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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022
ARTIGOS
Como fazer carreira em publicidade com Massumi, Shaviro e Whitehead: cinema e acontecimento comunicacional
How to get ahead in advertising with Massumi, Shaviro and Whitehead: cinema and communicational event
Cómo triunfar en publicidad con Massumi, Shaviro y Whitehead: cine y evento comunicacional
Wilson Roberto Vieira Ferreira*
Universidade Anhembi Morumbi - Brasil
RESUMO
Cinema é comunicação? Ou apenas em certas circunstâncias? E, nessas circunstâncias, estaríamos diante de que natureza de evento? Um "acontecimento comunicacional"? A partir do detalhamento do conceito de "corpo cinemático" de Shaviro, da "intensidade das imagens" de Massumi e da fenomenologia de Whitehead faremos um Estudo de Caso: o evento proporcionado pela exibição do filme How to Get Ahead in Advertising [Como Fazer Carreira em Publicidade] (1989) para uma classe de graduação do curso de Publicidade e Propaganda. Efeitos ideológicos por meios não ideológicos (afetos, intensidades e sentimentos) seriam os resultantes dos acontecimentos comunicacionais?
Palavras-chave: Cinema, Acontecimento Comunicacional, Fenomenologia, Filosofia.
ABSTRACT
Could cinema provide communication? Or only in certain circumstances? And under these circumstances, what kind of event would we be facing? A "communicational event"? From the details of Shaviro's concept of "cinematic body", Massumi's "image intensity" and Whitehead's phenomenology, we will make a case study: the event provided by the exhibition of the film How to Get Ahead in Advertising (1989) to a graduate class of the Advertising and Propaganda course. Are ideological effects through non-ideological means (affections, intensities, and feelings) the ones resulting from communicational events?
Keywords: Cinema, Communicational Event, Phenomenology, Philosophy.
RESUMEN
¿El cine es comunicación? ¿O solo en determinadas circunstancias? Y en estas circunstancias, ¿a qué tipo de evento nos enfrentaríamos? ¿Un "evento comunicacional"? A partir de los detalles del concepto de "cuerpo cinematográfico" de Shaviro, la "intensidad de la imagen" de Massumi y la fenomenología de Whitehead, haremos un estudio de caso: el evento que brinda la exhibición de la película How to Get Ahead in Advertising [Cómo Triunfar en Publicidad] (1989) a un graduado clase del curso de Publicidad y Propaganda. ¿Los efectos ideológicos a través de medios no ideológicos (afecciones, intensidades y sentimientos) son el resultado de eventos comunicacionales?
Palabras clave: Cine, Evento Comunicacional, Fenomenología, Filosofía.
Introdução
Assistir a um filme pode ser um acontecimento comunicacional? A princípio, essa questão pode ser supérflua, já que vivemos em uma época em que as tecnologias fílmicas estão transformando a exibição de um produto cinematográfico em um evento: IMAX, 3D, 4D e toda sorte de tecnologias que prometem imersões radicais nas narrativas fílmicas e efeitos especiais.
Isso sem falar nas experiências multimídias em projeções de filmes nos lugares mais inusitados, como terrenos baldios e depósitos abandonados, como faz o grupo "Secret Cinema" na Inglaterra, performando junto ao público as sequências do filme simultaneamente em que elas são exibidas na tela. O público é convidado a participar da própria cena - literalmente, o espectador pode imergir no filme.
As tecnologias fílmicas procuram fascinar os sentidos, arrancar do espectador respostas emocionais de uma suposta participação e interatividade. Porém, essas experiências procuram muito mais emocionar o espectador trazendo-o, como muitos críticos apontam, para o efeito de realidade, para o efeito de verossimilhança, em uma alucinatória crença do realismo de uma ilusão.
Mas essas tecnologias de imersão possibilitam de fato uma verdadeira experiência comunicativa? Podemos considerar essas duas horas de permanência em uma sala de projeção, onde é mobilizado todo o mecanismo de fascínio pelas imagens, como um fenômeno comunicacional que envolve estética e entretenimento?
Pensar o fascínio pelas imagens como mero efeito de transmissão de conteúdos regidos por uma cadeia semiótica ou ilusões que preenchem fantasias ou desejos pode ser pensado como comunicação? A discussão da percepção cinemática proposta por Massumi e Shaviro e a fenomenologia de Alfred Whitehead ajudam o deslocar a discussão desse campo da representação para a do fenômeno, do evento e do acontecimento. Mais precisamente, para o campo dos afetos, sentimento e intensidade, envolvendo em um único evento imagem, corpo, percepção e afeto.
Vamos detalhar alguns conceitos desses três autores que nos serão úteis para o nosso estudo de caso envolvendo a projeção do filme Como Fazer Carreira em Publicidade (How to Get Ahead in Advertising, Bruce Robinson, 1989) em uma sala de aula de graduação, experiência seminal no desenvolvimento do nosso projeto Cinema e Acontecimento Comunicacional
Massumi e o filme como evento
Dentro dessa discussão sobre o fascínio pelas imagens e as novas tecnologias, de imediato podemos considerar todos os ardis utilizados pelos efeitos de imersão como ilusórios: o som em dolby criando paisagens sonoras na mente do espectador, a cadeira que treme, o ponto focal da visão deslocado através dos óculos em 3D, os efeitos em CGI nas sequências fílmicas etc., buscam aprofundar características das imagens como a perspectiva e o anamorfismo, conhecidas desde o Renascimento, no século XVI. Em outras palavras, procuram capturar as sensações na rede da cadeia semiótica da estrutura fílmica. Narrativa, montagem, edição e tecnologias óticas e digitais a serviço da captura de sensações intensas e pré-cognitivas.
Como aponta Brian Massumi (2002), há um duplo nível no fluxo das imagens: o nível da estrutura (definido linguisticamente, logicamente, narratologicamente ou ideologicamente) e o nível do evento - definido pela intensidade, pelo afeto. Para Massumi, há um intervalo entre o conteúdo das imagens (o nível da estrutura) e o seu efeito, a emoção provocada no espectador. Afastando a confusão comum que normalmente fazemos entre as palavras afeto e emoção, o autor argumenta que nesse intervalo estaria a materialidade da sensação, a "afecção", a concretude da experiência; o filme é visto como um médium vívido que envolveria as nossas reações corporais como desejo, medo, prazer, repulsa ou fascinação.
Massumi vai encarar o filme como um evento ao relacioná-lo com a intensidade de uma sensação que se oporia à qualidade das emoções como efeitos já de antemão indexados pelas imagens, cujo objetivo é criar uma convenção semiótica significante. Contrariando a crítica cinematográfica dominada pelos referenciais da semiótica e psicanálise que interpretam o filme através de uma cadeia de signos de mediações ou de desejos ilusoriamente realizados, Massumi propõe um enfoque "materialisticamente incorpóreo": estudar o processo antes da codificação, o intensivo antes do extensivo (Bergson), o afeto antes da cognição.
O gênio das imagens estaria não em um olhar que observa à distância imagens de objetos que daria ao sujeito um prazer de voyeurístico ou de possessão, mas no envolvimento visceral do corpo, isto é, de um olhar materializado em um corpo que sente, respira, pulsa, se movimenta e se desloca. As "intensidades" das imagens afetariam esse corpo em sensações pré-cognitivas que, mais tarde, aprisionadas pela mediação dos sistemas semióticos, darão o conteúdo às emoções traduzidas em qualidades convencionalmente fixadas.
Essa abordagem de Brian Massumi sobre as imagens tanto no cinema quanto no audiovisual são importantes por trazerem a discussão do cinema do campo linguístico-semiótico da estrutura para o campo da fenomenologia do acontecimento: o que determinaria todo o regime visual seria essa bifurcação entre corpo e mente marcada por intensidades e sensações que são diariamente potencializadas pela mídia de massa, mas posteriormente inibidas por "limitações que são parte e parcela dos mecanismos culturais e políticos das mídias" (Massumi, 2002, p. 43).
Em outras palavras, a novas tecnologias de produção e exibição cinematográfica capturariam essas intensidades e sensações corporais resultantes do fascínio pelas imagens para inseri-las nos efeitos de realidade, a materialidade das sensações transpostas em estruturas e abstrações.
Shaviro e afecção na percepção cinemática
Steven Shaviro expõe a afecção na percepção cinemática de forma bem clara ao distinguir entre o efeito de realidade e a fascinação dos sentidos com o breve exemplo da sequência de um filme de Godard, Les Carabaniers, em que um jovem vai pela primeira vez ao cinema. Lá, vê a célebre sequência dos irmãos Lumière da chegada do trem à estação:
A reação do jovem não foi - como se supunha - que saísse correndo dali, mas apenas cobriu seus olhos com as mãos. Ele não foi afetado por alguma suposta verossimilhança da representação pelas imagens, mas pela sua visceral insistência e movimento. O trem se dirigia diretamente para ele, mas claro que não para a cadeira onde estava, mas para a sua linha de visão (...) a reação do jovem não pode ser creditada à crença em um realismo alucinatório. Seu elevado envolvimento com a imagem é mais no sentido do estímulo direto do nervo ótico, ignorando completamente as faculdades cognitivas e reflexivas (Shaviro, 2006, p. 33).
Para Shaviro, a experiência de assistir a um filme é concreta, imanente e pré-reflexiva. Muito próximo ao conceito de "efeito de choque" de Walter Benjamin, o autor fala de um "novo automatismo da percepção" em que somos confrontados e assaltados pelo fluxo de sensações que não podem ser associadas a presenças físicas ou traduzidas em abstrações.
Segundo Shaviro, o ponto crucial da percepção cinemática é que, ao contrário do teatro, onde há a presença e a identificação, no cinema já teríamos uma arte "alienada" e "sem aura". Por ser uma percepção baseada na bifurcação de imagens caracterizada tanto pela ausência (as imagens são fantasmagorias projetadas em uma tela plana) e presença tátil (elas nos atingem fisicamente) as técnicas suplementares não provocariam mais nenhum tipo de alienação, mas de apropriação dessa intensidade imagética.
O "efeito alienação" já é um pressuposto do espectador com a antiteatralidade da representação cinemática. Por isso, para Shaviro, o filme mais manipulador ou propagandístico basear-se-ia menos no convencimento ideológico e muito mais na calculada resposta psicológica da materialidade do corpo.
E o que seria essa "intensidade da imagem" de Massumi ou essa "atividade concreta" e "antirreflexiva" em um filme, segundo Shaviro? Baseando-se em Blanchot, Shaviro faz uma distinção entre a percepção natural e a cinemática. Na primeira, teríamos a "metafísica da presença": ver implica em distância, decisões que causam separação em relação ao objeto. Implica em atividade e poder para o sujeito. Ao contrário, na percepção cinemática o poder do ego é rompido até o ponto da fascinação, em que a distância e a atividade do sujeito desaparecem. A passividade do sujeito é levada até o ponto do automatismo.
Percepção, corpo e afecção
A percepção cinemática torna-se uma afecção física, intensificação e desarticulação da sensação corporal. Quando assisto a um filme, não há "identificação" com o protagonista ou com o seu olhar no sentido psicanalítico, que os teóricos chamam de olhar "omnivoyeurístico" para a câmera. É mais o caso de que eu sou trazido para um contato íntimo com as imagens na tela por um processo de mimesis e contágio. (Shaviro, 2006, p. 52).
A mimesis e o contágio pelas imagens resultariam em "similaridades não sensuais" que não podem ser reduzidas aos cânones do significado e da representação. Com isso, Shaviro constrói um novo perfil de espectador, como não mais aquele que procura na identificação e no voyeurismo a satisfação de desejos de possessão, plenitude, estabilidade e segurança. Agora, esse espectador vive uma convergência tátil com as imagens, em que ancora o seu desejo na percepção e em um corpo agitado e fragmentado.
Um sujeito distraído, fascinado e passivo. E por que essa descrição tão passiva e masoquista do espectador? Partindo de Deleuze (1985), que sugere que o corpo pode ser definido como conjunção de forças dotada de uma capacidade de ser afetado (afetividade, sensibilidade e sensação), o corpo torna-se uma força ativa e afirmativa: ele não quer se autopreservar, mas atingir o seu limite. O corpo cinemático teria mais do que uma paixão pelo desequilíbrio ou desapropriação: ele se tornaria algo perigoso para ser fixado e limitado nas fronteiras estreitas de um ego estabilizado pelos regimes semióticos da estrutura fílmica. O corpo potencializa os afetos e as excitações a um ponto de sobrecarga sensorial, levando a si mesmo ao limite: o desejo de conhecer sua própria transmutação.
A reação a esse masoquismo e excesso descrito por Shaviro é o desejo por possessão e apropriação, mecanismos de defesa do ego no sentido da capitalização dos mecanismos de restrição, poder e dominação.
Voltando a Massumi, essa intensificação das sensações que conduzem à desarticulação corporal na percepção cinemática é potencialmente progressista, mas, por outro lado, é a base da economia das imagens e informação no capitalismo tardio: cortes e interrupções endêmicas nas imagens como os cortes rápidos dos videoclips e comerciais de TV, os cortes produzidos através da programação pelo efeito zapping do espectador, o bombardeio diário de fragmentos de imagens pelas mídias, a incongruente justaposição de informações ao surfar na Internet etc.: "Em todo lugar há cortes, suspense - incipiência. Virtualidade, talvez?" (Massumi, 2002, p. 42).
Portanto, tudo seria questão menos de imposição ideológica ou persuasão e muito mais de indução e transindução, "transmissão de uma força potencial que não pode ser sentida, simultaneamente repetida, capacitadora e neutralizadora das limitações seletivas dos aparatos de atualização e implantação" (Massumi, 2002, p. 43). Por isso, o poder das imagens estaria na sua capacidade de transportar forças de emergência, como se fossem veículos para potencializações e transferências. Imagem no capitalismo tardio seria um potencial inibido.
Como o cinema pode ter um tão poderoso efeito de realidade se ele é manifestamente irreal, questina Shaviro. Não há objetos, mas apenas projeções. É de uma só vez intenso e impalpável; suas imagens são ao mesmo tempo dotadas de literalidade e vazio.
A fenomenologia de Whitehead
Talvez a fenomenologia de Alfred Whitehead possa nos fornecer alguns conceitos que ajudem a responder a essa questão levantada por Shaviro, dentro dos nossos propósitos de estudos do cinema como acontecimento comunicacional.
Para Whitehead, o devir é um processo em que várias entidades se tornam uma só a partir de uma pluralidade disjuntiva. A conjunção dessas unidades forma o novo, a "concrescência". A concrescência seria uma conjunção em que uma nova composição surge a partir das antigas. Nesse universo Whiteheadiano, a palavra percepção é substituída pela preensão. Todos os objetos se transformam em entidades por meio de preensões mútuas através do tempo, criando eventos que nascem e "morrem", isto é, irão se transformar em dados (datum), quantidades discretas, singularidades que em qualquer ocasião subsequente pode ser apropriada para se transformar em um novo processo de autocriação.
Mas esses objetos atuais que se preendem mutuamente são atualizados em acontecimentos (conjunção e concrescência) por meio da ingressão dos chamados "objetos eternos", isto é, o modo particular como as potencialidades dos objetos eternos é realizado em um objeto atual. Os objetos eternos seriam qualidades sensórias de cor, forma, táteis, qualidades morais etc. Embora sejam abstrações, elas só podem se realizar na concrescência. Nesse processo de autocriação do acontecimento, os objetos atuais fazem uma seleção entre as potencialidades oferecidas a elas pelos objetos eternos.
Esses objetos eternos, como potencialidades que ingressariam nas entidades atuais para criar conjunções e acontecimentos, lembram muito a precessão da intensidade, afeto e afecção física descritos por Shaviro e Massumi. Isto é, a intensidade das imagens e o seu poder em criar um acontecimento comunicacional estaria nesse momento de ingressão dos objetos eternos na percepção cinemática e a admissão ou rejeição pelo sujeito dessas potencialidades nos seus sentidos.
Ao apresentar as categorias do seu esquema de especulação filosófica, Whitehead, no livro Process and Reality, oferece-nos um conjunto de 27 categorias de explicação que poderiam ser aplicadas como um roteiro de análise e das quais são destacadas:
(vii) Que um objeto eterno pode ser descrito em termos de potencialidade em ingressar no vir-a-ser das entidades atuais; e essa análise unicamente revela outros objetos eternos. Ele é puro potencial. O termo "ingressão" refere-se ao modo particular no qual a potencialidade de um objeto eterno é realizada numa particular entidade atual, contribuindo para a definição daquela entidade atual.
(viii) Que descrições são requeridas para uma entidade atual: (a) uma na qual é analisada a sua potencialidade para "objetificação" no vir-a-ser de outra entidade atual, e (b) outra no qual é analisado o processo no qual se constitui seu próprio vir-a-ser.
(xix) Que o como uma entidade atual se torna constitui o que essa entidade atual é; dessa forma as duas descrições de uma entidade atual não são independentes. Seu "ser" é constituído pelo seu vir-a-ser. É o "princípio do processo".
(x) Que a primeira análise de uma entidade atual, nos seus mais concretos elementos, releva ser uma concrescência de preensões, no qual se originou o processo de vir-a-ser. Todas as análises posteriores são análises de preensões. Análise em termos de preensões é denominada "divisão".
(xi) Que cada preensão consiste de três fatores: (a) o "sujeito" que é preendido, a saber, a entidade atual na qual aquela preensão é um elemento concreto; (b) o datum que foi preendido; (c) a "forma subjetiva" que é o como aquele sujeito preendeu o datum. (Whitehead, 1978, p. 22).
Aplicando a fenomenologia de Whitehead ao estudo do acontecimento comunicacional no cinema, poderíamos observar na exibição de um filme para um público as potencialidades de "objetificação" - a capacidade da afecção das entidades eternas que ingressaram no "objeto atual" (o filme) nos espectadores. Acompanhando a fenomenologia whiteheadiana, prestaríamos a atenção nos sujeitos preendidos pelo filme (afetos e intensidades), o datum preendido (dados passados que envolvem tanto os objetos eternos do filme, sinalizações e informações como os dados da própria biografia individual do espectador) e a "forma subjetiva" da preensão - as "emoções" no sentido determinado por Massumi, como vimos anteriormente.
E observar se o resultado dessa trajetória foi o acontecimento comunicacional entendido como o encontro da narrativa fílmica com a biografia individual, resultando em efeitos de ruptura, quebra de padrões e constituição de novos sentidos.
Estudo de caso
Filme Como Fazer Carreira em Publicidade
(How to Get Ahead in Advertising, diretor: Bruce Robinson, 1989)
Exibido para alunos de terceiro semestre da graduação de Publicidade e Propaganda, da Universidade Anhembi Morumbi, no dia 04 de junho de 2014, sala 528. Horário: 19h30 às 21h00, 34 alunos.
Sinopse
No mundo da publicidade inglesa, Dennis Bagley (Richard E. Grant) é um yuppie com alfaiataria impecável e fama de gênio. Arrogante e com uma rotina de luxuosos jantares para amigos promovidos pela sua esposa Julia na casa de campo nos arredores de Londres, inexplicavelmente Bagley tem um súbito bloqueio criativo para uma campanha de creme para espinhas. O prazo final para a apresentação se aproxima, a empresa do creme ameaça retirar a conta da agência com os seguidos adiamentos. Bagley entra em pânico, não consegue dormir, fica paranoico: "não pensarei mais em grandes espinhas, espinhas ocultas ou espinhas de garotas gordas", repete como um mantra em sua cabeça, mas nada adianta. Começa a ficar cada vez mais agressivo e histérico até o colapso mental.
Munido de escova e sabão, nu e apenas com um avental, pretende "limpar" todas as marcas da Publicidade da sua casa. E mais, decide eliminar o mundo publicitário da sua vida, pedir demissão e denunciar para o mundo como o "Big Brother" invadiu nossas casas através da TV. Mas tudo se complica ao descobrir que desenvolve uma enorme espinha no seu pescoço e que ela começa a falar e ficar fisionomicamente cada vez mais parecida com ele. A espinha é rude, desbocada, ameaçadora, ou seja, exatamente o Bagley que ele começou a odiar em si mesmo.
As discussões entre a espinha e Bagley são impagáveis: ela o acusa de "comunista" por preferir trens aos automóveis poluidores e que não deixará Bagley destruir as conquistas da civilização, tais como "a liberdade de mercado e de decisão do consumidor".
Mas a espinha do pescoço de Bagley tem um projeto sinistro: crescer até substituir a cabeça, que será extraída cirurgicamente. Dessa forma, a espinha tomará o controle para pôr em prática táticas ainda mais radicais de Propaganda e Marketing e resolver de vez a campanha do creme para espinhas. E, de quebra, ainda engravidar Julia para que tenha um "bebê-espinha".
Justificativa
O filme foi escolhido por ter um conteúdo disruptivo e provocador, principalmente para alunos de um curso de graduação em Publicidade e Propaganda. Esse filme já possuía um histórico de exibições anteriores nesse mesmo curso e em todas elas o filme foi acompanhado por reações extremas entre os alunos, seja de ofensiva indiferença (o tema simplesmente não interessava e o aluno se retirava, mas a reação em si já representava uma atitude de repulsa ao tema do filme), indignação (sentia-se ofendido pelo filme "ridicularizar" a profissão escolhida pelo aluno) e apoio intelectual à visão crítica da publicidade e da sociedade de consumo.
Propositalmente, o filme não foi programado ou avisado aos alunos com antecedência. Como última aula antes da semana de provas, os alunos esperavam do professor uma aula de revisão. O propósito foi o de criar uma surpresa, principalmente pelo fato de o filme ser desconhecido para todos os alunos. Dessa forma, minimizaria a possibilidade de criar mecanismos de defesas, predisposições ou resistência ideológica ou de gosto. Esperávamos que tudo isso surgisse durante a exibição do filme.
Outro motivo da escolha do filme é pela sua narrativa não realista. Seguindo a terminologia Deleuziana, ao se preocupar menos com a linearidade causa-efeito, acaba introduzindo planos autônomos de causalidade incerta, dando às imagens a liberdade de expressar afetos (imagem-sonho, memória e cristal). Rompendo com o hábito da resolução do filme realista, a experiência disruptiva do acontecimento comunicacional pode ser favorecida.
Evento e preensões
Novas entidades tornam-se como tais ao preender outras entidades. Cada evento é preensão de outro evento. O espaço e o tempo da recepção do filme foram um evento por possuírem um nexo definidor, por herdarem datas uns dos outros (alunos presentes com laços pragmáticos - passar no curso - ou afetivos - amizade ou concorrência) e do passado (seus datas biográficos e o próprio filme, evento de 1989 sendo acolhido naquela noite em 2014).
Todos ali acolheram as entidades atuais (filme, seus colegas presentes, sala de aula, espaço e tempo), o que possibilitou uma ocasião para estabelecer um nexo definidor, isto é, um momento de abertura a preensões das heranças ou dados.
Acolhendo e rejeitando dados
Durante a projeção do filme, verificamos dois tipos de comportamentos dos alunos: ativo e passivo. Como narrativa não realista, o filme não estabelece relações de causalidade de uma narrativa clássica que, na visão de Shaviro, não concede ao espectador o prazer do voyeurismo, possessão e apropriação. Em outras palavras, não dá ao espectador o prazer da atividade, domínio e segurança. A reação de muitos alunos foi inclinar-se na direção dos seus celulares, conectar-se à Internet e retirar-se do evento por meio do ciberespaço. Isso significa que não só a mente, mas também o próprio corpo (fonte do afeto) é desmaterializado por meio do espaço e tempo virtuais de interação, domínio e atividade.
Muitos alunos, principalmente sentados mais à frente, se entregaram à narrativa fílmica, em primeiro lugar intelectualmente - demonstrado fisicamente pela postura do corpo "fechado" (pernas e braços cruzados), até a sequência em packshot (objeto eterno, como veremos a seguir), em que a afecção da sequência faz definitivamente o espectador render-se à passividade, à entrega, ao abrir-se às afecções - corpo posturalmente desequilibrado, afundado na carteira, pernas esticadas e o corpo pendendo para um lado.
Objetos eternos
A intensidade ou afecções de planos e sequências surge tanto da mitologia que envolve o tema das espinhas (a gordura e o creme) como de uma ironia visual explorada pela fotografia: embora o filme seja crítico à publicidade, a fotografia explora a experiência sinestésica do packshot, aplicada largamente nos filmes publicitários no momento da apresentação dos produtos - sequências em que os frames são captados em altíssima definição. E o movimento em slow motion é conseguido com o dobro de frames da filmagem convencional. Texturas, superfícies, o frescor das pétalas da flor de um vaso que cai, maciez, umidade etc. são sentidos visualmente, criando uma relação sinestésica da totalidade do corpo com o movimento dos objetos em um plano. Nas sequências cruciais do filme - a descoberta através do espelho do banheiro de que a espinha que crescia no pescoço tenta se comunicar com o protagonista, o psiquiatra que o persegue no jardim da residência, entre outras.
Gordura, cremes antiacne, mostarda de Dijon (usada no tratamento da espinha), o Ketchup com o qual a cabeça-espinha se empanturra e se lambuza ao subjugar a cabeça do protagonista são qualidades visuais, sinestésicas e imaginárias (os significados mitológicos da gordura - não refrescante, excessivamente suave e tendendo ao artificial e, ao mesmo tempo, veiculando a ideia de nutrição e saúde - Cf. Barthes, 1980) exploradas por todo o filme como afecções que, entre os alunos, produziram sentimentos e emoções positivos e negativos - nojo, asco, repulsa, indignação ou perplexidade, fascínio, surpresa, riso e escárnio.
Concrescência e acontecimento comunicacional Para dois alunos (que chamaremos aqui de Henrique e Lucas), o filme produziu a concrescência (em que várias entidades presentes naquele evento formaram uma constelação, criando sentido, o novo) e que, para o propósito deste paper, tem a ver com o encontro da narrativa fílmica com a biografia individual. Após as luzes se acenderem, Henrique ficou em silêncio e ensimesmado, embora fazendo parte de um grupo que, ao longo do filme, trocava algumas observações sobre a narrativa fílmica. Em outro extremo da sala de aula estava Lucas, com o rosto visivelmente ruborizado e que se pôs a travar uma intensa conversa com outro grupo. A aula terminou e Lucas veio conversar comigo, junto com o grupo do qual participava. Lucas foi direto, e disse que iria abandonar o curso de Publicidade para fazer o de Cinema, e o disse sob as opiniões contrárias dos seus amigos. Visivelmente agitado e estimulado pelo filme, disse que sempre quis fazer Cinema, mas desistiu por ser um curso muito caro. Mas a engenhosidade narrativa... a cabeça-espinha que falava... a bela fotografia e, sobretudo, um filme produzido pelo ex-Beatle George Harrison. Saiu daquela aula, firmemente decidido em dar uma guinada na sua vida acadêmica. Enquanto isso, Henrique aguardava à distância terminar minha conversa com o grupo de Lucas. Aproximando-se, veio consultar-me sobre como, dentro do curso de Comunicação, ele poderia dar o primeiro passo para a atividade de pesquisador e conselhos para montar um projeto de pesquisa em iniciação científica. Para Henrique, o conteúdo crítico do filme teria ido ao encontro da sua insatisfação pessoal/profissional: disse que trabalhava em uma atividade técnica de Marketing em uma empresa, distante do seu principal interesse: a pesquisa acadêmica. Henrique e Lucas saíram daquela aula transformados: algo no filme fez os seus dados biográficos atuais entrarem em uma conjunção com os dados que vinham de 1989 através do filme. Henrique afirmou que o conteúdo crítico do filme e as linhas de diálogo críticas ao sistema capitalista fez despertar nele a paixão pela pesquisa, enquanto Lucas ficou fascinado com a arte e a linguagem experimental do filme, despertando a sua paixão pelo cinema. Henrique foi afetado pela forma; Lucas, pelo conteúdo. Considerações finais Esta pesquisa, ainda incipiente, necessitaria de observações e entrevistas mais aprofundadas para buscar como as afecções foram causas de uma conjunção eficiente. Nas respostas dos alunos estão evidentes apenas os sentimentos e emoções pelo fato de o filme ter se transformado em um suporte expressivo das suas insatisfações pessoais. Seria importante compreender a articulação entre as sinalizações (dados e objetos eternos) do filme, informações transmitidas pela estrutura semiótica do filme (rebatidas no repertório dos receptores em sentido aditivo) e a comunicação (ruptura com os dados herdados e a criação de novas entidades atuais, no sentido de Whitehead). Nesse ainda incipiente estudo de caso, podemos afirmar que de fato houve comunicação, acontecimento, ruptura de padrões. Uma semana depois, na aula seguinte, Lucas e Henrique ainda repercutiam o impacto das impressões provocadas pelo filme nas decisões de mudanças nas suas trajetórias acadêmicas. A questão a ser respondida após esse estudo de caso é entender o momento decisivo do encontro entre a narrativa fílmica e a pessoal. E como o afeto e os objetos eternos ingressam nesse encontro, possibilitando o surgimento de novas preensões que repercutem após o acontecimento comunicacional. Referências Barthes, Roland (1985). Mitologias. São Paulo: Difel. [ Links ] Deleuze, Gilles (1985). Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense. [ Links ] Massumi, Brian (2002). Parables for the Virtual. Duke University Press. [ Links ] Shaviro, Steven (2006). The Cinematic Body. University of Minnesota Press. [ Links ] Whithead, Alfred N (1978). Process and Reality. N. York: The Free Press. [ Links ] Endereço para correspondência *Professor aposentado pela Universidade Anhembi Morumbi/SP, jornalista, Mestre em Comunicação Contemporânea (Análises em Imagem e Som), editor do blog "Cinema Secreto: Cinegnose", Colunista do blog "Luís Nassif OnLine", Jornal GGN e Revista Fórum. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no Dicionário Crítico de Comunicação, pela editora Paulus (2009), organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho; e dos livros O Caos Semiótico (2011), Cinegnose (2011), lançados pela Editora Paulus de São Paulo; Bombas Semiótica na Guerra Híbrida Brasileira" (2020) e Cinema Secreto: Temas Gnósticos, Alquímicos e Quânticos no Cinema, Audiovisual e Cultura Pop (2020), pela Publicações Cinegnose. ORCID: 0000-0002-3601-9315.
Wilson Roberto Vieira Ferreira
E-mail: ferreirawrv@gmail.com