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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022
ARTIGOS
O paradoxo da escuta analítica
The paradox of the analytical listening
La paradoja de la escucha analítica
Angela Coutinho*
Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle - SPID - Brasil
RESUMO
O presente artigo aborda o paradoxo da escuta analítica, partindo do pensamento de Foucault, usado como ferramenta para pensar uma clínica na resistência, o que abre novos horizontes para o manejo da clínica psicanalítica na contemporaneidade. A psicanálise trabalha com um a um. Como lidar com a singularidade do sujeito, sem deixar de levar em conta o grupo identitário ao qual ele pertence, com problemáticas que lhe são próprias e que o distingue no coletivo? Como escutar o coletivo/individual inerente em cada narrativa do sujeito? A prática psicanalítica inspirada em Foucault é um processo de descoberta das sujeições que cercam e cerceiam nossa vida, visando provocar uma queda de certo saber de si. O sujeito é capaz de dizer não a constrangimentos históricos, o que lhe permite desprender-se de si mesmo e não afirmar uma identidade. O conhecer para desconhecer-se e transformar-se. Uma perspectiva ética se abre aqui, isto é, a elaboração de uma forma de relação consigo mesmo, a partir de um descolamento de nossas formações históricas. O "cuidado de si" implica uma ética que se opõe à suposição de um eu autônomo, precedendo sua própria história. Trata-se da problematização do já dito, visando à constituição de si, sempre em processo, puro devir. A ética do psicanalista consiste, assim, numa atitude acolhedora diante de um passado que insiste em se dizer presente, instigadora e questionadora acerca do próprio presente, visando um desvio dos pontos de estagnação, em direção à pura abertura.
Palavras-chave: Escuta analítica, Acolhimento, História, Resistência, Cuidado de si.
ABSTRACT
This article deals with the paradox of analytical listening, starting from Foucault's thinking, used as a tool to think about a clinic in resistance, which opens new horizons for the management of a psychoanalytic clinic in contemporary times. Psychoanalysis works one by one. How to deal with the singularity of the subject without failing to consider the identity group to which he belongs, with problems that are his and that distinguish him in the collective? How to listen to the collective/individual inherent in each narrative of the subject? The psychoanalytic practice inspired by Foucault is a process of discovering the subjections that surround and surround our life, aiming to provoke a fall of certain knowledge of one another. The subject can say no to historical constraints, which allows him to detach himself from himself and not affirm an identity. To know him to be unwell and to transform himself. An ethical perspective opens here, that is, the elaboration of a form of relationship with one another, from a detachment of our historical formations. The "care of the self" involves ethics that opposes the assumption of an autonomous self, preceding its history. This is the problematization of the above, aiming at the constitution of one another, always in process, pure to come. The ethics of the psychoanalyst is, thus, a welcoming attitude towards a past that insists on saying itself present; instigator and questioner about the present itself, aiming at a deviation of the points of stagnation, towards pure openness.
Keywords: Analytical listening, Reception, History, Resistance, Care of the self.
RESUMEN
El artículo aborda la paradoja de la escucha analítica, a partir del pensamiento de Foucault, utilizado como herramienta para pensar en una clínica en resistencia, lo que abre nuevos horizontes para el manejo de la clínica psicoanalítica en los tiempos contemporáneos. El psicoanálisis trabaja con uno por uno. ¿Cómo tratar la singularidad del sujeto, sin dejar de tener en cuenta el grupo identitario al que pertenece, con problemas que le son propios y que le distinguen en el colectivo? ¿Cómo escuchar lo colectivo/individual inherente a cada narrativa del sujeto? La práctica psicoanalítica inspirada en Foucault es un proceso de descubrimiento de las sujeciones que rodean y rodean nuestra vida, con el objetivo de provocar una caída de cierto conocimiento de unos a otros. El sujeto es capaz de decir no a las restricciones históricas, lo que le permite separarse de sí mismo y no afirmar una identidad. Conocerlo enfermo y transformarse. Aquí se abre una perspectiva ética, es decir, la elaboración de una forma de relación entre sí, a partir de un desprendimiento de nuestras formaciones históricas. Lo "cuidado de sí" implica una ética que se opone a la asunción de un yo autónomo, precediendo a su propia historia. Esta es la problematización de lo anterior, apuntando a la constitución de uno otro, siempre en proceso, puro por venir. La ética del psicoanalista es, pues, una actitud acogedora hacia un pasado que insiste en decirse presente; instigador e interrogador sobre el presente mismo, apuntando a una desviación de los puntos de estancamiento, hacia la apertura pura.
Palabras clave: Escucha analítica, Recepción, Historia, Resistencia, Cuidado de sí.
Introdução1
Quando tomamos a palavra, inúmeras bifurcações se apresentam, há muitos caminhos a serem escolhidos. Os caminhos conhecidos são vias facilitadas que nos atraem. Em contrapartida, a alegria do confronto com o inusitado, com o desconhecido, o não dito, o não sabido, o caminhar sem modelos é o mais vivo, promissor e potente. É mais interessante e mais difícil. Causa até certa dor caminhar por significantes soltos, mas, ao mesmo tempo, isso pode levar à alegria da construção de novos sentidos. Vou desenvolver o tema a partir de cinco tópicos:
1. Multidão de minorias;
2. Clínica psicanalítica inspirada em Foucault;
3. A noção de resistência em Foucault e na psicanálise;
4. Clínica psicanalítica, uma clínica na resistência;
5. O paradoxo da escuta analítica: "Ouvidos para não ouvir", uma escuta amorosa.
1 Multidão de minorias
Estamos aqui diante de uma multidão de minorias. Cada membro da plateia pertence a uma minoria. Somos todas minorias. E somos multidão não como um amontoado de pessoas, mas como um corpo coletivo constituído por corpos singulares. Multidão referida à diferença que se multiplica. Uma multiplicação de singularidades, em que o coletivo e o privado se mesclam numa alternância sem fim. Cada um de nós é uma minoria potente e, como tal, sempre em processo, sem o apoio de modelos.
Em contrapartida, não escapamos da criação de modelos, tendo em vista uma busca de reconhecimento, na constituição de grupos identitários. As afinidades e a reivindicação de direitos comuns vão formar os grupos identitários, com questões próprias. O grupo dos brasileiros, das mulheres, dos homossexuais, dos trans, dos negros, dos judeus, entre outros. Há questões específicas que perpassam cada grupo e que não podem ser ignoradas. É preciso dar voz e vez a cada um, dando visibilidade ao que poderia permanecer invisível no isolamento da singularidade. A origem da multidão é o desejo dos indivíduos de assegurar melhores condições para existir por meio da criação de direitos comuns. E a potência da multidão é o princípio originário da resistência.
2 Clínica psicanalítica inspirada em Foucault2
Ao olhar a prática clínica por uma janela, de fora pra dentro, vemos que ela se expandiu e ganhou novo contorno. A interlocução com Foucault foi extremamente fecunda para repensarmos nossos fundamentos com novas lentes. A perspectiva foucaultiana enriqueceu nossa maneira de lidar com a clínica, e seu legado permanece até hoje como pano de fundo, como premissa norteadora.
Nosso interesse pela investigação do pensamento de Foucault foi despertado a partir de seu comentário acerca da figura de Don Juan. Além de sua função sedutora, ele ressalta fundamentalmente em Don Juan um aspecto transgressor, que provoca um efeito disjuntivo, rompendo com o status quo (Foucault, 1982). Foucault apresenta uma concepção de limite como fronteira a ser ultrapassada, isto é, não como algo intransponível. Ao serem questionados os limites de uma experiência, a partir de um acontecimento no presente, esses limites se evidenciam e podem ser ultrapassados.
A psicanálise é um saber subversivo, centrado no sujeito do inconsciente, um saber que não se sabe; trabalha com a questão das identificações, problematizando-as e levando a um efeito de divisão do sujeito. Desse modo, a psicanálise trabalha com o limite e a possibilidade de ultrapassá-lo, sendo uma prática transgressiva. Remontando à história do sujeito, decifrando suas marcas pulsionais, a psicanálise restitui e desmonta o sentido congelado de sua história. O sujeito é confrontado com sua finitude e sua incompletude; ao mesmo tempo, se descobre finito-ilimitado, isto é, constituído historicamente, sem natureza profunda e podendo identificar e problematizar o que o levou a ser o que é, possibilitando assim inúmeras rupturas e verdades, inúmeros limites a serem transpostos. A lei que é transgredida na experiência psicanalítica refere-se à ultrapassagem dos limites que remete ao ser finito-ilimitado e vai numa direção oposta à lógica perversa. Esse ilimitado que a seguir se limita pode ser pensado como a assunção da castração simbólica. É a constatação da nossa finitude e ao mesmo tempo condição para a abertura de novas possibilidades de transgressão (Coutinho, 2010).
A psicanálise, desde seus primórdios, trabalha com a noção de história (Coutinho, 2001). Contudo, caso a concebesse nos moldes do historicismo clássico, a investigação iria caminhar em busca da origem, isto é, um lugar a que se chega, considerando o passado como o que marca o presente, cristalizando-o; o que levaria a um autoconhecimento, a um saber de si. Foucault é um crítico desse historicismo. A história faz parte de seu método, mas ele inverte a questão da origem. A origem é o presente, o que está sendo problematizado e não o lugar a que se pretende chegar. Podemos estranhar o presente ao constatarmos que é histórico o que parece permanente, ou seja, o presente é fruto de encontros fortuitos. A investigação histórica, nesse caso, desestabiliza o presente. Somos formados e delimitados historicamente, mas a história não nos constitui como uma identidade. Ao contrário, afirma um limite a partir do qual estamos em vias de diferir (Deleuze, 1992). Pela investigação histórica, dissipamos qualquer suposta identidade, isto é, nos separamos de nós mesmos (Foucault, 1993).
O tema geral das pesquisas de Foucault é a história dos saberes que detemos sobre o sujeito (Dreyfus & Rabinow, 1995), visando traçar suas condições históricas de possibilidades e o caráter precário circunstancial dessas verdades. Para Foucault, não há oposição entre verdade e história. Foucault atribui à verdade o estatuto de ficção:
Eu estou completamente consciente de que nunca escrevi nada além de ficções. Com isso não quero dizer que elas estejam fora da verdade. Parece-me plausível fazer um trabalho de ficção dentro da verdade, introduzir efeitos de verdade dentro de um discurso ficcional e, de algum modo, fazer com que o discurso permita surgir, fabrique algo que não existe, portanto, ficcione algo.Ficciona-se a história partindo de uma realidade política que a torna verdadeira; ficciona-se uma política que ainda não existe partindo de uma realidade histórica. (Foucault, 1979, p. 75).
Desse modo, as verdades se configuram como contingentes, singulares e não universais. Toda verdade é histórica e tem o estatuto de ficção. Ela vale enquanto funciona. Em Foucault, há o caráter histórico de tudo o que existe e. ao mesmo tempo. a inexistência de uma essência.
O sujeito, para Foucault, não é dado e sim produzido a partir das práticas de poder que funcionam como jogos de verdade (Foucault, 2006/1984). Foucault se interessa pela constituição histórica das diferentes formas de sujeito. Pensar o sujeito em sua história é considerar que a história determina e define as condições de sua existência de sujeito. Para esse autor, não é suficiente afirmarmos que o sujeito se constitui no sistema simbólico; ele também é constituído em práticas historicamente analisáveis (Foucault, 1995a).
Foucault afirma ainda que
talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrar desse "duplo constrangimento" político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno. (Foucault, 1982, p. 239)
Uma perspectiva ética se abre aqui, isto é, a elaboração de uma forma de relação consigo mesmo, a partir das formações históricas que nos conformam. A ética se interessa pelas condições de produção do sujeito. É a função propriamente ética do sujeito que lhe possibilita uma margem de liberdade, autonomia, iniciativa e responsabilidade ante as determinações históricas alienantes, aprisionantes. Como duas faces da mesma moeda, ao sujeito passivo, moral, assujeitado, se contrapõe o sujeito ativo, ético, que resiste ao assujeitamento (Macherey, 1988). A história ética do sujeito aponta-o como constituído a partir da elaboração do "cuidado de si". O sujeito ético emerge às margens da história. Seu lugar é no limite de suas determinações históricas, acatando-as e transgredindo-as a cada vez. As escolhas coercitivas, pautadas pelo assujeitamento, são problematizadas, possibilitando escolhas facultativas. Trata-se, aqui do sujeito evanescente, capaz de se estranhar e se inventar.
Essa perspectiva ética como estética da existência não tem como horizonte nenhum ideal de autenticidade. Trata-se de um trabalho constante ante o assujeitamento. É uma prática de liberdade, isto é, uma prática crítica que pressupõe uma luta incessante. O que não se confunde com uma prática libertária.
O "cuidado de si" implica uma ética que se opõe à suposição de um eu autônomo, precedendo sua própria história. "Cuidado de si" não se confunde com "culto de si". Foucault critica certas práticas psicanalíticas que se apoiam no "culto de si" que visa a descoberta do verdadeiro eu, antes obscurecido e alienado A "prática de si" é justamente o oposto do "culto de si". Trata-se da problematização do já dito, do saber de si visando à constituição de si, sempre em processo, puro devir. É um si a ser criado como uma obra de arte sempre inacabada (Foucault, 1995a).
A prática psicanalítica inspirada em Foucault é um processo de descoberta das sujeições que cercam e cerceiam nossa vida, visando provocar uma queda de certo saber de si. O sujeito é capaz de dizer não a certos constrangimentos históricos (Foucault, 1995a) o que lhe permite desprender-se de si mesmo e não afirmar uma identidade. O conhecer para desconhecer-se e transformar-se (Coutinho, 1994).
A investigação histórica leva por um lado, à reconstrução e à problematização das contingências que fez de nós o que somos. O estranhamento leva a uma queda do saber de si e provoca um efeito de verdade. Esse saber marca as rupturas, faz surgir o limite e a transgressão. As configurações históricas aparecem como passageiras: o que hoje é, será diferente (Vaz, 1992).
No processo analítico, identificamos a verdade como histórica, contingente. A partir dessa premissa, os limites de certa experiência podem ser ultrapassados e novas verdades podem ser produzidas. A ética do analista em relação ao acontecimento pressupõe uma aceitação incondicional e, ao mesmo tempo, um questionamento incessante desse acontecimento. Ele acolhe e sacode. Acolhimento, ao reconhecer as condições de possibilidades que resultaram no acontecimento; em contrapartida, a crítica, por ser o momento presente aquilo que fratura, que rompe o curso do tempo, ao se constituir como um acontecimento questionador de modo como até então se deu a história (Coutinho, 1994).
A ética do psicanalista consiste, assim, numa atitude acolhedora perante um passado que insiste em se dizer presente; instigadora e questionadora acerca do próprio presente, visando um deslocamento, um desvio dos pontos de estagnação, em direção à pura abertura (Coutinho, 1994; 2008; 2010).
3 A noção de resistência em Espinosa, Foucault e na psicanálise
A noção de resistência apresenta múltiplas faces. É uma palavra usada e até gasta em diferentes campos: física, química, biologia, guerra, filosofia, política e psicanálise. Vou me restringir a pensar a noção de resistência na filosofia política e na psicanálise.
Apesar de Espinosa ter usado poucas vezes em sua obra a palavra resistência ou resistir, para alguns autores a ideia de resistência é central em sua filosofia política (Augusto, 2017). Resistência vista como uma força ativa, constantemente presente na vida política, no nosso cotidiano, como uma potência de afirmação da vida contra a opressão. Resistimos ao que julgamos ser danoso e nos impede de desfrutar de algo que favoreça a conservação de nossa existência. A resistência não é simplesmente reativa ou posterior às ameaças externas. Ela é afirmativa e produtiva. A composição das multidões dá condições mais eficazes para que cada um persevere em seu ser. Assim, o corpo social constitui um ato de resistência e fortalece indiretamente o corpo individual. Juntos somos mais potentes, resistentes. Do mesmo modo, podemos afirmar que o corpo singular, com sua capacidade de resistência aumentada, favorece o incremento da resistência do corpo social. Um retroalimenta o outro.
Em Foucault, encontramos também um sentido político na noção de resistência. Foucault apresenta uma nova concepção de poder como uma relação de forças. O poder de afetar e ser afetado. A força, mesmo afetada por outra força, tem uma capacidade de resistência. Resistência é a potência da força, uma força ativa. A constatação da resistência leva Foucault a uma mudança na sua concepção de sujeito. O sujeito não mais se constitui, como de início ele supunha, apenas como objeto do aparelho saber poder, um sujeito moral, isto é, assujeitado, cujas escolhas são coercitivas. Se há algo na relação de forças que resiste, esse algo aponta o vislumbre de um sujeito ético, à margem da história, capaz de escolhas facultativas, num processo contínuo de libertação frente ao assujeitamento, levando às práticas de si. Trata-se de uma prática de liberdade que implica num conflito permanente, num trabalho incessante diante do assujeitamento.
Em psicanálise, encontramos na obra de Freud inúmeras acepções de resistência, as quais vamos sintetizar aqui:
1) Resistência da sociedade à psicanálise. Na época em que Freud inventou a psicanálise, esta foi vista como uma ameaça, uma agressão à dignidade da raça humana, inamistosa à cultura e como perigo social, ao falar de pansexualismo, ao levantar o véu da amnésia dos anos da infância (Freud, 1976h/1925). Já em 1910, Freud afirma que a sociedade não terá pressa em nos conferir autoridade (Freud, 1976c/1910), ao contrário. A sociedade está determinada a nos oferecer resistência porque adotamos em relação a ela uma atitude crítica. É possível que essa resistência persista até os dias de hoje em alguns grupos.
2) Resistência como simples obstáculo à análise: "Não quero saber nada disso". Freud aponta as deformações graves de caráter ou a constituição degenerada como fontes de resistência (Freud, 1976a/1904). Além disso, quando há relutância em iniciar uma análise, em se abrir à experiência do inconsciente, há resistência. Ou por não acreditar em processos inconscientes e ou pela suposição de que dá conta sozinho/a de suas questões, como se, com a análise, estivesse abdicando de sua autonomia etc.
3) Resistência que dá origem à psicanálise. Freud abandona a hipnose, entre outras razões, porque os pacientes resistem, não se deixando hipnotizar. A valorização da resistência é uma das razões para o abandono da hipnose. Aparece aqui a resistência ao assujeitamento, à obediência. Quando o sujeito se opõe à sugestão, ele tenta manter o desejo. O desejo resiste a ser doutrinado (Freud, 1976h/1925). Em vez de procurar um método onde não houvesse resistência, Freud funda a psicanálise, cuja regra fundamental é a associação livre. O fundamento da associação livre é justamente evidenciar a resistência. Os pensamentos involuntários que irrompem nas associações são derivativos das manifestações psíquicas recalcadas, deformadas pela resistência. Atuam nas construções dos derivativos as ideias não intencionais, os sonhos, atos falhos e atos sintomáticos. Freud (1976g/1923) afirma que a arte da interpretação consiste em extrair o metal puro dos pensamentos recalcados do minério das ideias não intencionais. Quando as ideias deixam de fluir, se evidencia a resistência. O despertar das resistências constitui uma garantia contra os efeitos enganadores da influência sugestiva" (Freud (1976g/1923). A hipnose esquiva-se da resistência ao obstruir a compreensão sobre os jogos de forças psíquicas inconscientes, não permitindo o reconhecimento das resistências com que o paciente se apega a sua doença, lutando contra sua própria recuperação (Freud, 1976b/1905). Aqui, Freud está valorizando o sujeito que diz não e sinaliza que a tarefa do tratamento consiste em tornar o inconsciente acessível à consciência, o que é feito superando-se as resistências (Freud, 1976a/1904). Ele assinala que o analista se interpõe neste conflito, e o tratamento analítico consiste numa reeducação para superar resistências internas (Freud, 1976b/1905). Um pouco mais adiante, o objetivo do trabalho do analista é pesquisar, encontrar e sobrepujar as resistências. Em seguida, após sobrepujar as resistências, os complexos vêm à luz sem dificuldade (Freud, 1976c/1910).
4) Resistência na situação analítica. Freud aborda os tipos de resistência no processo analítico de acordo com as fontes. A resistência que precisa ser vencida na análise procede do ego. Foram observados cinco tipos de resistência: as resistências do ego, que se subdivide em resistência de regressão, resistência de transferência e benefício secundário da doença; a resistência do id (isso), isto é, compulsão à repetição; a resistência do superego, ou seja, o sentimento de culpa ou a necessidade de castigo (Freud, 1976i/1926).
4.1) A resistência do ego se opõe à experiencia do desejo inconsciente que é rejeitada para evitar a angústia. O ego é a fonte da angústia, sentinela do perigo.
a) Resistência como obstáculo à análise, quando o recalcado ameaça retornar sem disfarce, isto é, como lembrança. Pela associação livre, ao se dar a aproximação do núcleo patogênico, o fenômeno da resistência ocorre, como uma força que atua na mesma direção do recalque quando está ameaçado de ser descoberto. As forças psíquicas que levam ao recalque são as mesmas que operam na resistência contra a recuperação de lembranças perdidas (Freud, 1976b/1905). Aqui, a resistência é também um instrumento porque, ao ocultar, o sujeito revela o que está velado na resistência e pela resistência. Antes, a resistência aparecia como uma das pedras angulares, neste sentido (Freud, 1976a/1904).
b) Resistência de transferência. A transferência é vista como a forma mais eficaz de resistência (Freud, 1976d/1912). Ao se aproximar, pela associação livre, do núcleo patogênico, o analisando se dá conta da presença do analista no lugar de acessar a lembrança recalcada. Aqui, a transferência entra como expressão de resistência.
c) Resistência para manter o ganho secundário da doença como adaptação egóica, como se fosse uma zona de conforto.
4.2) Resistência do id (isso). Compulsão à repetição e adesividade da libido.
4.3) Resistência do superego (supereu). Sentimento de culpa inconsciente e necessidade de punição. O analisando insiste em permanecer alienado por culpa de ocupar uma posição na qual ele não é esperado, em relação a qual ele pode ser punido.
5) Resistência do desejo. Quando o sujeito se opõe à sugestão, ele tenta manter o desejo. Novamente, o desejo resiste a ser doutrinado.
6) Resistência como efeito da análise. Em 1919, Freud afirma que, no futuro, homens, mulheres e crianças poderão se tornar, pela análise, capazes de resistência e de trabalho eficiente (Freud, 1976f/1919). Resistência, aqui, repito, como efeito da análise.
7) Resistência do analista. Desde cedo, Freud afirma que o psicanalista não avança além do quanto permitem seus complexos e resistências internas (Freud, 1976c/1910). Deve iniciar suas atividades por uma "autoanálise", sem a qual deve desistir de tratar pacientes. Mais tarde, insistiu na necessidade de análise didática e afirma que a única resistência é a do analista (Freud, 1976e/1914). Resistência interna do analista: não consegue escutar, é atingido em seus pontos cegos, seus fantasmas.
Essas diferentes acepções identificadas na obra freudiana apontam a resistência como uma noção paradoxal, cujo manejo requer delicadeza e tato. Seja resistência da sociedade à psicanálise; resistência a entrar em análise ou mesmo na situação analítica; resistência a entrar em contato com o recalcado, quando este ameaça retornar sem disfarce; resistência do desejo como força perante o assujeitamento; e, sobretudo, resistência como efeito da análise em que o eu fica mais resistente e plástico ante às exigências dos três poderes: id, superego e realidade externa. Em qualquer uma dessas acepções, a resistência implica força e potência de afirmação da vida.
Portanto, onde há resistência, há um sujeito ativo, autor. Na minha opinião, a concepção de resistência em Foucault (e, também, em Espinosa) constitui um pano de fundo, um balizador fundamental para se pensar a resistência em psicanálise bem como seu delicado manejo.
4 Clínica psicanalítica, uma clínica na resistência
Uma clínica na resistência, e não contra a resistência, pressupõe que os caminhos trilhados pelo sujeito foram os melhores naquele contexto, no sentido de economia psíquica (Coutinho, 2004). O sujeito tem sempre boas razões que justificam seu sintoma. O sintoma é escutado como saída de um impasse, como uma solução, embora haja também sofrimento. O sintoma implica custo e benefício. O analista considera que o analisando tem direito à legítima defesa e acolhe a neurose, do mesmo jeito que acolhe a resistência. Vale lembrar que, aqui, acolhimento não é conivência A resistência é vista como proteção de si, como potência da força. Assim, o analista trabalha com a resistência e não contra ela. De um lado, há um zelo, um acolhimento incondicional. De outro lado, um olhar para fora dos pontos de estagnação, para o novo.
A clínica psicanalítica é orientada pelo desejo e visa uma mudança na posição subjetiva. A prática clínica se realiza num plano micropolítico, e o analista não é desinteressado ou neutro. O ato clínico, como ato político, requer uma estratégia de problematizar os pontos paralisados, desestabilizando-os. A acolhida da resistência e do sofrimento do sintoma é concomitante à aposta no esvaziamento dos imperativos aprisionantes. O analista acolhe e sacode provocando uma saída dos pontos de estagnação.
A relação transferencial estabelecida entre analista e analisando pressupõe um campo de vivências subjetivas em que o acolhimento é condição necessária, mas não suficiente. Trata-se de uma "pesquisação" (pesquisa + ação), pela qual a investigação resulta numa desnaturalização do já dado ao acompanharmos suas condições históricas de possibilidade. Nossa aposta é que, nessa escavação genealógica, as razões caiam por si só, gerando a desconstrução do que estava formatado, das marcas identificatórias que aprisionavam o sujeito, estreitando o campo de possíveis. O que hoje é pode ser diferente, levando a um modo singular de existência, levando à invenção de si.
A clínica, nessa perspectiva, é voltada para o processo de produção da diferença e trabalha, centralmente, com a precariedade e instabilidade de todas as identidades, inclusive a do próprio saber psicanalítico. Trata-se de uma prática subversiva que desloca e descentra.
5 O paradoxo da escuta analítica: ouvidos para não ouvir, uma escuta amorosa
Voltando ao tema central - multidão de minorias - um desafio se anuncia: como escutar as minorias como grupos identitários sem perder de vista a multidão presente em cada minoria, já que, em cada grupo identitário, há uma multidão de singularidades?
Essa questão é um paradoxo para os psicanalistas. Sabemos que a psicanálise trabalha com um a um. Como lidar com a singularidade do sujeito, sem deixar de levar em conta o grupo identitário ao qual ele pertence, com problemáticas que lhe são próprias e que o distingue no coletivo? Como escutar o coletivo/individual inerente em cada narrativa do sujeito?
A escuta analítica deve estar aberta a diferentes planos da existência e, ao mesmo tempo, é preciso ter ouvidos para não ouvir, como já dizia o psicanalista Serge Leclaire (1977).
"Ouvidos para não ouvir" é uma afirmação paradoxal. Há a advertência para o analista colocar em prática uma das regras fundamentais da psicanálise, a atenção flutuante. Ao não ficar com a atenção focada estritamente no relato do analisando, o analista é capaz de uma atenção difusa e periférica, captando a atmosfera, a entonação e as entrelinhas do discurso, a linguagem corporal, as pequenas percepções, e daí pode advir um "achado". Picasso dizia, eu não procuro, eu acho! Do mesmo modo, o analista não busca, como um detetive, o que está por trás das palavras ou o que é suposto pela teoria. Ele flutua na superfície das palavras, dos gestos e escuta com os olhos, escuta com todo o corpo (Coutinho, 2008). E deixa a teoria em reserva de uso. Daí ele é fisgado por um achado.
A intervenção do analista, igualmente flutuante, evoca os "achados". Os padrões com que o analisando se relaciona com o mundo vão sendo problematizados. Ao evocar e equivocar os sentidos congelados, estes são desconstruídos justamente ao serem identificados; do mesmo modo que novos sentidos, ainda no nascedouro, podem emergir, sentidos que estão por vir.
O analista não induz, não dirige a vida do analisando (Lacan, 1958/1998), mas o auxilia a dirigir a própria vida, a fazer escolhas menos aprisionadas a padrões fixos. O analisando revisita o que construiu ao longo da vida e começa a filtrar o que ainda lhe serve e o que está obsoleto. Ele se percebe autor de suas escolhas e de sua submissão ao outro. Ele passa a saber de si para se desconstruir, se desconhecer e se inventar, como uma obra de arte, sempre inacabada.
Nessa mesma afirmação, "ouvidos para não ouvir", pensamos, em contrapartida, em ouvidos para "não se ouvir". Isto é, o analista coloca-se à margem, deixando em "reserva de uso" suas referências teóricas e mesmo existenciais, políticas, seus preconceitos, sua realidade psíquica. Só assim ele consegue se abrir até mesmo às "pequenas percepções", como uma caixa de ressonância para escutar seu analisando em sua singularidade: como ele, o analisando, se vê neste grupo identitário, nesta família, nesse contexto?
Mas como não se escutar? Somos atravessados pelo nosso tempo, pelos nossos valores, usos e costumes, nossos preconceitos, nossa militância política, enfim, nossa realidade psíquica; como deixar tudo isso de lado para nos inclinar sobre nosso analisando a fim de escutar o referencial dele? Como nos recolher para acolher o outro, se a neutralidade é um mito? Por mais longe que seja levada a análise pessoal do analista, ele não fica vacinado contra o fato de ser afetado no encontro analítico, ao contrário. Quanto mais longe for levada sua análise pessoal, maior a liberdade subjetiva para ser afetado. O analista não é neutro; ele afeta e é afetado. Há um fogo cruzado nesta afetação mútua. Este campo de afetação é o campo transferencial. Transferência mútua. Mas esta afetação, embora condição necessária, não é suficiente para haver análise.
Lacan (1962/1992) chamou de "desejo do analista" o que nos impulsiona a fazer a análise avançar, para além da afetação inerente ao encontro, para além de outros desejos que podem estar comparecendo. Para haver análise, é preciso que um desejo fale mais alto, o desejo do analista. E, para isso, o analista "dobra as forças" sobre si, as forças inerentes à afetação mútua, se recolhendo para acolher o analisando (Coutinho, 2001; 2004). É nesse sentido que podemos afirmar que o analista está dentro e fora da cena analítica, a um só tempo, como um observador participante. O desejo do analista implica uma "transferência de trabalho", que envolve o analisando como parceiro nessa investigação delicada que é a investigação analítica.
Disse antes que o analista dobra as forças sobre si numa tensão permanente em que é afetado como sujeito e responde como analista. Mas de que modo é possível fazer valer o desejo do analista para além de outros desejos? Como é viável dobrar as forças sobre si? O que torna isso possível é o que eu entendo por uma escuta amorosa, em um sentido preciso: o analista recolhe seu narcisismo para acolher o analisando, se inclinando à diferença, ao estrangeiro de si.
Essa face do amor como dom é o oposto do amor narcísico, de dois fazer um; o amor como dom é justamente abertura à diferença; funciona como um esteio que ameniza, mas não tampona, o mal-estar. Aqui há uma construção de verdade na permanência "do dois," e não do um, isto é, uma construção a partir da diferença e não da identidade. O amor se sente atraído pela diferença, confia na diferença em vez de desconfiar dela. Não acreditar nesse amor seria um autêntico desastre subjetivo, a vida perderia muito do seu colorido. Amor visto como essa força, uma força subjetiva, um empuxo à vida e suas múltiplas singularidades.
Há uma ligação intrínseca entre o desejo do analista, a ética da psicanálise e a responsabilidade do analista, isto é, o princípio de sua ação. O analista faz um luto, é preciso renunciar e assumir que não há bem comum, não há fusão possível entre analista e analisando. O amor do analista visa ao ser desejante, portanto, separado.
Observações finais
Para tratar do tema central que conecta a noção de multidão ao conceito de minorias, escolhi abordar a clínica psicanalítica inspirada em Michel Foucault, uma clínica na resistência. Foucault teve uma relação ambivalente com a psicanálise, ora ressaltando sua importância ao dar voz ao louco silenciado no asilo, ora acusando-a de recriar o aprisionamento do louco no dispositivo analítico, entendido como dispositivo de poder (Foucault, 1999a/1984). Em outros momentos, Foucault (1967) valoriza a psicanálise, alinhando Freud com Nietzsche e Marx entre os mestres da suspeita e reconhecendo o caráter estruturalmente aberto das interpretações psicanalíticas. Entretanto, ao denunciar o mascaramento do poder, inerente à vontade de saber, Foucault tece severas críticas à psicanálise. Em um pequeno artigo intitulado Lacan, o Libertador da Psicanálise, Foucault aponta uma saída honrosa para a psicanálise (1999b). Quando trabalha a hermenêutica do sujeito e as práticas e o cuidado de si, e considera um sujeito ético e não apenas um sujeito assujeitado, ele praticamente não volta a se ocupar da psicanálise (Foucault, 1981).
As referências diretas à psicanálise presentes em sua obra muito podem fazer avançar uma reflexão crítica acerca do nosso trabalho (Birman, 2000). No entanto, não foi este o caminho que escolhi. Preferi abordar as contribuições de Foucault não referidas à psicanálise, mas que, ainda assim, abriram uma perspectiva inovadora para nós psicanalistas. Este é um dos desafios que enfrentamos. Usar outros pensadores - neste caso, sobretudo Foucault -, articulando-os com a psicanálise, que é um outro campo de saber, como ferramenta para abrir novos caminhos possíveis para o manejo da clínica psicanalítica na contemporaneidade.
Referências
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Endereço para correspondência
Angela Coutinho
E-mail: coutinhoangela@gmail.com
*Psicanalista, membro titular da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID), doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio, 1995), professora universitária por 35 anos, atualmente coordena seminários na SPID e é autora de inúmeros artigos para revistas especializadas nacionais e internacionais.
1Este artigo foi escrito com base na fala da autora no Congresso Multidão de Minorias, em agosto de 2022. A autora agradece aos professores Hudson A. R. Bonomo e a Auterives Maciel Junior a iniciativa de organização do evento, que teve mais de 1.200 inscrições, atestando, desse modo, seu sucesso; e à Cynthia Azevedo, a colaboração na revisão deste artigo.
2O presente artigo foi inspirado no pensamento amplo de Michel Foucault e algumas obras foram selecionadas para constar nas referências, ao fim do artigo, assim como alguns artigos de minha autoria a respeito da influência de Foucault.