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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.11 no.1 Belém jan./abr. 2019
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº01artigo42
Artigo
DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº01artigo42
A naturalização da experiência na atenção à saúde mental: uma questão epistemológica
The naturalization of experience in mental health care: an epistemological issue
La naturalización de la experiencia en la atención de la salud mental: una cuestión epistemológica
Mariana Cardoso PuchivailoI; Ileno Izídio da CostaI; Adriano Furtado HolandaII
I Universidade de Brasília
II Universidade Federal do Paraná
RESUMO
O artigo partiu de uma experiência de campo de Doutorado realizada em um CAPS III de Curitiba, para refletir sobre as práticas em saúde mental atuais e seus desafios, num diálogo entre história, epistemologia e antropologia. A abordagem da pesquisa foi qualitativa, descritiva, realizada a partir de uma experiência de campo que utilizou diário de campo e entrevistas. Notou-se a centralidade do cuidado no indivíduo, deixando de lado muitas vezes suas redes sociais e familiares, e a primazia do uso de medicamentos como terapêutica central. Percebe-se diante desta experiência que a construção do conceito de doença é realizada a partir de uma epistemologia naturalista, obedecendo a uma lógica reducionista, explicativa e causalista. Retoma-se a importância de uma visão crítica e reflexiva a respeito dos fundamentos epistemológicos que direcionam nossas práticas. Apresenta-se a fenomenologia como possível alternativa epistemológica que pode auxiliar em uma compreensão mais complexa a respeito dos fenômenos psicopatológicos.
Palavras-chave: Saúde Mental; Epistemologia; História; Antropologia; Fenomenologia.
ABSTRACT
The article was based on a PhD field experience at a CAPS III in Curitiba, to reflect on current mental health practices and their challenges, in a dialogue between history, epistemology and anthropology. The research approach was qualitative, descriptive, based on a field experience that used field diary and interviews. The centrality of care in the individual was noted often leaving aside their social and family networks, and a primary use of medicines as central therapy. It can be seen from this experience that the construction of the concept of disease is carried out from a naturalist epistemology, obeying a reductionist, explanatory and causal logic. The importance of a critical and reflexive view of the epistemological foundations that guide our practices is taken up.Phenomenology is presented as a possible epistemological alternative that can aid in a more complex understanding of psychopathological phenomena
Keywords: Mental health; Epistemology; History; Anthropology; Phenomenology.
RESUMEN
El artículo partió de una experiencia de campo de Doctorado realizada en un CAPS III de Curitiba, para reflexionar sobre las prácticas en salud mental actuales y sus desafíos, en un diálogo entre historia, epistemología y antropología. El enfoque de la investigación fue cualitativo, descriptivo, realizado a partir de una experiencia de campo que utilizó diario de campo y entrevistas. Se notó la centralidad del cuidado en el individuo, dejando de lado muchas veces sus redes sociales y familiares, y la primacía del uso de medicamentos como terapéutica central. Se percibe ante esta experiencia que la construcción del concepto de enfermedad se realiza a partir de una epistemología naturalista, obedeciendo a una lógica reduccionista, explicativa y causalista. Se retoma la importancia de una visión crítica y reflexiva acerca de los fundamentos epistemológicos que orientan nuestras prácticas. Se presenta la fenomenología como posible alternativa epistemológica que puede auxiliar en una comprensión más compleja acerca de los fenómenos psicopatológicos.
Palabras-clave: Salud Mental; Epistemología; Historia; Antropología; Fenomenología
INTRODUÇÃO
Os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) funcionam? A RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) é eficaz? A Reforma Psiquiátrica deu certo? Essas são questões levantadas por diversos profissionais e pesquisadores, bem como pelos usuários do SUS (Sistema Único de Saúde). É importante salientar que o movimento da Reforma Psiquiátrica é uma construção histórica, realizada por muitos sujeitos e grupos, por diferentes pensamentos e em transformação, e como tal precisa ser constantemente repensada (Amarante e Cruz, 2008; Jardim e Dimenstein, 2007; Dias, 2013).
Podemos observar que, tanto nas regulamentações oficiais quanto nas reflexões construídas pelos autores que fundamentam a Reforma Psiquiátrica Brasileira, há uma tentativa de desconstrução de um modelo naturalista, biologicista, focado no poder do médico e centralizado no hospital. O modelo questionado é constituído a partir da concepção de "doença mental" do século XIX e de uma concepção de ciência centrada na cura – e, portanto, em terapêuticas – e na supressão dos sintomas (Foucault, 1978). É a partir dessas críticas que surge a tentativa de desinstitucionalização do lugar da loucura. Mas será que esta desconstrução, as novas propostas de compreensão e atenção à saúde mental chegam à prática cotidiana desses equipamentos? A partir de uma experiência em um CAPS III de Curitiba pudemos observar um pouco desse cotidiano, através de um equipamento referência em saúde mental dentro da RAPS. Buscamos durante essa investigação compreender melhor os entendimentos e ações que atravessavam as práticas ofertadas neste serviço.
MÉTODO
Esse artigo está vinculado a uma pesquisa de doutorado realizada no período de 2015 a 2017 (Protocolo CAAE 59367816.5.0000.0030), que propôs atendimentos às primeiras crises do tipo psicóticas (PCTP). Nesses dois anos, foi possível refletir para além do atendimento, configurando um questionamento sobre o funcionamento da própria RAPS. A abordagem dessa pesquisa é qualitativa, descritiva, com coleta de dados a partir de uma experiência de campo (diário de campo e entrevistas com usuários e profissionais do CAPS). Participaram da pesquisa dois psicólogos do CAPS, cinco pessoas em primeiras crises, com quatorze familiares envolvidos, totalizando 21 participantes.
A experiência de campo iniciou na forma de um grupo semanal de estudos e debate de casos, em abril de 2015, junto aos profissionais interessados no tema de PCTP. Este grupo durou até o primeiro semestre de 2017. Diversos profissionais do CAPS (enfermagem, psicologia, terapia ocupacional e do coordenador do CAPS) passaram pelo grupo, alguns com participações mais breves, outros com participações mais duradouras. De maio a dezembro de 2017 foram acompanhados cinco casos de PCTP, realizados atendimentos individuais e familiares. Durante esse período foi realizada a coleta de dados através de um diário de campo, com anotações a respeito do funcionamento do CAPS, dos atendimentos dos usuários e seus familiares. Também foram realizadas entrevistas com profissionais, familiares e usuários. Este material foi analisado de forma qualitativa, através do método fenomenológico de Giorgi (2000), e que é composto de um procedimento de quatro passos: captar o sentido do todo; discriminar as unidades de significado; transformar a linguagem diária do sujeito em linguagem psicológica; sintetizar as unidades de significado.
Assumimos a limitação dessa pesquisa, realizada em apenas um CAPS, entendendo que possa não representar a totalidade dos CAPS brasileiros. Porém, das reflexões decorrentes, esperamos contribuir para a contínua construção de um modelo de atenção mais reflexivo, crítico e adequado às necessidades dos sujeitos atendidos. Dias (2013) afirma que a Reforma Psiquiátrica é um processo de transição que ainda se encontra incompleto. Considera-se toda essa movimentação que temos ativa até hoje como um frutífero começo para a construção de estruturas administrativas, de uma clínica e de uma compreensão referente a saúde mental que possa transpor a lógica manicomial.
PENSANDO A ATUAÇÃO NA SAÚDE MENTAL: UMA EXPERIÊNCIA EM UM CAPS III
No grupo de estudos começaram a surgir relatos sobre alguns casos de primeiras crises que chegavam ao CAPS. Os profissionais começaram a realizar atendimentos familiares em duplas em casos de PCTP, e ao longo do processo eram discutidas as dificuldades, desafios, limites e potenciais do atendimento que estava sendo construído. A partir das análises das entrevistas e das discussões realizadas durante o período da pesquisa com os profissionais, usuários e familiares foram encontradas as seguintes categorias: tomada de responsabilidade do caso pelos profissionais do CAPS; centralidade do atendimento no indivíduo e na medicação; experiência de crise considerada apenas como sintoma.
Quem é responsável pelo "caso": cuidado ou tutela?
Uma das questões levantadas ao longo do grupo foi que os profissionais do CAPS se sentiam os únicos responsáveis pelos sujeitos em primeiras crises. Essa questão foi levantada a partir do fato de se sentirem "invasivos" (sic) ao contatar as famílias para os atendimentos no CAPS. Sentiam que a responsabilidade sobre o tratamento era deles e não da família; ou seja, era como se, enquanto representantes do serviço, seriam eles que iriam "tirar" o sujeito daquela situação (ou pelo menos entendiam que isso era o esperado deles, do mesmo modo que se espera de um médico da UBS, a medicação).
Essa percepção não parece ser exclusividade desses profissionais, mas uma realidade comum na atenção à saúde, como se observa em trabalhos sobre a dificuldade de diferenciação na saúde mental, do cuidado versus tutela (Miranda, 2000; Cruz e Fernandes, 2012). Silva (2005) aborda o tema da responsabilidade em seu artigo sobre atenção psicossocial e gestão de populações, apontando a necessidade de responsabilização de atores e instâncias sociais, da comunidade, da família, de vizinhos, através de parcerias e co-responsabilidades. Nisso, busca-se acolher diferentes saberes, mesmo o saber "leigo", convocando o entorno do sujeito, buscando uma diminuição da dependência institucional em prol de um aumento dos laços e recursos sociais.
Retirar a responsabilidade da família, da comunidade sobre o cuidado, e do próprio sujeito, é retirar a possibilidade de acolhimento dos sentidos, desqualificando recursos e potencialidades. Podemos pensar a partir daí na sobrecarga também expressa pelos profissionais. Ao sentirem-se os únicos responsáveis pelo cuidado, ocupam um lugar que poderia ser compartilhado com a própria comunidade e a família. Também nessa forma de compreensão se corre o risco da tutela dos casos, já que são os profissionais que se responsabilizam e tomam a frente do projeto terapêutico singular, inclusive temendo os riscos de compartilhar esse cuidado e dar mais autonomia ao sujeito. Isso fica ainda mais explícito nos momentos de crise. Mas, por que, apesar de leis e portarias relativas à saúdemental trazerem a ideia de um cuidado em rede, territoralizado, comunitário, não encontramos família e comunidade mais presentes no cuidado nos CAPS?
Centralidade do atendimento no indivíduo
Outro ponto de interesse e curiosidade que aproximou os profissionais do grupo de estudo foi o trabalho com familiares. Observávamos o entendimento da necessidade da implicação da família no cuidado, o quanto uma família suportiva facilitava o tratamento, enquanto outras dificultavam esse processo. Porém, o trabalho com as famílias era considerado superficial, presente apenas no breve contato antes de um atendimento. O lugar do familiar ou outros sujeitos importantes no contexto social da pessoa em crise, era o de um informante ou mesmo o de "controlador de medicação". Porém, ao mesmo tempo que há uma compreensão da necessidade de um trabalho mais aprofundado e atento às famílias, há a reclamação da sobrecarga de trabalho dos profissionais: agenda sempre cheia, que demanda uma reorganização para os atendimentos familiares. Também havia o receio sobre o atendimento em si; os profissionais estavam acostumados a falar com as famílias sobre os usuários ou a fazerem reuniões com várias famílias, mas não a realizar um aprofundamento e cuidado diretamente com elas. Durante o grupo de estudos, o foco recaiu sobre instrumentalizações para o atendimento familiar. Dois psicólogos conseguiram levar a cabo esses atendimentos.
A partir desses atendimentos, uma das psicólogas expressou que não mais conseguia conceber alguns casos do CAPS, como os das PCTP, dentre outros, sem o cuidado também à família. Essa compreensão da importância da família no tratamento se mostrou um dos maiores impactos da proposta de atendimento às primeiras crises. Porém, antes de iniciarmos as ações de atendimento às PCTPs, percebemos que, no cotidiano do CAPS, o centro das atenções mantinha seu foco sobre o "sujeito" em crise, enfatizando a individualização da atenção; ou seja, o foco diluía seu contexto, sua rede social ou mesmo sua família. Além disso, praticamente para todos os casos atendidos (segundo relato dos profissionais), era prescrita medicação; permanecendo esta, no centro do tratamento (descrito dessa forma pelos profissionais, inclusive na visão dos não-psiquiatras). O que também indica uma individualização do cuidado.
Diversas pesquisas demonstram a centralidade do medicamento, especialmente no acompanhamento do CAPS, colocando o Brasil entre os dez maiores mercados consumidores de produtos farmacêuticos do mundo (Bezerra, Morais, Paula, Silva, Jorge, 2016; Campos et al, 2012, Carvalho, Silva, Rodrigues, 2010). Isto é trazido também pelos familiares e cuidadores: "A importância da medicação apareceu em todas as entrevistas, entrecortando todas as formas de compreensão sobre maneiras de controlar ou curar a doença: o remédio é colocado como imprescindível para todos os tipos de tratamento realizados" (Pegoraro & Caldana, p.303). Mas por que a prática prescritiva toma esse relevo? Nos poucos casos em que o usuário não queria tomar medicação havia um esforço da equipe na direção do convencimento para tal; e associado a isto, observamos também uma ainda presente ênfase na autoridade do profissional especialista.
Experiência de crise considerada apenas como sintoma
O sintoma é considerado de modo geral como o signo objetivo da doença, pouco contextualizado em seus sentidos para o sujeito e seu contexto. Laing (1960/1973) pontua que podemos entender essa vivência de duas formas, "(...) análogas aos modos de se ver um vaso, ou dois perfis. Pode-se considerar seu comportamento como 'sintoma' de uma 'doença'; pode-se ver esse comportamento como uma expressão de sua existência" (p.16). Mas como isso influencia na prática de cuidado? No caso do CAPS, era comum que os profissionais não levassem em conta discursos muito desorganizados como fonte de informações ou compreensão, separando o discurso delirante, da experiência.
Se a pessoa adotar tal atitude em relação a um paciente, dificilmente compreenderá ao mesmo tempo o que ele talvez esteja tentando comunicar-nos. Voltando a considerar o caso de se ouvir alguém falar se eu estiver sentado à sua frente e falando com você, é possível que você esteja (I) tentando calcular qualquer anormalidade da minha fala, (II) explicando o que digo em termos de como você imagina que minhas células cerebrais estejam metabolizando oxigênio, ou (III) tentando descobrir porque, em termos do meu histórico sócioeconômico, eu estaria dizendo tais coisas naquele momento. Nenhuma das respostas que você possa dar a estas questões proporcionará por si mesma a simples compreensão daquilo que eu pretendo dizer (Laing, 1960/1973, p.17).
Ao considerar o sintoma apenas um signo de uma doença, perde-se os sentidos da expressão em um contexto amplo, da vida do sujeito e de seu entorno. Para Basaglia (1924/2005), as formas de tratamento manicomiais são consequência de uma compreensão que considera o sujeito como um objeto, sem autoridade ou voz.
O que isso nos diz da realidade da atenção à saúde mental?
Estas características sobre o CAPS são amplamente explicitadas e exploradas por autores como Goffman, Basaglia, Foucault, Laing ou Canguilhem. Porém, muitas vezes esses autores são apropriados para justificar essas ações enquanto subprodutos de certa incapacidade do profissional, o que muitas vezes imprime a necessidade de se sanar essa suposta deficiência através de amplos programas de capacitação profissional.
Entendemos que essas ações e compreensões não são fruto da incapacidade técnica do profissional ou de seu desinteresse (ao menos não o observávamos no CAPS); nem consideramos isto como algo pontual desse equipamento, mas são situações recorrentes em diversos dispositivos da rede. A reforma psiquiátrica é um processo em construção e por detrás dessas ações ainda se desvelam compreensões e pensamentos frutos de contextos históricos e epistemológicos. Esses procedimentos observados no CAPS apontam para algumas constatações: primeiro, que não foi ainda superada a tradição organicista, demasiado presente na medicina clássica e dominante na Psiquiatria tradicional; e, em segundo lugar, que a "humanização" dos serviços demanda uma discussão mais intensa com respeito aos fundamentos que constroem a dita "Saúde Mental".
Se temos diversas leis, portarias, movimentos e materiais escritos que discorrem sobre as críticas realizadas aos modelos manicomiais de atenção à saúde mental, como ainda vemos práticas manicomiais mesmo dentro de dispositivos pensados pela reforma? A questão é que no cotidiano, quem a constrói a atenção são sujeitos, não leis; sujeitos são históricos e os conceitos e noções empregadas nas práticas também (Foucault, 1963/1973, 1966/2000, 1976/1984). Foucault (1966/2000) afirma que estamos imersos em estruturas epistêmicas que nos constituem, tanto como sujeitos atuando em nossas práticas sociais quanto como sujeitos de um saber. Ou seja, o conhecimento que utilizamos é devedor de um contexto estrutural epistêmico, de lógicas e verdades pré-estabelecidas. Canguilhem (1943/1995), em seu livro O Normal e o Patológico, retoma a tradição positivista de compreensão do patológico como uma variação quantitativa do "normal", questionando-a.
Entendemos que, por detrás das formas manicomiais de lidar com fenômenos humanos, ditos psicopatológicos, temos uma forma de pensar que guia essas ações, pautada pela naturalização desses fenômenos. Assim, partimos das características levantadas na pesquisa de campo no CAPS e realizamos uma reflexão através de alguns autores de diversos campos do conhecimento como a antropologia, epistemologia historicista e pensadores tradicionalmente envolvidos com o tema da Saúde Mental, na expectativa de compreender se essas ações têm como fundamento lógicas e pensamentos anteriores ao momento atual, mas que se mantêm atualmente.
REFLEXÕES HISTÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS
Partimos da tese que as construções compreensivas e práticas observadas no CAPS são reflexos da forma como foi edificado nosso conhecimento, e que resulta de uma concepção de ciência enquanto uma Ciência Natural. Para compreender como se deu essa centralidade, a partir da Idade Moderna, precisamos voltar até os fundamentos da construção da ideia de ciência. Severino (1941/2007) aponta que o pensamento ocidental e sua construção de ciência decorrem de significativa influência de temas da filosofia grega: busca por uma explicação do mundo não pautada em entidades sobrenaturais, através da própria natureza e da razão humana; construção de sistemas de interpretação do mundo e do homem; ideia de que o universo é passível de ser conhecido e explicado. Demonstra, aqui, uma ideia de dominância e apropriação do filósofo (e posteriormente do cientista) das experiências da natureza, inclusive as humanas. É o filósofo que olha para o mundo e diz o que ele é, e o que não é. O filósofo define as experiências da natureza.
A construção da filosofia durante seus períodos iniciais já tinha como objetivo uma reflexão sistemática do mundo. Aos poucos, a filosofia foi se constituindo em escolas, afirmando cada qual que seu modelo de explicação da realidade era o "verdadeiro", tornando-se "dogmáticas", olvidando a essência primeira da filosofia de não se contentar com uma verdade, mas de seguir sempre buscando (Marcondes, 1997). Aqui já observamos também uma relação de dominância de um saber e uma "rigidificação" das teorias sobre o mundo e o homem, pré-requisitos para concepções naturalizantes do homem. Com a Idade Moderna, buscou-se métodos mais rigorosos de construção do conhecimento, cada vez mais procurando sua base e fundamento, no natural e no empirismo, culminando no modelo hegemônico atual, que é o da Ciência Natural. Suas principais características podem ser assim resumidas: método experimental (controle de variáveis, manipulação mensurada de variáveis), observação de fatos (não de vivências), busca por relações invariantes entre fenômenos, elaboração de leis que regem esses fenômenos, previsibilidade, quantificação da experiência e a matematização do mundo (Castañon, 2007). Mas quais os impactos desse modelo nas ciências que abordam o homem e suas relações com o mundo, nas chamadas ciências humanas?
As ciências humanas, ou seja, aquelas que dizem das expressões e experiências humanas, historicamente, acabaram ora cedendo à lógica das ciências naturais, ora as questionando e propondo métodos alternativos (Dilthey, 1894/2008, Husserl, 1910/1965, 1935/2006). As disciplinas que se debruçavam sobre as psicopatologias também seguiram o mesmo movimento, procurando se adequar ao modelo de ciência vigente ao adaptar método, lógica e termos das ciências naturais; todavia, como assinala Foucault (1954/1968), "(...) a patologia mental exige métodos de análise diferentes dos da patologia orgânica, e é somente por um artifício da linguagem que se pode emprestar o mesmo sentido às doenças do corpo e às doenças do espírito" (p.17).
A Revolução Científica da Idade Moderna opera num "divórcio entre o mundo dos valores (do sentido, dos fins) e o mundo dos fatos (causas materiais e eficientes)" (Castañon, 2007, p.22); buscando através da observação de fatos as relações invariantes, as leis que regem esses fenômenos, objetivando prever o funcionamento do homem, quantificando sua experiência, e presumindo o que daquilo "é" do humano. Assim, podemos observar que – histórica e epistemologicamente – há uma hipervalorização dos sintomas (fatos observáveis) sobre os sentidos (experiência); e, como consequência desta naturalização, a criação de regras que delimitam funcionamentos "normais" e "patológicos", baseados na presença ou ausência de sintomas. Na perspectiva naturalista, não importa tanto a experiência singular do sujeito ou da comunidade sobre o fenômeno tido como psicopatológico; importa a regulação ou não a determinada "norma".
Em O Nascimento da Clínica, Foucault (1963/1973) aponta que a Medicina Clássica se organizava através de sistemas de categorizações baseados na observação dos fenômenos patológicos. A doença era reconhecida pela observação e descrição dos sintomas do indivíduo e posteriormente classificada. O sujeito era observado em seu ambiente natural, o médico ia até a sua casa. Apesar do foco estar no sujeito, e a doença entendida como localizada neste, já individualizada, havia ainda uma aproximação do ambiente de vida desse sujeito. Foucault afirma que com a Medicina Moderna, a partir do final do século XVIII, há uma substituição dessa lógica botânica1 , observacional e classificatória das doenças, para um modelo "gramatical" da análise dos signos, por uma busca pelo sentido trazido pelo sinal (sintoma) a partir de uma lógica pré-estabelecida pelo médico, e requer um controle da observação (através do ambiente do hospital, por exemplo). É o médico que possui o poder de desvendar os signos, e sua atuação não mais é realizada em seu ambiente natural; o doente precisa ir até o hospital para ser avaliado e tratado, e não se tem mais acesso direto ao ambiente do sujeito. Podemos pensar que o conceito de território tenta resgatar esse contato com o ambiente, porém, no cotidiano dos CAPS são os sujeitos que vão até o local e as idas ao território não são tão comuns. Na atenção básica essa aproximação ao território se encontra mais presente.
Laplantine (1986/1991) identifica diversos modelos etiológicos das doenças, presentes em diferentes momentos históricos, no campo científico ou fora dele. Inicialmente delimitam-se dois modelos principais: um ontológico e um relacional (ou funcional). O modelo ontológico está centrado na doença (seu objeto de estudo), geralmente com um enfoque no corpo ou numa parte deste, e como exemplos, temos a medicina clássica e a medicina moderna.
A ciência natural empírica aos poucos se modificou ao longo do século XVIII, ganhando uma caracterização mais experimental e se afastou cada vez mais de teorias abstratas, o que culminou na clínica médica anátomo-patológica2 do século XIX, típica da Medicina Moderna. As autópsias e dissecação de corpos se tornam instrumentos fundamentais da medicina, que encontra no corpo seu ponto de garantia de cientificidade. Expressão dessa transformação, temos a substituição da pergunta do médico: "'O que é que você tem?', por onde começava, no século XVIII, o diálogo entre o médico e o doente, com sua gramática e seu estilo próprios, por esta outra em que reconhecemos o jogo da clínica e o princípio de todo seu discurso: 'onde lhe dói?'" (Foucault, 1963/1973, p. XVIII). Essa modificação exprime a transformação do diálogo médico-paciente pautado na modificação do olhar, que agora compartimentaliza e localiza no corpo (por meio de signos e sintomas), desvelando as relações entre tecidos e órgãos, cuja consequência de formas patológicas ou não de funcionamento são observáveis.
O espaço da experiência parece identificar-se com o domínio do olhar atento, da vigilância empírica aberta apenas a evidência dos conteúdos visíveis. O olho torna-se o depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só recebe à medida que lhe deu à luz abrindo-se, abre a verdade de uma primeira abertura: flexão que marca, a partir do mundo da clareza clássica, a passagem do 'Iluminismo' para o século XIX (Foucault, 1963/1973, p.XI-XII).
O que se destaca desta fala de Foucault é o impacto do modelo de construção de conhecimento das Ciências Naturais na forma do médico compreender e observar o fenômeno estudado. Há uma vigilância apenas para aspectos aceitos como evidência visível. Através dos estudos anátomo-patológicos, a construção da ideia do patológico foi desenvolvida na comparação entre os órgãos de funcionamento "normal" e os órgãos de funcionamento "alterado". Assim também se deu com as psicopatologias, que utilizavam da mesma comparação mecânica, construída em torno de agentes externos, lesões ou disfunções orgânicas. O cérebro, então, se torna o local das disfunções orgânicas (Foucault, 1954/1968). Quanto mais se voltava ao corpo a ideia de causalidade da doença, mais individualizados os estudos, as observações e as ações.
O segundo modelo descrito por Laplantine (1986/1991), o modelo relacional ou funcional, é centrado na pessoa doente. Entende-se a doença não como uma "entidade estranha", mas como um desequilíbrio causado por um excesso ou uma falta. Um desequilíbrio do sujeito com ele mesmo (psicológico) ou com o corpo (fisiológico). "Desta vez, a opção etiológica é tanto em um caso quanto no outro, decididamente funcional e não mais lesional, monista e não mais dualista, quantitativa e não mais qualitativa. A doença como alteridade é substituída pela doença como alteração" (Laplantine, 1986/1991, p. 59); a concepção funcional ainda permanece tão substancialista3 e naturalista quanto a concepção lesional, carregando a mesma lógica naturalista. Este modelo persiste desde a medicina humoral de Hipócrates, desembocando na fisiopatologia do século XVII e na psicanálise no século XIX. Neste modelo, passa-se a entender a doença não como um agente patogênico que deve ser destruído ou extirpado, mas enquanto um processo de reação. Há também nesse modelo um olhar não "geográfico" à etiologia, e sim "histórico", voltado para a compreensão da história do sujeito doente e a função da doença (Laplantine, 1986/1991).
Porém, podemos notar que tanto o modelo ontológico quanto o funcional enfatizam um indivíduo, considerando-o um objeto a ser estudado e explicado pelo terapeuta, médico ou pesquisador. Podemos relacionar o modelo etiológico funcionalista com as concepções psicodinâmicas do final do século XIX. Neste período, a concepção organicista materialista é complementada pela concepção psicodinâmica mentalista (Laplantine, 1986/1991). A partir de Charcot, Breuer, Freud, dentre outros, busca-se uma causa secundária aos eventos psicopatológicos, forjando-se, assim, um conceito de "doença mental". A centralidade do cuidado está no sujeito, a "doença está nele".
A fragmentação da ciência, a partir do século XIX, possibilitou o surgimento de disciplinas voltadas ao estudo do homem (Japiassu, 1975). O homem já não era mais apenas aquele que pensava a ciência, mas também aquele que era pensado por esta. A medicina moderna, assim como a psiquiatria e a psicopatologia, encontra ali a possibilidade de enquadrar o homem nos estudos das ciências naturais da época, anunciando a "objetividade" do sujeito:
As ciências humanas, assim como a psiquiatria, a psicologia e a psicopatologia, foram, a partir desse momento, as eleitas a falar sobre o homem. Ao fazê-lo, a partir desse modelo, naturalizam o homem, traduzem o que o homem é, e o que não é (a partir da ideia da "anormalidade", do desvio e da "doença mental"). Biologicismo, Mentalismo e Psicologismo – Visões individualizadas e naturalizantes Segundo Laplantine (1986/1991), o entendimento que se tem de doença permanece entre esses dois pólos: o orgânico e espacial, o psicofisiológico e temporal. O procedimento anátomo-clínico4 seria a tentativa de juntar as duas polaridades dessa equação. Em ambos os polos temos uma visão individualizante e naturalizante (seja através de justificativas biológicas ou dinâmicas).O objeto do discurso também pode ser um sujeito, sem que as figuras da objetividade sejam por isso alteradas. Foi esta reorganização o formal e em profundidade, mais do que o abandono das teorias e dos velhos sistemas, que criou a possibilidade de uma experiência clínica (Foucault, 1973/1963, p.XII-XIII).
Canguilhem (1943/1995) também observa dois polos em relação às noções de saúde e doença: uma positivista, que considera a doença enquanto uma diferença quantitativa do estado normal, e outra ontológica que considera a doença como o oposto qualitativo da saúde; sendo, ambas, insuficientes. A noção de que a patologia seria uma variação quantitativa do estado normal é limitada, pois não há como delimitarmos uma norma que defina o comportamento fisiológico normal do corpo, há variações no funcionamento do corpo que fazem parte de respostas necessárias ao meio, como contextos do processo de vida. O polo qualitativo estaria dividido em duas versões: uma ontológica, que entende a doença como o resultado da presença de um agente patogênico, e cujo exemplo seria a teoria microbiana de Pasteur; e a outra seria a dinamista ou funcional, em que compreende uma doença da totalidade do homem, um desequilíbrio ou dificuldade de funcionamento, por exemplo. "A doença difere da saúde, o patológico, do normal, como uma qualidade difere de outra, quer pela presença ou ausência de um princípio definido, quer pela re-estruturação da totalidade orgânica" (Canguilhem, 1943/1995, p.13). Para Canguilhem, ambas são limitadas ao encarar a experiência de estar doente como uma luta do organismo.
Laing (1960/1973) segue a lógica de Canguilhem, que afirma a historicidade dos conceitos utilizados na saúde, e pontua que na saúde mental, quando determinamos dados sinais como doenças impomos ao sujeito nossas categorias de pensamento. Muitas vezes as temos ingenuamente como fatos, assim como quando tentamos explicar sua situação através de uma lógica mecânica que presume o presente enquanto um resultado determinado pelo passado. Tanto a lógica positivista de biologização da "doença", quanto o mentalismo ou psicologismo, resumem a experiência da psicopatologia em uma lógica determinista e mecanicista, descolada da experiência e do contexto do sujeito que se encontra a nossa frente; e, portanto, são visões individualizadas e naturalizantes.
A individualização do fenômeno psicopatológico é uma caracterização que se encontra nos discursos da saúde até hoje. Gilberto Velho (2003) discorre sobre as teorias individualizantes que pressupõem que o comportamento divergente é o resultado de variáveis da personalidade patológica numa perspectiva historicamente construída, na qual quem adoece é o indivíduo e é ele quem deve ser tratado:
Tradicionalmente, o indivíduo desviante tem sido encarado a partir de uma perspectiva médica preocupada em distinguir o "são" do "não-são" ou do "insano". Assim certas pessoas apresentariam características de comportamento "anormais", sintomas ou expressão de desequilíbrios e doença. Tratar-se-ia, então, de diagnosticar o mal e tratá-lo. [...] Enfim, o mal estaria localizado no indivíduo, geralmente definido como fenômeno endógeno ou mesmo hereditário (Velho, 2003, p. 11-12).
Sociologismo da doença – Ainda uma visão naturalizante
Temos historicamente, diante das lógicas biologizantes ou psicologizantes, novas perspectivas que vão pontuar o papel da sociedade, da cultura ou da família na construção dos fenômenos psicopatológicos. Szasz (1961/1982) é um exemplo, ele aponta a "loucura" como um problema construído socialmente, um mito vendido como verdade. Palazzoli, Cirillo, Selvini, Sorrentino (1998) vão pontuar através da psicologia sistêmica o papel da família na formação dos sintomas. Laplantine (1986/1991) apresenta algumas expressões dessa lógica que enfatiza o social. A compreensão etiológica exógena, em oposição ao modelo endógeno (no qual a etiologia está na natureza do sujeito enquanto patrimônio genético ou de sua personalidade) considera a doença como resultado de uma intervenção exterior (micróbios, ambiente, família, sociedade). Um "desequilíbrio" que pode ocorrer na relação do homem com seu cosmos ou do homem com seu meio social.
(...) temos o direito de nos perguntar, cada vez que o deslocamento do ontológico para o relacional é acompanhado por uma reificação do social, em que medida realmente mudamos de modelo. Assim, quando "a família", "a sociedade", "os gênios", "os ancestrais", "os sortilégios" são apreendidos como entidades morbíficas, a doença não mais aparece como pertencendo à ordem da alteração, mas da alteridade; não mais como pertencendo à ordem da variação quantitativa, mas da invasão, da agressão (ou da escolha), ou seja, da diferença qualitativa. Então, encontramos um modelo deliberadamente dualista e não mais monista: existem duas realidades antagônicas que se defrontam: o paciente e uma adversidade mórbida. E, como nas sociedades tradicionais – ou nos aspectos mais tradicionais de nossas sociedades -, eles não são (ou não são apenas) metáforas (Laplantine, 1986/1991, p. 65).
Assim, para Laplantine, na maioria das vezes as concepções de "sociedade patogênica" ou de "patologia nas famílias" se referem a um modelo sociológico durkheimiano, no qual se entende a família ou a sociedade como dotada de uma condição de "coisa", que pode inclusive ser apreendida independentemente dos indivíduos. Caímos aí numa outra polaridade epistemológica, o materialismo, e assim, novamente esquecemos a relação sujeito e mundo e naturalizamos o fenômeno.
Um exemplo desta construção exógena da compreensão de doença mental, são as teorias sistêmico-familiares. Nestas, a compreensão é de que a doença é uma doença de um sistema – como a família – com seus "jogos psicóticos" (Palazzoli, Cirillo, Selvini, Sorrentino, 1998), que seriam aqueles tipos de relações estabelecidas dentro da família, determinantes no adoecimento de um indivíduo. Aqui, o problema não está mais no indivíduo, está agora na família. O pressuposto é de que assim que o jogo é desvendado e a família modifica o seu modo de funcionamento, a doença é superada.
Modelos diferentes, premissas comuns
Diante de modelos que partem do biológico, da história individual, do mundo social ou da família, se reduzimos o fenômeno a cada uma dessas instâncias explicativas, o reduzimos da mesma forma. Segundo Velho (2003), na caracterização do comportamento desviante, é comum oscilar entre um psicologismo ou um sociologismo:
Ou se cria uma individualidade "pura", uma "essência" defrontando-se com o meio ambiente exterior, de outra qualidade, ou então a um fato social "puro", também todo-poderoso, que paira sobre as pessoas. O que se confirma é que posições aparentemente divergentes apresentam premissas comuns que vão dirigir todo o encadeamento dos raciocínios posteriores (p. 19).
As explicações psicologizantes, sociologizantes, psicopatologizantes ou biologizantes, são naturalizantes. São concepções que tomam o humano por uma única perspectiva, acreditando que lhes dá a totalidade do existir humano. E por mais que se aglutine os "ismos" nas ações multidisciplinares caso ainda se parta de naturalizações, se perde a singularidade do humano à nossa frente. Esta naturalização decorre de uma tradição que busca "causas" ou "condições de surgimento" (desde Platão), para determinado evento ou ocorrência. Buscam-se "determinantes"; e, assim, permanecemos diante de compreensões naturalistas, que como tal, colocam o sujeito como objeto de um saber anterior, retirando-o de sua própria experiência. Ou seja, há por detrás de cada uma dessas concepções, uma definição do que é natural do humano, e consequentemente de uma suposta "normalidade", partindo-se de concepções essencialistas, imutáveis, universais, atemporais.
"Não se trata de negar a especificidade dos fenômenos psicológicos, sociais, biológicos ou culturais, mas sim reafirmar a importância de não perder de vista seu caráter de inter-relacionamento completo e permanente" (Velho, 2003, p.19). A questão não é o descarte de uma ou outra possibilidade, mas sim da deformação dos processos de conhecimento que a escolha por apenas uma dessas polaridades pode causar. "Procuro chamar a atenção para um grande hiato existente entre estudos 'individuais', 'psicologizantes' e grandes teorias sobre a natureza da sociedade, ou seja, o abismo entre a Psicologia, Psiquiatria, etc. e as Ciências Sociais como um todo" (Velho, 2003, p. 23).
Há, pois, um distanciamento de áreas importantes para a compreensão da vida, que deveriam somar na compreensão desse fenômeno. Essas compreensões naturalizantes – sejam as individualizantes, sociologizantes, explicativas, deterministas, causalistas ou mecanicistas – são constituídas historicamente e, mesmo sendo considerada como um fato, a divisão entre individual e social, interior e exterior, são construções do conhecimento. "Ora, nos é forçoso reconhecer que as oposições entre 'indivíduo' e 'meio', entre 'interior' e 'exterior' são abstrações que não advêm de uma distinção científica, mas de uma précompreensão não científica ou de uma derivação dogmática da ciência" (Laplantine, 1986/1991, p. 90). Ao realizar essa crítica, não se trata apenas de uma disputa epistemológica, mas de compreender a atenção à saúde e a ética envolvidas nessa ação.
Quando Foucault denuncia a exclusão, não apenas aponta para relações de época ou para uma construção histórica; quando Goffman discute o estigma, não explicita apenas relações sociais; quando Laing, Cooper ou Szasz questionam o poder da psiquiatria, não dizem apenas de instituições formais ou condições políticas; todos estes autores (e tantos outros) falam de um aspecto fenomenológico mais importante, - mesmo que sutilmente escamoteado por detrás dos discursos - que cada experiência desvela um sujeito que ali se mostra e se apresenta (Holanda, 2017, p. 156).
Ao não levar em conta o sujeito que ali se mostra, qual o reflexo em nossa ação? Por mais que se tenha, a partir da Reforma Psiquiátrica, mudado nomes, locais de tratamento, técnicas de cuidado, não parece que houve a mesma radical transformação com as lógicas. Ainda permanecem, como verificamos na experiência da pesquisa de campo, compreensões naturalizadas, que colocam o sujeito como objeto de um saber anterior, retirando-o de sua própria existência. Toma-se, para o profissional, a responsabilidade sobre as escolhas existenciais do sujeito diante de seu sofrimento e diante de sua vida. Laing & Cooper (1964/1976) consideram que a psiquiatria tradicional compreende a psicopatologia como uma representação objetiva de uma "doença mental", como entidade mórbida de fundo orgânico, e em uma vertente mais subjetivista, de fundo "mental". Há nessas concepções uma desqualificação da experiência do sujeito, que culminam nas relações descritas por Goffman (1961/1996): destituição da cidadania, segregação e alheamento, despojamento material, violação da intimidade, desqualificação do próprio ser no mundo
Críticas ao modelo naturalizante
Dilthey (1894/2008) defendeu a impossibilidade das ciências do espírito – compreensivas – funcionarem da mesma forma que as ciências naturais (explicativas), visto que seu objeto é o sujeito humano em conexão viva. A reflexão crítica proposta por Dilthey sobre a natureza do sujeito e do objeto está no terreno da ontologia e da epistemologia; a questão é que não conseguimos "englobar todas as práticas científicas num mesmo arcabouço epistemológico" (Figueiredo, 1995, p.149). Dilthey fala da importância de ambas as ciências, tanto a ciência natural (explicativa, que elabora leis gerais), quanto a ciência do espírito (fundada na comunicação). Próximo a isto, temos a Fenomenologia de Husserl (1910/1965), em sua crítica à compreensão unilateral das ciências objetivistas, ao já pressupor as normas que fundamentam sua investigação, como destaca:
O Naturalista é idealista e objectivista no seu procedimento [...] Ele é, porém, um idealista que estabelece e julga fundamentar teorias que negam precisamente as premissas do seu procedimento idealista, quer construa teorias, quer fundamente e simultaneamente recomende valores ou normas práticas como os mais belos e melhores - as premissas das suas próprias teorizações, da sua instituição de valores objetivos propriamente adequados para a valorização, e igualmente de regras práticas que se imponham a vontade de acção de todos. O Naturalista é doutrinador, pregador, moralizador, reformador (p.10-11).
A crítica de Husserl aponta uma neutralidade ingênua posta nas ciências naturais, já que esconde idealismos. Também aponta para um dogmatismo que muitas vezes aparece nessa posição quando toma sua perspectiva como a única possível, como "os mais belos e melhores" (p.11), uma doutrina, como coloca Husserl. Perde-se, assim, a essência da filosofia, de onde a própria ciência se constituiu, de ser reflexiva e crítica e não dogmática. Essas características se refletem nas práticas da saúde mental: "Pois os contrassensos teóricos são inevitavelmente seguidos por contrassensos (discordâncias evidentes) no procedimento actual, teórico, axiológico, ético" (Husserl, 1910/1965, p.10).
Ao pontuar a historicidade das construções conceituais do conceito de "doença mental" (Foucault) ou de "doença" (Canguilhem), procura-se desconstruir a crença na naturalidade desses fenômenos, recolocando-os como construções realizadas pelo homem em sua relação com o mundo, com a cultura e com a história. Para Canguilhem (1943/1995), não há normalidade ou patologia em si, mas sempre em uma relação estabelecida entre o organismo e o meio, que está vinculada à experiência do sujeito:
[...] não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência e que, especialmente no caso que nos interessa, é o ponto de vista do doente que, no fundo, é verdadeiro. [...] Sempre se admitiu, e atualmente é uma realidade incontestável, que a medicina existe porque há homens que se sentem doentes, e não porque existem médicos que os informam de suas doenças (p.35-36).
Canguilhem pontua a importância do enfoque na experiência do sujeito na compreensão dos fenômenos humanos, e que a variação entre indivíduos faz parte da vida, incluindo as anomalias, que em si não são doenças, mas manifestam outras normas de vida possíveis. A própria doença também é prevista pelo organismo: "O homem normal é o homem normativo, o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgânicas. Uma norma única de vida é sentida privativamente e não positivamente" (Canguilhem, 1943/1995, p.54).
QUEM SÃO OS "CULPADOS"? BUSCANDO NOVAS REFLEXÕES
Muitas vezes percebemos críticas às formas de atuação na saúde mental voltadas para o formato e funcionamento do dispositivo, para carências de verba, de pessoal ou de recursos, à proposta da reforma psiquiátrica, à psiquiatria e aos medicamentos, à capacitação técnica do profissional, etc. Com isso, achamos diversos "culpados", mas não percebemos que todos somos devedores de uma mesma lógica epistemológica. Os modelos epistemológicos das ciências naturais, advindos da revolução científica da modernidade dominam nossas construções teóricas em nossas ações. Mas talvez não estejamos tão cientes disso. Continuamos sugerindo a contratação de mais profissionais, a abertura de mais CAPS, a capacitação dos profissionais, etc. Mas sem uma reflexão sobre a lógica por detrás de nossas ações, essas "soluções" são apenas remediativas. Não pretendemos com esse trabalho trazer uma "crítica pela crítica", seja em relação à Reforma Psiquiátrica ou aos CAPS, afinal somos também trabalhadores da saúde mental e buscamos avanços nas formas de atenção, com respeito pela experiência do sujeito.
Aquele que é formado nas ciências naturais julga evidente que todos os fatores puramente subjetivos devem ser excluídos e que o método científico-natural determina, em termos objetivos, o que tem sua figuração nos modos subjetivos da representação. Por isso busca o objetivamente verdadeiro também no plano psíquico. [...] Mas o investigador da natureza não se dá conta que o fundamento permanente de seu trabalho mental, subjetivo, é o mundo circundante (Lebenswelt) vital, que constantemente é pressuposto como base, como o terreno da atividade, sobre o qual suas perguntas e métodos de pensar adquirem um sentido (Husserl 1935/2006, p. 90).
Talvez tenhamos esquecido que nossas construções científicas advêm do "mundo da vida", e dele não podemos nos separar. Foucault alerta para a necessidade de uma visão crítica aos conceitos que utilizamos em nossas práticas e por suas funções, objetivos, fundamentos. Se o profissional que atende dentro do contexto da saúde mental não considera que ele está construindo conhecimento e que ele deve refletir sobre o conhecimento que utiliza, ele se torna apenas um técnico.
Mas o que é filosofar hoje em dia — quero dizer, a atividade filosófica senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. (Foucault, 1976/1984, p.13).
Foucault traz, aqui, a importância de um resgate da própria ciência a seu principal fundamento, a filosofia. Mas não a filosofia dogmática, e sim a filosofia questionadora, que não se contenta em reproduzir, mas em refletir. Não é por sermos profissionais da saúde ou cientistas que devemos deixar a filosofia para os filósofos, pois assim nos tornamos meros reprodutores de lógicas que nem mesmo nos damos conta. A forma como o profissional compreende um fenômeno está diretamente ligada à forma como se posiciona frente a ele. "Quando a doença é considerada como um mal, a terapêutica é tida como uma revalorização; quando a doença é considerada como uma falta ou um excesso, a terapêutica consiste numa compensação" (Canguilhem, 1994/1966 p.249). Caso o profissional entenda a doença mental como um desequilíbrio da química cerebral, a cura vem através dos medicamentos. Nessa compreensão, se há desequilíbrio, há doença. Se há fuga da normalidade pré-estabelecida do funcionamento do corpo, há doença. Caso ele entenda que a doença mental tem sua etiologia na história individual do sujeito, será apenas através da compreensão da história pregressa, através das memórias do sujeito, que alcançará a "cura". Caso seja um problema social, uma "doença" da sociedade, a intervenção é na própria sociedade.
As práticas que observamos nos CAPS e em outros equipamentos da rede de atenção à saúde mental partem de compreensões diversificadas sobre os processos de saúde e doença. A partir de uma reflexão advinda de perguntas colocadas pelo campo de pesquisa, compreende-se que a parte da atenção à saúde mental que se volta a um modelo manicomial não se deve a uma simples dificuldade técnica, de verbas ou quantidade de dispositivos. Que sejam questões pertinentes, sem dúvida, cremos que sim, porém não se trata apenas disso. Trata-se também de uma questão história e epistemológica.
Assim, nos parece que cair nas polaridades epistemológicas referentes ao ponto de partida da construção de conhecimento: sujeito versus objeto, idealismo versus realismo, subjetivismo versus materialismo, é reduzir o fenômeno da psicopatologia a uma parte, uma só perspectiva do fenômeno. Tratar o fenômeno a partir de uma construção do conhecimento similar à das ciências naturais, através da objetificação, explicação, determinismo, causalidade, é naturalizá-lo. É reduzir a complexa experiência humana a um modelo. Um modelo que determina, a partir do cientista/profissional, o que é patológico/doença. Perde-se assim a experiência do sujeito, sua compreensão (juntamente com a de sua família e de seu entorno social) a respeito da vivência que está passando e os potenciais destes para enfrentar, significar e decidir como levar a situação em questão.
Talvez a fenomenologia, a partir de sua proposta epistemológica não polarizada em sujeito versus objeto, crítica, reflexiva, que busca compreender o fenômeno a partir dele mesmo, da coisa em si, possa ser uma interessante opção epistemológica para se pensar nossas práticas em saúde mental. Enquanto legislação e dentro das propostas iniciais dos movimentos que construíram a reforma psiquiátrica no Brasil, observamos essa influência da fenomenologia (Puchivailo, Silva e Holanda, 2013). Talvez a questão seja pensar em como então trazer esse fundamento para pensarmos nossas práticas cotidianas na saúde mental.
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NOTA SOBRE OS(AS) AUTORES(AS):
Mariana Cardoso Puchivailo – Doutoranda em Psicologia Clínica pela UnB. Professora da FAE Centro Universitário. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Acolhimento de Primeiras Crises do Tipo Psicóticas (PEQUI). Universidade de Brasília e FAE Centro Universitário. E-mail: marianapuchivailo@yahoo.com.br.
Ileno Izídio da Costa – Doutor em Psicologia. Professor Adjunto do Departamento de Psicologia Clínica da UnB. Pós-Doutorados (USP, UFRN). Coordenador dos Grupos de Intervenção Precoce nas Psicoses (GIPSI), PERSONNA (Violência, Criminalidade, Perversão e "Psicopatia" e do Centro Regional de Referência para o Enfrentamento às Drogas da UnB/Campus Darcy Ribeiro/Senad/MJ. Universidade de Brasília. E-mail: ilenoc@gmail.com.
Adriano Furtado Holanda - Doutorado em Psicologia pela PUC-Campinas (2002). Professor Associado e Orientador de Mestrado da Universidade Federal do Paraná. Coordenador do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno-UFPR). Universidade Federal do Paraná. E-mail: aholanda@yahoo.com.
Recebido: 26/05/2018.
Aprovado: 21/06//2018.
1 Laplantine (1986/1991) refere-se ao modelo botânico de classificação de doenças como aquele que cataloga as propriedades "essenciais" de cada doença, divididas em famílias, gênero e espécies. 2 O método anátomo-patológico consiste em reconhecer patologias através não somente através das alterações morfológicas ou estruturais, mas também através das alterações funcionais. (Laplantine, 1986/1991)
2 Plural da palavra gestalt.
3 Substancialista, pois nessa lógica o desequilíbrio é causado por uma falta ou excesso de alguma substância. (Laplantine, 1986/1991)
4 O método anátomo-clínico, consistia nos levantamentos dos sinais e sintomas com o intuito de buscar uma confirmação anátomo-patológica nas autópsias. Porém, na medicina mental muitos sinais e sintomas não eram explicados pelas lesões anatômicas, e por isso acabavam sendo desconsiderados.