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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022
ARTIGOS
Sobre o conceito de inconsciente: entre filosofia e psicanálise1
On the concept of the unconscious: between philosophy and psychoanalysis
Sur le concept d'inconscient: entre philosophie et psychanalyse
Bruna Soalheiro*
Escola Letra Freudiana - Brasil
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo realizar uma leitura do conceito freudiano de inconsciente, buscando inseri-lo em seu contexto histórico-epistemológico. Ao mesmo tempo, pretende-se estabelecer um diálogo entre ele e a noção de multidão de minorias, em especial a partir das ideias de inconstância e devir.
Palavras-chave: Inconsciente, multidão de minorias, devir.
ABSTRACT
In this article, we carry out a reading of the Freudian's concept of the unconscious, willing to apprehend it within its historical-epistemological context. At the same time, we propose a dialogue between the concept of the unconscious and the notion of multitude of minorities, especially considering the ideas of inconstancy and becoming.
Keywords: The unconscious, multitude of minorities, becoming.
RÉSUMÉ
Cet article vise à effectuer une lecture du concept freudien d'inconscient, en cherchant à l'insérer dans son contexte historico-épistémologique. En même temps, on se propose à établir un dialogue entre celui-ci et la notion de multitude de minorités, notamment d'origine les idées d'inconstance et de devenir.
Mots-clés: Inconscient, multitude de minorités, devenir.
Introdução
"Para a maioria daqueles que
têm cultura filosófica, é tão
inapreensível a ideia de algo
psíquico que não seja também
consciente, que lhes parece
absurda e refutável pela simples
lógica." (Freud, 2011, p. 11).
O presente artigo, escrito e apresentado por ocasião do Congresso "Multidão de Minorias", tem como objetivo dialogar - para além do tema geral do evento e da mesa intitulada "O filósofo, o psicanalista e o músico -, com algumas questões mais especificas que nele surgiram. Cito, de início, as ideias expostas pelo prof. Auterives Maciel, em sua fala de abertura, quando expôs o conceito de devir minoritário, diferenciando essa minoria (a do devir) de qualquer noção apoiada em quantidade, cujos contornos se assentam nas relações de poder através das quais se constituem. A possibilidade de fazer vigorar um devir minoritário deverá, portanto, guiar a presente reflexão, sem perder de vista, contudo, que a noção de "multidões de minorias", também exposta na mesma ocasião pelo filósofo, refere-se a uma certa reunião de singularidades, e não obedece, a priori, a nenhum modelo, nem busca se reduzir a qualquer mimese de um outro ou de um ideal.
Pretende-se tocar também, ainda que brevemente, numa questão levantada pelo prof. Cesar Migliorin e dirigida à palestrante Profª. Hélia Borges. Migliorin a questionou sobre sua escolha de falar a partir dos conceitos de "colonial/decolonial" em detrimento de usar a noção de "capitalismo" em sua comunicação. Causada por essa pergunta, pensei que seria oportuno situá-la de alguma forma aqui, apresentando a questão colonial como uma condição que precede material e logicamente do capitalismo. Material, porque viabilizou aquilo que em termos marxistas é sintetizado na ideia de "acumulação primitiva de capital". Lógica porque deixou de herança a rede simbólica que sustenta até os dias de hoje uma certa política e uma certa ideologia.
Incidem igualmente sobre assa breve reflexão alguns pontos que foram expostos e debatidos na mesa 3 - As clínicas das multidões de minorias -, em que tive a oportunidade de atuar como moderadora. Nela, a Profª. Raona Martins, o professor Eduardo Leal e a Profª. Angela Coutinho falaram sobre "fazer nada", sobre "formas de existência" e sobre a ética e o desejo na clínica psicanalítica.
Assim, a questão de que me proponho a tratar diz respeito à noção de inconsciente, tal como proposta por Freud, em 1915, e sua potência disruptiva, em relação ao contexto epistemológico de seu tempo, considerando-a em termos filosóficos, mas também em termos ético-políticos. Isso significa dizer que vou procurar sustentar que o corte operado por esse conceito freudiano pode ser lido hoje (o que é diferente de supô-lo já numa intenção de Freud naquela época) como uma espécie noção vetora ou viabilizadora para se pensar - ou quiçá se fazer vigorar - a possibilidade do devir minoritário. A ideia é que, ao se deslocar da consciência a premissa ontológica fundante e princípio individuante do ser humano, Freud rompe com todo um discurso secular anterior. Discurso esse que encaminhou - para não dizer sustentou - as práticas coloniais iniciadas na virada da modernidade. Faço aqui um pequeno salto de equivaler razão e consciência, que não é um salto qualquer, mas que não me parece despropositado, na medida em que tanto um quanto outro (razão e consciência) foram operados enquanto equivalente a um certo "logos" que distinguia a humanidade dos demais seres não falantes e hierarquizava as sociedades humanas entre si.
Assim, inicio contextualizando historicamente a elaboração do conceito de inconsciente tal qual apresentado por Sigmund Freud em O inconsciente (publicado pela primeira vez em 1915), indicando a ruptura filosófico-epistêmica por ele provocado. Na sequência, busco pensar em que medida o aprofundamento de tal ruptura possibilita o devir minoritário, uma vez que suspende a fixidez das formas de predicação, negando uma coincidência necessária entre o ente e sua essência, tal como vigorava no pensamento filosófico que fazia coincidir razão e existência.
Das condições para o surgimento do conceito: necessidade e legitimidade
Em O inconsciente, Freud dedica-se a expor este conceito, que, para ele, se impõe como um pressuposto necessário e legítimo. Necessário porque a clínica indicava a existência de atos cujas origens ou explicações estavam para além da consciência, como, por exemplo, os atos-falhos, os sonhos e outros resultados de experiências com hipnose. Legítimo porque, para o estabelecimento deste conceito, Freud não realiza qualquer desvio quanto à maneira que vinha até então procedendo, apenas dirige, ao nível da própria pessoa, os pressupostos endereçados às pessoas no geral. Em síntese, pode-se dizer que aquilo que, por analogia ou extrapolação, supõe-se estruturante no eu, e, em seguida, no outro, em mais uma volta, retorna a si, como questionamento no próprio eu. Se há no eu atos nos quais não se vê coerência com aquilo que se atribui à consciência, deve-se atribuir que uma outra consciência age no eu? Haveria, pois, uma atividade anímica para além da própria consciência? Seria isso, afinal, o inconsciente?
Nesse esforço de conceituação, Freud propõe duas rupturas bastante significativa do ponto de vista epistemológico ou, dito de outro modo, em relação ao que se compreendia até então sobre o funcionamento anímico ou psíquico. A primeira ruptura é justamente com a relação de identificação entre o anímico e o estado consciente ou a consciência. Freud afirma que estes dois conceitos não são coincidentes, ou seja, há mais no anímico do que aquilo que está revelado à consciência. A segunda ruptura se dá entre inconsciente e fisiologia. Freud dá um passo adiante em relação àquilo que já havia esboçado n'O projeto, enfatizando aqui que, considerando o inconsciente, "nenhuma concepção fisiológica, nenhum processo químico pode nos dar ideia de sua essência" (Freud, 2010, p. 77).
No entanto, a ruptura de que trataremos mais centralmente neste trabalho diz respeito à cisão entre consciência e ente singular, isto é, trata-se da crítica freudiana à noção de indivíduo enquanto uma forma de existência ao mesmo tempo indivisível e consciente. Esta questão pode parecer, em um primeiro momento, alheia à psicanálise, pois Freud ele mesmo adverte para a primazia de sua preocupação prática, ou seja, clínica, frente às teorias que ele escreve e reescreve. A própria passagem da primeira para a segunda tópica pode ilustrar este procedimento metodológico. A ideia do psicanalista de Viena é teorizar a partir da clínica e retornar a ela, e não propor uma nova teoria filosófica, ainda que ele venha a demonstrar em seus escritos posteriores que está advertido do corte que sua proposta realiza em uma certa forma de pensar da filosofia dita ocidental.2 No entanto, isso não impede a realização de um exercício de historicização de seu pensamento - e, nesse sentido, de historicização do conceito de inconsciente, conforme elaborado por Freud - considerando-o não como uma filosofia, mas como uma ruptura epistemológica que abre possibilidade para uma nova ontologia e, ao mesmo tempo, para uma nova clínica e, talvez, para outros devires...
Ressalva-se, contudo, que o exercício de leitura de Freud a partir de uma certa perspectiva histórico-epistemológica não equivale a sustentar que ele teria sido o único preocupado em produzir escritos sobre o tema. Trata-se, apenas, de ler o conceito conforme formulado por ele e, a partir daí, supor as rupturas que a teoria psicanalítica freudiana poderia ter imposto a formas de pensar a ela anteriores.3
Da importância e originalidade epistêmica da proposta freudiana
O sujeito não está errado em se identificar com sua consciência (...) mas em só conseguir, com isso, deixar escapar a topologia que, nessa identificação, zomba dele (Lacan, 2003a, p. 212).
Para Freud, a consciência seria algo, como um estado ou uma qualidade4 (ou uma instância, mas que ainda não seja assim formulada em 1915) que daria notícias sobre os "próprios estados d'alma":
que um outro ser humano tenha consciência é uma conclusão que se tira per analogiam, com base nas manifestações e nos atos que percebemos desse outro, para nos tornar compreensível o seu comportamento. (...) Nós atribuímos, a cada outro indivíduo, nossa própria constituição e também nossa consciência (...). Essa conclusão - ou identificação -foi outrora estendida, pelo Eu, aos outros seres humanos, animais, plantas, às coisas inanimadas e à totalidade do mundo, e se revelou útil enquanto a similitude com o Eu individual foi preponderante, mas tornou-se menos confiável à medida que o "outro" se distanciou do Eu (Freud, 2010, p. 78).
Em um período bastante sucinto, Freud sintetiza um longo processo histórico que culminou, ao mesmo tempo, na noção de que todo individuo seria dotado de (ou mesmo, no limite, se identificaria com a) consciência e de que todo ser inanimado seria desprovido dela:
Atualmente, nossa reflexão crítica já é insegura quanto à consciência dos animais, recusa-se a admiti-la nas plantas e deixa para o misticismo a hipótese de uma consciência do que é inanimado. Mas também onde a tendência original à identificação passou pelo exame crítico, no caso de o "outro" ser um humano próximo, a suposição de uma consciência baseia-se numa inferência, e não pode partilhar a imediata certeza de nossa própria consciência (Freud, 2010, p. 78).
Isso que Freud chama de "reflexão crítica" pode ser lido como o resultado de um longo processo de secularização da filosofia, em primeiro lugar, e do pensamento científico, na sequência. Este processo muitas vezes se confunde com a própria noção que temos de modernidade, cujas balizas iniciais e finais podem ser identificadas, respectivamente, com o Renascimento e o Iluminismo.5 Uma leitura mais superficial do texto freudiano poderia deixar de notar a cisão epistêmica aqui localizada e, consequentemente, perderia de vista a radicalidade da proposta elaborada por Freud. Para dar um pouco mais de ênfase a essa ideia, procederemos no sentido contrário, indicando duas formas "pré-modernas" de estar no mundo e de pensá-lo, as quais não apenas se opõem ao processo de secularização supradito, mas também carregam em si uma ontologia radicalmente distinta daquela que Freud faz uso aqui. Por um lado, poderíamos citar o animismo, ele mesmo nomeado por Freud no final da primeira etapa do texto. Por outro lado, podemos citar aquilo que a antropologia muitas vezes chamou de pensamento mágico.6
De forma um pouco mais esquemática, e, portanto, simplificada, poderíamos propor três momentos "epistêmicos" distintos. Um que podemos chamar de "pré-moderno", isto é, que não sofreu (ou que resistiu a) os efeitos do processo de secularização que já citamos, dito animista ou marcado pelo chamado pensamento mágico. Outro, já marcado pela modernidade, que associa, de forma intrínseca, três noções - a existência, o indivíduo e a consciência - e uma terceira, e é desta que trataremos aqui, aquela operada por Freud: o descolamento entre a noção de indivíduo e consciência. Os efeitos deste deslocamento são duplos: permitem uma determinada clínica psicanalítica (problema propriamente tratado por Freud) e determinam uma outra "ontologia" (questão tratada apenas secundariamente por Freud, mas que foi aprofundada pela leitura que Lacan operou nos textos freudianos). Estes três momentos são mais bem exemplificados pelo próprio Freud:
A suposição psicanalítica da atividade anímica inconsciente nos parece, por um lado, um desenvolvimento ulterior do animismo primitivo,7 que em tudo nos fazia ver imagens fiéis de nossa consciência, e por outro lado o prosseguimento da retificação, empreendida por Kant, de nosso modo de conceber a percepção externa. (Freud, 2010, p. 80).
Nesse parágrafo, Freud explicita o lugar que a psicanálise ocupa no desenvolvimento epistemológico do pensamento dito ocidental, considerando as primeiras formulações acerca das atividades "animadas" dos seres (o animismo) e as considerações já contemporâneas da filosofia kantiana acerca da percepção. Esta localização se dá, justamente, em função da elaboração disto que aqui ganha o nome de "atividade anímica inconsciente", termo que merece ser desmembrado para melhor análise.
A "atividade anímica" leva, antes de qualquer coisa, a uma dificuldade de tradução, já exposta numa edição bastante recentre de As pulsões e seus destinos (2019), que pode ser extrapolada para o caso da expressão unbewußten Seelentätigkeit aqui encontrada. Seelentätigkeit, que pode ser traduzido como "atividade anímica", é um substantivo composto por Seele, palavra alemã que é muito próxima do vocábulo grego Psyche e que muitas vezes é traduzida por alma: malgrado a forte conotação religiosa comumente destinada a tal vocábulo em português. Aparentemente, Freud não faz uma clara distinção entre Psyche e Seele ou entre os adjetivos psychisch e seelisch. (Freud, 2019, p. 66, nota 8)8
Uma dificuldade parecida é encontrada na tradução de uma importante obra precursora, no campo da filosofia, das faculdades do intelecto: De Anima (c. 350 a.C.), de Aristóteles. Uma tradutora deste livro, Maria Cecília Gomes dos Reis, explica, nesse contexto, que o termo "psicologia" só seria realmente cunhado no século XVI
para referir-se justamente ao conjunto amplo de temas e problemas abordados no De anima, de Aristóteles (...). O divórcio entre o estudo da vida e o estudo da alma, tal como passou a ser entendido na filosofia moderna de fato, só se deu completamente no século XVII. Na perspectiva do De Anima, a investigação da alma contempla plantas e animais, bem com os seres humanos, sem diferenciar-se claramente do que é hoje o campo da biologia (Reis, 2017, p. 16).
De Anima considera ainda questões como "o exame da alma como princípios do desejo, pensamentos e ação do homem" subsidiando uma "teoria geral do conhecimento, na medida em que considera a natureza e os princípios da intelecção" (Reis, 2017, p. 16). Assim, pode-se dizer que é em Aristóteles (384-322 a.C.) que se localizam uma das primeiras referências, para a filosofia ocidental, de considerações tanto sobre aquilo que ficará entendido como "atividade anímica" quanto sobre a unidade do ser. Por muito tempo, a "psicologia", e ntendida como uma subdivisão da Filosofia Natural, dedicou-se a estudar as implicações da alma enquanto o princípio da individuação dos seres vivos. Analogamente, se a física aristotélica regia, com suas leis, os corpos inanimados, a psicologia trataria dos princípios que regem os seres animados (Park & Kesler, 2008). Há, pois, em Aristóteles, uma correlação entre a alma, a atividade anímica (perceptiva e intelectual) e o princípio de individuação. "De fato, a 'metafísica do ser' e 'a metafísica da unidade' andam juntas e ocupam lugar de destaque nas investigações filosóficas do Estagirita em sua Metafísica" (Faitanin, 2005, pp. 75-76).9 Após o filósofo da antiguidade, tal ideia foi reafirmada e reelaborada ao longo do desenvolvimento do pensamento filosófico dito ocidental, passando por Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, pelos os pensadores neotomistas do século XVII, chegando à formulação cartesiana do cogito e as ideias iluministas acerca do ser, da percepção e da consciência. No entanto, como o objetivo aqui não é realizar uma história da metafísica, é preciso que se retorne a Freud.
Da definição do conceito: questões tópicas
Na medida em que Freud adiciona o adjetivo inconsciente à atividade anímica, ele rompe com a identificação entre alma e consciência, e, ao proceder, "no nível da pessoa", a investigação dos pensamentos alheios à consciência, fica superada a assunção de unidade entre alma, consciência e indivíduo. No lugar disso, a essa altura, Freud propõe o estado ou a condição de inconsciente: Unbewusstheit. Assim, os atos psíquicos10 abarcados por este estado ou condição são distintos quanto a sua natureza: podem ser (a) atos latentes, ou seja, contingentemente inconscientes, mas que podem se tornar conscientes ou (b) atos recalcados (verdrängten), esses sim, mais discerníveis dos conscientes. Neste ponto, Freud vê-se obrigado a enfrentar um problema semântico: como usar "consciente" e "inconsciente" para além de seus aspectos qualificadores, cujo sentido já é bastante consolidado no uso comum do termo. Como solução (parcial) ele apresenta um encaminhamento metodológico: substituir consciência por Cs (Bw) e inconsciente por Ics (Ubw) propondo assim o que ele chama de "uso sistemático", isto é, "quando então significam inclusão em determinados sistemas e posse de certos atributos" (Freud, 2010, p. 81). e o que entendemos aqui como um primeiro passo do sentido qualificador para um sentido topológico, isto é, um primeiro passo na direção de formular Cs e Ics enquanto instâncias psíquicas. Freud dedica-se então a explicar uma certa dinâmica dos atos psíquicos, explicando que sua condição será dada depois de submetido a um tipo de teste, que ele, nesse momento chama de censura (Zensur). Ele supõe, pois, que o estado original de todo ato psíquico é inconsciente. Se, sob censura, ele é recalcado (verdrängt), permanece inconsciente. Se não, passa à condição de capaz de consciência (bewußtseinsfähig). Esta condição leva Freud a incorporar em seu esquema um terceiro sistema, chamado de pré-consciente (Vorbewußte), ou Pcs. Isto, que ficará conhecido como primeira tópica, é, desde esse primeiro momento, entendido por Freud como uma importante ruptura com a psicologia, compreendida como uma ciência descritiva da consciência:
Ao admitir esses dois (ou três) sistemas psíquicos, a psicanálise distanciou-se mais um passo da psicologia descritiva da consciência, atribuindo-se uma nova colocação de problemas e um novo conteúdo. Até então ela se diferenciava da psicologia sobretudo pela concepção dinâmica dos processos anímicos; agora ela pretende considerar igualmente a topologia da psique, e indicar, acerca de um ato psíquico qualquer, no interior de qual sistema ou entre quais sistemas ele se passa (Freud, 2010, p. 82. Grifos no original).
A distinção é, antes de tudo, topológica. Portanto, é seguro afirmar que a psicanálise, desde Freud, propõe que a subjetividade seja uma questão fundamentalmente espacial, e que o entendimento da psique como uma composição de três sistemas distintos quanto à ação do recalque sobre os atos psíquicos nos obriga a pensar que a constituição daquilo que reconhecemos como "interno" e "externo" não só é dinâmica, mas também singular. Isto pode ser desdobrado em duas inferências igualmente importantes: 1. Toda realidade é psíquica11; 2. Toda realidade é dada por estrutura sendo, portanto, a realidade uma determinada distribuição subjetiva de um espaço a priori indiscernível.12 O entendimento de uma topologia dos atos anímicos, como propôs Freud, não é apenas propriamente psicanalítica desde sua conceituação teórica, nem fundamentalmente clínica, como priorizou o analista de Viena: ela é, igualmente, disruptiva quando consideramos um determinado regime de existência. Ressalta-se ainda que tal topologia não se confunde com uma localização anatômica das funções, sistemas ou mesmo dos atos psíquicos em si: "Provisoriamente, nossa topologia psíquica nada tem a ver com a anatomia; ela se refere a regiões do aparelho psíquico, onde quer que se situem no corpo, e não a locais anatômicos." (Freud, 2010, p. 83).
Como hipótese de trabalho, então, Freud supõe que os atos anímicos, em especial as representações, conscientes ou inconscientes, são transcrições de um mesmo conteúdo distintas e separadas (no sentido topológico) (Freud, 2010, p. 84). No entanto, fracassaria a tentativa de trazer à consciência um conteúdo recalcado - isto é, inconsciente - apenas pela comunicação deste conteúdo ao analisante. A natureza dessa inscrição é forçosamente diferente quanto à experimentação da representação: o registro do que foi vivenciado é distinto daquilo que pode ser ouvido, ainda que o material a que se refira essa "lembrança" e a enunciação do outro seja o mesmo.
Para o caso de sentimentos, Freud faz uma nova distinção: eles não podem ser inconscientes em si, mas podem ser percebidos, na consciência, de forma equivocada. Se as representações são investimentos de traços mnêmicos, os afetos ou sentimentos correspondem a processos de descarga que, uma vez exteriorizados13, são percebidos como sensações. Neste caso, vale dizer, há uma forma particular de atuação do recalque, cuja meta pode ser justamente a inibição do desenvolvimento do afeto, fazendo cindir seu destino e o destino de sua representação (Freud, 2010, p. 86). Os efeitos disso podem ser da ordem de um refreamento motor, ao que Freud acrescenta uma espécie de definição de estado psíquico normal: aquele em que a Cs governa a afetividade e a mobilidade (Freud, 2010, p. 87).
Apresentados os sistemas e os atos psíquicos, Freud dá continuidade à sua proposta topológica explicando que há uma fronteira entre Ics e Pcs, e esta fronteira é o recalque, isto é, a sua ação sobre as representações. Porém, além dos aspectos dinâmicos e topológicos, Freud reivindica, para a sua metapsicologia, que também os aspectos econômicos sejam considerados quando da compreensão do psiquismo e dos atos psíquicos. É neste sentido que Freud faz um esforço em explicar o processo de contrainvestimento e formação do sintoma, que trabalham para conciliar as demandas da pulsão (por definição inconscientes) e as exigências do sistema Cs, isto é, aquelas já submetidas ao recalque.
No entanto, Freud busca expor as propriedades particulares dos processos do sistema inconsciente para além da negação. Assim, ele propõe que: (a) o núcleo do Icc é formado por representantes pulsionais (Triebrepräsentanzen) que buscam descarga (ou satisfação); (b) nele não há contradição; (c) nem dimensão temporal; (d) nele, o princípio de realidade está submetido ao princípio de satisfação, e, portanto, a realidade exterior é substituída pela realidade psíquica (Freud, 2010, p. 94).14
Se acompanhamos o percurso da explicação de Freud até aqui, podemos supor que é próprio do sistema inconsciente (e exclusivo dele) esta relação de submissão da realidade externa à demanda de satisfação pulsional interna. A ressalva que pode ser feita, para evitar que aqui surja uma contradição com o que foi dito acima - a saber: 1. Toda realidade é psíquica; 2. Toda realidade é dada por estrutura sendo, portanto, a realidade uma determinada distribuição subjetiva de um espaço a priori indiscernível - é ter em mente que Freud se refere aqui à estrutura neurótica consolidada,15 na qual um determinado "fora" e um "dentro" já se constituíram a partir, justamente, dos processos de negação ou censura que ele menciona aqui e esmiuça em outros lugares de sua obra, como, por exemplo, em A negação (texto publicado pela primeira vez em 1925).
Considerações finais
Este exercício de historicização das ideias freudianas expostas em O inconsciente teve como objetivo não apenas a compreensão do conceito esmiuçado pelo psicanalista, mas, principalmente, indicar a ruptura epistêmica que ele permitiu, cujos efeitos se fizeram sentir numa clínica das neuroses (em um primeiro momento) e, e seguida, em uma possibilidade de clínica para as psicoses, em especial a partir de Jacques Lacan. Não obstante, tais efeitos fizeram-se sentir também no campo da filosofia, na medida em que Freud propõe uma ruptura com a noção de que a existência humana equivaleria a experiência de uma consciência singular.
Assim, o caminho para a formulação de um sujeito do inconsciente permite supor que seja constituinte do eu uma instância que não reconhece a realidade chamada "objetiva", nem se constitui como uma unidade integra e homogênea. Isto pode significar dizer que, em cada um, em cada caso, sua constituição subjetiva, submetida a uma determinada ação de recalque, determina, só depois, uma forma supostamente íntegra e específica de eu, a que se opõem determinados objetos ou representações alijadas, estranhadas ou alienadas de si. Em O eu e o isso, Freud propõe um novo enodamento entre as instâncias psíquicas, a chamada segunda tópica. De toda forma, é possível dizer desde já que, para Freud, o eu pode ser definido como
a ideia de uma organização coerente dos processos psíquicos na pessoa. (...) A este Eu liga-se a consciência, ele domina os acessos à motilidade, ou seja: a descarga das excitações no mundo externo; é a instância psíquica que exerce o controle sobre todos os processos parciais, que à noite dorme e ainda então pratica a censura nos sonhos (Freud, 2011, p. 14).
E ainda: "Proponho que a levemos em consideração [a intuição de Groddeck], chamando de Eu a entidade que parte do sistema Pcp e é inicialmente pcs, e de Id, segundo o uso de Groddeck, a outra parte da psique, na qual ela prossegue, e que se comporta como ics." (Freud, 2011, p. 21. Grifos no original).
Além disso, é, pois, constitutivo do sujeito, algum desconhecimento de tempo, de maneira que toda anterioridade ou posterioridade, no que concerne às dinâmicas psíquicas, são fundamentalmente lógicas. O conceito de inconsciente, portanto, conforme sustentado por Freud desde 1915, já permitiria assumir a realidade como uma determinada distribuição subjetiva de um espaço a priori indiscernível. Ele poderia, igualmente, abrir possibilidades para novas formas de regimes de existências, ao permitir que se pense, desde então, o sujeito para além do indivíduo. Tais formas renovadas de regimes de existências superariam a ontologia que atribui uma essência ao ente singular - associada a uma consciência marcada por alguma fixidez, manifesta e representada em seus atributos e predicados - e possibilitaria, pela sua negatividade, alguma diferença que se possa fazer surgir desse vazio.16
Essa noção nos importa na medida em que permite que se pense, através dela, algum devir, no sentido de um movimento ontológico não essencialista, que se direciona, incessantemente, entre o nada e a coisa, sem que um ou outro estejam, a priori ou rigidamente constituídos. Trata-se, portanto, de admitir a precariedade de toda predicação, e, por consequência, reconhecer a transitoriedade de toda e qualquer identidade.
Para concluir, no sentido de pensar uma possibilidade de devir minoritário, me ocorre recorrer ao antropólogo Viveiros de Castro. No prefácio do livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, pode-se ler: "A alma e seus avatares leigos modernos, a 'cultura', a 'ciência' e a 'tecnologia', não nos isentam nem nos ausentam desse comprometimento não desacoplável com o mundo, até porque o mundo, segundo os yanomami, é um plenum anímico." (Viveiros de Castro, 2015, pp. 13-14. Grifo no original.)
Como explicitado na primeira parte dessa comunicação, a alma é um princípio que concorre na individuação dos seres animados, segundo a metafísica ocidental, desde Aristóteles, passando por suas atualizações tomistas e neotomistas que marcaram todo o período moderno. Pois bem, esse princípio de individuação teria, segundo o antropólogo, correspondências em "instituições" contemporâneas, cujas finalidades não nos eximem da necessária interligação que temos com o mundo. Esse mundo, que fique claro, entendido, justamente, como essa alma contínua (plenum anímico), da qual abrimos mão, quando renunciamos a outras ontologias não ocidentais. Ao sucumbirmos ao processo civilizador, ao pensamento colonial, privamo-nos de todo um mundo, de toda uma forma de pensar a existência.
Assim, a ação do processo civilizador, em seu aspecto colonial - condição de existência do capitalismo como antecipação lógica e ao "liberar" o mundo das formas supostamente retrógradas de pensar a existência - estabelece um regime de privação ontológica, uma condenação do indivíduo ao mesmo. Quando se referia aos Tupinambás, em O mármore e a murta, Viveiros de Castro também afirma que "A inconstância da alma selvagem, em seu momento de abertura, é a expressão de um modo de ser onde 'é a troca, não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado." (Viveiros de Castro, 2020, pp. 178-179.)
E continua:
A religião tupinambá, radicada no complexo do exocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius constituía-se na relação com o outro, onde a incorporação do outro dependia de um sair de si - o exterior estava em processo constante de interiorização, e o interior não era mais que o movimento para fora. Essa topologia não conhecia a totalidade. (...) O que estou querendo dizer é que a filosofia tupinambá afirmava uma incompletude ontológica essencial: incompletude da socialidade e, em geral, da humanidade. Tratava-se, em suma, de uma ordem onde o interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinados a exterioridade e à diferença, onde o devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. (...) A murta tem razões que o mármore desconhece." (Viveiros de Castro, 2020, p. 190.)
A inconstância, suposto mal de que foram acusados os indígenas por alguns missionários que buscavam sua conversão, é outro nome para a diferença e para a alteridade: é a diferença interna e constitutiva ao sujeito, é a própria resistência frente ao processo civilizador, ao projeto colonializante.
A angústia do "homem branco" frente à inconstância (e ao devir) é o indício, justamente, do choque de seu regime de existência com a possibilidade de ser atravessado pelo outro. A cisão, pois, entre consciência e existência, entre ser e fixidez, pode permitir que façamos uma determinada leitura d'O inconsciente que nos permita estarmos, talvez, mais abertos às possibilidades dos devires minoritários, simplesmente por estarmos advertidos da possibilidade de deixar ressoar em nós a diferença que habita em cada um.
Referências
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Endereço para correspondência
Bruna Soalheiro
E-mail: brunasoalheiro@gmail.com
*Psicanalista e Historiadora. É participante da Escola Letra Freudiana desde 2018. Tem duas especializações em psicanálise: "Especialização em teoria psicanalítica" e "Especialização em prática clínica psicanalítica institucional", ambas no Centro de Ensino, Pesquisa e Clínica em Psicanálise (CEPCOP) da Universidade Santa Úrsula. Possui doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2014), obtido em regime de cotutela com o Centre d'Études de l'Inde et de l'Asie du Sud (CEIAS/EHESS-CNRS, França, 2014). Foi bolsista de pós-doutorado CAPES/PNPD junto ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autora do livro A viagem da cruz ao teto do mundo que, recentemente, recebeu o prêmio internacional ICAS 2021. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1369-9477.
1A autora gostaria de agradecer ao Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em especial ao Programa de pós-graduação em História Social e ao prof. Dr. Cláudio Pinheiro por terem acolhido a pesquisa que originou este artigo; aos professores Tatiana Porto e Hudson Bonomo cuja interlocução foi fundamental para a elaboração deste texto. Agradeço ainda ao INCT Proprietas e a CAPES pelo financiamento inicial do projeto que deu origem a esta reflexão.
2Daí a pertinência da citação que abre o presente artigo, e que aqui retomo: "Para a maioria daqueles que têm cultura filosófica, é tão inapreensível a ideia de algo psíquico que não seja também consciente, que lhes parece absurda e refutável pela simples lógica." (Freud, 2011, p. 11).
3Apenas para citar um exemplo, o filósofo Nietzsche, em Além do bem e do mal, de 1886, já tinha feito uso do termo. Para um comentário sobre o inconsciente segundo este filósofo (Lisboa, 2014).
4Alguns anos mais tarde, em O eu e o isso (publicado pela primeira vez em 1923), Freud afirmará que "a psicanálise não pode pôr a essência do psíquico na consciência, mas é obrigada a ver a consciência como uma qualidade do psíquico, que pode juntar-se a outras qualidades ou estar ausente." (Freud, 2011, p. 11).
5Para o antropólogo italiano Ernesto de Martino, a chamada civilização moderna teria nascido, justamente, da superação do pensamento mágico pelo pensamento racional. Do ponto de vista da psicanálise (e não do discurso médico, por exemplo) antes de supor, simplesmente, um valor positivo ao segundo frente a um valor retrógrado do primeiro, poderia se pensar o pensamento mágico enquanto uma resistência ou sintoma (isto é, uma proteção do eu) frente às novidades trazidas pela modernidade e suas formas disruptivas de trabalho, propriedade e sociabilidade. Diz de Martino: "L'alternativa fra 'magia' e 'razionalità' è uno dei grandi temo da cui è nata la civiltà moderna. Questa alternativa há il suo prologo in alcuni motivi del pensiero greco e dela predicazione evangélica, ma si costituice come centro drammatico della civiltà moderna con il passagio dalla magia demonológica ala magia naturale del Rinascimento, com la polemica protestante contro ritualismo cattolico, com la fondazine dele scienze della natura e dei loro metodi, com l'illuminismo e la sua fede nella ragione umana reformatrice, com le varie correnti di pensiero che si legano ala scoperta della dialettica e della ragione storica." (De Martin, 2019a, p. 7).
6Talvez a melhor maneira de nomear seja regime arcaico de existência, conforme explicitado por Ernesto De Martini: " Tuttora in Lucania un regime arcaico di esistenza impegna ancora larghi strati sociali, malgrado la civilità moderna. E certamente la precarietà dei beni elementar dela vita, l'incertezza dele prospecttive concernenti il futuro, la pressione eserciata sugli individui de parte di forze naturali e sociali non controllabili, la carenza di forme di assistenza sociale, l'asperezza dela fatica nel quadro di uma economia agrícola arretrata, l'angusta memoria di comportamenti razionali efficaci com cui fronteggiare realisticamente i momenti critici dell'aesistenza constituiscono altrettante condizioni che favoriscono il manternersi delle pratiche magiche." (De Martin, 2019a, p. 89). O pensamento mágico suporia aquilo que se procurará definir como um indivíduo permeável, isto é, cuja presença ou existência "o mundo pode engolir e anular". (De Martino, 2019b, p. 75, tradução livre). Ao contrário, o regime de existência moderno supõe um indivíduo impermeável, opaco e estranhado do meio externo, cuja existência é garantida simultaneamente pela consciência (ou pelo "eu penso") e pela diferenciação, alienação ou estranhamento simbólico-imaginário de si em relação ao mundo externo ou dos objetos.
7Podemos supor aqui que Freud se refere às considerações feitas, por exemplo, por Edward Burnett Tylor em Primitive culture. Esta obra, publicada pela primeira vez em 1871, consta do catálogo da biblioteca de Freud, sob o número 3477, na seguinte edição: Tylor, Edward [Burnett]: Primitive culture. Research into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. (4th rev. ed.). London: John Murray, 1903, 2 v. Tylor é considerado por muitos o fundador da antropologia cultural e definiu, nesta obra, o conceito de animismo, que desde então pode ser entendido como "a crença em 'seres espirituais' (...) enquanto conotação essencial ou, até mesmo, a denominação (cultura animística) do mais primitivo estágio de evolução cultural." (Agnolin, 2013, p. 37). O catálogo indica ainda que o exemplar de Freud continha marcações nas páginas 108 e 109 do segundo volume. Ao consultar um outro exemplar da mesma edição daquele que supostamente teria sido lido pelo psicanalista, percebe-se que é justamente na página 108 que se inicia o capítulo XIV, intitulado "Animism". É curioso ainda notar que, apesar do inegável interesse do psicanalista no tema, não constam do mesmo catálogo obras como La prohibition de l'incest et ses origines (1897) ou Les Formes élémentaires de la vie religieuse (1912), de Émile Durkheim; nem Lectures on the Science of Language (1866), publicação na qual Max Muller se dedica a examinar o duplo problema da linguagem e da mitologia, "definindo essa última como uma característica 'doença da linguagem' pela qual o símbolo passa a ser simbolizado. (...) A mitologia estaria para a linguagem como a doença para a sanidade." (Agnolin, 2013, p. 29, grifos no original) Cf: The Freud Museum. (2004) Freud's Library: a comprehensive catalogue. Compiled and edited by J. Keith Davies and Gerhard Fichtner. Londres.
8Tomás de Aquino, em seu comentário sobre De Anima de Aristóteles, propõe uma distinção entre alma e espírito e, para isso, parte do desejo, conforme abordado por Agostinho de Hipona: "'a carne tem desejos contrários ao espírito' [caro concupiscit adversus spiritrum] (...) pois o espírito [spiritus] é denominado a parte superior da alma [anima], pela qual o homem excede aos animais (Aquino, 2012, Q. II, p. 71). Nesse sentido, o homem, enquanto animal, é composto por anima, assim como os demais animais, mas os excede em espírito, recaindo, desta forma, o acento religioso à noção de spiritus. É oportuno indicar que o exercício a que se dedica Aquino é, justamente, atualizar a filosofia "pagã" aristotélica ao pensamento cristão, de forma que aqui se opera uma adição agostiniana a uma noção do filósofo grego, cuja síntese, aí sim, será propriamente tomística, e, portanto, teológica. O mesmo, evidentemente, não se pode dizer do conceito de alma (anima) em Aristóteles.
9Outros autores da antiguidade e do medievo poderiam igualmente ser citados, como Agostinho de Hipona (em especial De Trinitate, X, 4.6) e os comentário de Tomás de Aquino acerca dos escritos de Aristóteles.
10A noção própria de ato psíquico é, ela mesma, bastante interessante, e frontalmente oposta à ideia do ato moral humano como ação da vontade deliberada, tema caro a filosofia moral desde pelo menos Tomas de Aquino. Sigmund Freud dá alguns exemplos desses atos: a representação (Vorstellung), o sentimento (Empfindungen/Gefühlen) e os afetos (Affekten). Valeria a pena ainda citar Lacan: "Portanto, não admira que, o ato, na medida em que só existe por ser significante, revele-se apto a sustentar o inconsciente: o fato de ser ato falho que assim se revela bem-sucedido é apenas o corolário disso, e é simplesmente curioso que tenha disso preciso descobri-lo para que o estatuto do ato fosse enfim firmemente distinguido do estatuto do fazer." (Lacan, 2003b, p. 355).
11"La réalité est précaire. Et c'est justement dans la mesure où son accès est si précaire que les commandements qui en tracent la voie sont tyranniques." (Lacan, 1986, p. 40; Lacan, 1998, p. 42).
12Uma outra forma de pensar esse problema, e que em nada se opõe ao que é dito aqui até então, pode ser encontrada no seminário 11 de Lacan quando ele diz: "Que haja objetos desde o tempo mais precoce da fase neonatal é o de que não há a menor dúvida. Autoerotisch não pode absolutamente ter o sentido de desinteresse em relação a eles. Se vocês lerem Freud nesse texto, vocês verão que o segundo tempo, o tempo econômico, consiste justamente nisto, que o segundo Ich - o segundo de direito, o segundo em um tempo lógico - e o Lust-Ich que ele diz purifiziert. Lust-Ich purificado, que se instaura no campo exterior à calota na qual eu designo o primeiro Real-Ich da explicação de Freud. O autoerotisch consiste nisto - e o próprio Freud o sublinha - que não haveria surgimento dos objetos se não houvesse objetos bons para mim. Ele e o critério do surgimento e da repartição dos objetos. Aqui se constitui então o Lust-Ich, e, também, o campo do Unlust, do objeto como resto, como estranho. O objeto bom de conhecer, e por isso mesmo, e aquele que se define no campo do Unlust, ao passo que os objetos do campo do Lust-Ich são amáveis. O hassen, com seu laco profundo com o conhecimento, e o outro campo." (Lacan, 1985, p. 181). Na edição da Editora Seuil (1973), esse mesmo trecho se encontra à página 174.
13Fica posta aqui uma dúvida: supondo o sistema psíquico em si, divido nos sistemas Cs, Ics e Pcs, a que se refere a "exteriorização" da descarga? Supõe-se que se refira tanto ao corpo (como externo, ainda que contíguo) ao aparelho psíquico e, igualmente, ao meio externo ao corpo.
14Vale dizer que estamos ainda em 1915 e, portanto, Freud ainda não havia formulado, ou não estava convencido, do conceito de pulsão de morte.
15"Nós descrevemos a situação tal como se mostra no ser humano adulto, no qual o sistema Pcs, a rigor, funciona apenas como estágio preliminar da organização mais elevada. O conteúdo e as relações que têm esse sistema durante o desenvolvimento individual, e a significação que lhe cabe nos animais, não devem ser inferidos da nossa descrição, mas sim pesquisados independentemente." (Freud, 2010, p. 95). A teorização genealógica do processo ficará mais explicitamente desenvolvida em outros escritos posteriores, como por exemplo, nessa passagem de O eu e o isso: "Bem no início, na primitiva fase oral do indivíduo, investimento objetal e identificação provavelmente não se distinguem um do outro. Só podemos supor que mais tarde os investimentos objetais procedam do Id, que sente como necessidades os impulsos eróticos. O Eu, inicialmente ainda frágil, toma conhecimento dos investimentos objetais, aprova-os ou procura afastá-los mediante o processo da repressão (Freud, 2011, p. 26). O psicanalista retomará ainda esse tema nos capítulos iniciais de Mal-estar na cultura (publicado pela primeira vez em 1930).
16É interessante notar ainda que nessa tópica não está formulada a instância na qual as demandas "externas" são introjetadas - o super eu - o que talvez possa nos informar da dificuldade de se elaborar um modelo dos atos psíquicos que reconheça a existência do inconsciente e, ao mesmo tempo, possa explicar a relação entre o recalque (subjetivo) e as exigências e interdições vindas da cultura. Se esta fosse uma acomodação de explicação óbvia e intuitiva, a chamada segunda tópica talvez pudesse ter prescindido da primeira. A incidência da Lei no sujeito demandaria mais uma volta da teoria freudiana, e isto merece ser tratado em outra ocasião.