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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019

https://doi.org/10.10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i1p.3-5 

EDITORIAL

 

Setenta anos de Arquivos Brasileiros de Psicologia: políticas e narrativas na construção (e transformação) de uma ciência brasileira

 

 

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho; Cláudia Henschel de Lima

 

 

O primeiro editorial deste ano não poderia deixar de citar que 2019 é um ano especial para a Arquivos Brasileiros de Psicologia. Nossa revista, a mais antiga em Psicologia do país, completa 70 anos.

O filósofo Walter Benjamim, ao elaborar em sua obra uma reflexão sobre a experiência e a sua relação com a produção do conhecimento, traz excelentes contribuições para a efemeridade em questão. Benjamin (2000) convida-nos a uma nova estética ao afirmar a necessidade de se assumir que o excesso de experiência não necessariamente se conecta com a realidade, com a atualidade. Tal excesso estaria expresso na figura do adulto da experiência, que acumula conhecimento, autorizando-o a evocação de uma dita experiência maior. Por outro lado, aposta-se na disposição de espírito de um bárbaro, contrariando a ética da civilização adultocêntrica moderna.

Barbárie? Sim. Responderemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para direita nem para a esquerda (Benjamin, 1987, p. 115-116).

Benjamin (1987) pontua que situar-se junto à pobreza da experiência seria uma atitude ética contra a evocação de uma experiência maior. Assim, afirma a elevação de uma experiência que é pobre em conhecimentos acumulados como saída, mas que segue em frente. O narrador seria um canal por onde passam os fluxos da história e onde essa mesma história se funde e se transforma. História esta que, na modernidade, é percebida como descontínua, fragmentada e contingente.

É através da poesia lírica de Charles Baudelaire que Walter Benjamin (2000) vê uma possibilidade ética-estética de narrativa na modernidade. Uma experiência a partir da vivência em profunda conexão com a realidade. A poesia realizada por Baudelaire é aquela atenta à vida ordinária das cidades, que eleva a vivência a uma estética poética. Ele é um andarilho da cidade e sua relação com Paris é vista pela ótica do flâneur. Em meados do século XIX, frente ao fervilhar da industrialização, as mudanças do novo homem acompanham as transformações da cidade. O olhar do flâneur, que a vê sem disfarces e percorre seus sentidos, seguindo seus movimentos, representaria a relação do artista com a mesma.

O flanar, enquanto uma aposta ética na política da narratividade, convida-nos a uma observação apaixonada ao longo do caminho (Decotelli, 2015). Um olhar atento à realidade, ao mundo e a nós mesmos. Um olhar que perambula e deixa-se levar pelas intensidades que nos movem. Neste caminhar, impossível é furtar-se dos atravessamentos que nos constituem. Assim, perceber as políticas de narratividade é também perceber a nós mesmos. E aprender a perceber, a ver, a ler e a ouvir as pistas do que é narrado faz-se condição de possibilidade para existirmos. Assim, ciência e narrador (ou pesquisador) se coengendram.

Nosso periódico, em seus 70 anos de história, narrou a construção da Psicologia, como ciência e profissão, no Brasil. E, assim, constituiu-se como importante ator na transformação desta Psicologia, efetivamente brasileira. Nosso periódico narrou 70 anos da construção de nós mesmos. Até o leão ter seu próprio contador de histórias, o caçador continuará sendo o herói, nos ensina a oralitura Ewe-mina. Por isso comemorar: porque, ao narrar, tornamo-nos protagonistas de nossa própria história. E, assim, vamos contribuindo para a construção de uma Psicologia verdadeiramente brasileira. Uma Psicologia que se quer descolonizada, protagonista. Uma Psicologia que se narra. Uma Psicologia por ela mesma.

Chimamanda Ngozi Adichie, durante a palestra O perigo de uma história única no TEDGlobal1, em 2009, traz o antigo conceito de nkali, do povo Igbo, do Sul e Sudeste da Nigéria. Conceito que significa "ser maior que o outro", para pensar a história. As histórias e narrativas, segundo ela, assim como a política e a economia, são definidas pelo princípio do nkali. Como, quando, por quem, para quem, quantas e onde são contadas as histórias depende do nkali. Segundo ela, nkali é o poder de não somente contar a história do outro, mas de fazê-la soar como sua história definitiva.

Em A Ordem do Discurso, Foucault (1971/2009) fala sobre a produção das narrativas e o poder de verdade perpetuado por elas por intermédio da figura do autor:

Entendido o autor, claro, não como o indivíduo que fala, o indivíduo que pronunciou ou escreveu um texto, mas como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem das suas significações, como lastro da sua coerência. [...] existem, à nossa volta, muitos discursos que circulam sem que o seu sentido ou a sua eficácia estejam em poder de um autor, a que seriam atribuídos: palavras do dia a dia, que se apagam de imediato; decretos ou contratos que têm necessidade de signatários, mas não de autor, receitas técnicas que se transmitem no anonimato. Mas nos domínios em que a atribuição a um autor é usual - literatura, filosofia, ciência - vemos que essa atribuição não desempenha sempre o mesmo papel; na ordem do discurso científico, a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois era um indicador de verdade. Considerava-se que o valor científico de uma proposição estava em poder do seu próprio autor [...]. O autor é o que dá à inquietante linguagem da ficção, as suas unidades, os seus nós de coerência, a sua inserção no real (, p. 21).

Assim, seguindo as pistas deixadas por Adichie e Foucault, escrever e ser autor da história e vida de um sujeito ou um povo é atravessado pelo lastro de coerência desse autor, como mencionado por Foucault. Sem os autores, portanto, não completaríamos 70 anos. Os autores são aqueles que, por meio de seus manuscritos, cedem ao nosso periódico seus lastros de coerência.

"Partimos do entendimento de que o processo de produção de conhecimento ocorre no plano das redes, dos fluxos, por serem configurados a partir de linhas móveis de visibilidade e de enunciação" (Bicalho, Magalhães, Cassal, & Geraldini, 2012, p. 270).

As redes, sempre coletivas, são produtos de conexões e produtoras de agenciamentos múltiplos. Deste modo, não poderíamos deixar de mencionar que nestes 70 anos foram muitos os editores que nos antecederam. Foram muitas pessoas que trabalharam na construção deste periódico, o que torna impossível qualquer tentativa de nomeá-los. Registramos nossos agradecimentos à equipe que atualmente encontra-se conosco: além dos editores, que assinam este editorial, contamos com os editores de seção: Ana Cristina Barros Cunha, Cristiana Carneiro e Pedro Paulo Pires, além dos assistentes editoriais: Jéssica da Silva David, Maria Stela Campos, Alice Sofia Padilha, Thalles Sampaio e Julia Cunha. Sem esquecer Francisco Teixeira Portugal, editor da revista até o ano passado, sempre presente entre nós.

Agradecemos, especificamente neste primeiro editorial do ano, às autoras e aos autores dos 13 artigos aqui publicados: (1) Encontros possíveis entre psicologia e educação para a inclusão escolar; (2) O estresse em mães de prematuros: ensaio clínico sobre atividade educativa; (3) Espaço do berçário: contribuições de um programa de acompanhamento; (4) Julgamento moral e posicionamento político-ideológico de jovens brasileiros; (5) Alienação parental nas varas de família: avaliação psicológica em debate; (6) Os desafios dos estágios supervisionados específicos em psicologia escolar; (7) Práticas integrativas e complementares na saúde mental do estudante universitário; (8) Acolhimento psicológico com sujeitos marginalizados: tensões entre o tradicional e o instituinte; (9) A supervisão na clínica-escola como báscula para a psicanálise na universidade; (10) Ansiedade entre as pessoas surdas: um estudo teórico; (11) Suicídio: uma compreensão sob a ótica da psicologia existencial; (12) Psicossomática: um fenômeno entre o saber e o poder; (13) Qualidade de vida e satisfação corporal de transexuais.

Agradecemos, ainda, à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que financiam nosso periódico. Aos inúmeros indexadores, que permitem a difusão do conhecimento aqui produzido, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao qual estamos vinculados, e aos nossos leitores, razão pela qual existimos. E, nestes 70 anos, resistimos: a todos os ataques e tentativas de desmonte às políticas públicas de educação.

 

Referências

Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, SP: Brasiliense.         [ Links ]

Benjamin, W. (2000). Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo, SP: Brasiliense.         [ Links ]

Bicalho, P. P. G.; Magalhães, K. C.; Cassal, L. C. B., & Geraldini, J. R. (2012). Cinquenta anos de produção do conhecimento: Práticas políticas da pesquisa em Psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão, 32 (n.esp.), 268-279. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500019        [ Links ]

Decotelli, K. C. M. (2015). Uma cartografia das múltiplas cenas de 'violência' na escola: O acontecimento bullying e a produção da judicialização da vida escolar. Tese (Doutorado em Psicologia). Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.         [ Links ]

Foucault, M. (2009). A ordem do discurso: Aula Inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo, SP: Loyola. (Original publicado em 1971).         [ Links ]

 

 

1 https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a _single_story?language=pt-br

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