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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

Amor e sexualidade: uma linguagem extraviada*

 

Love and sexuality: a language misled

 

 

Jassanan Amoroso Dias Pastore**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando como ilustração o romance e o filme O cheiro do ralo, este ensaio procura discutir a concepção psicanalítica de sexualidade que não admite necessariamente uma coincidência dessa com amor e vida, reunidos em torno de Eros, e desenvolver a idéia de uma espécie de amor que rompe o elo com Eros e se liga à pulsão de morte (Tânatos).

Palavras-chave: Amor, Fusão, Gozo, Sexualidade contemporânea, Unheinliche.


ABSTRACT

Based on the novel and film O cheiro do ralo (The smell of the drain), this essay discusses the psychoanalytical concept of sexuality that does not necessarily admit a coincidence between sexuality and love & life, gathered around Eros, and develops the idea of a kind of love that breaks the tie with Eros and connects with the death instinct (Thanatos).

Keywords: Love, Fusion, Enjoyment, Contemporary sexuality, Unheinliche.


 

 

É uma brasa o amor, que se deve esfriar,
Pois fogo ateará, se aceita, ao coração.
Tem limites o mar, não o desejo vivo.

Shakespeare, 1999, p. 11.

Ao ser convidada para falar sobre amor e sexualidade, logo me veio a idéia de que se tratava de uma imbricação extraviante.

As reflexões sobre o amor remontam de longa data, passando pela Grécia antiga, principalmente pelo Banquete, de Platão, fonte do mito amoroso no Ocidente, e prosseguem até os dias atuais.

A formulação freudiana do aparelho psíquico ressalta a importância da sexualidade, do inconsciente e da dinâmica pulsional &– conflito entre as pulsões de vida (Eros) e de morte (Tânatos) &– na constituição da subjetividade.

Ao falarmos em sexo, sexualidade, desejo, é comum recorrermos imediatamente ao conjunto dos sentimentos essencialmente ligados ao amor. Porém, a concepção psicanalítica não sustenta necessariamente uma coincidência da sexualidade com amor e vida, reunidos em torno de Eros, como bem nos lembra Fabio Herrmann (2005) em seu ensaio sobre o amor contrário. Segundo o autor, no nosso entender, em seu trajeto extraviado, a excitação pode também advir de um “amor contrário”, uma espécie de amor que só aceita se exprimir às avessas, rompendo o elo com Eros e ligando-se à pulsão de morte (Tânatos), e que adquire um sentido disruptivo, desagregador, entranhado pelas veredas da nossa sexualidade infantil, perverso-polimorfa, que sabemos ser regida pelas pulsões parciais, correspondentes às diversas zonas erógenas, anteriores ao estabelecimento das funções genitais que as unificarão sob sua primazia. Pulsão de morte que inclui não só a tendência ao inorgânico como também a tendência ao desprazer da dor pela destruição de si mesmo e do outro.

Psicanaliticamente falando, a sexualidade humana transita e se expressa ora como um fenômeno puramente pulsional, ora como uma malha simbólica, elaborada com sofisticação; ela é, portanto, pulsão e desejo, ruptura e ligação, que impregnam e surpreendem nossas vidas, dentro e fora de nossos consultórios.

A pulsão, mola propulsora do trabalho mental, se situa no limite do psíquico para o somático. A invenção do humano se dá no ilimitado da fala, do simbólico, diante dos limites e da precariedade do corpo biológico: “É uma bela loucura falar. Com isso, o homem dança sobre e por cima de todas as coisas”, salienta Nietzsche (1997/1987). O corpo erógeno e sexuado é, por assim dizer, aberto, a partir dos órgãos do corpo biológico, que se tornam dispositivos de prazer na relação com o outro. A sexualidade humana tem sua origem nesse corpo erógeno, já ele um extravio do corpo biológico porque está relacionado às fantasias perverso-polimorfas originárias, conforme nos mostra Freud ao tratar das aberrações sexuais nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1976f).

A sexualidade humana não se subordina ao instinto e a seus padrões, mas antes às pulsões e ao desejo. O humano, ao se distanciar do prazer animal, dirige-se ao encontro do desejo no olhar do outro, que o acolhe em seu desamparo, dando origem à sexualidade, que será construída ao longo de um relacionamento, por vezes angustiante, de cada criança com suas próprias pulsões, através da relação com o outro.

A partir da vivência de satisfação, supostamente experimentada com a intermediação do adulto para suprir suas necessidades, o recém-nascido, desamparado, vai formando, com o outro, um vínculo de dependência, que futuramente servirá como fonte de desejos que o mobilizarão em suas buscas. Porém, como nos lembra Freud em “Escritores criativos e devaneios” (1908/1976a, p. 151) “... quem compreende a mente humana, sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa pela outra”. Portanto, é característica inexorável da pulsão jamais abandonar o objeto que lhe trouxe satisfação. As tonalidades das nossas primeiras ligações amorosas colorem “quem somos” e “quem seremos”: o nosso destino. Segundo Freud, ao enunciar o que ficou conhecido como a “teoria do apoio”, a sexualidade de início toma como apoio as zonas destinadas ao cuidado materno, para lentamente ir se diferenciando como um extra de prazer sobreposto à função vital. É a partir de tais ligações que a criança pratica seus primeiros jogos amorosos conflitantes, fantasiados, desejados e aprende a suportar suas vicissitudes, passando pelo abandono, a traição, a sedução e o ciúme.

Freud percebeu, antes mesmo da “Interpretação dos sonhos” (1900/1976d), que as seduções sexuais sofridas na infância eram fantasias. Assim, o que é retido nos traços mnêmicos é a experiência de satisfação, que se constitui na primeira experiência em que se dá a diferenciação prazer/desprazer. Podemos deduzir daí

que a imagem da mãe não é talvez o tema mais profundo nem a razão da série amorosa, pois embora seja certo que nossos amores repetem nossos sentimentos pela mãe, também, repetem outros amores que nós mesmos não vivemos e nunca viveremos. A mãe aparece mais como transição de uma espécie a outra, a maneira como nossa experiência começa, mas que já se encadeia a outras experiências realizadas por outro (Azambuja, 2000, p. 74).

É na complexidade do jogo amoroso, em que topam o desejo da criança e o desejo da mãe, sedução e fantasia, que se estrutura a sexualidade, por nós chamada de sexualidade adulta em sua forma definitiva.

Encontramos a primeira elaboração psicanalítica do fenômeno do desejo na “Interpretação dos sonhos” (Freud, 1900/1976d), em especial no capítulo 7. De acordo com a hipótese metapsicológica de Freud, o recém-nascido, desvalido, busca uma simulação alucinatória da satisfação das suas necessidades orgânicas, vetorizada pela tendência à descarga de toda a excitação pulsional. Primariamente, as necessidades &– a fome por exemplo &–, são percebidas como um desprazer, aplacado pela presença da mãe/seio que então será registrada na memória da criança e associada ao prazer e ao alívio. A natureza cíclica das necessidades orgânicas demandará a recuperação dessa imagem do objeto, que a aplacou uma vez, sob a forma de uma percepção alucinatória &– percepção de uma imagem do objeto efetivamente ausente. Essa antecipação da satisfação mediante um gozo imaginário é o que Freud chama de desejo.

O despertar da pulsão ocorre após esse trabalho alucinatório da imaginação que pode transformar a carência de algo no desejo de gozo infinito e paradoxal, porque associado à satisfação plena e permanente. O desejo é, pois, tentativa de ultrapassar o desprazer provocado pela repetição cíclica da necessidade representando um “objeto mítico” capaz de suplantar toda e qualquer falta.

O nascimento é encarado como a perda do complemento orgânico que joga o recém-nascido, ao mesmo tempo, no reino da carência e no da dependência do Outro, mãe. O primeiro desejo consiste em fundir-se com ela, para incorporar o desejo da mãe na condição de objeto capaz de obliterar a falta que lhe dá origem. Esse desejo de ser “o” objeto do desejo da mãe, e não um entre os possíveis objetos dos seus desejos, implica a percepção da criança a respeito de si mesma como causa do desejo da mãe. Essa nossa origem, estreitamente vinculada ao universo fusional da relação com a mãe, é denominada “loucura materna” por André Green (1988). Na impossibilidade do desejo de fusão, pela interdição simbólica da lei, representada pelo pai, a castração pode ser vivida como angústia derivada do problema de não ser: não ser “o” objeto do desejo da mãe.

Assim, caberia pensar qual a conexão entre o erotismo e o mundo fusional incestuoso da relação com a mãe (Canelas, 2005)? Em “Os instintos e suas vicissitudes” (1915/1976c), Freud revela a idéia de que não há pulsão dissociada de seu contrário. Em 1920, ele ressaltará o aspecto possessivo, fusional e dominador do amor materno, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, é ela mesma, a mãe, a precursora do mundo civilizatório, por meio de outra necessidade, a do amor e proteção, o que aponta para a coexistência conflituosa entre o estado de natureza e o estado de cultura.

Em seu livro Nem todos os caminhos levam a Roma, Radmila Zygouris (2006) afirma “que nós nos constituímos a partir do ambiente da infância, mas apenas em parte. É preciso saber esquecer a família quando outras forças podem entrar em jogo”. E ela lança o seguinte questionamento: “Será que devemos sistematicamente reconduzir nossos pacientes aos lugares ‘originários’, os de sua realidade social e histórica (o que acontecerá de qualquer jeito) ou será que existem outras moradas possíveis para situar os acontecimentos psíquicos? Moradas que temos deixado totalmente inexploradas?” (p. 65). Para ela, tanto a estrutura familiar tradicional como o triângulo edípico clássico não podem mais ser os únicos representantes dos processos psíquicos em seu devir: “... ora, lá onde uma estrutura simbólica vacila, outra virá em seu lugar. Haverá estruturas simbólicas novas porque criar símbolos faz justamente parte das competências da espécie humana. Nossa fragilidade consiste em querê-las eternas e imutáveis” (p. 67).

Octávio Paz escreve um verdadeiro tratado sobre o amor-erotismo, em sua dimensão criativa, simbólica e de linguagem, em seu livro A dupla chama: Amor e erotismo (1994), título já sugestivo da duplicidade de que trata. Ali ele nos oferece a imagem do fogo: a sexualidade, fogo original e primordial, acende a chama vermelha do erotismo que sustentará e elevará a chama azul e trêmula do amor. Ou seja, a labareda que dá vida à nossa alma (aparelho mental), fonte sexual da pulsão, traz em seu bojo uma dimensão ambígua: incendeia e aquece, desliga e liga, destrói e cria, convulsiona e modera. É perigo e porto seguro.

Nos amantes, encontramos inscrições psíquicas distintas, ao nos referirmos às manifestações sexuais de amor e de paixão: “Enquanto o amor está no registro simbólico da sexualidade, a paixão estaria no registro da pura necessidade, da pura pulsão” (Azambuja 2006). Ambas visam ao prazer, porém, algumas vezes, ligado à vida, e outras, à morte. A paixão se revela, portanto, como força tanática da sexualidade. Assim, o amante, muito além da busca de prazer sexual, deseja unir-se e confundir-se com o amado.

O erotismo descortina para a morte, ressalta Georges Bataille (2004) ao propor sua fórmula: “O erotismo é a aprovação da vida até na morte” (p. 19). Ele também nos fala da profunda e estreita afinidade entre erotismo e fusão, afirmando que o objetivo último do erotismo é a fusão &– supressão do limite, excesso &–, embora, em seu primeiro movimento, seja significado pela posição de um objeto do desejo. “O corpo é a paródia do crime”, assinala Bataille, inscrevendo o erotismo no campo da violência, da violação. Somos todos participantes da body art, “profanadores de terrenos sagrados: o leito do amor, o banheiro, lugares do toque despudorado, do prazer clandestino, da possível libertinagem de cada um de nós” (Chnaiderman, 2005, p. 51). Freud mostra-nos que onde a fúria da destruição é mais cega pode sempre estar presente uma satisfação libidinal e que as impressões freqüentemente dolorosas são fonte de intenso gozo. É o que há de demoníaco, de inumano, pulsando nas veias de todos nós.

Aproximamo-nos, assim, da noção de gozo, tal como aquilo que não cabe na palavra, que não comporta um nome. Aquilo que é barrado pelo desejo, aquilo com o que topamos, aliás, ao ler o romance O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli (2002), e ao assistir o filme, adaptado do romance homônimo e dirigido por Heitor Dhalia (2007). Versão contemporânea do erotismo batailleano, poderíamos dizer.

Eu não conhecia Lourenço. Na edição da Flip (Festa Literária de Parati) de 2006, ele me foi apresentado à medida que contava dramática e comicamente, o enredo de seu livro O cheiro do ralo. Humor negro. O protagonista do romance é um colecionador, comerciante cruel e cool, dono de um brechó-bordel, com obsessões fúnebres relacionadas à violência erótica: o bumbum de uma garçonete da lanchonete onde almoça, um olho de vidro adquirido numa de suas negociatas e o odor fétido que exala do ralo de seu banheiro no galpão da loja. Ao escutar Lourenço me agito, sou empurrada a me deslocar de assento, me aproximo cada vez mais de sua voz. Fascínio e náusea. Ele menciona que aquelas experiências “estranhas” estão em íntima conexão com suas vivências na análise. Na platéia, risos e suspiros, gritos e sussurros. Meu corpo fica visceralmente tomado pelas palavras e gestos de Lourenço, que se prolongam dentro de mim, mesmo após o término de sua exposição. Adquiro o livro. Escrito na primeira pessoa, o protagonista não porta um nome. O narrador é anônimo, assim como todos os personagens, e fala de obsessões sexuais com frases taquigráficas. Ao ler a novela, deixo-me perder naquelas palavras jogadas, entremeadas, com que os escritores de literatura tão bem brincam para exprimir, vivamente, a nossa humanidade. Sonho. Alguns meses depois tomo conhecimento da adaptação do romance para o cinema. Curiosidade e espera.

Avant-première do filme, após seis meses do meu contato inicial com o escritor da obra. Alguns críticos versam sobre o filme, num tom apocalíptico, conforme minha apreensão. As imagens que habitavam meu subterrâneo vão sendo recuperadas em minhas entranhas. Entro na sala escura do Lumière. Alguns espectadores comentam apreensivos: “Ouvi dizer que o filme é trash”, enquanto outros dizem“Que nada! É divertido! É só gozação”.

Para meu espanto, à medida que a projeção transcorre, vou me dando conta de que participam do enredo do filme o protagonista, dono do brechó, de nome Lourenço, interpretado por Selton Mello; o segurança do brechó, desprovido de nome, mas interpretado pelo próprio Lourenço Mutarelli. Quem é quem no texto da novela e no filme? Autor e personagem se misturam? Quem representa quem? Quem é o sujeito e quem é o objeto? Lembremos que o mundo do objeto é o mundo do objeto acrescido da nossa fantasia sobre ele. Trata-se de ficção ou autobiografia? Ou ambos e nenhum? Isso nos faz pensar no interjogo de fantasias que fazem o vínculo, o sujeito mais o objeto, uma versão de mundo, uma história a partir da qual se cria a fantasia.

O “duplo”, discutido por Freud, nos freqüenta. Em seu texto Das Unheimlich, “O estranho” (1919/1976b), ele utiliza-se das decomposições semânticas desse termo em alemão para descrever a concepção psicanalítica de vivências psíquicas de encontro dos contrários de familiaridade e estranheza. A palavra Unheimlich abarca não só o familiar (heimlich) como também o secreto, o escondido, o não-familiar (un-heimlich), que expressa, segundo Freud, o efeito do processo de recalque. Freud foi fiel à semântica do Unheimlich como a categoria do desconhecido/terrorífico que remete ao conhecido/familiar de outrora, mas que, em certas condições, se tornou alheio pelo processo de recalque a que foi submetido, e que por isso mesmo, como sombra, pressiona o retorno. A experiência de Unheimlich corresponde a esse retorno do desejo inconsciente vivido pelo sujeito como essa enigmática presença do estranho no mais íntimo &– inquietante estranheza. Estranhamento familiar, movimento ambíguo do desejo de proximidade e afastamento. “Extimidade” é o neologismo criado por Lacan (1988, p. 173) para indicar o traço da intimidade que se lê no exterior &– “terra estranha interior”.

Logo na cena de abertura, Lourenço recebe o primeiro cliente interessado em vender um relógio-relíquia que pertenceu a um sábio e visionário professor de arqueologia, chamado Soran. “Soran era um anagrama”, diz o freguês. E podemos pensar esse anagrama como um horizonte de combinações e desdobramentos, como num dia de céu aberto, ou circunscrevê-lo, melodicamente, como “ranso/ranço”. Ressentimento? Talvez. O dado está lançado.

Surpreendentemente, Lourenço recebe um cliente de cada vez, a portas fechadas. Diverte-se ao humilhá-los e submetê-los ao seu poder. Reduz cada objeto antigo oferecido e revestido de significados pelo cliente a “balangandã”, a “quinquilharia”: objeto sem traços, sem marcas, sem história. Pura mercadoria. Objeto-dejeto. Com exceção do olho, herança paterna, diabólica e cruel. Objeto-deus. Panóptico. Bataille nos diz que só há êxtase se existe a sacralidade. Então, o que é profano e o que é sagrado?

Ao assistir ao filme, somos questionados como sujeitos de nossos desejos e empurrados a nos desalienar de nossa imagem, sempre construída a partir do olhar que nos olha. O jogo de espelhos se contraverte; reflexo da miséria em vez do júbilo. A imagem do duplo revelando nossa precariedade. O outro exterior e íntimo, a quem estamos ligados mais que a nós mesmos, ainda que não queiramos saber de nada disso. Espectro, vulto. Algo do imponderável nos ronda. Somos tragados por um mundo que nos fragmenta pelo real das paixões do corpo. Pulsões parciais em jogo. Instrumentos de tortura e êxtase. Inconsciente óptico como uma mind-full-body (Canevacci, 2005), fragmentação do corpo, de uma mind com idéias esparramadas por todo o corpo, não todas na cabeça. “A vida é dura...”, repete insistentemente o protagonista do filme. Lourenço expõe corpos relacionados com o seu corpo, porém o seu corpo é o corpo de todos nós. Lourenço atribui o fedor ao ralo, mas sabemos que ele habita o seu/nosso interior. Há sempre em nós um duplo, que amamos e detestamos ao mesmo tempo, cujo triunfo tememos, assim como nossa aniquilação. Gestos e palavras modulam sua voz com uma dicção seca e cortante. Abismo entre o ato e a linguagem. Ausência de sonhos. Um caldeirão de pulsões assombrando o sono. Fantasmas anunciando a morte. Ameaça. Terror.

Gozo é pura intensidade, força de transgressão que explode a barreira do princípio do prazer e abala o interdito. Cenário inumano e profundamente humano. Somos invadidos por uma imundície fétida, enfim, por aquilo que há de mais informe, sem metáfora possível. Tudo é raso e ralo. Uma mente rasa em que os conteúdos mentais escoam pelo ralo. A vida como violência permanente. “Ligo a TV. Um jornal repete o atentado de um mundo que eu mesmo fiz”, diz-nos o protagonista. É esse o mal radical de O cheiro do ralo.

O universo feminino comparece com a caixinha de música. Cantigas de ninar e jogo de espelhos. Mas “sem pecado não há Eros nem suas lágrimas” (Canevacci, 2005). Num instante, Lourenço devaneia: “De todas as coisas que tive, as que mais me valeram, das que mais sinto falta, são as coisas que não se podem tocar. São as coisas que não estão ao alcance de nossas mãos. São as coisas que não fazem parte do mundo da matéria”. A cena do pranto intenso, prenhe de emoção, no momento de seu abraço apertado junto ao bumbum da garçonete &– objeto de desejo por excelência &–, único átimo de contato amoroso possível, elevou Lourenço ao eterno retorno, ao reencontro fusional, arrebatador, com a mãe, objeto perdido, jamais recuperado: um flash de unidade &– tentativa narcísica totalizante, constituinte do Eu, de fazer um só de dois, de ultrapassagem do desamparo original. No dizer de Freud no momento da unificação, o erotismo se perde e a pulsão se dessexualiza.

No romance, o protagonista sonha: “Se aquela bunda estivesse comigo agora eu brincaria tanto com ela. Eu brincaria com ela como um garoto brinca com o seu Rosebud” (Mutarelli, 2002, p. 18). Na associação, Rosebud &– objeto de investimento afetivo que desencadeia a narrativa de Cidadão Kane, de Orson Welles &–, no imaginário, a infância perdida. Pela porta dos sonhos, escapa o desejo de misturar sexo, tortura e morte. Vida e morte.

Freud salienta, e Lacan reitera, a diferença entre o princípio de nirvana &– tendência de retorno ao inorgânico, ao inanimado &– e a pulsão de morte da segunda tópica. Reafirmada por Bataille, essa é destruição direta. Quer sempre tornar um Outro, quer sempre destruir o Outro, formando sempre o Um, o pleno, que é a morte, o movimento que cessa. Aniquilamento do Outro que é fonte da linguagem e de inserção na cultura. No sadismo/masoquismo, o gozo advém do “suposto gozo no outro”: ao infligir dor no outro, gozamos por identificação com o sofredor. Gozo jamais atingido. É esse o jogo erótico que Lourenço nos indica: quem goza com o gozo de quem? São nossos corpos objetos de um gozo sádico? O gozo é um mal porque comporta o mal do próximo.

O movimento surrealista, representado em especial por André Breton, nos idos de 1920-30, já abrira o caminho para a necessidade de nos ocuparmos da dor humana até suas últimas conseqüências. “O tema da dor é nosso campo de batalha”, diz Bataille. O contato com o pensamento de Sade forneceu aos surrealistas uma das percepções mais lúcidas: a de que a crueldade do marquês contém os mesmos traços da ferocidade da infância, reiterando a idéia freudiana de que o ser humano encerra dentro de si um princípio do mal, princípio que está na origem do desejo, importando menos se damos a ele o nome “de amor louco” ou de erotismo. Bataille propõe elevar a vida ao nível do pior. Ele pretende ultrapassar as visões sublimadas da realidade (Chnaiderman, 2005, p. 53), o que só pode ser conseguido através de uma “cólera negra e até mesmo uma bestialidade” (Moraes, 2002, p. 155).

Michel Leiris, em 1922, já “com poucas ilusões sobre a realidade do vínculo” (2003, p. 15) e dilacerado pela Primeira Guerra, inicia a escrita de sua autobiografia intitulada A idade viril. Em 1929, sofrendo de impotência sexual e intelectual, decide seguir um tratamento psicanalítico. Em 1938 ele publicará O espelho da tauromaquia e, às vésperas da Segunda Guerra, acrescentará um adendo à sua obra A idade viril no qual nos conta que esse título, afinal, não desmentia “o propósito último de busca de uma plenitude vital que não se poderia obter antes de uma catharsis, uma liquidação, da qual a atividade literária &– e particularmente a literatura dita “confessional” &– é um dos mais cômodos instrumentos” (2003, p. 15). O anexo foi batizado “Da literatura como tauromaquia”.

Em sua autobiografia, Leiris afirma que,

de maneira geral, sadismo, masoquismo etc. não constituem para mim “vícios”, e sim meios de alcançar uma realidade mais intensa. No amor, tudo me parece sempre demasiado gratuito, demasiado anódino, demasiado desprovido de gravidade; seria preciso intervir a sanção da desonra social, do sangue ou da morte para o jogo valer realmente a pena (2003, p. 184).

Ou seja, sadismo, masoquismo são meios de sentir-se demasiadamente humano e vivo, por estabelecerem relações mais profundas, e mais disruptivas, à queima-roupa, com os corpos.

Leiris quer tentar introduzir uma realidade humana à sua obra literária, pensada como, ao menos, a sombra do equivalente daquilo que é para o torero o “chifre do touro”. Por meio dessa forte imagem, cara ao autor, ele pretende uma espécie de gênero literário em que a condição humana seja olhada de frente, ou “agarrada pelos chifres”. Arena. Risco de confissão e subversão. Uma literatura que ilumine certas coisas para si próprio, ao mesmo tempo em que elas se tornam comunicáveis para outros. E, declara:

O matador que corre perigo em nome da oportunidade de ser mais brilhante que nunca, e mostra toda a quali dade de seu estilo no instante em que é mais ameaçado; eis o que me maravilhava, eis o que eu queria ser (2003, p. 17).

Porém, em 1935, ele colocará um ponto final em sua autobiografia, afirmando ser “necessário construir um muro ao redor de si, com o auxílio da roupa” (2003, p. 192).

Assim, o erotismo vai-nos mostrando que a sexualidade é simultaneamente mais do que o ato sexual e menos do que a fusão. Como todo o humano, está sempre aquém e além de si mesma.

Ao adentrarmos no campo da sublimação, Freud dirá que ela será um dos quatro destinos da pulsão e, sobretudo, uma maneira de satisfazer as pulsões sexuais polimorfas através do desvio do alvo e do objeto sexual em direção a novos alvos, ligados, principalmente, às atividades artísticas. Ele fala também da sublimação como inibição quanto ao alvo. Em ambas as situações, a sublimação estética indicaria o modo através do qual a energia sexual seria dessexualizada e colocada a serviço do eu, o que permitiria a transformação da libido em realização social.

Se, por um lado, a pulsão, sem objeto próprio, determinado, não pode ser satisfeita, por outro, sua mobilidade, seu objeto contingente, proporcionam o encontro de inúmeras formas de satisfação, pelo filtro do desejo. Nessa perspectiva errante, a entrada na cultura indica ao viajante os caminhos, por excelência, para a ampliação de tais realizações. E a cultura deixa de ser um resíduo inútil da pulsão (sublimada). Lado a lado com o “acaso” da pulsão &– produtor de sentidos inesperados em que situamos as pulsões sexuais e a morte &–, que a nada desobedece porque foge a qualquer lei, podemos encontrar a criação de infinitos laços pelo desejo. Os encontros fortuitos, as aventuras, os tropeços, “as escorregadas”, por romperem com a homeostase subjetivante do princípio do prazer, abrem brechas que conduzem à alteridade.

Seguindo Guimarães Rosa (2001), que nos fala que “todo amor é um descanso na loucura”, loucura que poderia ser entendida como puro sadismo/masoquismo, atividade/ passividade, poder/submissão &– traços da sexualidade pré-genital &–, em A organização genital infantil, Freud (1923/1976e) aponta para a genitalidade como possibili - dade distinta de organização da pulsionalidade parcial. Seria então o auge do curso de nosso desenvolvimento sexual, momento em que aqueles elementos parciais podem se entrecruzar numa rede simbólica que nos proporcionará experiências de troca, de parceria, ainda que inseridas num tempo cintilante.

A sexualidade nos acompanha em suas nuances, as quais ora nos conduzirão por percursos sublimatórios, ora nos atravessarão por trajetos catastróficos, conforme nos inspiram Nietzsche (1887/1987), ao dizer que “é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”, e Freud, ao nos alertar, por meio de uma delicada metáfora, de que os sonhos são como as estrelas &– estão sempre disponíveis, mas para avistá-las é preciso que se faça o escuro.

É nesse sentido que Freud fala da íntima ligação entre sexualidade e vida, como irrigação possível que arrefece o princípio do prazer em sua negociação com o princípio de realidade, propiciando-nos vôos ora sublimatórios, ora simbólicos. A cultura é um desvio da natureza e a sexualidade é o traço desse desvio. Renunciamos às nossas perversões, contudo podemos revivê-las por meio da arte.

Retomando a recomendação de abertura, “Soran era um anagrama”, feita pelo primeiro cliente no romance, o vendedor de relógio, podemos pensar que ela faz alusão ao inesperado do nascimento, mas também ao seu esplendor: à magia e às múltiplas possibilidades de renascimento que a cultura nos oferece. Sorte? Talvez. Trazemos conosco o nosso anagrama... E, se nem todos os caminhos levam a Roma, nem todos os caminhos da sexualidade levam ao amor. Existe sempre a sétima face do dado.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Jassanan Amoroso Dias Pastore
Rua Capote Valente, 432/82 &– Pinheiros
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Tel.: 11 3081-4349
E-mail: jassanan@uol.com.br

Recebido: 22/04/2008
Aceito: 29/04/2008

 

 

* Reflexões sobre o romance e o filme O cheiro do ralo. Trabalho apresentado na mesa-redonda “Amor e sexualidade hoje”. XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise. Porto Alegre. Maio 2007.
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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