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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

EM PAUTA

 

Quem? Hoje, Joyce

 

Who? Today, Joyce

 

 

Fabio Herrmann*; Leda Herrmann**, I, II

I Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
II Centro de Estudos da Teoria dos Campos Cetec

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto trabalha a teoria do análogo da Teoria dos Campos principalmente pela pena de seu autor. Considera, primeiro, a condição da produção de teoria em Psicanálise, reconhecendo ser uma falácia a opção entre criador ou aplicador. É a aplicação contingência de situações clínicas desafiadoras, que se alternam com períodos de prática teórica em estado clínico, quando o próprio método psicanalítico, por ruptura de campo, produz teoria. O artigo finaliza com uma análise/interpretação do Ulisses de Joyce, como exercício de clínica extensa em pleno reino do análogo.

Palavras-chave: Teoria dos Campos, Teoria do análogo, Ficção literária, Fabio Herrmann.


ABSTRACT

The text works out the theory of the analogous from the Multiple Fields Theory mainly through the pen of its author. It considers, firstly, the theoretical production condition in Psychoanalysis, recognizing as a fallacy to opt between creator or applicator. Application is contingent to defying clinical situations, which alternate with periods of theoretical practice in clinical form, when the psychoanalytic method itself produces theory, by field rupture. The paper ends with an analysis/interpretation of Joyce's Ulysses, as an exercise of extensive clinic amid the analogous reign.

Keywords: Multiple Fields Theory, Theory of the analogous, Literary fiction, Fabio Herrmann.


 

 

1. Entrando pelo análogo – Leda Herrmann

"Quem? Hoje, Joyce"; é parte do conjunto de aulas escritas, a maioria ainda inédita, do curso "Da Clínica Extensa à Alta Teoria: Meditações Clínicas";, que Fabio Herrmann ministrou simultaneamente no Instituto de Psicanálise da SBPSP e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, de 2002 a 2006. Para explorar seu pensamento clínico, revisita, nesses textos, várias partes de sua obra e, pela primeira vez, sistematiza a teoria do análogo, em que trabalhava na época. O análogo reúne três textos que compõem a segunda das "Meditações clínicas";, sendo "Quem? Hoje, Joyce"; o segundo deles. A ficção literária constitui-se, para Fabio, no reino análogo da Psicanálise1, como, por exemplo, o é a Matemática para a Física. O circuito de produção de conhecimento em Psicanálise passa por esse reino análogo. Isto é, o próprio fazer clínico, que tangencia conotações de sentidos na palavra física ou gestual do paciente, faz o analista habitar esse reino análogo à Psicanálise, o reino da ficção literária. Na esteira de ficções teóricas, inaugurada por Freud, Fabio considera as teorias psicanalíticas quase ficções literárias que se constituem em poéticas particulares, mesmo na condição inicial de prototeorias. Afirma, na primeira aula dessa Segunda Meditação, que "se a metáfora poética da física dá-se em suas equações, nossa metáfora poética realiza-se na ruptura interpretante da teoria";. Há que se acrescentar sua observação de que nossas ficções teóricas, como as literárias, inventam/descobrem representações do homem e do mundo que, do ponto de vista empírico-factual, são quase tão falsas quanto as peripécias de um romance.

O texto que segue compreende em sua parte final uma análise/ interpretação do Ulisses, de Joyce (2000), que considero exercício de clínica extensa2 em pleno reino do análogo. A reflexão teórica resultante vai se construindo na forma interpretante e no tom de prática teórica em estado clínico, ou seja, no tom do reino análogo, argumento desenvolvido ao longo do artigo.

 

2. Quem? Hoje, Joyce – Fabio Herrmann

Na aula passada, procuramos responder a questão crucial que coloca para a alta teoria o modo de produção das teorias psicanalíticas e sua relação com a clínica extensa. Dedicamos especial atenção às condições ditadas pelo processo de produção, que se cumpre num circuito ficcional análogo ao da clínica, para o emprego e a validação de nossas teorias, bem como para os destinos do que se poderia chamar de sua vida extrauterina. Tivemos de admitir que, em estado clínico, elas fulguram por instantes e logo se desfazem na ruptura de campo, deixando entrever, no vórtice, seus componentes e suas potencialidades inexploradas. Quando a teoria é utilizada ao modo de uma ferramenta interpretante, como deve ser, ela está em permanente criação3.

Uma questão menos relevante, mas que constantemente vem à baila, é a de quem pode e quem não pode teorizar, ou do patamar a partir do qual alguém pode dar-se ao luxo de não ser escolástico. Apresenta-se às vezes como uma espécie de moderação de uma (suposta) exigência descabida: antes de poder teorizar, um candidato (ou analista) tem de conhecer bem uma teoria, ou seja, filiar-se a uma das correntes psicanalíticas. A versão mais drástica e mais franca, devo-a a uma conversa com Moisés – não o egípcio, mas o colega peruano Moisés Lemlij –, que, num bate-papo, a pôs nestes termos: uns poucos fazem teoria, 99% dos analistas só são aplicadores. É fato, temos de o reconhecer. Mas também é falso, como costumam ser os fatos. O caminho de todo e qualquer analista pela clínica atravessa necessariamente o reino análogo, mesmo que sua produção nunca ultrapasse o estado de prototeorias a propósito de ocorrências particulares. Não existe aplicação legítima da teoria, em senso estrito. A aplicação de teorias psicanalíticas – ao contrário de sua redescoberta na interpretação: ruptura de campo e vórtice – configura os momentos não psicanalíticos da clínica. Podem ser maioria em certos casos, mas alguma hora o analista engana-se de referência, deixa de aplicar e teoriza sua clínica, mesmo que a contragosto. Então, descobre que começa a entender o que se passa, vê que assim funciona bem melhor e toma gosto pelo ofício.

A que se deve a falsidade desse fato? É que se pensa geralmente que teorias são os grandes sistemas conjecturais que a tradição consagrou e enrijeceu em doutrinas, em lugar do processo constante de condensação, precipitação e evaporação que nutre o trabalho clínico. Mas sabemos que as doutrinas perdem seu poder interpretante, existindo tão somente em estado teórico – como se poderia dizer em estado gasoso –, ou em estado sólido de aplicação – algo assim como o granizo. Já no dia a dia da clínica, a experiência vai atravessando o análogo, quando se escreve, quando se reflete, e condensa-se em formas teóricas provisórias, que interagem com aquelas mais tradicionais. O resultado é uma sorte de precipitação pluvial, que fertiliza a clínica – como interpretante, já se sabe –, moldando formas interpretativas de certa estabilidade, ainda que sua incidência seja descontínua ou mesmo eventual. Ao ocorrer o efeito psicanalítico, a ruptura de campo, evapora-se outra vez a teoria, mas não se perde. Nova condensação no análogo preserva seus aspectos mais úteis, reestrutura-os, e assim segue o processo analítico, a teoria em estado clínico. A falta de sentido de se contrapor a grande teoria conjectural à prática clínica miúda revela aqui sua magnitude, porquanto o sistema teórico só existe, agora o podemos compreender, na medida em que percorre esse circuito dialético. Creio que, definida dessa maneira a teorização, não será difícil admitir que a porcentagem de psicanalistas que criam teorias deve ultrapassar aquele magro 1%.

Ao discutir origem e destino da teoria, na aula anterior, devem ter notado que praticamente não mencionamos a aplicação. É que esse não é um de seus destinos legítimos, senão um acidente de percurso, durante certas fases do processo de formação analítica, ou uma calamidade natural, como a tempestade de granizo que destrói uma lavoura – devida, esta última eventualidade, à forma de organização escolástica do mundo psicanalítico. O fato mesmo de não o ter sequer enumerado para lhe condenar o uso, senão numa nota final, explica-se sem dificuldade: aqueles de vocês que têm seguido este curso até aqui não são e não se consideram aplicadores de teorias, ou partidários religiosos de alguma das correntes psicanalíticas. Caso contrário, por que se dariam ao trabalho de acompanhar estas meditações clínicas?

O que ocorre é algo de natureza bem diferente da opção entre criador ou aplicador. Todos nós desejamos acreditar nalguma coisa e, em certos momentos de desespero, agarramo-nos instintivamente até àquilo em que não acreditamos. À minha frente, na encosta da montanha nevada, posso ver alguns esquiadores principiantes fora de controle, que se agarram com toda a força aos bastões e os sacodem pelo ar, como se estivessem eles ancorados nalgum invisível apoio. Num naufrágio, ouvi dizer, haverá quem se agarre à âncora do navio, na falta de coisa melhor. Agarrar-se a uma certeza teórica, quando o barco psicanalítico parece afundar, ou quando se perde o equilíbrio diante de uma situação clínica escorregadia, constitui uma reação perfeitamente natural, que se alterna com períodos de prática teórica em estado clínico. Não é nada fácil abrir a mão4.

Freud mesmo teve sua escolha. Poderia ter decidido crer na realidade ou crer na religião, na psiquiatria de seu tempo ou na consciência racional. Nesse caso, não teria inventado a Psicanálise, mas não teria perdido noites de sono escrevendo uma obra monumental, poderia ter sido crédulo à propaganda e talvez, pela idade, nem sequer houvesse sido enviado a um campo de extermínio. Klein poderia ter decidido acreditar no freudismo ao invés de freudianamente investigar a primeira infância e inovar a interpretação transferencial. Bion poderia haver-se contentado em ser kleiniano saturado. Lacan, em seguir a receita freudiana corrente5.

A maneira pela qual o impasse do apetite de crença foi solucionado por cada um de nossos mestres, entre tantos outros aos quais faltou apenas a sagração, não deixa de ser um tanto irônica e fantástica, porém, muito eficiente. Na verdade, como já vimos, foi Platão quem deu o exemplo, ao criar seu Sócrates. Lacan propôs o retorno a um Freud diferente, de sua própria lavra, que no fundo é Lacan. Bion inicia a exposição de quase qualquer ideia atribuindo-a a certa observação de Klein; por vezes, é tomado ao pé da letra, e ensina-se a obra kleiniana sem memória desta. Klein, ela mesma, foi mais discreta, porém, jura sempre por Freud, um Freud por ela selecionado, do qual discordariam certamente Fräulein Anna e o próprio Lacan. Vale dizer que cada um criou-se a si mesmo, por meio de uma ilusão necessária, tanto para si como para seus discípulos, a de dar o nome de um predecessor estimado ao sujeito do campo teórico, enquanto figurava mais modestamente como operador das novas relações descobertas6. Cada Hórus, com seu Osíris. E Freud? Charcot, Breuer, Fliess, o Moisés egípcio, Aníbal, nem mesmo Goethe, poderiam nomear o sujeito do seu campo teórico. Sem escolha por esse lado, Freud, que inventou literariamente tantas coisas, para não ficar em miudezas já mencionadas, inventou Freud – e a alma humana como hoje a concebemos. Não o do campo, Osíris, que já era, mas seu filho Hórus, o herói da relação7. Escreveu um roteiro ilustre e o interpretou à perfeição, fez figura de profeta bíblico, de desbravador, de arqueólogo do espírito – metáfora poderosa, cujo cenário consumiu boa parte de seu pecúlio –, de cientista natural etc. Talvez por querer mostrar que o sabia, diante do risco de ser mal interpretado por sua descendência, é que tenha decidido denunciar-se preventivamente, aludindo a si mesmo como mestre do disfarce.

Vista por esse ângulo, a história da criação teórica na Psicanálise pode causar a falsa impressão de uma sucessão de imposturas. Mas é exatamente o oposto. As sucessivas recriações não equivalem a falsos selves, mas a personagens, no sentido forte do termo. Um dos instrumentos mais poderosos com que contamos em nosso trabalho clínico, no consultório ou fora dele, é saber que o que se diz ou se faz tem o sentido que lhe dá o jogo transferencial do diálogo, não o que tínhamos em mente transmitir. Por isso, em vez de nos explicarmos infinitamente, de rechear nossa comunicação de você não me entendeu, procuramos influir sobre os rumos da conversa de outra maneira. Tomamos o resultado provisório como verdadeiro, mesmo sendo muito diferente do que pretendíamos alcançar, e o provocamos até que revele seus pressupostos, de dentro para fora. No processo concreto, isso inclui aceitar o papel que o paciente – o grupo, os recortes culturais etc. – nos impõe, transformando-nos em personagens parciais de nós mesmos, para conhecer melhor qual personagem o outro criou para si. Ou melhor, para fazê-lo revelar-se naturalmente, por meio de sua interpretação8. Como sabem, e agora talvez tenha ficado claro, minha ideia de interpretação psicanalítica não é muito distinta da de interpretação teatral. A pequena e definitiva diferença está em que, como nosso papel não está claro desde o início, nem nossa intenção é repeti-lo a cada sessão, não o interpretamos direito, porém, com certa obliquidade, e só com uma parte de nós. A isso se chama: emprestar uma parte da alma ao paciente, permanecendo a outra vigilante. A outra, a vigilante, cumpre a função teórica na clínica.

O valor provocativo, não assertivo, da teoria psicanalítica em estado clínico – isto é, interpretativo, como interpretante – fica manifesto quando consideramos a dimensão dialogal da interpretação: essa não é o que o analista diz, como estamos vendo, mas o sentido criado por reciprocidade contextual. Tomemos um exemplo magno: dai a César o que é de César é uma sentença contraditória, se descontamos os interlocutores da passagem bíblica. Se já é de César a moeda, não é preciso dá-la a ele. Intencionalmente, joga Jesus, em português, com o duplo sentido da preposição de, ser uma propriedade de e ser de sua propriedade. Cristo poderia haver denunciado aos gritos os sacerdotes que o tentavam, explicado economia política, negado resposta, ou mentido redondamente. O jogo de palavras é mais sutil: impostos estão no campo de César, o espírito, no de Deus, mas, como os dois campos confluem na má intenção dos que o querem perder, ele faz com que se rompam, pelo simples recurso de interpretar um pouco mais o papel daquele que tem a palavra. Na mesma fonte de clínica extensa (Lucas, 20, 1 a 8), podemos encontrar a teoria da técnica. Os Mestres da Lei arguem Jesus: Com que autoridade ensinas? Este responde com outra pergunta: Quando João batizava, era a mandado de Deus ou dos homens? Comentam entre si os doutores: se dizemos que de Deus, perguntará logo: e por que não creem? Se dizemos que dos homens, o povo nos apedreja… Por isso, disseram que não sabiam – resposta humilhante e absurda, vinda de um doutor. Respondeu Jesus: Eu tampouco lhes direi com que direito faço estas coisas. A isso se pode chamar interpretação. E mais, de interpretação transferencial. Que ruptura de campo! Essa foi na mosca, meus amigos9!

Como se conclui dessas duas passagens do Evangelho de Lucas, a curto prazo, um bando de teóricos bem escolados não é páreo para um só pensador clínico. A longo prazo, eles se acabam aliando ao braço secular, e o pensador costumeiramente é morto. O que não chega a ser uma derrota, pois, no longo prazo, todos vamos morrer de algum jeito. Nossa questão, porém, é o médio prazo, que é quando intervém a teoria em estado clínico10. A criação de uma personagem para garantir a transmissão teórica é um recurso interpretativo, de que se utilizaram magistralmente nossos mestres, uns mais que outros: Lacan roçou o ilusionismo intelectual, Melanie Klein, a prestidigitação prática. Por que, então, mostrar o truque? Ora, porque o analista é, por vocação, um desilusionista.

Em cada caso, assistimos à ação da resistência justificada contra o fetichismo teórico. Quando alguém está criando uma psicanálise, ou seja, pondo a funcionar o método com força total, é impossível aceitar a letra de uma doutrina, o fetiche material, e ao mesmo tempo rompê-la, para salvar seu espírito. Joyce, segundo Ítalo Svevo, só teve contato com a Psicanálise em Zurique, quando o plano do Ulisses já estava completo – o escritor italiano frisa isso para que não se diga que Joyce plagiou Freud, pois devia suspeitar que as semelhanças eram preocupantes. A versão que lhe foi apresentada não o agradou em absoluto. Deve tê-la considerado uma grosseira explicação de tudo e mais um pouco, a partir de umas quantas trivialidades sexuais generalizadas. Svevo, o autor de A consciência de Zeno – ou, o que o teria levado a tornar-se um best-seller, De como deixei de fumar graças à psicanálise –, obra que ilustra a contento certos paradoxos da cura, e reverente amigo de Joyce, convida os psicanalistas a dedicar sua atenção ao Ulisses, que a merece mais que aquela pobre Gradiva. O quanto vai de ironia no convite nunca saberemos ao certo; o tom de Svevo parece perfeitamente sério. Ulisses ficou conhecido como o romance para acabar com todos os romances, quem sabe também conosco. Fico imaginando o efeito de uma interpretação edipiana da relação de Stephen com a mãe morta, ao estilo da análise do Hamlet por Jones. Talvez concluísse pela suposição de certa ambivalência com relação à figura materna.

Mas, pelo próprio absurdo que representa aplicar a doutrina psicanalítica a uma obra que é o vórtice de todas as interpretações, nosso interesse começa a ser despertado. Credo quia absurdum. Em primeiro lugar, por ser a literatura o reino análogo da Psicanálise, em segundo, porque a teoria psicanalítica, como penso haver mostrado, só se dá em sua ruptura. Nossa tese é simples: Joyce, ao negar a Psicanálise, poderia a estar afirmando, uma vez que a Psicanálise é sempre a crise de sua representação.

Não desconheço que sentenças como esta última costumam ser o primeiro torvelinho de uma corredeira de paradoxos inconsequentes. Melhor explicá-la, para que se saiba de que extensão da clínica estamos falando. A ideia psicanalítica, o método, nasce do útero indiferenciado e fértil da palavra, na transição de fala à escrita. É um trânsito de dupla mão, como sabemos, sendo o estado clínico da teoria o caminho de volta à fala11. Poderíamos começar por Sócrates ou por Cristo, já que mesmo a palavra divina se consolida apenas nas Escrituras – ou melhor, a cena dos doutores está tão bem montada, até com o registro de suas confabulações sotto voce, que ou se trata de ficção humana ou se trata de ficção divina, em qualquer caso, de se tirar o chapéu. Entretanto, é preciso começar muito antes, ou melhor, num estado mais fundamental e de difícil datação. Do vai e vem entre fala e escrita nasce em primeiro lugar a poesia. No que se fixa sua forma, é forçoso rompê-la, para que continue a ser poesia, recomeço e não fórmula rimada: o alexandrino, o decassílabo, o soneto. Escrita e fala têm como paralelo espírito e carne, cabeça e corpo. Ora estão em harmonia produtiva, ora em desarmonia paralisante. Quando a lâmina do carrasco talha, cerce o pescoço de João Batista, ouve-se de sua cabeça vigia solitária, em voo triunfal, o seguinte cântico:

Comme rupture franche
Plutôt refoule ou tranche
Les anciens désacords
Avec le corps12

Consiste a literatura, de modo geral, nesse movimento de báscula entre consolidação e ruptura. O produto não se perde, mantém-se dentro dela, após alguns trânsitos cortantes, como gêneros literários, ou numa especialização que parece amputar também a ligação com a literatura mãe, como escrita religiosa, como história etc. Se se distanciam, virando ciência, esses novos gêneros guardam, porém, memória da relação de origem, naquilo que apelidamos circuito pelo análogo. A Psicanálise é um dos ramos mais recentes desse tronco, ainda mal diferenciado, evidentemente. Talvez seja essa a razão de, entre nós, o antigo desacordo entre cabeça e corpo ser tão drástico, com partidários ferrenhos dos extremos – que se intitulam clínicos versus teóricos, na linguagem do corpo, freudianos versus intuitivos, na linguagem da cabeça. Com efeito, no processo de constituição de qualquer gênero literário ou ciência, a representação pode pecar por falta ou por excesso, fica indefinida e dilui-se, num extremo, congela-se em doutrina, no outro.

Joyce, ao romper triunfalmente a forma romance, estava provavelmente alerta a esse problema, tanto que o tematiza na oposição entre Shem e Shaun, no Finnegan's Wake (Joyce, 1980). A escrita, enquanto instrumento auxiliar da memória, remete à sua invenção egípcia por Toth13. Será boa ou má? O rei-deus, a quem Toth apresenta sua invenção, duvida da utilidade, pois pode fazer os homens preguiçosos e incapazes de lembrar. Todavia, como salienta H. Cixous, tal é o ponto de vista de um deus, para quem tudo está sempre presente. O homem necessita do auxiliar de Mnemósine, o texto, mas a tensão deve ser mantida entre fala e escrita, as negações dialéticas jamais deverão cessar, senão a um preço muito alto. Clínica e teoria reproduzem exatamente essas posições.

Não tem cabimento querer resumir o Ulisses. O romance é um exagero em todos os sentidos, é demasiado grande e demasiado conciso, é um dia na vida de gente comum e é um compêndio do conhecimento humano, ainda melhor que Bouvard et Pécuchet14, no juízo de E. Pound (1970) – claro, não satisfeito, Joyce ainda faria melhor no Finnegan's Wake, algo assim como um haikai de 1.000 páginas cifrado por um charadista. Concentremo-nos no momento crucial do Ulisses, em que se dá o encontro, no bordel, entre Bloom e Stephen, seu filho no espírito, uma vez que o da carne está morto. Esse capítulo corresponde, em Homero, ao episódio de Circe. É uma cena delirante, escrita em estilo cinematográfico – é bom não esquecer que o único empreendimento hipoteticamente rentável de Joyce, que, no entanto, também fracassou, nasceu de seu interesse pelo cinema. Stephen Dedalus, o artista enquanto jovem, pedante, radical, contraditório, já bebeu todas e vê-se embalado num porre homérico, como não poderia deixar de ser, vivendo a um tempo em Dublin e na Odisseia. A prova de que Cristo era irlandês – recordam a piada? – é, mesmo na cruz, ter pedido um drink. Bloom, o homem prático, o simpático judeu – e de tantas outras religiões –, nada bebera, a não ser um copo de vinho no almoço, do qual já mostrou arrependimento. Bloom oferece-se para guardar o dinheiro do salário de professor de Stephen, antes que suma, e o protege como pode da rapina das putas e de si mesmo. Paternal.

Surge o espectro da mãe de Stephen, em trajes nupciais carcomidos, como Ofélia, ao som da ladainha: Jubilantium te virginum… No topo de uma torre, Buck Mulligan, o amigo médico, vestido de bufão shakespeareano, comenta: está animalmente morta. Num momento, Stephen dirige vitupérios à mãe morta (Que farsa de espectro…). Logo depois, sufocado de terror e remorso, defende-se: Dizem que te matei. Ele (Mulligan) ofendeu tua memória. O câncer foi que o fez, não eu. Destino. Buck Mulligan, o bufão, põe lenha na fogueira, referindo-se ao fato de Stephen haver-lhe recusado o último desejo, ajoelhar-se e rezar por ela, e termina recordando Homero: Nossa grande mãe! Epi oinopa ponton. A mãe exige arrependimento, submissão a Deus, quarenta dias de penitência e que peça à irmã para preparar-lhe aquele arroz cozido toda noite. As prostitutas comentam: Olha! Ele está branco. O espectro aproxima-se, triste e vingativo, ameaça-o com o fogo do inferno, até que Stephen lança o brado do anjo rebelde: Non serviam! Apostrofa a mãe, Necrófaga! Hiena!, empunha sua bengala e quebra a manga do lustre a gás, clamando: Nothung! (O jato de gás comenta: Pfungue!) Bloom tenta contê-lo, enquanto as putas se agitam apavoradas, mas Stephen escapa para a rua. A dona do bordel exige de Bloom dez xelins para pagar o prejuízo: Sem conversa. Isto não é um bordel. É uma casa de a dez xelins. Bloom, apressado, ainda regateia, deixa um xelim, e corre ao encalço de Stephen, antes que cometa outros desatinos. Nesse momento, o livro inteiro sai atrás dele, todas as personagens marginais e os figurantes dublinenses, como num filme de Carlitos, aos gritos de: É o Bloom! Pega o Bloom! Pega ladrão!

Oh, sim, é uma cena edipiana, não concordam? Stephen repudia o pai alcoólatra, Simon, enquanto se identifica com ele na bebida. Encontra novo pai, Bloom, mas nunca chega a aceitá-lo. Parece mais que moderadamente ambivalente em relação à mãe. E, ainda, é uma cena hamletiana, tanto no cenário, quanto no protagonista, o intelectual hesitante diante da ação. Nosso Jones poderia ficar satisfeito.

Mas, esperem, Stephen é Telêmaco, O que combate de longe. E Bloom é Ulisses, estando eles na ilha de Circe. Logo, o interpretante deveria ser a Odisseia, sobre o mar cor de vinho, nossa grande mãe. Uma poção faz com que o caráter dos homens se manifeste em forma carnal e os companheiros de Ulisses viram porcos. O porco de Gadarene, no qual Jesus exorcizou os demônios dos dois possessos, é um dos figurantes dessa cena. Ora, da poção, Guiness, the sacred pint, Stephen, Mulligan e todos os demais, salvo Bloom, se haviam enchido o dia todo. Por outro lado, Penélope, Molly Bloom, espera no lar, assediada pelos pretendentes. Mas não está tecendo e destecendo uma tapeçaria; tece fantasias e, o que é pior, atos sexuais. Mas não será hamletiana essa Fleich der stets bejaht (a carne que sempre diz sim), como a classifica o próprio Joyce, fazendo um paralelo ao Espírito que sempre diz não, de Goethe, não será Molly também a mãe de Hamlet? Frailty thy name is woman!

Logo, Shakeaspeare, outra vez. Porém, esse Hamlet não deixa cair a arma molemente como o outro, investe contra a lâmpada bradando… Nothung!? Mas essa é a espada mágica de Siegfried, com a qual liquida Fafner, não é mesmo? Wagner, agora. E também o rito cristão, e também… Esse jogo de gato e rato, onde, meus caros, somos nós o rato, não teria fim. Qualquer interpretante sucumbe de imediato ao vórtice do Ulisses. Basta notar que na acusação, Hiena!, segundo Thornton, está citado esse distante Brunetto Latini, de Il tesore: a hiena é um animal que às vezes é macho e às vezes é fêmea… e desenterra os mortos para os comer – justificando ser mulher o espectro hamletiano.

Que faz Joyce? Num romance, de hábito, o autor insere delicadamente alguma referência às obras-mãe. Joyce também, só que todas ao mesmo tempo, toda a literatura. Com isso, a credibilidade do processo literário convencional entra em crise, mostrando que todas as histórias são uma história só, dependendo de como se opera, e, por sinal, não a de Édipo, mas a história da criação literária e, mais amplamente, a do pensamento humano. Ora, esse interpretante é mera banalidade, a menos que tenha surgido em carne viva, não como aplicação de uma ideia prévia, mas como uma denúncia que o texto promove. Ulisses é o interpretante de todas as obras, não o contrário. O que ele produz na obra literária? Uma ruptura de campo. Uma tentativa de cura. Para nós, uma introdução à estética da interpretação.

E no leitor? O delírio alcoólico é um porre, mas todos entendem. Trata-se de uma convenção apaziguadora. Quando se trata de contar uma história que foge ao normal, o narrador está bêbado, louco, sonhando etc. O leitor aceita, como aceitamos nós os sentimentos do paciente, desde que sejam só transferência. É um parêntese, um itálico, um quase isso. Quem é o delirante aqui? Stephen, é claro. Todavia, melhor pensando, não é claro. E a correria de pantomima atrás de Bloom, quando Stephen já está na rua, mas a câmera não o acompanhou? Não pode ser imaginação de Stephen. Ao longo do capítulo, de mais de 150 páginas, a maior parte do delírio parece ser de Bloom, uma nova transformação do monólogo interior. Mas se é Bloom quem imagina, como pode haver recriado o drama de consciência de Stephen, que mal conhece. Buck Mulligan conhece. Ele é o bufão o tempo todo. O delírio de Stephen, em Circe, reprisa o que foi contado na Telemaquia, umas 600 páginas atrás, na tradução de Houaiss, umas 500, na edição original em inglês – a parisiense, de mil exemplares. Lá, no começo, Mulligan explica comicamente a Haines, o visitante inglês da Martello Tower, que Stephen tem uma nova teoria sobre Shakespeare, o esporte da moda: ele prova algebricamente que o neto de Hamlet é o avô de Shakespeare e que ele é o espírito do próprio pai. É lá também que ficamos sabendo do drama de consciência de Stephen, que se recusa a rezar pela mãe moribunda porque perdeu a fé, porém, não perdeu, segundo Mulligan, esse maldito sangue jesuíta, correndo ao contrário. E que Stephen se ofende com Mulligan por ter dito que sua mãe estava beastly dead, não por respeito à sua memória, mas por dignidade pessoal: ofensa a mim, explica. Logo, de certa maneira, o delírio é de Mulligan, mas não por estar imaginando, mas, sim, por estar orquestrando a cena e regendo os instrumentos. A repetição faz parte da forma sonata, ideada por Joyce. A verdade, quem a diz são os bufões: ridente castigant mores. Mulligan só aparece de quando em quando no livro, mas seu espírito, Mercurial Malachi, está por toda parte. A comicidade não é apenas o sintoma essencial do drama humano desnudado, é também a forma de o desnudar, não é o avesso do drama, mas o drama virado do avesso, as entranhas da alma à mostra: Ulisses inventou a psicanálise cômica por excelência. Psicanálise, no sentido de clínica extensa, como a alta teoria a concebe. A que, antes de ser, já era.

Isso não explica quem é o sujeito do delírio, mas apenas que Buck Mulligan é mais uma das encarnações de Joyce, o satírico – à exceção do Satíricon, de Petrônio, arbiter elegantiarum, não me recordo de outro grande texto literário que se concedesse o direito de descrever o processo excretor humano como o faz Ulisses – como também o deve ser Bloom, o pater familias fantasioso, nenhum sendo Joyce, ele mesmo. Porém, estamos sendo talvez enganados pelo hábito de nossas teorias: eles não estão num bordel, mesmo de dez xelins, estão num livro. Isso, que se pode quase sempre esquecer, nesse caso vai se destacando, corrosivamente. Como já procurei mostrar a respeito de Gogol15, aqui também, mas numa escala fantasticamente superior, é o livro que delira, não a obra, nem muito menos o autor, mas a narrativa – não caberia dizer o narrador. Em Gogol, é o Diário que adquire uma espessura ontológica indevida, aqui, no Ulisses, desaparece completamente o pretexto e só fica o texto, produzido segundo o torturado método joyceano. O delírio às avessas de Joyce, seu método de escrita, o delírio lúcido, restabelece a forma concreta da experiência humana, uma composição de possíveis, dispostos em camadas, uma torta mil-folhas da alma16. Geralmente, na segunda parte do Ulisses, predomina o monólogo interior de Bloom, suas fantasias, memórias, seu ponto de vista. Aqui, bem ao fim, rompe-se uma vez mais o campo da tradução automática, para mostrar que numa situação coletiva – como, aliás, já antes acontecera várias vezes, em Éolo17, por exemplo – não é uma cabeça que delira, mas a realidade mesma.

Como poderia Joyce apreciar a interpretação redutora da psicanálise que lhe foi apresentada, se estava criando outra muito melhor?

 

Referências

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______. (2004). Da representação à clínica da crença. In F. Herrmann. Introdução à Teoria dos Campos (2a ed., pp. 151-159). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 2001).         [ Links ]

______. (2006). Sobre a clínica da crença. In F. Herrmann. Andaimes do real: Psicanálise da crença (2a ed., pp. 173-191). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1998).         [ Links ]

______. (2008). O atrito do papel. Revista Língua Portuguesa, edição especial Psicanálise e Linguagem.         [ Links ]

Joyce, J. (1980). Finnegan's Wake. London: Penguin Books.         [ Links ]

______. (2000). Ulisses. (Antônio Houaiss, trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Pound, E. (1970). Pound/Joyce. The letters of Ezra Pound to James Joyce, with Pound's critical essays and articles about Joyce. New York: Forest Reader/New Directions Book.         [ Links ]

Taffarel, M. (2005). O método psicanalítico e sua identificação desde a história da psicanálise e sua relação com o método nas ciências. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Leda Herrmann
Rua Agrário de Sousa, 106
01445-010 − São Paulo – SP
tel.: 11 3088-8123
E-mail: herrmannfl@globo.com

Recebido: 16/10/2011
Aceito: 28/10/2011

 

 

* Fabio Herrmann (1944-2006) era médico e psicanalista. Membro da SBPSP, presidiu-a no biênio 1985-1986. Foi presidente da Fepal de 1986 a 1988 e professor de Pós-Graduação da PUC-SP. Autor da Teoria dos Campos, com extensa obra publicada, fundou o Cetec (Centro de Estudos da Teoria dos Campos), que presidiu até sua morte.
** Membro da SBPSP. Presidente do Cetec. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autora de Andaimes do real: a construção de um pensamento (Casa do Psicólogo, 2007).
1 A grafia de Psicanálise com P maiúsculo é reservada à disciplina psicanalítica, enquanto que a grafia com p minúsculo – psicanálise – diz respeito às suas adjetivações, como psicanálise clínica, por exemplo. Todas as notas e os resumos são de autoria de Leda Hermann.
2 Clínica extensa, na Teoria dos Campos, diz respeito a todo ato clínico – com pacientes no consultório ou com recortes do real que o analista deseja compreender – que, pelo processo interpretativo, faz emergir sentidos que ainda não se mostravam.
3 A primeira aula desta Segunda Meditação é dedicada a uma séria discussão sobre as diversas condições de produção de teoria em Psicanálise e ao destino que tal produção foi tomando ao longo da centena de anos de nossa disciplina (Herrmann, 2008). Seu argumento maior é o de que as teorias que valem por seu caráter de descoberta, de produção de conhecimento, produzem-se na clínica. A condição heurística do fazer clínico tem sua garantia no uso da teoria como ferramenta interpretante. Neste texto chama-se essa forma de produção de prática teórica em estado clínico.
4 Referência à primeira aula da Primeira Meditação (Herrmann, 2002). O argumento dessa Meditação é o da história da Psicanálise como resistência à condição heurística da Psicanálise, e nessa primeira aula, trabalha metaforicamente as circunstâncias de tal resistência através de preciosa interpretação do poema de Mallarmé "Um lance de dados jamais abolirá o acaso";.
5 Estas são referências a momentos de rupturas epistemológicas na história da Psicanálise e de seu movimento. Cf. Taffarel (2005).
6 Em outro artigo, Fabio nomeia assassinato metonímico essa forma escolástica de evolução teórica da Psicanálise (Herrmann, 1986).
7 Há aqui um jogo metafórico em que a referência é o panteão egípcio. Osíris é o rei funerário que reina no mundo dos mortos. Quando faraó vivo, Osíris é traído pelo irmão Set, que o assassina e toma seu trono. O corpo de Osíris é atirado no Nilo em um esquife. Depois de recuperado por sua mulher, Ísis, é novamente tomado por Set, que o retalha em 14 pedaços. Mesmo assim, Ísis e Osíris geram Hórus, enquanto transformados em pássaros. Hórus vinga o pai e toma o lugar de rei vivo, a que cada faraó sucede. Esses dois reinos da mitologia egípcia, o dos mortos e o dos vivos, é que Fabio usa nesse trecho como metáfora do sistema campo/relação que criou para pensar os fundamentos da Psicanálise.
8 Descrição da forma como o analista habita o reino análogo. A aproximação ao sentido que o jogo transferencial do diálogo permite impõe ao analista um embate entre personagens. Ele toma provisoriamente como verdadeiro o papel que o paciente atribui-lhe, e, vivendo-o, vai conhecendo os personagens que o paciente cria para si na cena analítica. Mas vive-o e o denuncia pela ação de ruptura do processo interpretativo. Trata-se de procedimento similar ao do escritor de literatura, isto é, a assunção de poéticas – formas estéticas no caso do escritor – que permite que algo se revele e fale de si.
9 Podemos tomar esses trechos como exemplos de demonstração intuitivo-compreensiva do processo interpretativo, embora seus ares, na escrita, aparentem-se à demonstração de estilo matemático.
10 Teoria em estado clínico, ou seja, a clínica que produz conhecimento seja em que escala for, toma, neste texto, o lugar de ponto ômega da teoria do análogo da Teoria dos Campos. Como o é o umbigo do sonho para a concepção freudiana de inconsciente.
11 No pensamento de Fabio, está na propriedade da equivocidade da palavra, sua condição polissêmica, a possibilidade da Psicanálise vir a existir. Tendo isso ocorrido pela genialidade de Freud e no final do século XIX, quando do mundo estava começando a ser retirada a possibilidade de se conhecê-lo diretamente. A informação impunha-se como a forma do homem apreender seu mundo e ela, a informação, põe em evidência essa propriedade inerente à palavra humana (Herrmann, 2001a; 2001b.
12 "Como franca ruptura / Assim calca ou fatia / Os antigos desacordos / Com o corpo"; (Cântico de São João, Mallarmé (tradução livre de Leda Herrmann)).
13 Deus da sabedoria no panteão egípcio, era o deus-arquivista dos outros deuses, o que propôs a escrita como registro da memória.
14 De certa forma, pode-se pensar, a partir da correspondência entre Pound e Joyce, que em Ulisses e Finnegan's Wake Joyce resgata o enciclopedismo flaubertiano de Bouvard et Pécuchet do irônico lócus em que fora colocado.
15 Cf. 43 de abril. Ou o drama ridículo de Aksenti Ivanovitch (Herrmann, 2001c). Trata-se do estudo sobre as condições de instalação do delírio – o limiar delirante – evidenciadas na análise do conto de Gogol "O diário de um louco";. O desenvolvimento do argumento vai mostrando que o delírio está na própria forma narrativa de Gogol – é o conto que delira na transcrição do diário de Aksenti Ivanovitch – ou seja, é o conto uma poética para o delírio psiquiátrico.
16 Delírio lúcido é a maneira que Fabio concebe o trabalho analítico na psicose (Herrmann, 2004; 2006). Seu emprego aqui se desloca para a cena literária e ressalta o jogo metafórico proposto por Fabio para penetrar a composição de possíveis própria à experiência humana.
17 A ilha da morada de Circe na Odisseia.