da criança muito nova, podemos observar diretamente como o sorriso aparece com facilidade, enquanto chora, o que, em contraste, parece exigir um esforço" (Buytendijk, 1988, p. 21). O mesmo podemos reconhecer à luz de nossa própria experiência vivida.
Ao evocar todas essas situações, Buytendijk alude agora à atmosfera de bemestar lábil e calma como pré-condição do primeiro sorriso. Trata-se de um sentimento de plenitude e silencioso que a criança experiencia de maneira radiante. Não se trata, pois, de um estado completamente passivo ou repousante como na vivência onírica, mas, sim, de uma atitude autônoma e ativa que enseja uma relação determinada com o mundo (Buytendijk, 1938). Assim, a natureza dessa autonomia em muito se assemelha ao estado de uma sessão tranquila ou de uma caminhada em silêncio. É comum assistirmos o bebê silenciosamente ali acordado e observando seu mundo. Nesse estado de repouso, há uma certa qualidade tonal muscular distribuída pelo corpo que se insere, desde já, numa condição ou situação existencial, isto é, de ser ou de se sentir no mundo. O que o sorriso revela é um paradoxo:
A natureza paradoxal do sorriso consiste em revelar uma ativação de certos músculos faciais que, no entanto, são experienciados como o início de um estado relaxado, ativo e repousante. Assim, o sorriso é a expressão de uma situação limite, de uma explosão de exuberância ainda a ser contida, de um fechamento que se abre, de um sentimento imanente de bem-estar, auto-satisfeito bem como de uma alegria antecipada que transcende tudo. No sorriso há a experiência de instabilidade, cintilação e brilho que é característica de toda alegria, e também há a sensação de estabilidade, permanência e fechamento que é característico do repouso (Buytendijk, 1988, p. 22).
Tal paradoxo acerca do sorriso joga com aquilo que é bem característico da existência humana: sua versatilidade ou plasticidade constitutiva. O paradoxo traduz a riqueza incomensurável dessa experiência, aliás, atestada epistemicamente por Buytendijk (1988):
Vale a pena estudar fenomenologicamente as muitas formas de sorrir. Esse conhecimento pode ser útil para aqueles que estão envolvidos pedagogicamente com crianças ou adultos. Isso ampliaria nossa compreensão da subjetividade acerca de outra pessoa e quais possíveis relações educacionais ou diagnósticas podem ser apropriadas em uma situação particular. Aqui, porém, estamos restritos em considerar a natureza do primeiro sorriso da criança, e eu sinto que este é o momento em que podemos articular ainda mais qual é a essência e significado do primeiro sorriso (p.22).
Tal sentido e essência passam, então, a ser definidos, pelo autor, nos seguintes termos:
O sorriso é a expressão de uma qualidade emergente de humanidade no primeiro encontro hesitante e simpático e, portanto, é uma resposta na qual um sentimento de auto-ser está sendo constituído. Isto, todavia, é também o desabrochamento de uma consciência de um ser tímido consigo mesmo, ainda mais agora que essa criança pequena entra como um ego vital no limiar da unidade tenra com o outro. Isso acontece quando a criança está sendo chamada pela mãe que é a matriz do amor puro (Buytendijk, 1988, p. 23).
Buytendijk ainda corrobora sua tese de sempre:
A criança revela sua natureza humana através do sorriso. Trata-se da criança que se move movendo-se enquanto ainda está presa nas restrições involuntárias do organismo, mas que depois o supera no sorriso. Trata-se, ainda, da criança que está presa no fluxo da inconsciência, mas que logo após a supera pela participação ôntica na consciência despertadora de uma segurança sentida. Ora, algo desperta na criança de um sono, como um pássaro que acorda pela manhã, brotando de seu interior profundo e irradiando como uma lembrança dessa origem e como um sinal de certo destino (Buytendijk, 1988, p. 23).
Uma vez postas tais análises, o cientista holandês volta a alfinetar os psicólogos de então:
A linguagem e a teoria da psicologia contêm muitas referências acerca dessas compreensões, mas a psicologia não sabe o que fazer com os significados ocultos apreendidos na terminologia de "sentimentos", "expressões", "atividades inatas", "estimulações musculares", "excitações moderadas" e, assim, por diante. Tudo isso só se torna transparente à luz da existência de seres humanos (Buytendijk, 1988, p. 23).
Mais uma vez, essa crítica de inspiração existencial põe em relevo o estatuto fenomenológico da obra clínica de Buytendijk. Ele encerra sua palestra recitando duas passagens literárias, uma de Frederik van Eeden e a outra de Virgílio. Privilegiaremos, aqui, a segunda, talvez a mais memorável, contida nos seguintes versos 60-63 da IV Bucólica do poeta romano: "Vem, menino: aquele a quem os pais não riram, de deus não mereceu mesa, ou leito de deusa" (Virgílio, 2005, p. 45). Em seguida, ao se dirigir à criança, retrata ainda Virgílio (2005): "Vem, menino, conhece a mãe pelo sorriso (nove meses de fado a tua mãe sofreu)" (p.45). Ora, Buytendijk ensaia uma interpretação própria desse evento. Ele admite que
[...] uma leitura mais existencial não seria, por princípio, inapropriada, no sentido de significar que a criança "começa a vir sendo" ao reconhecer a sua mãe com um primeiro sorriso. O contexto deixa claro que o que Virgílio está falando é o reconhecimento que a criança (embora seja um bebê masculino) deve a seus pais, em particular, a sua mãe (Buytendijk, 1988, p. 23).
Seguramente, por um lado, o episódio virgiliano parece suficientemente ilustrativo no sentido de reavivar o espírito de espera, a expectativa mesma relativa às profecias que tradicionalmente eram feitas por ocasião do futuro do recém-nascido. Nessa perspectiva, "[...] o nascimento da criança é saudado como um evento que promete uma vida feliz para ela. A expectativa criada em torno do gesto recíproco desse ‘primeiro sorriso’ sela o reconhecimento e a esperança de prosperidade e de felicidade" (Silva, 2015, p. 144). Isso, porém, não é tudo. Como bem sugere Buytendijk, há um contexto aí a ser interpretado, ou, se se quiser, uma "estrutura do sentido" (Silva, 2012) em jogo. Tal contexto assume um caráter existencial, fenomenológico, por princípio. É assim que, em A Gênese Psicológica do Espírito Materno, o pensador holandês nota que há "[...] o solo de uma coexistência original pela qual um mundo se abre e começa a existir" (Buytendijk, 2017, p. 112). Esse solo tem na figura da mãe uma experiência realmente única, singular, à medida em que aí se dá, em sentido próprio, a formação da gênese do espírito materno. Pois bem: a emoção do primeiro sorriso da criança encontra, nessa umbilical experiência, um assentamento decisivo, como bem volta a ilustrar Goldstein (1971):
Por uma questão de fato, o primeiro sorriso não é tão somente um fenômeno, não é um simples mecanismo inato, um conjunto passando por uma configuração de estímulo isolado tal como já descrito antes. Ele é, como todo comportamento organísmico, uma atividade num domínio "ambiente-organismo". O que chamamos de comportamento infantil é apenas uma parte artificialmente separada de uma entidade que compreende, no nosso caso, a unidade entre a criança e os seres humanos ao seu redor, especialmente, a mãe (p.478).
Na mesma linha de Buytendijk, Goldstein atesta, em primeiro plano, a figura da mãe como copartícipe dessa originária vivência. É sob esse prisma que, em termos buytendijkianos, a primeira experiência do sorriso, genuinamente intersubjetiva, aponta para aquele duplo mistério antes entrevisto, tanto biológico quanto psicológico. O alcance fenomenológico aí está presente nessa intersecção viva ou dialética especialmente singular.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao pôr em exame a emblemática conferência de Buytendijk, pretendemos, à guisa de conclusão, extrair, ao menos, um saldo significativo. Este diz respeito à originalidade da abordagem. Com um olhar extremamente refinado, o autor assenta, sem perder o rigor, um contributo epistemológico e fenomenológico altamente propositivo. O que a experiência do primeiro sorriso na criança revela é que, mais um simples fato a ser explicado, se trata de um fenômeno a ser compreendido. Buytendijk mostra que esse acontecimento, por mais aparentemente banal que seja, pode despertar ainda um vivo interesse pedagógico. Tal evento exige, tanto do cientista quanto do filósofo, outro olhar no sentido de vislumbrar um horizonte da experiência humana até então enublado pelos métodos canonicamente consagrados pela psicologia clássica. O texto do mestre holandês pode ser visto, sob esse prisma, como um manifesto de resistência e, ao mesmo tempo, um convite de conversão à própria práxis científica.
Nisso reside o seu valor, não só metodológico, mas igualmente teórico, como abordagem cultural tomada em sentido amplo na qual a literatura ou a poesia, por exemplo, revivem em prosa e verso.
Referências
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Nota sobre o autor
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva. Doutor pela UFSCar (2007), Mestre pela UNICAMP (2000) com Pós-Doutorado pela Université Paris I - PANTHÉON-SORBONNE (2011-2012) na área de Filosofia. Graduado pelo IFA (1990) e pela UNIOESTE (1994). Docente e Orientador nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado) de Filosofia. E-mail: cafsilva@uol.com.br
Recebido: 27/02/2018
Aprovado: 20/07/2018
1 A nosso ver, essa perspectiva mais aberta e, portanto, mais fecunda, é retomada por Merleau-Ponty (1964, p. 319) quando põe em xeque o tema heideggeriano da diferença ontológica: "[...] não há nenhuma diferença absoluta" – assevera ele – "entre o transcendental e o empírico, o ontológico e o ôntico" (Cf. também Silva, 2017).
2 Cf. Darwin (2009).
3 É o jovem Sartre (1939) quem dedicou um importante ensaio ao tema, via uma abordagem fenomenológica, na contramão de uma leitura puramente naturalista, hegemônica na literatura.