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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo jan./jun. 2021

 

ATELIÊ

 

Notas acerca da iluminação das viagens de Ulisses e do ex libris da Ide

 

Notes about the enluminure of Ulysses' travels and the ex libris of Ide

 

 

George Rembrandt Gutlich

Artista gravador, professor adjunto de Gravura em Metal na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG). Doutor em Arte e pós-doutor em arquitetura pela Universidade de Lisboa

george_gutlich@hotmail.com

 

 


RESUMO

O valor retórico da iluminação, no âmbito da parceria entre imagem e palavra, centra-se no grau de subordinação à fonte textual. Nesse sentido, apresenta-se aqui a justificativa da imagem da capa destinada à edição temática da Ide e ao ex libris comemorativo de 45 anos de suas atividades. Apresentam-se os pressupostos de escolha numa perspectiva de diversão, de apontamento de estratégias diversas à descrição textual que, por sua vez, ampliam o espectro da leitura pela afirmação de uma arte que é sempre contemporânea e circunscrita.

Palavras-chave: iluminação, eloquência, ex libris


ABSTRACT

The rethoric value of the enluminure is revealed in the degree of subordination to the text. In this context the object of this article is the justification of the cover image intended for the thematic edition of Ide and the ex libris commemorating 45 years of its activities. The figures are presented from a perspective of diversion, from pointing out different strategies to textual description, which, in turn, broaden the spectrum of reading, affirming that art that is always contemporary and circumscribed.

Keywords: enluminure, eloquence, ex libris


 

 

A iconografia comprometida com a mera descrição do texto costuma se manifestar pouco sedutora, dada a medida da obviedade. O tempo, ao se tornar passado, revela o embuste das vãs tentativas de falsear um contexto diverso. Na medida em que serve apenas àqueles que desconhecem a eloquência figurativa das letras, a imagem fidedigna reporta apenas a falência da imaginação.

Tomo aqui, apenas como exemplo, o recorte da imensa gama de deslocamentos produzidos no contexto da iconografia cristã. A representação das personagens em ambiências contemporâneas não implicava desconhecimento ou ingenuidade dos artistas em relação à fonte das passagens bíblicas, mas a consciência de ser a história sagrada algo vívido no tempo presente e na circunscrição específica de sua interpretação.

Pieter Brueghel, em sua interpretação da passagem do Gênesis sobre a construção da Torre de Babel, cristalizou a imagem princeps sobre o edifício da soberba humana. No entanto, nada tem de correspondente à passagem bíblica que prescrevia um edifício de base quadrangular e construído com tijolos de terra, algo como um zigurate da Mesopotâmia. A torre de Brueghel é de forma cônica, de base circular, e construída com alvenaria de pedra. Pensar numa ingenuidade de Brueghel já foi uma estratégia crítica, mas sem fundamento. Mas não era o caso de um texto hermético ou coisa que o valha, era a Bíblia... e ele possuía estofo intelectual justificado inclusive por sua parceria com o editor Abraham Ortelius, de Antuérpia. O pintor ilumina o texto e mostrou que a Babel bíblica pode ser utilizada como parábola atemporal e atópica. Nessa condição, figura como Coliseu, em ruínas de operação inversa, e também como sua dinâmica e rica Antuérpia. Aqui se registram o sistema construtivo romano antigo e ferramentas e modos de fazer de seu meio flamengo.

Mesmo para aqueles que se ocuparam de ler a passagem, a imagem tornou-se mais eloquente que o próprio texto. Na iluminação, o texto se torna ponto de partida: Babel esteve lá, acolá e está aqui. A imagem sacra requer ainda mais esse tipo de transposição e imaginação.

Numa emulação das liberdades que iluminam, busquei um Ulisses figurado na proa de uma nave. Esta luta com suas amarras que a prendem ao cais, numa apologia ao caminho, ao mar como meio de Odisseu, mais aprazível que as chegadas.

A imagem foi realizada em gravura em metal, elaborada pela técnica de água-forte, por onde as linhas são gravadas por ação de ácido. Há uma sobreposição de estampas; a imagem ao fundo refere-se a uma apropriação de um estudo de tempestade de Leonardo.

Um navio que não é grego, pois a alegoria genérica é mais potente que a particular. Mar, porto, nave e amarras prestes a romper sobrepõem um estudo do Caos sob a lógica renascente, por onde os fenômenos naturais são passíveis de serem compreendidos, até a maior tempestade parte de um ponto, de uma semente. Revoluções e linearidade numa mesma cena. Arbítrio e Destino: um aparato de iluminação mais coerente que a reconstituição verossimilhante de uma cena ou um compêndio de situações.

O ex libris - em latim, "dos livros" - é uma marca de coleção. Esta pode ser pessoal ou institucional. Via de regra, é imagem associada à indicação de propriedade, mas com muitas variações, como edições comemorativas ou setores tipológicos de biblioteca. No entanto, há aqueles que, rebeldes por natureza, cismam povoar lugares que enfurecem os bibliófilos mais radicais. Este é o nosso caso. A sedução maior desta arte é a de se aventurar pelo campo da psicologia, de perscrutar o espírito da coleção e o caráter de seu proprietário. O problema, neste caso do ex libris comemorativo da revista Ide, era representar em uma imagem o resumo simbólico de 45 anos de atividades de um periódico científico que trata do diálogo entre psicanálise e arte - algo de uma monta como a de ilustrar uma epopeia.

A imagem sintética se encarrega de tornar emblemática uma busca que, apesar de longa história, tem uma coesão ideológica. O ex libris pensado para celebrar os 45 anos da revista Ide veio de assalto em meio ao arcabouço das lembranças. Como os hieróglifos, as mensagens estão escritas à nossa volta, pela associação de formas. O corte no relevo, em função de um caminho e uma árvore frondosa, resistente em seu limiar, foi uma memória a qual não hesitei aceitar. Está tudo ali. Mais palavras empobrecerão a eloquência da imagem.

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