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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014
RESENHAS
O psicanalista na comunidade: uma obra necessária
Gustavo Gil Alarcão*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Pastore, J. A. D. e Soares, S. S. G. de S. (Orgs.). O psicanalista na comunidade. São Paulo: SBPSP, 2012. 382 p.
Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto, a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado.
(Freud, 1921/2011, p. 14)
"ESTE LIVRO É UMA HOMENAGEM À MELANIE FARKAS" (p. 9): frase de abertura do livro escrita em letras maiúsculas por Plínio Montagna. E sim, de forma maiúscula, a obra cumpre com a necessária função de homenagear Melanie Farkas. Homenagem mais do que merecida e que demonstra a admiração e o reconhecimento da comunidade psicanalítica a uma corajosa mulher, desbravadora de campos além-mar para a psicanálise, em suas palavras, uma psicanálise sem divã.
O êxito da homenagem é reforçado pela riqueza dos textos de autoria da própria homenageada, que explicitam de forma clara, útil e contemporânea sua maneira de pensar e praticar psicanálise. Sem abrir mão de pressupostos teóricos e conceituais, sem abrir mão da prática íntima da psicanálise do consultório, Melanie nos mostra que os limites realmente importantes não podem ser o concreto das paredes e tampouco o charme dos divãs.
Melanie não segue sozinha sua trajetória pelo mundo, em direção às demandas que nascem ali, onde realmente existem. É acompanhada por colegas e amigos, que também contribuíram para a organização do livro, e que com sua prática e experiência ratificam que o setting realmente importante para um psicanalista é aquele que está dentro de si, em sua forma de pensar o mundo e de pensar a própria prática psicanalítica. Quantos serão e como farão para explorar os rincões da comunidade, é questão em aberto, porque a obra deixa claro que a psicanálise está entremeada com seu meio, e que a ação e o efeito do contato psicanalítico são sementes extremamente férteis, nascendo em vários terrenos, como podemos constatar ao longo do livro: Hospitais Gerais, Instituições Sociais, Centros de Cultura, Comunidades, Organizações não-governamentais: espaços nos quais há possibilidade de encontro e conversa.
Jassanan Pastore e Sylvia Soares, no capítulo de apresentação, dizem que "A Interação entre Psicanálise e Cidadania orientada para um olhar crítico do sujeito cidadão é o cerne do pensamento desta coletânea" (p. 13), e com isto deixam claro a seriedade e a profundidade com a qual os capítulos do livro abordarão a temática proposta. E a declaração de que se trata de um olhar crítico também estimula o leitor a uma leitura crítica.
Os textos promovem verdadeiras associações livres na medida em que nos deixamos levar pela atmosfera do diálogo que é travado com o leitor. É um texto vivo. É primorosa a entrevista de Melanie ao Jornal de Psicanálise e a possibilidade que temos de conhecer sua trajetória pessoal, suas influências e os estímulos para se aventurar – com os pés no chão – a iniciar trabalhos com a comunidade, com o social, que eram "mal vistos". Ora, aqui somos obrigados a pensar nos confinamentos e na alienação que podem corromper o pensamento, e a psicanálise não é, e jamais será, imune a estas possibilidades.
Vejo aqui imenso equívoco, que será apontado nos capítulos mais conceituais da obra, como nos escritos por Sandra Schaffa, Leopoldo Nosek, Jassanan, Fábio Herrmann e pela própria Melanie Farkas. Este equívoco, ou as caretas que provocavam o trabalho com a comunidade (deixaram de provocar?), tem duas origens: 1 – a negação da necessidade de articulação com o social (qual campo do conhecimento poderia sobreviver encistado em si mesmo, rompendo a lei fundante da humanidade e vivendo incestuosamente, transitando com ideias e práticas próprias, sem trocas com o externo?); 2 – uma comparação inadequada, como se o trabalho com a comunidade, ou em outros settings, pudesse ser comparado com o trabalho psicanalítico individual, em consultório, ou em ambientes mais favoráveis. E aqui é o senhor cearense que foi escutado no Centro Cultural São Paulo, relatado no artigo de Oswaldo e Sylvia, quem melhor nos ajuda: "os paulistanos não escutam, há um problema auditivo" (p. 232).
É justamente centrada na escuta das demandas que aí estão que se centram os artigos de Plínio Montagna, Sílvia Bracco, Ana Cristina Cintra Camargo e Sônia Terepins, Ernesto Baptista e Telma Weiss, Helena Rizzi, Lucas Mendes e Silvia Martinelli, Maria Aparecida Nicoletti, Sônia Soussumi, Raquel Brandão e Andréia Bevilacqua, Cândida Holovko e Edoarda Radvany. São textos preciosos por retratarem de forma encarnada a experiência psicanalítica produtora de transformações em situações reais. Além destes, encontramos nos capítulos de Miriam Altman e no artigo coletivo sobre os impactos transgeracionais negativos contribuições reflexivas sobre temáticas que vêm à tona com a ação do analista na comunidade. Qual a sua receita? Pessoas com necessidades, demandas e outras pessoas com disposição para trabalhar. Trabalhar com o repertório teórico conceitual que acumularam ao longo de suas trajetórias e com a criatividade necessária para qualquer psicanalista que habite nosso tempo (e não seria pouco dizer, criatividade essencial para qualquer analista em qualquer tempo), para preencher a lacuna apontada por Fabio Herrmann: "Faltam analistas para interpretar a psique do real, isso sim" (p. 252).
Se em algum momento estes analistas estiveram (ou estão) em falta, jamais estiveram (e estarão) ausentes o conflito, a dor psíquica e a necessidade de ajuda (alguém que estenda a mão). Necessidade e demanda estão na rua, basta que observemos ao redor. Em junho passado o país foi sacudido por manifestações sociais marcadas por contundentes reivindicações. "O gigante acordou", foi expressão cunhada para transmitir a magnitude do movimento. Pessoas críticas, olhando o mundo de forma crítica, podem gerar transformações. Esta fresta não pode ser alargada e lapidada pelo poder da escuta e do contato psicanalítico? Este é justamente o cerne do livro, como citado acima.
Há pessoas que podem encontrar um analista e iniciar sua análise, seu desejo encontra condições suficientes de se enraizar e gerar um movimento ativo de busca. Há situações nas quais o desejo está ali, fervilhando, talvez um pouco disperso e dissonante, mas presente. Este desejo pode ter que enfrentar situações muito desfavoráveis para se enraizar e gerar um movimento ativo de busca. Isto é real. A escolha entre favorecer ou não a expressão desse desejo é possibilidade em aberto. Os organizadores e colaboradores do livro O psicanalista na comunidade nos mostraram de forma bastante potente que, arregaçar as mangas e sair do conforto, pode gerar não só desconforto e angústias paranoides (isto é ou não é psicanálise – somos ou não somos psicanalistas sem o divã?), mas também trabalhos de profunda reflexão e largo alcance.
Referências
Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud. Obras Completas (P. C. de Souza, trad., vol. 15.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921). [ Links ]
Endereço para correspondência
GUSTAVO GIL ALARCÃO
R. Cristiano Viana, 441/66
05411-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3062-1887
E-mail: gustavogilalarcao@yahoo.com.br
Recebido em: 22/10/2013
Aceito em: 22/11/2013
* Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psiquiatra do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP. Membro da Sociedade Brasileira de Psicopatologia Fenômeno-Estrutural (SBPFE).