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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011
EM PAUTA
Experiência emocional e formas simbólicas poéticas1
Emotional experience and poetic symbolic forms
Marisa Pelella Mélega*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
A autora expõe, de forma sucinta, o percurso da compreensão da criatividade artística, desde Freud até Bion e Meltzer, além de vários outros autores que se detiveram no tema. Ocupa-se, em seguida, da relação entre o sonho e a obra de arte. No caso da produção poética, ela propõe um estado de mente poético em que o poeta dá forma a vivências emocionais, transformando-as em símbolos/poemas, e ilustra esse processo com alguns poemas.
Palavras-chave: Experiência emocional, Formas simbólicas, Estado de mente onírico, Estado de mente poético, Criatividade artística.
ABSTRACT
The author exposes in a succint way, the route of the understanding of artistic creativity, from Freud to Bion and Meltzer, along with many other authors who addressed the theme. She aprroaches, subsequently, the relation between the dream and the art work. In the case of the poetic production, she proposes a poetic state of mind in which the poet gives shape to emotional experiences, turning them into symbols/poems, and she illustrates this process through some poems.
Keywords: Emotional experience, Symbolic forms, Oneiric state of mind, Poetic state of mind, Artistic creativity.
Sigmund Freud, em A interpretação dos Sonhos, de 1900, descreve alguns dos mecanismos por meio dos quais o sonho é criado, abrindo caminho à investigação científica sobre a criatividade.
Até esse momento, o processo criativo, objeto de admiração e espanto, era atribuído à loucura, ao destino, ao acaso, à providência divina. Ele não era estudado por se entender, desde Platão e Aristóteles, que o homem, animal racional, pensa segundo as leis da lógica e da matemática. O verdadeiro "criador"; era quem manejasse perfeitamente as técnicas da dedução. O homem não pertencia à ordem natural das coisas – apenas seus processos corpóreos seguiam as leis naturais – mas não sua razão e vontade. Assim, somente Deus poderia criar, o homem poderia apenas descobrir.
Essa metafísica tradicional foi superada com a descoberta do inconsciente, que introduziu continuidade onde havia lacuna e, consequentemente, estabeleceu ligação entre o consciente e o inconsciente, o normal e o patológico, a criança e o adulto, o homem civilizado e o primitivo, o indivíduo e a espécie, o ordinário e o extraordinário.
Dessa forma, a criatividade foi democratizada por Freud: o insólito passou a ser entendido como um caso especial do usual, a obra do gênio passou a ser vista como um grau diferente "daquilo que dormia ou germinava"; na mente do homem comum; a criatividade não estava mais limitada ao artista; não sendo mais definida com base em um tipo peculiar de produto artístico, passou a ser considerada uma capacidade que potencialmente todos podem ter e desenvolver.
Uma vez admitida a fonte criativa do inconsciente, e aceitas as condições originais de cada indivíduo, o campo de pesquisa sobre a criatividade ampliou-se. Os alunos de Freud, para citar Otto Rank e Karl Abraham, tentaram dar respostas a questões que o próprio Freud considerava além das possibilidades; o impulso criativo, o talento, o gênio, o trabalho do artista, a avaliação da obra de arte passaram a ser foco de atenção de seus seguidores.
No início, os trabalhos pretendiam provar a validade das descobertas freudianas sobre o inconsciente e mostrar que os artistas expressam em suas obras conflitos infantis profundos. A compreensão analítica adquirida por meio dos sonhos levou à descoberta de fantasias edipianas reprimidas e à sua expressão estética mascarada na arte. Rank demonstrou que os temas da literatura universal e dos contos de fada, assim como das brincadeiras e de outros produtos da imaginação são variações de poucos e fundamentais motivos, entre os quais o incesto e os derivados do complexo de Édipo. Abraham estabeleceu uma relação mais estreita entre sonho e mito. Jones, em um ensaio sobre o simbolismo, de 1929, escreveu uma história da arte em 35 páginas, segundo afirmação de Gombrich. Inúmeros foram os trabalhos sobre o processo criativo na obra de arte, sua função para o artista e a relação entre o artista e o público.
Para E. Bergler, a criação literária não é expressão de desejos infantis, mas de defesas contra tais desejos, colocando as raízes do conflito na fase oral da libido.
Diversos autores influenciados pela psicologia do Eu e pelas contribuições de Hartmann sobre a neutralização e sublimação da energia, consideraram a criatividade e a habilidade artística funções autônomas do Eu. Greenacre, ao verificar os vários conceitos novos sobre a criatividade, estudou o processo de sublimação nas pessoas não dotadas e dotadas, detendo-se especialmente na infância do "criador";, enfatizando que o "romance familiar"; tem particular importância para o artista e frequentemente manifesta-se em sua obra.
Ernst Kris sistematizou os vários momentos do processo criativo, as fases de inspiração e as de elaboração, procurando estabelecer diferenças entre a expressão artística da personalidade normal e a do psicótico. Melanie Klein (1957), mostrou a tendência a reparar e recriar dentro e fora de si os objetos de amor, ameaçados de destruição em fantasia, colocando a origem da criatividade na posição depressiva e na culpa.
Hanna Segal (1964), alinhada com Klein, afirmou que o desejo de criar está enraizado na posição depressiva e que a capacidade criativa depende de sua superação. Cada criação é uma recriação de um objeto amado, que foi perdido e estragado num mundo interno com um self despedaçado. A obra de arte é, para o artista, a forma mais satisfatória de aliviar o remorso e o desespero que nascem da posição depressiva, bem como de reconstruir seus objetos destruídos. Reconhecer e expressar as fantasias e ansiedades depressivas é um trabalho semelhante à elaboração do luto. O artista recria internamente um mundo harmônico, o qual é projetado em sua obra de arte.
Marion Milner reconhece o significado inconsciente da atividade artística, mas acredita que a recriação seja uma função secundária da arte. A função primária é a de criar objetos (em sentido psicanalítico): criar o que nunca existiu, usando uma nova capacidade de percepção.
Janine C. Smirgel (1989), aponta os riscos que a psicanálise enfrenta ao se aventurar no campo extraterapêutico e ao abordar problemas da forma e estilo artísticos, da função do ato criativo, da criação autêntica e não autêntica, dos mecanismos de sublimação no trabalho do analista.
A psicanálise, segundo Janine C. Smirgel, ao se voltar para a compreensão dos fenômenos socioculturais, encontra as mesmas resistências de outrora; falar das forças primitivas no artista, que agem nele como no homem comum ou neurótico, significa despi-lo de sua magia. E é intolerável para o narcisismo humano aceitar que os grandes criadores sejam regidos, como todos, por fatores infantis.
No entanto, reconstruir o trabalho do inconsciente, que faz brotar da sexualidade infantil os tesouros mais preciosos do homem, é tarefa que sempre fascinou tanto o analista como o artista.
Além dos obstáculos externos, apontados por Smirgel, a psicanálise encontra dificuldades de caráter metodológico para estudar os fenômenos culturais, artísticos e de estilo. Entendemos que o que constitui a originalidade do "estilo"; psíquico de uma pessoa não é o complexo de Édipo, mas a elaboração desse complexo e sua integração na personalidade.
O psicanalista entra em contato com o estilo psíquico original de uma pessoa durante o trabalho clínico e a constelação psíquica se revela do mesmo modo que o sonho revela o sonhador.
Para Smirgel, o problema da psicanálise da arte e da criatividade gira em torno do processo de sublimação. Não é suficiente descobrir as pulsões primárias – o objeto de sublimação – para percorrer a incógnita entre as pulsões primárias e suas manifestações em nível de criação artística. Existe uma atividade criativa, cuja função é a reparação do sujeito. Somente o ato criativo em que se conclui essa reparação comporta a sublimação. Assim, é possível pensar no valor de uma obra de arte como estritamente dependente da função que a obra tenha tido para o autor. Freud assinala dois tipos de sublimação em Leonardo da Vinci: a criação artística e a investigação científica. A criação artística de Da Vinci foi resultado de um longo e doloroso caminho, levando algumas de suas obras à perfeição e outras a serem consideradas incompletas por ele. A criação científica parece não ter sofrido as mesmas inibições, o que levou Smirgel a pensar em uma hierarquia dos atos criativos.
O conceito de reparação, introduzido por Klein em 1929, na obra Infantile anxiety: situations in a work of art and in the creative impulse, foi aplicado à compreensão do impulso criativo entendido como concomitante à posição depressiva. Tal impulso nasce da necessidade de reparar o objeto perdido no momento em que ele é vivido em sua totalidade, isto é, quando seus aspectos bons e maus são reconhecidos como um todo. Esse reconhecimento põe o sujeito diante de sua ambivalência e leva-o a constatar a coexistência do "bem"; e do "mal"; dentro de si, dando origem ao sentimento de culpa. As ideias persecutórias não desaparecem e o indivíduo teme a retaliação (o revide) do objeto (o outro) a seus ataques. O medo e a culpa conduzem o sujeito a uma tentativa de restauração do objeto. O ato criativo, segundo Klein, constitui uma das modalidades privilegiadas da atividade reparativa.
A reparação do objeto, derivada do sentimento de culpa, é guiada em parte pelo superego que se opõe às pulsões sádicas e destruidoras. Nessa perspectiva, o ato criativo e o ato reparativo se confundem e mais parecem formações reativas do que sublimações. Klein alude à função reparadora do ato criativo em relação ao sujeito, na qual é intermediada pela reparação do objeto, visando a extinguir a ameaça da lei do talião. É o Ego que intervém no ato, e não as pulsões do Id. Smirgel demonstra que o ato criativo pode ter origem no desejo de reparar o objeto, mas existe uma atividade criativa na qual o alvo perseguido é a reparação do próprio sujeito. As duas categorias de atos criativos se oporiam radicalmente. Somente o ato criativo cuja finalidade é a reparação do sujeito implica descargas pulsionais que configuram a sublimação.
A culpa conectada com o ato criativo deve-se à destruição do objeto no inconsciente. Não se trata de uma fusão em que sujeito e objeto formem uma unidade, mas de uma posição de alteridade: o indivíduo criativo vampiriza o objeto, nutrindo-se dele. Se a criação assume no inconsciente o sentido de reparação do sujeito, é preciso que este assuma as próprias pulsões sádicas.
O ato criativo pode ter função reparadora ora do objeto, ora do sujeito e, nesse caso, há certa superação da culpa.
Smirgel observa que o indivíduo criativo apresenta distúrbios somáticos que chegam à despersonalização, pois seu Eu revelou-se precocemente por uma brusca separação do não Eu. A precoce maturação do Eu parece ter sido causada por frustrações ou traumas psíquicos muito intensos, ou mal dosados, que romperam muito cedo o universo fusional primário.
Em seu trabalho Inveja e gratidão, Melanie Klein (1957), dá seu último aporte à concepção de criatividade, dizendo que a relação com o seio da mãe é a fonte da vida. A manifestação criativa e o desejo de internalizar essa fonte de vida e de identificar-se com ela – assegurando-se de ter integração e onipotência – são a base de toda a criatividade.
1. Uma visão atual da criatividade
A psicanálise contribuiu com a crítica literária, propiciando novos meios e técnicas de investigação para a compreensão do fato artístico e da relação entre autor e obra. No campo da criação, possibilitou o conhecimento dos fatos psíquicos. Em Ulisses, de James Joyce, o fluir das lembranças, as associações mentais que ocorrem em um dia qualquer de um homem qualquer são reconstruídas e significadas pelo autor. O surrealismo, na obra de Dalí, ao valorizar o inconsciente, abriu espaço aos componentes oníricos que têm em Freud sua referência.
Como toda ciência, a psicanálise está em contínua evolução e tem avançado na compreensão dos fenômenos ligados à simbolização, aos processos oníricos e ao pensar. Esse avanço deve-se à mudança da concepção de modelo de mente, que se tornou epistemológico pela contribuição de Bion (1962). O distanciamento dos modelos de mente da ciência tradicional (positivista) possibilitou o estudo da "passagem misteriosa"; da experiência emocional à sua representação, que a ciência psicanalítica tem dividido com a arte, a filosofia e a literatura.
W. Bion estudou essa "passagem misteriosa"; que vai da experiência emocional à sua representação em imagens oníricas e formulou a teoria da função alfa (Bion, 1962), segundo a qual a passagem ocorre desta forma: ao ter uma experiência sensorial e emocional, o sujeito precisa dar-lhe significado e representação para que sua mente se torne capaz de ter pensamentos e de crescer na capacidade de pensar. Para que esse processo ocorra, o sujeito depende de objetos internos que o ajudem nessa função de significar e representar. No início da vida é a mãe que exerce essa função (a mãe como um objeto não apenas de cuidados e nutrição, mas como objeto pensante). A criatura vai internalizando esse "objeto"; como um modelo de pensar e a ele recorre, sempre que necessário, a cada nova experiência emocional. Assim são gerados novos pensamentos e novas "unidades simbólicas";.
A vida onírica é uma atividade pensante que busca dar sentido ao que vivemos, para isso, é necessário que sejam oferecidas algumas condições. É o lugar onde nós nos recolhemos para dar toda atenção ao mundo interno, às nossas relações íntimas e é onde as experiências emocionais são compreendidas: os significados alcançados são representados nos sonhos noturnos, nas verbalizações, na música, na pintura e na poesia.
Para o modelo de mente que estamos usando, toda função criadora considerada artística ou científica depende da criatividade dos objetos do mundo interno do indivíduo e das relações entre o self e seus objetos internos (ou divindades). A mente é entendida como espaços nos quais as experiências emocionais ocorrem continuamente e necessitam do reconhecimento em nível simbólico para que possam ser representadas e pensadas.
Os elementos precursores simbólicos originados das transformações nesses espaços do mundo interno do indivíduo são imagens principalmente visuais e auditivas. Para ser comunicadas, precisam ser representadas, e é desse processo que surgem os signos e símbolos. Há uma produção contínua inconsciente, que não é interrompida pelas experiências diárias conscientes, chamada processo onírico. Durante o dia, manifesta-se por meio de flashes, imagens visuais inexplicáveis, repentinas, não relacionadas aparentemente com a conversação ou a situação do momento. São "pensamentos incipientes"; que denotam uma atividade de pensar, com a finalidade de alcançar um significado da experiência emocional em curso. Em geral, somos incapazes de compreender o significado dessa linguagem. Além disso, a transformação do pensamento nascente em qualquer linguagem sofre várias distorções. Temos de levar em conta também a eterna limitação da linguagem verbal pela representação nela implicada. Ludwig Wittgenstein (1958) pensa que devemos nos calar quando não conseguimos dar palavras. Desse modo, entendemos ser uma possível alusão à necessidade da imagem, da cena, da vivência, da linguagem pré-verbal para comunicar o todo da experiência.
Bion (1962) expandiu o conceito kleiniano de identificação projetiva ao descrever uma modalidade de comunicação, a identificação projetiva realista. Segundo o autor, um indivíduo pode projetar no outro seus estados de ânimo, por meio de condutas pré-verbais (som, choros, risos, gestos, ritmos etc.) e o outro passa a senti-los, sendo esse o modo pelo qual ocorre a comunicação inconsciente, pré-verbal, sem palavras. Isso nos remete aos limites da linguagem verbal.
2. Relação entre o sonho e a obra de arte
Agora nos ocuparemos da relação entre sonho e obra de arte. Paul Ricoeur (1972), ao refletir sobre a semelhança e a diferença entre um sonho e uma obra de arte, afirma que as obras de arte são criações, uma vez que não são simples projeções de conflitos do artista, mas, também, o esboço de soluções.
No sonho, o disfarce predomina sobre a revelação, o sonho olha para trás, para o passado, para a infância. Na obra de arte prevalece a revelação como símbolo prospectivo da síntese pessoal do homem, e não apenas um sintoma regressivo de conflitos não resolvidos.
Ella F. S. Sharpe (1971) destaca que o sonho é um produto psíquico típico e individual em que a intuição, o conhecimento que vem da experiência e a expressão são aspectos de um só fato. O material que compõe o conteúdo manifesto de um sonho deriva de alguma espécie de experiência do sujeito.
Da mesma forma que o jogo da criança remete a um desejo e a uma experiência, o sonho é a expressão de uma experiência pessoal (ocorrências reais passadas, estados emocionais e sensações corporais penosas e agradáveis). Nesse sentido, Sharpe (1971) enfatiza que a vida onírica detém dentro de si não somente a prova de nossos impulsos instintivos e os mecanismos pelos quais esses impulsos são aproveitados ou neutralizados, mas, também, as experiências reais pelas quais passamos. Para o artista, a experiência esquecida parece acessível de alguma maneira, para ser utilizada em sua imaginação criadora, embora possa não haver percepção consistente dessa utilização, como é o caso do pintor inglês Turner, que repetidamente introduz uma ponte em paisagens inspiradas por regiões geograficamente distantes.
Sharpe (1971) sustenta que as leis da dicção poética, desenvolvidas pelos críticos com base nas grandes obras poéticas, e as leis da formação onírica, descobertas por Freud, originam-se das mesmas fontes inconscientes e apresentam muitos mecanismos em comum. Seu veículo de comunicação básico é o som e, unido a este, o poder de evocar a imagística.
Para esse fim, a elocução poética prefere a imagem à sequência de fatos, evita a expressão genérica e escolhe a expressão específica. É contrária ao "alongamento"; e pode dispensar conjunções e pronomes relativos onde possível. Substitui frases por epítetos. Um poema apela para o ouvido e para a vista, tornando-se uma "tela com animação";.
Para Sharpe (1971), os princípios e os artifícios empregados na dicção poética (metáfora, metonímia, sinédoque, símile, onomatopeia etc.) têm a mesma marca dos mecanismos oníricos: condensação, deslocamento, simbolização. Os mecanismos oníricos ao mesmo tempo que escondem o desejo inconsciente o manifestam.
Voltamos à questão de que relação haveria entre sonho e processo criador, ou melhor, considerando o processo onírico descrito, que relações haveria entre o processo onírico e a produção artística.
No caso da produção poética, conjecturamos que o poeta, ao viver certas experiências sensoriais e emocionais, elabora-as em formas simbólicas poéticas.
Assim, a necessidade do ser humano de manejar e elaborar angústias ligadas à individualização, à constituição de uma identidade, a presenças-ausências, à passagem do tempo, a perdas etc. propõe à psique um trabalho mental que se inicia no inconsciente e acontece no indivíduo acordado ou dormindo, é o processo onírico.
Partindo desse estado de mente onírico que produz significados, o poeta, diferentemente do homem comum, é capaz de dar-lhes formas que resultam em linguagem reconhecida como poética.
Entendemos por isso que o poema não é mera representação de configurações emocionais, mas, sim, fonte de conhecimento da realidade psíquica.
Haveria, então, uma relação entre os estados de mente poético e onírico. Proponho estado de mente poético para determinada configuração mental durante a qual o indivíduo elabora uma vivência emocional que está sendo transformada em formas simbólicas.
Tais formas são representações principalmente visuais, mas, também, auditivas, tácteis, ou seja, sinestésicas, e vão possibilitar o reconhecimento consciente/pré-consciente da experiência emocional.
Tais estados de mente estariam a serviço da elaboração de angústias, ligadas à passagem do tempo, a perdas, a ausências-presenças, à individuação eu-tu ou self-objeto, para citar alguns.
Ilustramos nossa hipótese com um poema de E. Montale (1896-1981):
Cigola la carrucola del pozzo
Cigola la carrucola del pozzo,
l'acqua sale alla luce e vi si fonde.
Trema un ricordo nel ricolmo secchio,
nel puro cerchio un'immagine ride.Accosto il volto a
[evanescenti labbri:
si deforma il passato, si fa vecchio,
appartiene ad un altro....Ah che giá stride
la ruota, ti ridona all'atro fondo,
visione, una distanza ci divide.
(Montale, 1990)Rilha a roldana do poço
Rilha a roldana do poço,
a água sobe à luz e aí se funde.
Treme um recordo no transbordante balde,
no puro círculo uma imagem ri.
Encosto o rosto a evanescentes lábios:
deforma-se o passado, faz-se velho,
pertence a outrem...Ah; o chiado da roda
te devolve ao negro fundo,
visão, uma distância nos separa.
(Montale)
Nesse poema há o movimento de separação e reencontro por meio de uma imagem projetada trema un ricordo nel ricolmo secchio (treme um recordo no transbordante balde), uma imagem que ri e que por um momento é realidade a ponto de o poeta encostar "o rosto a evanescentes lábios";. A partir daí, a alucinação, o louco sonho de trazer à presença o que está ausente por uma projeção de sua memória "no puro círculo uma imagem ri";, se desfaz. O movimento da roldana que vai ao fundo e retorna, levando o balde vazio, e trazendo-o à luz cheio, é, sem dúvida, uma configuração que o poeta usa como semelhança de um ir e vir, de presença e ausência. Ele projeta sobre esse movimento a imagem de um objeto ausente que "por um momento"; está na realidade externa. Em "Além do princípio do prazer";, de 1920, Freud observa um menino de 18 meses que brinca de jogar um carretel de linha para baixo de um móvel exclamando "Fort!"; ("Fora!";) e puxando-o de volta exclama "Da"; ("Aqui";). Freud conclui que o menino estava lidando com a ausência da mãe e, ao afastar e reaver o carretel, ele dominava a ação de separação e reencontro. Brincando desse modo, podia aguardar o retorno da mãe, evitando uma insuportável ansiedade de separação.
Não há nesse poema de Montale o nível lúdico mencionado, mas uma momentânea alucinação ou imagem onírica – fruto do imenso desejo do reencontro do objeto, o "tu";. A alucinação se desfaz com o gesto de aproximação, com novo movimento da roldana (Ah; o chiado da roda) que devolve o balde ao negro fundo, metáfora da volta ao inconsciente da imagem onírica, fruto do desejo; a consciência do poeta adverte-o de que houve uma visão, pois há uma distância entre "eu"; e "tu";. O lúdico e o criativo se revelam na construção desse poema, que nos parece uma criação diante da angústia de separação e da passagem do tempo.
"Due nel crepuscolo"; de Eugenio Montale, é a descrição de um encontro que leva o poeta a confrontar a imagem onírica da memória com o objeto "tu";, presente e muito esperado. Ele descreve uma ruptura do estado de mente que carrega a "memória de um tu";, que não se superpõe ao do encontro real. A ruptura abre uma distância deformante acompanhada de reações de despersonalização e de vazio.
Due nel crepuscolo
Fluisce tra me e te sul belvedere
un chiarore subacqueo che deforma
col profilo dei colli anche il tuo viso.
Sta in un fondo sfuggevole, reciso
da te ogni gesto tuo; entra senz'orma,
e sparisce, nel mezzo che ricolma
ogni solco e si chiude sul tuo passo:
con me tu qui, dentro quest'aria scesa a sigillare
il torpore dei massi.
Ed io riverso
nel potere che grava attorno, cedo
al sortilegio di non riconoscere
di me più nulla fuor di me: s'io levo
appena il braccio, mi si fa diverso
l'atto, si spezza su un cristallo, ignota
e impallidita sua memoria, e il gesto
già pìu non m'appartiene;
se parlo, ascolto quella voce attonito,
scendere alla sua gamma più remota
o spenta all'aria che non la sostiene.Tale nel punto che resiste all'ultima
consunzione del giorno
dura lo smarrimento; poi un soffio
risolleva le valli in un frenetico
moto e deriva dalle fronde un tinnulo
suono che si disperde
tra rapide fumate e i primi lumi
disegnano gli scali.
.... le parole
tra noi leggere cadono. Ti guardo
in un molle riverbero. Non so
se ti conosco; so che mai diviso
fui da te come accade in questo tardo
ritorno. Pochi istanti hanno bruciato
tutto di noi: fuorchè due volti, due
maschere che s'incidono, sforzate,
di un sorriso.(Montale,1990)
Dois no crepúsculo
Flui entre mim e ti no belvedere
um resplendor subáqueo que deforma
no perfil das colinas o teu rosto.
Está num fundo fugaz, cindido
de ti cada gesto teu; entra sem rastro,
desaparece, no espaço que preenche
cada sulco e se fecha ao teu passo;
comigo, tu aqui, neste ar que desce a
selar
o torpor dos rochedos.
E eu tombado.
no poder que grava em volta, cedo
ao sortilégio de não reconhecer
de mim nada fora de mim: mal ergo
o braço, muda-se
o ato, rompe-se sobre um cristal, ignota
e pálida sua memória, e o gesto
já não me pertence;
se falo, escuto aquela voz atônito,
descer até a sua gama mais remota
ou apagada pelo ar que não a retém.Assim, no ponto que resiste à última
consumpção do dia
dura o desgarramento; um sopro
reanima os vales num frenético
moto e retira das frondes um tinir,
som que se dispersa
por rápidos fumos e os novos lumes
desenham os cais
.... as palavras
entre nós caem leves. Olho-te
num suave revérbero. Não sei
se te conheço; sei que nunca separado
estive de ti como neste tardio
retorno. Poucos instantes queimaram
tudo de nós: menos dois rostos, duas
máscaras que se esculpem, forçadas,
num sorriso.
Tais versos parecem conter duas experiências: o reencontro, que põe fim a um sentimento de fusão, e a desorientação, smarrimento, diante dessa nova percepção, dessa nova imagem. "Não sei/se te conheço";, após olhar o objeto, "Olho-te num suave revérbero";. O encontro provocou mudança tão profunda que o objeto transformado provoca estranhamento e sugere um estado de momentânea despersonalização do poeta:
[...] cedo ao sortilégio de não reconhecer/de mim nada fora de mim: mal ergo/o braço, muda-se/o ato, rompe-se sobre um cristal, ignota e pálida sua memória, e o gesto/já não me pertence; se falo, escuto aquela voz atônito, descer até a sua gama mais remota/ou apagada pelo ar que não a retém [...].
Há "dois no crepúsculo";, duas pessoas. Mais que isso, duas imagens: uma fugaz, do objeto guardado na memória, à espera do reencontro, mas que não se dá no nível imagético e o sujeito não se encontra com o objeto real, embora este lá esteja. Desaparece, então, a imagem onírica desejada e aparece outra de um rosto deformado no clarão "subáqueo";, até que se torne como o do poeta, máscara que força um sorriso.
Esses versos testemunham a angústia que acompanha a individualização, realidade que "queima"; o estado de mente de fusão: eu sou eu, diferente de você, eu me estranho e não sei se o conheço.
Referências
Bion, W. (1962). A theory of thinking. In Second thoughts. London: W. Heinemann. [ Links ]
Klein, M. (1957). Invidia e gratitudine. Firenze: Martinelli. [ Links ]
Milner, M. (1972). El papel de la ilusión en la formación de símbolos. In Nuevas direciones em psicoanalisis. Buenos Aires: Paídos. [ Links ]
Montale, E. (1990). Tutte Le Poesie. Milano: Mondadori. [ Links ]
Ricoeur, P. (1972). Il Conflitto delle interpretazione. Milano: Jaca Books. [ Links ]
Segal, H. (1964). A obra de Hanna Segal. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Sharpe, E. (1971). Análise dos Sonhos. Rio deJaneiro: Imago. [ Links ]
Smirgel, J. C. (1989). Per una psicoanalisi dell'arte e della creatività. Milano: Raffaello Cortina. [ Links ]
Wittgenstein, L. (1958). Tractatus lógico-philosophicus. São Paulo: Biblioteca Universitária. [ Links ]
Endereço para correspondência
Marisa Pelella Mélega
Rua Demóstenes, 627/11
04614-013 – São Paulo – SP
tel.: 11 5092-3883
E-mail: pmelega@uol.com.br
www.marisamelega.med.br
Recebido: 13/10/2011
Aceito: 28/10/2011
* Membro efetivo e analista didata da SBPSP; Doutora em Letras (USP).
1 Este artigo faz parte de minha tese de Doutorado (USP, 2004).