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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Ethos e amizade: a morada do homem*

 

Ethos and friendship: the dwelling of man

 

 

Olgária C. F. Matos**

Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O ensaio procura refletir sobre o ético como condição de enraizamento e pertencimento em um mundo compartilhado. Esta morada cria valores, laços afetivos de entre-reconhecimento dos homens, phylia e comunidade política.

Palavras-chave: Ética, Felicidade, Phylia, Política.


ABSTRACT

This essay aims to reflect about the ethical as a condition of taking roots and belonging in a shared world. This lodging creates values, affective bonds of inter-recognition between men, the phylia and the political community.

Keywords: Ethics, Happiness, Phylia, Politics.


 

 

Encontrada pela primeira vez em Homero, a palavra ethos significava “morada”. Não sendo arquitetura ou técnica de construção, ethos é habitat, “toca”, mas também o fato e a maneira de habitá-la. A modesta tenda do caçador nômade ou a casa do agricultor sedentário é localização em um espaço sagrado de onde se faz possível a comunicação com os deuses. Habitar um espaço é decisão religiosa que, “cosmizando” o caos, santifica um pequeno cosmos, tomando-o semelhante ao divino. O desejo de ter uma “morada semelhante à casa dos deuses” foi representado mais tarde em santuários e templos. Na senda grega, Heidegger, em Construir, habitar, pensar, mostra como a linguagem guardou parte do sentido de pertencer e enraizar-se: o verbo bauen &– “construir” &– significou, em sua forma no antigo alemão (beo), habitar, sendo da mesma família de bin (sou): “O que significa, pois, ich bin? A antiga palavra à qual se vincula bin, responde: ‘eu sou’, quer dizer ‘eu habito’” (Heidegger, 1958, p. 173).

Algo semelhante se passa com as palavras asti (cidade) e polis (cidade). Se a primeira se refere à cidade em seus aspectos materiais &– ruas, monumentos e edificações &– a pólis é seu ethos, seu caráter, sua “maneira de ser”.

A casa é o “corpo do homem”, a medida de seu mundo, aquilo que oferece as verdadeiras referências de bem-estar e prazer, sendo,também, guia do espírito. Paul Valéry, em Eupalinos ou o arquiteto, encena, à maneira de Platão, um diálogo entre Sócrates e Fedro, dizendo ser o construir o mais completo de todos os atos, pois exige amor, meditação, obediência ao mais belo pensamento, “invenções de leis pela própria alma”. Eupalinos, em um passado distante, ensinara-o a Fedro, ao indicar como a construção se impregna de experiência pessoal e emoções:

Escuta, Fedro, e olha este pequeno templo que construí para morada de Hermes a alguns passos daqui; se soubesses o que significou para mim! Onde o passante só vê uma elegante capela, quatro colunas muito simples, imprimi nela a lembrança de um claro dia de minha vida. (...) Este templo, ninguém o sabe, é a imagem matemática de uma jovem de Corinto que, por felicidade, amei (Valéry, 1996, p. 52).

Esta reflexão oferece a unidade entre construção, religião, filosofia e vida. Foi Aristóteles quem apresentou de maneira sistemática, pela primeira vez, suas relações e o estudo das paixões da alma, no sentido de elaborar seu comedimento &– equilíbrio necessário à harmonia do homem consigo mesmo e à concórdia na cidade. Ethos será entendido segundo uma aproximação entre caráter e hábito: é o costume que desenvolve um caráter, pois realizamos nossa excelência (areté) e virtude, praticando ações virtuosas, indissociáveis da busca do prazer e fuga à dor. Denomina-se justo, ou corajoso, aquele para quem a justiça ou a coragem se tornaram uma “segunda natureza”, um “modo de ser”: moral altiva e temperante é “medida sábia”, não aceita a moral ascética, está distante daquele que sofre com a ação que pratica, como o avarento que dá e o covarde que arrisca. Estes não são éticos.1

Ao ethos associa-se a phylia. Esta se refere às condutas individuais e coletivas, no entrelaçamento dos homens, do cosmos e da cidade:

A pólis é vista espacialmente como expressão de duas dimensões: uma cosmológica, outra política. Assim, ela é circular como a Terra e o universo e, como eles, tem um centro, a Ágora. Essa organização cósmica é geometricamente isomórfica a uma organização política, baseada nos conceitos de eqüidistância de todos os cidadãos ao centro político, e de simetria, equilíbrio e reciprocidade. (...) O princípio da isonomia também era usado em relação à saúde, para expressar as proporções justas e o equilíbrio entre os elementos opostos do corpo (...). No contexto dessa visão do mundo, o conceito que lhe é nuclear e totalizante é o de comensurabilidade, que está ligando intrinsecamente em um todo Religião e Cosmologia, Filosofia, Estética e as noções de saúde corpórea e bem-estar (Logopoulos, 1994).

Convergem, agora, physis e phylia, pois a physis é a disposição espontânea da constituição de um ser, responsável pelo seu surgimento, transformação e perecimento, fundo inesgotável de onde vem o kosmos; sendo aquilo que tem em si e por si mesmo sua própria razão de ser e de existir, é fonte perene para onde regressam todas as coisas, realidade primeira e última de tudo que existe porque existe para realização da excelência que lhe é própria. A indivisão da cidade e do cosmos revela o homem grego extrovertido em um universo orgânico em que os homens e todos os seres do universo se reúnem pelo laço da amizade.2

A phylia encontra-se no coração da palavra filosofia (phylossophos). Inventores da palavra, os gregos não se teriam enganado. Se é preciso pensar bem, é para viver melhor. Procurando a excelência, a virtude, a medicina encarregou-se do corpo e coube à filosofia ser o consolo da alma aflita. Mas não só a filosofia; também a poesia trágica tem função médico-religiosa e ética &– a catharsis, purgação purificadora das paixões tristes. Ambas visam à paidéia &– educação formadora da conduta virtuosa. O discurso filosófico e o poema trágico constituem-se como pharmakon, remédio que desfaz dogmas e intolerância, fonte do mal-estar na civilização. Seu objetivo não é instruir os homens, mas tranqüilizá-los. A paidéia não é, para os gregos, aquisição passiva de conhecimentos, mas atividade que, através desse generoso sentimento, a phylia, ultrapassa a dimensão da sabedoria contemplativa e se expande em amor por todos os homens e pela humanidade.A figura da alteridade, do estrangeiro, os gregos a acolhiam para fazer do contato inelutável com os outros homens algo que favorecesse sua inclusão e assimilação, integrando-os e dialogando com eles em sua própria cultura.

Sabemos que os atenienses ergueram um altar ao deus desconhecido, por esse sentido de inclusão do Outro, do estrangeiro. Quanto a isso, Vernant anotou:

Fazendo dos deuses não gregos Dioniso e Ártemis &– que encarnam a alteridade nas cidades gregas &– parte de seu panteão, colocando-os no centro do dispositivo social, em pleno teatro (pois Dioniso presidia do alto da colina as representações trágicas que consistiam em oferendas da pólis ao deus), os gregos nos deram um grande ensinamento: não nos convidaram a tornarmo-nos politeístas, a acreditar em Dioniso e Ártemis, mas a conceder um lugar, na idéia de civilização, a uma atitude de espírito cujo valor não é apenas moral e político, mas propriamente intelectual e que se denomina tolerância (1985, p. 28).

Os gregos, em vez de pensar o Outro diferente de si, pensaram-no como o outro dentro de si, como possibilidade do humano.

Campo exemplar do conhecimento de si e do Outro, é a pólis grega clássica que inventou, a um só tempo, a filosofia, a tragédia, a democracia. Nela entrecruzam-se espetáculo e especulação, pois o pensamento é operação do olhar e da linguagem, como o é também a existência em comum dos cidadãos no espaço da cidade. Não é por acaso que os gregos inventam a tragédia e a comédia &– o teatro &– arquétipo do espetáculo: “(No teatro) tudo é visto por todos os lados, tudo está manifesto e reveste-se dos sinais exteriores da visibilidade; nele, o ‘pensamento’ está totalmente voltado para o exterior, como o espaço do teatro se reproduz no espaço da cidade” (Wolf, 1999, p. 13).

Os gregos assistiam às tragédias não somente como espectadores, mas, sobretudo, como cidadãos.

A paidéia procura enobrecer todos os homens, educando-lhes o comportamento e o espírito pelo aprendizado da convivência e das “boas maneiras”, pela aquisição de um savoir-vivre que supõe mestria da linguagem, da glória e do reconhecimento, isto é, continência, domínio de si. A esse respeito, Christian Meier observa:

A graça &– a cháris &– (a elegância, poderíamos dizer) entrou na vida pública dos gregos como elemento fundamental de sua comunidade. Aliou-se ao comedimento e assumiu a função que, normalmente no Estado, era desempenhada pelo poder. Lembre-se do papel de destaque reservado a Afrodite na política. Ela patrocinava a amizade entre os cidadãos. (...) Desde Homero, Afrodite era a deusa dos sorrisos, a deusa radiosa. (...) Um pormenor demonstra o grau de refinamento a que se chegou, o padrão de atitude corporal e de boas maneiras que o novo estilo de vida, o democrático, requeria. O dia-a-dia dos cidadãos, que tanto contava para os gregos, devia estar impregnado, em suas diversas formas abertas a todos, de beleza e graça (1998, p. 47-48).

A amizade é a dimensão da convivência humana em que há boa educação, leis justas e cidadãos virtuosos.

No Renascimento, com a releitura dos clássicos, no século XV, Pico della Mirandola, filósofo cristão iniciado na cabala hebraica, cunhou a expressão “dignidade humana”, fundando, por assim dizer, o humanismo. A pessoa é entendida sempre como digna, não apenas pela nobreza do sangue. Quanto à escravidão, longe de ser natural, é monstruosa e são horríveis a luta e a perseguição por divergência de culto ou de estirpe.3 Os humanistas, ao contrário dos medievais, passaram a considerar os acontecimentos políticos, científicos e históricos do ponto de vista da ação voluntária dos homens, devendo-se cultivar e celebrar a verdadeira essência humana pelas studia humanitatis. Não mais o Medievo da contemplação ascética cristã que julga as ações humanas diante da vida eterna e do mundo divino: preparando o homem para a santidade e não para a cidade, manteve-se uma visão antitética dos valores estético-emocionais &– treva-luz, superstição-razão, paganismo-cristianismo &–, dada a ofensa fatal que representaram as obras contranatureza introduzidas pela presença do homem no mundo, como o Mal radical. Agora, com a vita activa e com as atividades que dirigem o homem e seu caráter,vai-se ampliando o sentido do infinito potencial humano. O homem, com a virtù, com a prudente percepção da “ocasião”, vence todos os obstáculos adversos e se faz senhor da fortuna, essa temporalidade impermanente, incerta e caprichosa.

Neste horizonte, e com Maquiavel, dá-se o “nascimento da ideologia e do humanismo”. Sem recurso à transcendência mítica, ou teológica, na representação da vida social, o homem deve encontrar de agora em diante, no interior do social, os critérios de suas próprias certezas e de seu autoconhecimento. Escreve Abensour: “O lugar político constitui-se como mediação entre o homem e o homem e como um lugar de catharsis em relação a todos os laços que mantêm o homem à distância do homem” (1998, p. 81).

No caso, a superstição, a religião, a teologia efetivam uma separação drástica entre a Terra e o Céu. O homem do humanismo cívico e da responsabilidade civil faz a si e por si mesmo, no conflito entre ratio e hybris, a fortuna, revelando não somente a inconstância da natureza, mas de nossa própria natureza. O perigo mais ameaçador provém do interior do próprio homem e é tanto mais insidioso quanto menos reconhecível: trata-se da tendência do homem a comportar-se de maneira ilógica, a regular sua vida por ilusões e objetos fictícios, como os fantasmas da vida eterna, o que resulta na reabilitação da vida cívica, da vida na cidade e para a cidade, pela reabertura da afirmação aristotélica segundo a qual o homem é um animal político que só pode alcançar a excelência na e pela condição de cidadão.

Desse modo, opera-se um deslocamento da vida contemplativa para a vida ativa, com uma nova figura da razão, suscetível, pela ação, de criar uma ordem humana, política esta que dava uma forma ao caos do universo da contingência: a ação é entendida como faculdade de instituir o novo, o “miraculoso”, introduzindo processos, fazendo intervir no mundo o imponderável e o imprevisível. O humanismo cívico recuperava, assim, a dignidade da política: reino terreno, criação humana, trabalho humano.

A partir dos séculos XVI e XVII, com o novo espírito científico e, em particular, com Bacon e Descartes, a ciência passa a desenvolver-se em um universo que ignora o homem, enquanto este vive em um mundo que ignora a ciência: ela constrói um sujeito abstrato, convertendo a natureza em triângulos, retas e planos com regularidades quantificáveis, levando às últimas conseqüências a lógica do princípio abstrato de identidade A é A.4 Tal proposição é indiferente a seu conteúdo eventual e será considerada verdadeira mesmo quando este A designa algo falso ou inexistente. O Sujeito moderno não tem ponto fixo, religioso ou político, sendo tão abstrato quanto o mundo a ele convertido.

Lukács denominou “expatriamento transcendental” a perda da “morada” na modernidade. Expatriamento transcendental: predomínio da Ciência e do cientificismo (adesão sem crítica a suas práticas, sem se perguntar se o que ela busca é justo ou desejável); redimensionamento da razão em sentido tecnológico, abrangendo a economia e a política, segundo a “ideologia da racionalidade tecnológica” &– tudo passa por decisão técnica; esquecimento ou recalque da idéia de verdade e da busca do verdadeiro. Expatriamento transcendental: em política, elogio do ativismo &– exaltação da ação a serviço do pragmatismo e seu “realismo”; abandono do ideal de contemplação, de reflexão, ao mesmo tempo que o mercado se impõe como sucedâneo da busca da felicidade; subsunção ao mundo do espetáculo e do fetichismo das imagens, com a conseqüente perversão do espaço público em imagem pública, dando-se a “politização” da imagem e a despolitização da política; a existência passa a ser regida pela insegurança e pela violência, institucionalizada pelo mercado cujos imperativos são considerados racionais e capazes, por si mesmos, de organizar a vida social, política e econômica, instituindo a competição e a competitividade como solo intransponível das relações individuais, sociais e institucionais: a violência econômica é o paradigma e o ideal da ação humana.

Todo esse ideário confisca a dimensão do futuro pela confusão entre o possível e o “necessário”: o futuro só é convocado para justificar o que se faz no presente. Sua temporalidade é a do efêmero, do descartável, que dissolve a dimensão ética das relações, meios e fins que caracterizaram os conceitos clássico e moderno de racionalidade, liberdade, felicidade, justiça e utopia: o tempo transforma-se em “presente perpétuo”, pura mens momentanea carente de recordação. Universo governado pelo absurdo, tal como Albert Camus e Kafka, Becket e Ionesco, entre outros, o detectaram. Como no Mito de Sísifo ou em O castelo, os homens perdem o domínio do controle de suas próprias vidas. Na modernidade há a falência da compreensão humanista de democracia e cidadania, inseparáveis, que eram estas, da vida ética.

A predominância da racionalidade tecno-científica resolve-se, no nível político, no genocídio. É a reflexão de Adorno:

O terremoto de Lisboa foi suficiente para curar Voltaire da teodicéia leibniziana e a catástrofe ainda compreensível da natureza foi mínima confrontada com a segunda, social, que escapa à imaginação humana. Porque, nos campos de concentração, não morria mais o indivíduo, mas o exemplar. O genocídio é a integração absoluta que se prepara onde os homens são homogeneizados, onde ‘acertam o passo’, como se diz em jargão militar (1980, p. 326-327).

Se o terremoto de 1755 constituiu-se como um acontecimento filosófico crucial, isso não se deveu apenas a seus incontáveis mortos, às ruínas e à destruição da cidade. Foi este o fato a recolocar no centro das investigações metafísicas a questão do Mal na natureza, o que abalava os fundamentos da harmonia preestabelecida no mundo leibniziano e seu “melhor de mundos possíveis”. Quanto à catástrofe atual, ela não mais se liga à história da natureza, mas à história da cultura, que, por sua vez, pôs a nu a desordem, estabelecida por Auschwitz e Hiroshima, isto é, a razão ocidental que dissolveu o mais essencial do humano &– a compaixão e a autonomia do pensamento &– nos totalitarismos.

Tão abstratos quanto os números,são os homens quando reduzidos a conceito ou sujeito,na indiferença entre o momento lógico e o psicológico no conhecimento, passando a ciência à neutralidade diante de seus objetos de reflexão. O animismo primitivo &– ou a magia e o mito &– exigiam sacrifícios de sangue; quanto à ciência moderna, não passa de sublimação das antigas práticas mágicas. Benjamin anota:

Sem pretender aproximar-me minimamente do significado das causas econômicas da guerra, podemos afirmar que a guerra imperialista, no que tem de mais terrível e fatal, é codeterminada pelo abismo, entre os gigantescos meios da técnica, de um lado, e sua exígua iluminação moral, de outro (1986, p. 130-137).

A associação entre ciência e guerra dá-se no apogeu do domínio humano da natureza. Seu objetivo não são os conceitos, nem a felicidade da contemplação, mas o método, a exploração do trabalho dos outros, o capital.

O progresso não realizou por si só a felicidade dos homens. Quanto mais se acumulam métodos e instrumentos, menor é seu sentido. Ciência e sociedade tecnocrática e de consumo formam destros escultores, sem que jamais tenham questionado o que é o Belo; hábeis construtores, que utilizam materiais de ponta, mas que desconhecem as nervuras do conhecimento, substituem a lei pela regra, a regra pela simples fórmula para o funcionamento lógico do pensamento. Com exímios gestores financeiros não se corre o risco de enfrentar a condição do homem moderno e do sentido de suas vidas. Estabelece-se, na modernidade, o conflito entre ciência, política e moral. A ciência não se guia mais pela idéia de fim último ou Sumo Bem, e por isso pode servir a qualquer fim.

Filósofos antigos e modernos confiavam nos conhecimentos e na formação do espírito, do caráter e no exercício da faculdade de julgar como fontes liberadoras do homem: liberação do medo e das superstições, das carências impostas por uma natureza hostil e, sobretudo, do medo da morte graças aos avanços das ciências, da técnica e da política capazes de deter as guerras e promover a justiça e o bem-estar entre os concidadãos. Mas a felicidade, hoje, escreveu Adorno, é uma “ciência esquecida”. Tendências totalitárias são preservadas no interior da cultura científica e no apogeu do desenvolvimento técnico. A ciência, dizem Adorno e Horkheimer, é totalitária porque não reconhece nenhum limite na manipulação da natureza. Na contemporaneidade o homem não faz “sua própria história” mas a própria natureza, desconhecendo qualquer limite moral.

O capitalismo contemporâneo é uma sociedade de desconfiança e medo. Em recente pesquisa de opinião feita no Rio de Janeiro pelo CPDOC e pelo Iser (1998), verificou-se o desaparecimento de um dos traços mais essenciais da tradição democrática ocidental: a comunidade política. Assim como declina a percepção de direitos sociais, civis e políticos, o mesmo ocorre com a cidadania entendida como confiança nos concidadãos. A globalização econômica põe em risco a coesão social. Segundo a pesquisa, observa José Murilo de Carvalho: “(...) existe confiança apenas quando se trata de parentes e líderes religiosos, vindo amigos e vizinhos em segundo lugar. Isso é, a confiança se verifica dentro do mundo religioso e das relações primárias, e não no mundo civil” (2000, p. 110).

Pela tolerância mágica da amizade, aceitamos de um amigo algo que não concederíamos a mais ninguém; também é ela que diminui os efeitos dramáticos do “mau encontro”, dos infortúnios, pois nela a dor é vivida em comum e compartilhada. Se a comunidade política sujeita-se às contingências da fortuna, passa-se o inverso com a amizade, pois só ela tem a força para impedir que as diferenças de posses, fama e honras dividam os amigos, pois o que é de cada um é de todos e todos agem para que cada um seja o que é e tenha o que tem por uma reciprocidade entre iguais. La Boétie diz que a amizade imita a felicidade e a auto-suficiência do divino; por isso, para ele, “a amizade é coisa sagrada e sacrossanta”.

A phylia antiga &– a amizade &– possuía a medida sábia e a boa proporção para a vida feliz, na cidade &– a dimensão em que o homem se torna propriamente homem, em que se confundem política e pensamento racional, a de La Boétie amplia seus domínios, transcende a própria pólis ou lhe confere um sentido inédito, pois, “se pela política nos humanizamos, pela amizade nós nos divinizamos”.5

 

Referências

Abensour, M. (1998). Mars e o momento maquiaveliano. Belo Horizonte: UFMG.        [ Links ]

Adorno, T. W. (1980). Negative Dialektik. Frankfurt: Suhrkamp.        [ Links ]

Benjamin, W. (1986). Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix.        [ Links ]

La Boétie, E. (1982). Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

Carvalho, J. M. (2000). Cidadania na encruzilhada. In N. Bignotto & E. Jardim (Orgs.), Pensar a república (pp. 105-130). Belo Horizonte: UFMG.        [ Links ]

Heidegger, M. (1979). Construir, habitar, pensar. In F. Choay, O urbanismo. São Paulo: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1958).        [ Links ]

Homero (2002). Ilíada. São Paulo: Mandarim.        [ Links ]

Lagopoulos, A.-P. (1994). Semiotics and archeology: The fine arts and the conceptions of space in Ancient Greece [As belas artes e a concepção de espaço na Grécia Antiga]. Revista de História da Arte e Arqueologia. Campinas, 1, 10-22.        [ Links ]

Meier, C. (1998). Política e graça. Brasília: Universidade de Brasília.        [ Links ]

Valéry, P. (1996). Eupalinos ou o arquiteto. Rio de Janeiro: Ed. 34.        [ Links ]

Vernant, J.-P. (1985). La mort dans les yeux. Paris: Hachette.        [ Links ]

Wolf, F. (1999). Aristóteles e a política. São Paulo: Discurso.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Olgária C. F. Matos
E-mail: olgaria@uol.com.br

Recebido: 17/09/2007
Aceito: 28/09/2007

 

 

* Texto apresentado na Mesa Redonda: “Ética e psicanálise”, organizada pela Associação de Candidatos da SBPSP, a convite de sua presidente Jassanan Amoroso Dias Pastore. Auditório Adelheid Koch. 26 agosto de 2000.
** Filósofa. Doutora, livre-docente e professora titular pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Autora dos livros: Rousseau, uma arqueologia da desigualdade, São Paulo: MG Editores; Paris 1968: As barricadas do desejo, São Paulo: Brasiliense, Coleção História; Os arcanos do inteiramente outro: A escola de Frankfurt, a melancolia, a revolução, São Paulo: Brasiliense; A escola de Frankfurt através dos textos, São Paulo: Moderna. Publicou os ensaios: “W. Benjamin: desejo de evidência, desejo de vidência”, in O desejo, São Paulo: Companhia das Letras; “A civilização sem descontentes”, in Tempo e História, São Paulo: Secretaria Municipal da Cultura/Companhia das Letras; “Sombra e luzes do Iluminismo”, in Revista USP; “Algumas reflexões sobre o amor e a mercadoria”, in Revista Discurso, entre outros.
1 Aristóteles indica, na desproporção por excesso e por falta, o vício, e no “justo meio”, a virtude: a coragem é a ponderação comedida, nem covardia (falta de coragem), nem temeridade (seu excesso).
2 A phylia já se encontra na Ilíada com valor de charus, “dileto amigo”, e atravessa toda a história da Filosofia. Da Grécia arcaica até nós, a amizade é um valor de puro afeto, possibilidade do amor social e político, lei essencial e elementar da sociabilidade, do respeito recíproco em um mundo compartilhado. Cf., por exemplo, Platão, em O banquete; Aristóteles, na Ética a Nicômaco; Epicuro, nas Cartas a Meneceu; Sêneca, na Carta a Lucílio; Cícero, em Dos deveres; La Boétie, no Discurso da servidão voluntária; Montaigne, nos Ensaios; Espinosa, na Ética; Voltaire, no Dicionário filosófico; Kant, na Fundamentação da metafísica dos costumes; Nietzsche, em Assim falava Zaratustra; Kierkegaard, em Vida e reino do amor; Max Schel1er, em Natureza e formas da simpatia; Durkheim, em A divisão do trabalho social; Freud, nas Considerações sobre a guerra e a morte; Bataille, em O erotismo; Reich, em A análise caracterial; Eric Fromm, em A arte de amar; Jankélévith, no Tratado das virtudes; Horkheimer, em Schopenhauer e a sociedade; Hannah Arendt, em A condição humana; Popper, em A sociedade aberta e seus inimigos; Derrida, em Politiques de l’amitié, psyché; Lévinas, em Totalité et infini, entre outros.
3 Lembre-se, no que se refere à França, de que ela se encontra, no século XVI, em plena guerra de religiões; Espanha e Portugal, no empreendimento das Conquistas, abrem a querela da escravização dos nativos da América (Chauí, 1999).
4 O homem, capturado pela abstração matemática, converte-se em número e é objeto da estatística. No século XIX, as universidades procuravam dirimir essa tendência. Adam Smith lecionava na Universidade de Cambridge a disciplina, não de “economia”, mas de “filosofia moral”, cujos preceitos normativos deveriam reger, em benefício dos homens, suas produções.
5 Chauí, Marilcna. O mau-encontro. In: A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 462.

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