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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

EM PAUTA - FÉ E RAZÃO

 

Disponibilidades para a realidade psíquica não sensorial: fé, esperança e caritas

 

Accesses to the non sensorial psychic reality: faith, hope and caritas

 

 

Gilberto Safra*

Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nesse artigo o ser humano é abordado como ser aberto, no qual o psiquismo estaria em contínuo processo de constituição, que se daria por meio de três interfaces fundamentais: com a corporeidade, com o outro, com a área das experiências não sensoriais. Nessa última fronteira, encontramos a abertura para os fenômenos do sagrado, dos valores e pensamentos abstratos. Percebe-se que o psiquismo humano organiza-se por meio de uma estrutura religiosa. Nesse tipo de vínculo psíquico encontra-se a presença de imagens de potência e do divino, matriz a partir da qual surgem os fenômenos conhecidos por idealização. Discute-se a passagem desse registro saturado sensorialmente para o registro não sensorial, por meio de três disponibilidades fundamentais: Fé, Esperança e Caritas. Essa discussão é feita em companhia de três autores: Bion, Winnicott e São João da Cruz.

Palavras-chave: Religiosidade, Espiritualidade, Fé, Esperança, Caritas, Realidade psíquica não sensorial.


ABSTRACT

In this paper, the human being is addressed as an open being, in which the psyche was continuously in process of formation, this happen through three basic interfaces: with corporeality, with other, with the area of non-sensory experiences. In this last frontier is an openness to the phenomena of sacred, to the values and to abstract thoughts. It is observed that the human psyche is organized by a religious structure. In this kind of psychic bond, we find the presence of images of power and images of the divine; this is the matrix from which arise the phenomena known as idealization. This article tries to discuss the passage from the saturated sensorial psychic experience, to the non sensorial psychic experience through three fundamental accesses: Faith, Hope and Caritas. This discussion is made in the company of three authors: Bion, Winnicott and St. John of the Cross.

Keywords: Religiosity, Spirituality, Faith, Hope, Caritas, Non-sensory psychic reality.


 

 

As a consequence he [the analyst] would not be restricted to interpretations of God as displaying a distorted view of the father, but would be able to assess evidence, should it present itself, for supposing that the analysand was incapable of direct experience of God and that experience of God had not occurred, because it was made impossible by the existence of desires and memories1. (Bion, 1967, pp. 144-145)

Diferentes autores no campo das Ciências Humanas têm assinalado que seria importante, ao abordar a constituição da subjetividade humana na atualidade, considerar o ser humano como ser aberto. Isso significa que, embora seja mais frequente a perspectiva pela qual se aborda o ser humano como estando diante da transcendência, torna-se necessário reconhecer que, do ponto de vista fenomenológico, o ser humano é transcendência. Questão complexa que afeta de modo peculiar a condição humana.

No campo psicanalítico encontramos autores que, percebendo esse aspecto, problematizam a questão da transcendência relacionando-a com a experiência da agonia ou ansiedades impensáveis, pois essa faceta da condição humana coloca o ser humano diante do infinito na interioridade de si. Bion nos diz:

When the individual is confronted with what, in comparassion with himself, is an infinite number of quantity, he binds the "innumerable" host by the name "three" as soon as he has a feeling of "threeness". The infinite (or "three") is the name for a psychological state and is extended to that which stimulates the psychological state. […] From one vertex, "three" binds a constant conjunction "won from the dark and formless infinite"2. (Bion, 1967, pp. 147-148)

Dizer que o ser humano é transcendência significa afirmar que o ser humano está sempre aberto ao horizonte da existência; este é o registro mais frequente a partir do qual se aborda essa questão na filosofia.

No entanto, no campo psicanalítico, essa perspectiva implica, também, assinalar que a transcendência em si coloca o ser humano em situação de instabilidade. Na psicanálise de orientação winnicottiana, por exemplo, existe a compreensão de que o bebê necessita da sustentação, para não despencar no não ser, na queda infinita.

Por essa ser uma das facetas originárias da condição humana, temos que essa questão da instabilidade não se relaciona só ao bebê, mas é questão fundamental de todo homem. O ser humano necessita sempre da sustentação ofertada pelo outro. Além do mais, compreendê-lo nessa perspectiva demanda que possamos considerar que, no movimento de enfrentar a infinitude que existe em seu ser, há em cada indivíduo um contínuo processo de constituição de subjetividade, que acontece no horizonte histórico cultural. O self nunca está plenamente constituído.

Edith Stein3 vai nos dizer que o ser humano é, não só, aberto para sua existência, mas também para baixo, porque ele é afetado pelos fenômenos que ocorrem no obscuro de sua própria corporeidade. Há uma interface da corporeidade com a consciência humana na qual o homem está assentado por meio do registro psíquico, que se tece por meio de imagens, e há também a existência de outros fenômenos que não alcançam o registro psíquico. Nesse último caso, o ser humano está aberto ao para além do psíquico, ao abismo existente no bojo de seu corpo. Stein afirma:

sou consciente de mim mesma, não meramente da corporeidade e sim de todo o eu corporal – anímico – espiritual. A existência do homem está aberta para dentro, é uma existência aberta para si mesma, mas precisamente por isso está também aberta para fora e é uma existência aberta que pode receber em si um mundo. (Stein, 1933/2003, p. 594)

Pode-se sonhar o corpo, pode-se significá-lo e colocá-lo em devir, mas há um abismo no corpo que não é acessado psiquicamente pelo indivíduo.

Stein assinala que o ser humano é aberto para baixo, mas é também aberto para cima, ou seja, para o registro dos valores, das experiências do pensar as facetas essenciais da realidade como a beleza, a verdade, o bem. Para ela, é nesse registro que encontramos o campo das experiências do espírito humano4. Temos, então, que o psiquismo humano tece uma teia representacional que não só se abre em direção ao outro, mas também para o abismo da corporeidade e para o campo da realidade do pensar e do contemplar, acessando assim o campo dos valores e dos pensamentos abstratos que escapam do registro sensorial. Perspectiva que se assemelha àquela apontada por Bion, no campo psicanalítico, quando menciona a realidade psíquica não sensorial.

O psiquismo humano abre-se para a corporeidade, para o campo dos pensamentos não sensoriais e também para o outro diante de si. O indivíduo está continuamente afetado pela presença ou pela ausência do outro. A abertura da pessoa em relação ao outro é ontológica. Questão importantíssima para se compreender dimensões fundamentais da situação clínica, pois há um anseio fundamental no ser humano de comunicação/comunhão com o outro. Motor originário do desejo humano.

O psiquismo/espírito humano possui capacidade de se deslocar no eixo da temporalidade, o que leva o indivíduo a ser continuamente afetado pelo passado e pelo futuro. O ser humano sempre está remetido às experiências já vividas e às não vividas. O passado significa o presente, perspectiva que como analistas estamos habituados a observar por meio do fenômeno transferencial. Entretanto, o ser humano é também afetado por aquilo que está por vir. Este é o anseio do futuro, da realização de si, do ainda não. O psiquismo humano guarda o vivido, e também sustenta a esperança do porvir. Somos como que afetados por nossa memória pessoal do futuro.

Compreender o ser humano como um ser aberto é observá-lo em contínua transformação. Nas palavras de Rosa esse vértice poderia ser assim apresentado:

O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. (Rosa, 1956/1994, pp. 623-624)

A interface psíquica com a corporeidade tem sido abordada, ao longo dos anos, pelos estudos psicanalíticos desde Freud. Do mesmo modo, a perspectiva do psiquismo aberto ao outro foi também amplamente investigada pelas escolas das relações objetais. No entanto, a perspectiva do psiquismo aberto às facetas não sensoriais da experiência humana é aquela que se encontra ainda por ser mais profundamente investigada. Essa terceira abertura fundamental do ser humano foi abordada no campo psicanalítico principalmente por Bion, ao referir-se à realidade psíquica não sensorial, e por Winnicott, quando enfoca o fato de que na maturidade é necessário que a pessoa possa crescer para baixo.

No vértice religioso essa abertura essencial da condição humana é tratada pelo estudo da religiosidade humana e também pelos estudos sobre a mística. Se nós abordarmos a questão da religiosidade do ser humano, veremos que há um conjunto de experiências que ocorrem relacionadas a esse tipo de fronteira que são as imagens do divino que emergem no psiquismo do ser humano. O homem é ser finito, mas com a possibilidade da consciência de si, ele pode vir a conceber o infinito e também conceber a possibilidade de um ente que poderia fruir da plenitude do ser. Surgem no psiquismo humano como resultado desse movimento imagens de poder, imagens de beatitude, imagens do divino. Constitui-se nesse registro uma tessitura psíquica de imagens que supostamente presentificariam o divino. Essa rede será uma dimensão importante para que nós possamos compreender o modo singular da religiosidade de uma pessoa se constituir e se organizar por meio de seu idioma pessoal.

Como parte do que será a constituição da religiosidade de uma pessoa, comparecem não só as imagens do divino que ela desenvolveu ao longo do seu percurso, mas inscrevem-se, também, as diferentes experiências do sagrado que ela viveu ao longo de sua existência.

Ao falarmos das imagens do divino que estão presentificadas na vida psíquica de alguém, podemos reconhecer que elas estão figuradas, sendo, portanto, parte do registro representacional do psiquismo humano. No entanto, a experiência do sagrado está para além do campo das representações; emergem em um registro não-representacional. A experiência do sagrado ocorre como um evento que suspende a capacidade de uma pessoa representar as suas experiências, seja em imagens ou em palavras.

O sagrado acontece como um atravessamento do si mesmo, suspendendo, na maior parte das vezes, a tentativa da pessoa subjetivar sua experiência. Evidentemente, uma vez que a experiência do sagrado tenha ocorrido, o indivíduo buscará significá-la. Mas pelo fato de que o sagrado está no campo do indizível, haverá sempre um transbordamento de experiência para além da representação utilizada. Utilizando-se da perspectiva bioniana, poderíamos dizer que nesses eventos o indivíduo está diante de "O", sem a proteção das representações ou dos continentes familiares.

A perspectiva do sagrado é fundamental para se discutir o mal-estar contemporâneo, pois uma das características do mundo contemporâneo é a hipertrofia da nomeação, da conceituação e da técnica que obscurece o indizível. O projeto moderno acontece de maneira tal que procura expulsar o sagrado do mundo. A experiência do sagrado, do ponto de vista sociocultural ou da experiência pessoal, mostra-se como resistência ao projeto moderno, que visa o domínio da experiência humana.

De um ponto de vista fenomenológico, pode-se assinalar que o sagrado acontece como experiência de alteridade radical. Ele ocorre como atravessamento e como visitação. Assim sendo, o sagrado não decorre de uma subjetividade; ele atravessa a subjetividade.

Ele se apresenta como mistério, como fenômeno ético e como experiência estética. Ele está entre a experiência do belo e do tremendo. Vivemos em um mundo de cenários, no qual se cria, por meio da técnica, uma estética sem transcendência. Fenômeno muito diferente da experiência estética que se revela no sagrado. O sagrado acontece como visitação, afetando o ser humano em três vértices: do ponto de vista do conhecimento acontece como Mistério, no vértice ético como Bem, e no estético como Belo/Tremendo.

Pela magnitude desse tipo de experiência, podemos observar, com frequência, que pessoas tendo esse tipo de experiência vivem uma suspensão de sua subjetividade em sua dimensão representacional. A experiência do sagrado joga o homem no seu lugar originário: a humildade. Precisa-se compreender a humildade aqui descrita não como virtude, mas como acolhimento da experiência transcendente. Em outras palavras, conter "O".

A religiosidade de uma pessoa se manifesta, habitualmente, como sentimento de reverência, de solenidade frente a imagens do divino. Na experiência do sagrado, a subjetividade da pessoa é posta em suspensão e, com frequência, após esse tipo de experiência, o indivíduo vive intensa transformação em seu self.

Encontra-se na autobiografia de Santa Teresa D'Ávila um texto, no qual ela aborda suas experiências diante do sagrado. Ela diz:

Disse-lhe eu certa vez: caso me assegurassem que uma pessoa bastante conhecida, com quem tivesse acabado de falar, não era quem eu pensasse e se me dissessem que estavam certos de meu erro, dar-lhes-ia mais crédito do que aos meus próprios olhos. Mas se essa pessoa me deixasse várias jóias como prova do seu amor, vendo-as em minhas mãos, e sentindo-me rica, sendo até pobre, não poderia deixar de crer que tivesse sido a pessoa que eu julgava. Essas jóias, eu lhes poderia mostrar, porque todos os que me conheciam, viam que minha alma evidentemente estava transformada, e assim o dizia meu confessor.

A diferença era muito considerável em todos os sentidos, tão manifesta, que ninguém poderia duvidar. Sendo antes tão má, dizia eu, não podia crer que o demônio pretendesse com isto enganar-me e arrastar-me ao inferno, usando de meio tão contrário, como esse de tirar-me os vícios e dar-me virtudes e fortaleza. Cada uma destas graças me deixava transformada, isto eu via claramente. (1983, pp. 227-228, grifos nossos)

Santa Teresa encontra no fenômeno de transformação de si o critério para poder reconhecer uma verdadeira experiência espiritual.

No entanto, há uma profunda distância entre as experiências de religiosidade que acontecem por meio de imagens psíquicas e aquelas que se referem ao sagrado, a experiências que estão para além do campo representacional.

Bion afirma:

Taking the evidence in its other aspect, the sense memory, its significance would be its disclousure to the extent to which the patient's relationship with God was disturbed by sensuously desired models (or C category elements) which prevented an ineffable experience by their concreteness and therefore unsuitability to represent the realization. In religious terms, this experience would be seem to be represented by statements that the erring race or individual allowed itself to beguiled by graven images, idols, religious statuary, or, in psychoanalysis, the idealized analyst. […] The need for such appreciation and interpretation is far reaching. It would extend psycho-analytic theory to cover the views of mystics from the Bhagavad Gita to the present. The psychoanalyst accepts the reality of reverence and awe, the possibility of a disturbance in the individual which makes atonement and, therefore, an expression of reverence and awe impossible5. (1967, p. 145)

Nesse texto, Bion aponta a evolução do fenômeno psíquico que parte de vínculos com imagens saturadas de sensorialidade e, que, eventualmente, pode evoluir para um fenômeno não saturado de ampla transcendência. Estamos diante de uma compreensão de fenômenos psíquicos que encontram sua realização em evento apofático.

É interessante o fato de Bion usar o modelo provindo da religião e da mística para discutir o fenômeno que lhe interessava enfocar, pois penso que esse uso decorre do que se pode observar na situação clínica por meio dos acontecimentos transferenciais. A observação dos fenômenos psíquicos mostra que inúmeras manifestações do psiquismo humano se organizam por estruturas religiosas. Não há processos de idealizações, de fantasias sem o aparecimento de imagens que presentifiquem o absoluto por figuras de deuses. Em artigo anterior assinalei:

que as primeiras imagens de uma criança sobre o divino são elementos que apresentam sentimentos de potências, tais como: poder, força, alegria, medo e assim por diante. São imagens que ao mesmo tempo a ajudam a lidar com seus medos e angústias frente à vida e também assinalam o seu anseio de alcançar uma completude narcísica. (Safra, 1999, p. 174)

Também Jones (1991) investiga a imagem de Deus na economia psíquica de uma pessoa através do estudo da transferência na situação analítica. Afirma que a religião pode ser conceituada como uma forma de transferencia. É possível, segundo ele, traçar um paralelo entre os padrões transferênciais que ocorrem nas diferentes áreas da vida de uma pessoa e os seus laços afetivos com o divino.

As imagens de potências que aparecem no psiquismo humano como figurações sobre o divino, podem também ser compreendidas como resultantes de um profundo anseio de ser, que pode se manifestar como desejo do outro.

A busca do outro não acontece só como busca do prazer, mas também porque no encontro com o outro é almejado "um mais ser". A perspectiva frequentemente observada é aquela na qual o outro representa uma possibilidade de ser que a pessoa crê ainda não ter alcançado. Há no desejo do outro não só a repetição de experiências do passado, mas há também um anseio do futuro de si mesmo. Perspectiva que acontece como esperança/Esperança.

Utilizo a palavra esperança com letra minúscula para falar da esperança como elemento mais obstrutor do que aquele que possibilita a evolução psíquica. Aqui temos um vínculo que acontece com outro que é idealizado ou idolatrado, alguém que é visto como figuração do divino. O fenômeno parece mais obstrutor do que a possibilidade de realização do si mesmo, embora em todo processo de idealização ou idolatria haja sempre traços do que a pessoa pressente que necessitaria para prosseguir seu caminho de realização de si.

No entanto, quando é possível para a pessoa superar o excesso de sensorialização do fenômeno psíquico, testemunhamos o aparecimento da Esperança (com letra maiúscula). Aqui há abertura para o futuro como horizonte onírico não preenchido. De um ponto de vista winnicottiano, poderíamos afirmar que nesse caso o espaço potencial acontece no horizonte futuro, de modo a permitir o aparecimento do inédito, o sonho surpreendente, a visitação do transcendente.

Esses fenômenos têm sido amplamente discutidos por diferentes místicos ao longo dos anos. Entre eles, recorro a São João da Cruz (1542 – 1591), místico espanhol, entre outras razões, por ser um dos mais conceitualmente rigorosos ao apresentar o seu pensamento. Ele argumenta que a esperança relaciona-se intimamente com a memória. Ela estaria impregnada das notícias provindas dos sentidos corporais, constituindo facetas importantes da imaginação. Para João da Cruz, toda memória é, por um lado, uma forma de posse, enquanto a Esperança, por outro, surge por não se possuir. O movimento psíquico em direção ao futuro saturado de memória levaria ao aparecimento das imagens divinizadas levando a experiência de esperança que acontece, principalmente, como obstrução.

Há na perspectiva apresentada por Bion e também por João da Cruz o entendimento de que a memória pode vir a se constituir em obstáculo para que a pessoa possa se abria a "O", ou ao Divino Transcendente.

Há outro polo de discussão dessa questão que é tratado igualmente por Bion e João da Cruz que merece nossa atenção. Trata-se da questão do conhecimento e da fé.

Eigen (1981) lembra que Bion distingue a experiência de fé de outros eventos da experiência humana. Segundo esse autor, para Bion, a fé é o princípio metodológico primário do campo psicanalítico, pois o analista exerceria fé em "O" com o objetivo de poder realizar o trabalho de análise.

A proposta de Bion para que o analista mantenha a sua atenção livre de memória e desejo, em uma atitude de fé em "O", é bastante próxima àquela apresentada por místicos de diferentes tradições, quando se referem às suas práticas espirituais. Temos aqui uma ascese psicanalítica, próxima da ascese mística.

Bion nos diz:

It may be wondered what state of mind is welcome if desires and memories are not. A term that would express approximately what I need to express is "faith" – faith that there is an ultimate reality and truth – the unknow, unknowable, "formless infinite". This must be believed of every object of which the personality can be aware: the evolution of ultimate reality (signified by O) has issued in objects of which the individual can be aware. The objects of awareness are aspects of the "evolved" O and are such that the sensuously derived mental functions are adequate to apprehend them. For them faith is not required; for O it is…

For me "faith" is a scientific state of mind and should be recognized as such. But it must be "faith" unstained by any element of memory or desire6. (1967, pp. 31-32)

Para Bion, portanto, a questão da fé relaciona-se com o conhecer. São João da Cruz vai também afirmar que a fé relaciona-se ao conhecer, pois a fé seria fenômeno no campo do entendimento. Para esse autor, a fé é noite para o entendimento. São João da Cruz afirma:

O entendimento não pode conhecer por si mesmo coisa alguma, a não ser por via natural, isto é, só o que alcança pelos sentidos. Por esse motivo, necessita de imagens para conhecer os objetos presentes por si ou por meio de semelhanças, como dizem os filósofos, [...] a fé diz-nos coisas jamais vistas ou entendidas em si mesmas, nem em suas semelhanças, pois não as têm. (1984, p. 189)

Como vemos, a perspectiva apresentada assinala, por um lado, que a superação da memória possibilita a eclosão da Esperança, enquanto a fé, por outro lado, abre o conhecer para o inédito desconhecido. Ambos os movimentos abririam a interioridade do ser humano para a ocorrência de um vínculo com o transcendente ("O"). Para João da Cruz, a superação da posse derivada da memória e a noite possibilitada ao entendimento pela fé não cobririam toda a questão humana em direção ao transcendente. Ele menciona que é também necessário o trabalho com a vontade. A vontade precisaria vir a ser tratada por meio do despojamento. Na psicologia de João da Cruz existe a compreensão de que a vontade governaria os apetites e as paixões (afetos desordenados). O ser humano diante de sua fragilidade vincula-se aos entes por meio do apego, ocasionando uma obturação de sua capacidade amorosa. O despojamento constituiria, segundo João da Cruz, a disponibilidade amorosa, denominada por ele de Caritas7, que, diante do outro, possibilitaria o acolhimento da alteridade radical.

Em companhia desses autores poderíamos dizer que há uma evolução dos vínculos com imagens de deuses presentes no registro psíquico, para a abertura para "O", para o transcendente que se daria por meio da crescente possibilidade de sustentar a situação de abertura, característica da condição humana, em um estado de não preenchimento e de não saturação. Essa disponibilidade, não saturada, ocorre por meio de três vértices fundamentais: 1- superação da memória ocasionando a Esperança; 2- sustentação da Fé pelo entendimento; 3- disponibilidade de acolhimento da alteridade do outro, por meio da Caritas.

Na passagem do registro psíquico saturado para o estado de abertura para "O" teríamos a passagem do registro psíquico sensorial para o registro psíquico não sensorial, na perspectiva bioniana. Ou da passagem das experiências da alma para as experiências do espírito, como nos apresenta a mística descrita ao longo dos séculos por seus representantes. Nas palavras de Bakthin, "a alma é o espírito que não se realizou, refletida na consciência amorosa do outro" (1979/2003, p. 101).

Considero que as três experiências descritas acima são disponibilidades fundamentais no estabelecimento de um posicionamento da pessoa no registro da realidade psíquica não sensorial. São três aberturas essenciais para a manutenção e estabelecimento do que se poderia denominar de espiritualidade.

Podemos observar uma espiritualidade que se constitui em direção a um transcendente compreendido como pessoal, perspectiva que aponta o estabelecimento de uma espiritualidade com a concepção de um Deus, mas também podemos falar de uma espiritualidade em direção a um transcendente impessoal, portanto ateia.

A clínica nos mostra que a disponibilidade em direção à transcendência, movimento espiritual no homem, às vezes, resolve-se por meio de um fim concebido sem religião. Relato, para ilustrar esse ponto, um texto da ética samurai:

Existem dois tipos de disposição: a interior e a exterior. A pessoa que não possuir as duas não tem valor. É como, por exemplo, a lâmina de uma espada: devemos afiá-la bem e colocá-la na bainha. De tempos em tempos, devemos sacá-la, franzindo as sobrancelhas como se estivéssemos em uma luta, limpá-la e voltar a colocá-la na bainha. Se uma pessoa empunha a espada o tempo todo, está frequentemente manuseando uma lâmina nua. As pessoas não se aproximarão e ela não terá aliados. Se a espada está sempre embainhada, ela enferrujará, a lâmina perderá seu fio e as pessoas pensarão o mesmo de seu dono. (Tsunetomo, 2004, p. 113)

Há nesses preceitos uma visão ética que constitui uma maneira peculiar de situar a questão da transcendência do ser humano, em que o sentido último da existência e o modelo oferecido para a travessia de cada momento da vida é a luta! Trata-se de uma maneira de sustentar uma espiritualidade sem Deus.

Em trabalho anterior afirmei que:

no silêncio do si mesmo encontra-se o que não tem representação, o que está para além de qualquer suposta identidade. Esse é o abismo em si, que eventualmente se faz lugar de descanso, quando nos foi apresentado pelo rosto humano. Nele está o Outro sem nome, lugar ansiado e temido ao mesmo tempo, pois se assentar nesse lugar é começar "crescer para baixo", é abrir-se a "O", segundo a perspectiva bioniana. Como já mencionei, para Edith conhecer era ato de amor, parte da espiritualização do ser humano, pois essa atividade reposicionava a abertura fundamental do ser humano para a verdade. (Safra, 2006, p. 168)

Considero que compreender o modo pelo qual a religiosidade e a espiritualidade se constituem no ser humano é fundamental para o psicanalista. No mundo contemporâneo a questão da religiosidade e da espiritualidade é tema urgente para que possamos ter elementos que nos ajudem a abordar psicanaliticamente fenômenos como os fundamentalismos, a ausência da experiência do sagrado, as novas modalidades de subjetivação, entre outros fenômenos. Do ponto de vista do manejo clínico é fundamental o trabalho que auxilie o paciente a situar-se diante do porvir, diante de "O", diante do transcendente para que lhe seja possível a sustentação de uma espiritualidade ansiada, quer ela seja ateia ou crente.

Cavaleiro que vejo ao longe na neblina do crepúsculo, aonde irá? Sei não. Por vales e montanhas? Sei não. Estará amanhã estendido... sobre a terra?... ou debaixo da terra?... Sei não. (Khayam, 2001, p. 137)

 

Referências

Bakthin, M. (2003). O todo temporal do personagem. In M. Bakthin. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1979).         [ Links ]

Bion, W. (1967). Second thoughts: selected papers on psychoanalysis. New Jersey: Jason Aronson.         [ Links ]

Eigen, M. (1981). The area of faith in Winnicott, Lacan and Bion. International Journal of Psycho-Analysis, 62, 413-433.         [ Links ]

João da Cruz, Santo. (1984). Obras completas. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Jones, W. J. (1991). Contemporary psychoanalysis and religion: transference and transcendence. New Haven: Yale University Press.         [ Links ]

Khayam, O. (2001). Rubayat (M. Bandeira, trad.). Rio de Janeiro: Ediouro.         [ Links ]

Rosa, J. G. (1994). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. (Trabalho original publicado em 1956).         [ Links ]

Safra, G. (1999). Sacralidade e fenômenos transicionais. In M. Massini & M. Mahfoud (Orgs.). Diante do mistério: psicologia e senso religioso (pp. 173-182). São Paulo: Loyola.         [ Links ]

Safra, G. (2006). Hermenêutica na situação clínica: o desvelar do idioma pessoal. São Paulo: Sobornost.         [ Links ]

Stein, E. (2003). Estructura de la persona humana. In E. Stein. Obras completas, Vol. 4: Escritos antropológicos y pedagógicos. Madrid: Ed. Monte Carmelo. (Trabalho original publicado em 1933).         [ Links ]

Teresa D'Ávila, Santa. (1983). Livro da vida. São Paulo: Edições Paulinas.         [ Links ]

Tsunemoto, Y. (2004). Hagakure: o livro do samurai. São Paulo: Conrad Ed. Brasil.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
GILBERTO SAFRA
Rua Alvares Florence, 185
05502-060 – São Paulo – SP
tel.:11 5575-8275
E-mail: iamsafra@uol.com.br

Recebido: 15/04/2013
Aceito: 17/05/2013

 

 

* Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo.
1 Como consequência, ele [o analista] não estaria restrito às interpretações de Deus, como expressão de uma visão distorcida do pai, mas seria capaz de avaliar as evidências, caso elas se apresentem, para supor que o analisando seria incapaz de uma experiência direta de Deus e que a experiência de Deus não teria ocorrido, porque foi impossibilitada pela existência de desejos e memórias (nossa tradução).
2 Quando o indivíduo é confrontado com o que, em comparação consigo mesmo, é um número infinito de quantidade, ele conecta a série dos "inumeráveis " ao nome "três", tão logo ele tenha um sentimento de "trindade". O infinito (ou "três") é o nome para um estado psicológico e é estendido ao que estimula o estado psicológico. [...] De um vértice, "três" une uma conjunção constante "conquistada do infinito escuro e sem forma" (nossa tradução).
3 Edith Theresa Hedwing Stein (1891 – 1942). Primeira mulher a defender uma tese de Filosofia na Alemanha, foi discípula e depois assistente de Edmund Husserl, o fundador da fenomenologia.
4 As Ciências Humanas são também denominadas de Ciências do Espírito.
5 Tomando a evidência em seu outro aspecto, o sentido de memória, em seu significado, seria a revelação da medida em que a relação do paciente com Deus foi perturbada por modelos desejados sensorialmente (ou elementos de categoria C) o que impediu uma experiência inefável, pela sua concretude e, portanto, inadequada para representar a realização. Em termos religiosos, essa experiência poderia ser representada por afirmações de que a corrida errante ou o indivíduo permitiu-se ser seduzido por imagens esculpidas, ídolos, estátuas religiosas, ou, na psicanálise, pelo analista idealizado. [...] A necessidade de tal apreciação e interpretação é de grande alcance. Isto iria estender a teoria psicanalítica para cobrir as visões dos místicos desde o Bhagavad Gita até o presente. O psicanalista aceita a realidade da reverência e do assombro, a possibilidade de uma perturbação no indivíduo que repara uma culpa e, portanto, uma expressão de reverência e temor impossível (nossa tradução).
6 Pode-se conceber qual o estado de espírito que seria bem-vindo se os desejos e as memórias não acontecessem. Um termo que expressasse, aproximadamente, o que eu necessito expressar é "fé" – a fé de que existe uma realidade e verdade últimas – o desconhecido, incognoscível, "infinito sem forma". Isso deve ser acreditado para cada objeto que a personalidade pode estar consciente: a evolução da realidade última (representada por O) manifestou-se em objetos, dos quais o indivíduo pode estar consciente. Os objetos da consciência são aspectos de O "evoluídos" e são tais que as funções mentais sensualmente derivadas são suficientes para apreendê-los. Para eles, não é necessário fé, pois O é...
Para mim, "fé" é um estado científico de mente e deve ser reconhecido como tal. Mas deve ser "fé" não maculada por qualquer elemento de memória ou desejo (nossa tradução).
7 Em português este termo pode ser traduzido por "Amor".