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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Além das projeções do artista: a interpretação freudiana circunscrita ao universo da obra1

 

Beyond of artist projections: the freudian interpretation circumscribed to the universe of the work of art

 

 

Maria Vilela Pinto Nakasu*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

“O Moisés de Michelangelo” (1914) apresenta um tipo de interpretação psicanalítica não autobiográfica. Diferentemente da análise de Leonardo da Vinci, Dostoievski e Christoph Haizmann, para sua interpretação em “O Moisés de Michelangelo” Freud prescinde da biografia do artista na elaboração de suas hipóteses, o que nos fornece subsídios para supor a existência de dois estilos de Freud na interpretação das obras de arte de maneira geral: a análise biográfica e a análise circunscrita ao universo da obra artística. Este artigo se propõe a discutir, em campo maior do que comumente se costuma denominar “psicanálise aplicada”, em que medida a crítica que tende a reduzir a interpretação psicanalítica da arte ao par complementar artista-obra opera certo reducionismo psicológico.

Palavras-chave: Cultura, Obra de arte, Freud, Psicanálise aplicada, Interpretação.


ABSTRACT

“The Moses of Michelangelo” (1914) present a kind of non-biographical psychoanalytic interpretation. Different from Leonardo da Vinci’s, Dostoievski’s and Christoph Haizmann’s analysis, in order to his interpretation in “The Moses of Michelangelo” Freud leaves the writer’s biography aside as to elaborate his hypotheses, which gives us contribution to suppose the existence of two styles in Freud’s interpretation of works of art in general: biographical analysis and an analysis circumscribed to the universe of the work of art. The present paper intends to discuss, within a major field than that which is commonly called “applied psychoanalysis”, how far does the criticism tends to reduce psychoanalytic interpretation of art to its complementary pair artist-artwork operates a slight psychological reductionism.

Keywords: Culture, Artwork, Freud, Applied psychoanalysis, Interpretation.


 

 

O entusiasmo pela arte é estranho à arte.
Adorno, Teoria estética

 

“O Moisés de Michelangelo”, por uma interpretação não autobiográfica

“Caracteres psicopáticos no cenário” (1906/1989a) e “O poeta e a fantasia” (1908/1989c) são os primeiros textos psicanalíticos sobre arte e as primeiras tentativas de interpretação psicanalítica no campo estético. Os textos partem da explicação econômica da obtenção de prazer nos chistes aplicada à fruição do prazer nas artes dramáticas e poéticas. A noção de fantasia entra em cena para explicar de que maneira o prazer das brincadeiras infantis é prolongado pelo contato com a criação artística. Na verdade, essa noção tem o mérito de articular os desejos infantis que um dia foram realizados à repetição dessa experiência de satisfação na vida do adulto. As narrativas e representações teatrais estariam, com efeito, a serviço da realização de desejos infantis – eróticos e agressivos – que a realidade não permite que se expressem sem deformação (Freud, 1906/1989a, 1908/1989c).

Em relação a algumas diferenças entre o sonho e a obra de arte, Kris (1947, p. 33) afirma: “No que no sonho é explicado em termos de sobredeterminação, aparece na obra de arte como uma multiplicidade de significações, que estimula tipos diferenciados de reações no público”. A operação do trabalho do sonho reaparece nas interpretações que Freud concede às produções artísticas. A equação freudiana dos mecanismos em jogo nos afetos que a obra de arte incitaria é, em linhas gerais, esta: deforma-se o conteúdo reprimido para a obtenção do prazer preliminar. Com um plus de prazer suspendem-se as resistências que mantêm os conteúdos inconscientes, permitindo um prazer ainda maior. Esse prazer é expresso nos chistes pela gargalhada e nas demais expressões artísticas pela liberação de afetos variados: o terror, a repugnância, a excitação sexual, a raiva etc. Para Freud, “a obra de arte obtém o que a neurose não é capaz de realizar, isto é, a liberação do registro fantasmático pela liberação controlada dos processos primários (no autor) e pela diminuição da tensão psíquica resultante da eliminação provisória de determinadas repressões (no leitor)” (Mezan, 1997, p. 277).

No campo do que comumente se denomina “psicanálise aplicada”, encontramos na obra de Freud inúmeros trabalhos que examinam as obras de arte de maneira geral: esculturas, textos literários, peças teatrais etc. Tais análises baseiam-se no edifício teórico psicanalítico e esforçam-se por apreender o sentido oculto subjacente a elas, a partir do modelo da interpretação dos sonhos. Freud parece adotar, com efeito, dois estilos de interpretação quando se trata de analisar as obras de arte: a análise biográfica e a análise circunscrita ao universo da obra artística, que prescinde de dados biográficos do autor. A partir da leitura de “O Moisés de Michelangelo” (1914/1989f), sustentaremos a tese segundo a qual a crítica que tende a reduzir a interpretação psicanalítica da arte ao par complementar artista-obra opera certo reducionismo psicológico.

 

O ódio contido: Freud lê Moisés, de Michelangelo

O ponto de ancoragem último da interpretação freudiana da enigmática e grandiosa estátua de mármore Moisés, esculpida por Michelangelo, que se encontra na Igreja de San Pietro in Vicoli, em Roma, é a censura aos impulsos agressivos e onipotentes. A escultura, um fragmento do gigantesco monumento funerário que o artista se propunha a erigir em memória do poderoso papa Júlio II, refletia, para Freud, uma situação em que Moisés conseguiu controlar sua raiva e renunciar à expressão de agressividade sobre o povo judeu. E é precisamente neste ponto que Michelangelo teria projetado sua vontade de inibir e reprimir a própria destrutividade e onipotência, traços comuns que mantinha com Júlio II. O leitor de “O Moisés de Michelangelo” (1914/1989f) conhece as motivações do artista na construção da escultura somente no final do texto.

Toda a primeira parte da interpretação freudiana da escultura prescinde dos dados biográficos de Michelangelo. A análise em questão assemelha-se àquela de “Gradiva...” e das peças de Ibsen e Shakespeare; apoia-se inteiramente no universo da obra. Trata-se, pois, de um tipo de interpretação não autobiográfica2. Esta é, aliás, a modalidade de interpretação que nos interessa particularmente. Diferentemente da análise de Leonardo da Vinci, Dostoievski e Christoph Haizmann, para interpretar Michelangelo Freud prescinde da biografia do artista na elaboração de suas hipóteses. Como matéria-prima para seu estudo ele recorre às informações contidas na própria obra. “Freud vai ao texto e mantém-se nele, aproveitando tudo o que lhe é oferecido. Mais do que isto, um jeito de provar ao leitor a precisão de suas análises é apegar-se ao textual, levar em conta aquilo que a forma exibe nela mesma” (Loureiro, 1994, p. 158).

O processo de análise da escultura descrito em “O Moisés de Michelangelo” (1914/1989df assemelha-se à construção psicanalítica, por meio da qual o analista reconstrói a história infantil de seu paciente baseando-se em fragmentos de lembranças esquecidas. Em “Construções em análise” (1937/1989b), Freud discorre sobre o papel da construção no método psicanalítico e da relevância do material que emerge após a construção ser comunicada. Se o paciente relatar uma ocorrência de conteúdo semelhante ao da construção comunicada, é possível que se esteja diante de uma corroboração do acerto desta operação. Enquanto não for examinada e confirmada, a construção não é mais que uma simples conjectura. O critério para a validade da construção é a resposta do analisando, seja ela direta, explícita e crítica, seja uma rememoração, um sonho ou até mesmo a mobilização de sintomas3.

Uma das principais questões colocadas pela interpretação psicanalítica da arte diz respeito justamente à escassez de associações livres do autor. Sabemos que o método de interpretação dos sonhos, paradigma do método psicanalítico, tinha como premissa número um a consideração das associações do sonhador. Em Traumdeutung, “o analista precisa saber identificar as relações de oposição entre as associações e, além disso, estar atento à ausência de conexões lógicas no conteúdo onírico para reintroduzir elos de ligação”4. O caminho por meio do qual a análise freudiana trilhava, dos conteúdos manifestos em direção aos pensamentos oníricos latentes, partia das cadeias associativas e caminhava até o núcleo do conteúdo motivador do sonho; daí a importância de seguir os pensamentos colaterais e acompanhar todos os fios associativos.

Em relação ao recurso freudiano de analisar os personagens como se fossem pessoas reais, Loureiro (1994) observa que Freud não admite a ficção como ficção, invocando o nível da realidade a fim de obter o que deseja, a saber, a operacionalidade das descobertas psicanalíticas e a comprovação da validade da teoria. É certo que Freud desejava legitimar a validade de seu método de trabalho, a interpretação. No entanto, tendo em vista o arcabouço teórico subjacente às suas suposições, Freud analisa Moisés a partir do modelo de aparelho psíquico elaborado até esse momento de sua teorização. Na verdade, Freud não invoca o nível da realidade a fim de obter o que deseja pelo simples fato de, para ele, não haver diferença significativa entre analisar um paciente e uma obra de arte; daí a insistência na universalidade de seu método interpretativo.

Detenhamo-nos um instante sobre a explicação dessa afirmação. Certamente, não há como negar que Moisés desperta, no receptor da obra, afetos diversos. O “como se” da arte existe, e Freud o justifica pelo mecanismo do prazer preliminar produzido nos chistes; e aqui discordamos de Michaud (2003, p. 123), para quem “Freud e seus herdeiros não justificaram a operação do ‘como se’ em jogo na ficção ou na arte”. Não somos ingênuos para não diferenciar uma produção artística de um caso clínico. A leitura realizada por Freud – e podemos estender esse argumento para a análise de Schreber e de tantas outras personalidades com as quais ele se deparou ao longo de sua obra – indica, com efeito, que o método da interpretação opera perfeitamente bem quando o objetivo em questão não é a obtenção da cura, mas a compreensão dos destinos libidinais dos personagens a partir de suas causas determinantes.

“O Moisés de Michelangelo” (1914/1989f), mais precisamente, mostra que a ferramenta psicanalítica é válida para além da clínica. O delírio, os sonhos, os sintomas, os lapsos, os chistes, as fantasias e a arte, cada um à sua maneira, ocultam desejos infantis, submetidos todos à repressão e passíveis de interpretação. E aqui tomamos emprestado de Racière a ideia de que as figuras literárias e artísticas, mais do que os materiais sobre os quais a interpretação analítica prova sua capacidade de interpretar as formações da cultura,

elas são as testemunhas da existência de certa relação do pensamento com o não pensamento, de certo modo de presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido do insignificante ... o terreno das obras de arte e da literatura se define sob o domínio privilegiado deste inconsciente. (Racière, 2001, p. 5)

Com Loureiro (1994) sabemos que no trabalho de Freud com as produções artísticas e literárias, e na escolha das obras que toma por objeto, está implicada a dimensão autoanalítica. Mas não é o nosso objetivo, aqui, enveredar por essa linha de interpretação. Por essa razão, não nos interessa a dimensão autoanalítica que pode estar por trás da leitura freudiana de Moisés. Freud prescinde das associações de Michelangelo e utiliza sua doutrina para analisar qualquer tipo de manifestação artística e, em um âmbito maior, qualquer fenômeno humano. Grosso modo, o que interessa a ele nesse tipo de leitura é revelar o conteúdo latente que a deformação – voluntária ou não5 – tornou ininteligível; e esse recurso se estende para a compreensão de inúmeros fenômenos, como religião, grupos, guerra etc.

Voltemos à análise de Moisés. Ele está sentado, com o tronco inclinado para a frente, a cabeça virada para a esquerda, com uma grande barba e o olhar colérico. Seu braço direito toca na tábua e em uma parte da barba. O esquerdo apoia-se na barriga e segura o lado esquerdo da barba. Freud (1914/1989f) parte dessa imagem para interpretar a escultura. Chamam a sua atenção dois detalhes: a postura da mão direita e a posição de ambas as tábuas.

A pressão do indicador da mão direita recai principalmente sobre os chumaços de pelo da parte esquerda da barba e, em virtude da transgressão que ele opera, a barba é impedida de acompanhar a volta da cabeça e a olhada para o lado esquerdo ... Que significado possui esta ordem e a que motivos deve sua existência? (Freud, 1914/1989f, p. 226)

A imagem de Moisés revelaria uma ação que se deu anteriormente. Nesta ação, Freud imagina que Moisés está sentado e tranquilo, com a cabeça reta e a longa barba sobre o colo. Repentinamente, ele escuta um ruído e vira a cabeça na direção do barulho. Tomado por um sentimento de raiva e indignação, Moisés tem o ímpeto de castigar o povo judeu, que dançava em torno do Bezerro de Ouro. Em relação às tábuas que estavam de cabeça para baixo, Freud supõe que, inicialmente, elas estavam colocadas corretamente debaixo do braço direito de Moisés, porém, após o seu brusco movimento para se levantar, as mãos de Moisés teriam abandonado as tábuas e permanecido junto ao seu corpo graças à pressão dos braços no tórax. A tábua então teria deslizado, e a borda superior, que antes se encontrava na horizontal, teria caído para baixo, enquanto a borda inferior, sem equilíbrio, se aproximara do assento de pedra. Assim, para evitar que a tábua caísse e se despedaçasse, Moisés teria colocado a mão direita sobre ela e, diante da tentação de se vingar, o legislador recordara-se de sua missão, renunciando à satisfação de seu afeto hostil (Freud, 1914/1989f).

A versão das Sagradas Escrituras descreve um Moisés bom com o povo judeu, que pede desculpas a Deus pelo ato de seu povo.

Michelangelo situou no monumento funerário do papa um Moisés diferente, superior ao Moisés histórico e tradicional ... Ele não deixa que a raiva de Moisés destrua as Tábuas da Lei, mas apazigua esta raiva, ou ao menos inibe o caminho da ação, pela ameaça de que ela pudesse se despedaçar. (Freud, 1914/1989f, p. 237)

Aqui, Freud orienta-se pelo modelo de interpretação dos sonhos que fragmenta a obra e aprofunda o exame de seus detalhes. A partir dos elementos obtidos via interpretação, a construção é elaborada. Naturalmente, não cabe a nós julgar se tal construção convence ou não o leitor de “O Moisés de Michelangelo” (1914/1989f). Atentemos somente para os efeitos da obra diante do espectador, para a afetação de Freud em relação à estátua, e para o trabalho propriamente dito de reconstrução da cena que teria antecedido a postura de Moisés talhada sobre o mármore. Aos olhos de Freud, Michelangelo teria conseguido representar o legislador com o afeto contido e com expressão de raiva e reprovação. O efeito em termos de prazer estético para o espectador ocorreria após a identificação com Moisés ou com aqueles sobre quem ele lança seu olhar furioso. É Freud (1914/1989f, p. 219) quem diz, identificado com aquele que é alvo do olhar de Moisés: “Como se eu mesmo fosse um deles a quem ele dirige seu olhar, esses canalhas que não podem manter nenhuma convicção, não têm fé nem paciência e se alegram se devolvem a ilusão dos ídolos”. A interpretação de Moisés evidencia a concepção freudiana do prazer estético, baseada sobre a expressão de um afeto reprimido. Neste caso, o afeto com o qual o espectador entra em contato é o da raiva e o da agressividade contida.

 

A “moda biográfica”

À primeira vista, e tratando-se de Freud, que nunca hesita em pautar-se na história do desenvolvimento psicossexual para elaborar suas hipóteses ou verificá-las, poderíamos afirmar que a análise da biografia do autor é, para ele, mais rica e fecunda que a análise circunscrita ao universo da obra, ao “texto” propriamente dito, como nos mostra sua interpretação em “O Moisés de Michelangelo” (1914/1989f). Não são poucos os psicanalistas e filósofos pós-freudianos que insistem nessa ideia e tendem a reduzir a interpretação estética de Freud àquilo que Adorno denomina, em Teoria estética (1988), “moda biográfica”. Essa ideia tão difundida, que torna dependente a análise psicanalítica da arte das projeções inconscientes do artista, parece apoiar-se mais nos textos considerados de aplicação dos analistas pós-freudianos que na investigação propriamente dita das manifestações artísticas realizadas por Freud. Hamlet e o complexo de Édipo, de Ernst Jones (1970), ilustra bem esta modalidade de interpretação artística.

Jones interpreta Hamlet, de Shakespeare, a partir do exame do significado dos conflitos e dos sofrimentos do protagonista6. O psicanalista atribui a causa para a vacilação de Hamlet em matar o tio a um conflito interno entre um impulso para cumprir a sua missão e uma repugnância inconsciente. Ele identifica na fala de Hamlet mecanismos psicológicos de evasão e racionalização, e conclui que a frustração e a inibição do ato de vingança são efeitos do intolerável pensamento de incesto e parricídio combinados, vividos por Shakespeare. Jones (1970) vê em Hamlet impulsos matricidas oriundos do complexo de Édipo do autor, do qual seriam apenas uma faceta ou uma tentativa de solução. Em seguida, debruça-se sobre a relação entre o conflito de Hamlet e os processos mentais de Shakespeare, e sustenta que esse conflito é o reflexo de lutas internas no próprio Shakespeare, eco de experiências catastróficas que o poeta viveu pouco antes de compor a tragédia: duas mortes − a morte do pai e de um vidente, substituto paterno − e uma paixão avassaladora que resultou em traição.

No capítulo intitulado “Psicologia e estética”, Jones defende que o procedimento crítico das criações poéticas deve repousar sobre a análise biográfica e sobre o impulso criador do artista. Ele assim argumenta:

Tem de haver alguma correspondência, por mais disfarçada e transformada, entre os sentimentos que um poeta descreve e os sentimentos que ele próprio experimentou ... não obstante, todos os críticos sérios sabem que a apreciação de uma obra e a compreensão de suas intenções só podem ser reforçadas, infalivelmente, por certos conhecimentos sobre as características do autor e os estágios de seu desenvolvimento artístico. (Jones, 1970, p. 14)

O bom crítico, segundo ele, não pode se deter na obra de arte em si e considerá-la um produto acabado e autônomo, isolando- a do seu criador; isso resultaria na imposição de limites artificiais ao entendimento da obra.

Bachelard (2002), em Água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria, elogia a minuciosa análise das poesias e dos contos de Edgar Poe realizada por Marie Bonaparte, que teria descoberto a principal razão psicológica do que ele denomina “unidade imaginativa de Poe”. Para ele, Bonaparte

provou que essa unidade de imaginação era a fidelidade a uma lembrança imperecível ... O que Marie Bonaparte mostrou mais claramente é que a imagem que domina a poética de Edgar Poe é a imagem da mãe moribunda. Todas as outras amadas que a morte arrebatará, Helena, Frances, Virgínia, renovarão a imagem primordial, reavivarão a dor inicial, aquela que marcou para sempre o pobre órfão. (Bachelard, 2002, p. 48)

Partindo do mesmo eixo crítico de Jones (1970) e Bachelard (2002), Adorno (1988) concebe o predomínio da análise biográfica sobre a análise textual na interpretação psicanalítica da arte. A seu ver, muitos trabalhos foram realizados sob a égide da “moda biográfica”, em função das motivações inconscientes do autor, como o livro de Laforgue, para quem o sofrimento de Baudelaire é atribuído ao complexo materno. Mas ao contrário de Jones, que defende a abordagem psicanalítica biográfica, Adorno a critica. Considera esse tipo de leitura semelhante àquela do idealista “... porque revela tudo aquilo que no interior mesmo da arte não é artístico” (Adorno, 1988, p. 19). Além disso, sustenta que tal abordagem esquece as características formais na hermenêutica da matéria, reduzindo a obra a um sistema de signos subjetivos que servem às pulsões do sujeito. Mas, apesar da impiedosa crítica, Adorno reconhece ser plausível determinar o que é a arte mediante uma teoria da vida anímica.

Bellemin-Nöel (1983) comenta que “Gradiva...”, por exemplo, abre precedentes à “psicanálise textual”, que prescinde da pessoa do autor para ser compreendida. Este tipo de análise levada a cabo por Freud encontra-se na análise da escultura de Michelangelo e estende-se às interpretações de Ricardo III (1916), Rosmersholm (1916), Macbeth (1916), Vinte e quatro horas na vida de uma mulher (1919) e “O homem de areia” (1919). Resumir a interpretação psicanalítica da arte à história psicossexual do seu criador parece implicar certo reducionismo psicológico, o que, a nosso ver, Freud nunca fez, já que não se limitou ao exame das motivações psíquicas do artista.

A análise biográfica é questionada pelo próprio Freud, como nos mostra “O Prêmio Goethe” (1930/1989h). Após agradecer aos biógrafos de Goethe as informações e os documentos que lhe permitiram formar algumas opiniões sobre a personalidade do poeta, Freud indaga:

O que nos proporcionam estas biografias? ... Nem sequer a melhor e mais completa delas responde às perguntas que parecem dignas de interesse. Não esclarecem o enigma do maravilhoso dom dos artistas e não podem nos ajudar a apreender melhor o valor e o efeito de suas obras. (Freud, 1930/1989i, p. 221)

E, mais adiante, lemos:

Ora, que justificação tem semelhante necessidade de conhecer as circunstâncias da vida de um homem quando suas obras passaram a ser tão significativas para nós? Pode-se dizer que é a necessidade de obter uma aproximação humana. Admitimos: é a necessidade de criar vínculos afetivos com tais homens, integrá-los na série dos pais, professores, modelos que conhecemos ou cuja influência experimentamos, com a expectativa de que sua personalidade resultara tão grandiosa e digna de admiração como as obras que deles possuímos. (Freud, 1930/1989i, p. 222)

Esta passagem lança luz sobre o debate controverso entre muitos pensadores que tendem a reduzir a interpretação psicanalítica da arte ao par complementar artista-obra. A análise biográfica cumpriria, segundo Freud, uma função importante para aquele que a faz e não para a compreensão do valor e do efeito da obra em questão. Ela refletiria, antes, a necessidade do homem de criar figuras de identificação e obter confirmações para as fantasias de idealização que ele costuma criar em relação aos autores alvos de interesse.

A leitura dos textos considerados de “aplicação da psicanálise” nos conduz à hipótese da existência, em Freud, de uma estética psicanalítica no sentido pleno da palavra, de uma teoria da expressão artística que opera com conceitos psicanalíticos, tem uma especificidade centrada na própria obra, e reconhece os fundamentos pulsionais de seus objetos7. Para Nunes (1966), a teoria estética psicanalítica compreende um aspecto da experiência estética, a saber, o aspecto subjetivo. O outro aspecto, objetivo, baseia-se na forma da obra de arte. Nunes explica, em seu livro Introdução à filosofia da arte:

As correntes inspiradas na psicologia, chamadas psicologistas, estudam, com exclusividade, o aspecto subjetivo, valorizando os seus elementos heterogêneos, como o prazer sensível, os impulsos, os sentimentos e emoções. Eles partem de fatos psíquicos determinados, sejam estados simples ou complexos de consciência, sejam processos ou inclinações de nossa vida mental, para explicar a experiência estética. A tentativa de aproximação e até de identificação do estético ao psíquico. (Nunes, 1966, p. 23)

 

Notas finais

A partir do modelo de interpretação examinado em “O Moisés de Michelangelo” (1914/1989f), sustentamos que algumas análises artísticas levadas a cabo por Freud, às quais, grosseiramente falando, inserem-se no campo da “psicanálise aplicada”, não se reduzem a interpretações autobiográficas, mas estendem-se a um tipo de interpretação circunscrita ao universo da obra literária. Se, como sustenta Nunes (1966), Freud elaborou uma teoria que enfoca o lado subjetivo da interpretação estética, talvez possamos sugerir que a psicanálise freudiana contribui, em alguma medida, com o campo da teoria estética8. O método psicanalítico construído por Freud lhe permite interpretar uma criação artística com fidedignidade semelhante à da interpretação dos sintomas neuróticos. É precisamente aí que reside a reivindicação da universalidade do seu procedimento técnico, que justifica a ampliação de sua aplicação para além do campo propriamente clínico.

Não se trata aqui de avaliar a fundo a qualidade da contribuição da psicanálise ao domínio da estética, mesmo porque cada vertente da filosofia terá uma opinião diferente sobre os processos envolvidos na criação artística, na ideia de belo, na relação da arte com a sociedade, e assim por diante. Trata-se apenas de insistir sobre o fato de que, em primeiro lugar, parece existir uma teoria estética freudiana que não se resume à análise de tipo biográfico e, que, portanto, não implica um reducionismo psicológico. A arte contribui com a psicanálise ao fornecer exemplos e confirmações de suas hipóteses e ao trazer novos elementos a ela. Em segundo lugar, insistiremos que a doutrina psicanalítica pode contribuir com a discussão mais ampla da experiência estética e, por isso, sua relação com a arte parece ser uma relação de mão dupla: ao mesmo tempo em que presta serviço à arte, a arte também presta serviço à psicanálise; daí a razão pela qual discordamos de Badieu para quem a relação entre psicanálise e arte é um serviço apenas oferecido à psicanálise, “um serviço gratuito da arte” (Badieu, 1998, p. 18).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Vilela Pinto Nakasu
Rua Cotoxó, 130/31
05021-000 – São Paulo – SP
E-mail: marianakasu@hotmail.com

Recebido: 10/09/2010
Aceito: 20/09/2010

 

 

* Psicóloga, mestre e doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, pós-doutoranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, bolsista FAPESP.
1 Este trabalho reúne os resultados preliminares da pesquisa intitulada “O estatuto metapsicológico da concepção freudiana de supereu”, que está sendo realizada em nível de pós-doutorado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com o apoio da FAPESP.
2 Loureiro (1994) acrescenta que a análise de Freud indica que a obra de arte em geral fornece ao psicanalista novos conhecimentos, uma nova fonte de material que pode ser trabalhada pela psicanálise.
3 Em “Construções em análise” (1937/1989b), os termos “construção” e “reconstrução” são utilizados como sinônimos. Na opinião de Uchitel (1997), o termo “reconstrução” é mais fidedigno ao sentido atribuído por Freud ao trabalho analítico, que visa recobrar o material a partir dos fragmentos de lembranças. Trata-se de uma opinião interessante, pois se para Freud as construções necessariamente devem estar apoiadas, devem partir de algum ponto da realidade, então é sobre um material já dado que ela opera.
4 “É importante, outrossim, que saiba discriminar se um sonho exige ou não o recurso auxiliar à interpretação: a interpretação simbólica. E que ouça atentamente as ocorrências sem priorizar partes específicas das mesmas. O analista deve tomar cuidado para não se deixar enganar pelo caráter absurdo dos sonhos, já que o afeto pode, muito bem, estar deslocado ou distante de sua representação correspondente. E, finalmente, para não se confundir com a aparente coerência de muitos sonhos deve estar ciente de que os restos diurnos se misturam com o conteúdo manifesto” (Nakasu, 2008, p. 5).
5 Pois a deformação no caso dos chistes e da obra de arte é voluntária.
6 Seu propósito é assim apresentado: “Proponho-me fazer de conta que Hamlet foi uma pessoa, um ser vivo (poderíamos acrescentar que, para a maioria de nós, ele é uma criatura mais viva do que muitos atores que conhecemos no palco da vida!), e investigar que espécie de homem pode ter sido essa pessoa para sentir e agir, em certas situações, da maneira que Shakespeare nos diz que ele sentiu e agiu” (Jones, 1970, p. 21).
7 Loureiro (1994) se pergunta se é possível esboçar uma visão global da estética freudiana. Mesmo não tendo se colocado diante da tarefa de elaborar uma teoria completa sobre os fenômenos relacionados à arte, Freud examinou alguns temas ligados a ela: os processos envolvidos da criação, os produtos destes processos – ou seja, a obra −, a fruição do prazer nos terceiros, o sentido e a função da arte na sociedade, esboço sobre a ideia de belo e alguns critérios de valoração artística. Para a comentadora, a teoria freudiana possui uma estética própria, uma linha de pensamento ampla e coerente sobre a arte, coesa. Esta linha de pensamento apoia-se em um núcleo de princípios básicos que se mantém durante toda a produção teórica de Freud.
8 Adorno (1988) e Nunes (1966) propõem saídas diferentes nas suas abordagens estéticas. Adorno enfoca a negatividade da obra de arte, a decifração da obra “como o trabalho sobre algo que resiste”, enquanto Nunes vê na estética fenomenológica uma teoria mais completa. “A estética fenomenológica descreve os objetos e os valores de que temos imediata consciência na contemplação das coisas belas, obras de arte inclusive, para intuir a essência do poético, do pictórico, do trágico, do cômico, do sublime” (Nunes, 1966, p. 25).

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