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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022
ARTIGOS
"Eu quero uma psicóloga preta" - prática clínica, racialização e identificações no contemporâneo
"I want a black psychologist" - clinical practice, racialization, and identifications in the contemporary
"Quiero una psicóloga negra" - práctica clínica, racialización e identificaciones en la contemporánea
Tainá Valente Amaro*; Amana Rocha MattosI**
IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil
RESUMO
Neste artigo, analisamos a relação entre psicólogas pretas e pacientes pretas, considerando questões como a representatividade negra no campo da clínica, o racismo estrutural na formação e campo profissional e as identificações entre pacientes e profissionais psi, pautando a potência da coletividade preta na psicologia. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com seis psicólogas clínicas da cidade do Rio de Janeiro. Suas falas foram analisadas a partir do referencial feminista interseccional e dos estudos de relações raciais. A análise das entrevistas aponta o aumento da procura, por parte de pessoas pretas, por psicólogas pretas, principalmente por não sentirem acolhimento e escuta qualificada de questões relacionadas ao racismo em seus atendimentos com profissionais brancos.
Palavras-chave: Psicólogas Pretas, Interseccionalidade, Raça, Subjetivação, Clínica.
ABSTRACT
In this article, we analyse the relationship between Black psychologists and Black patients, considering issues such as black representation in the clinical field, structural racism in training and professional field and the identifications between patients and psychologists, focusing on the power of black collectivity in psychology. To this end, semi-structured interviews were conducted with six female clinical psychologists from the city of Rio de Janeiro. Their speeches were analysed based on intersectional feminist and race studies. The analysis of the interviews points out the increase in demand, by Black people, for Black psychologists, mainly because they do not feel welcome and do not find qualified listening to issues related to racism in their treatments with white professionals.
Keywords: Black Psychologists, Intersectionality, Race, Subjectivation, Clinic.
RESUMEN
En este artículo, analizamos la relación entre los psicólogos negros y los pacientes negros, considerando cuestiones como la representación negra en el campo clínico, el racismo estructural en la formación y en el campo profesional y las identificaciones entre pacientes y profesionales psi, centrándonos en el poder de la colectividad negra en la psicología. Para ello, se realizaron entrevistas semiestructuradas a seis psicólogos clínicos de la ciudad de Río de Janeiro. Sus discursos fueron analizados desde el referencial feminista interseccional y los estudios de relaciones raciales. El análisis de las entrevistas señala el aumento de la demanda, por parte de las personas negras, de psicólogos negros, principalmente porque no se sienten bienvenidos y cualificados al escuchar cuestiones relacionadas con el racismo en sus citas con profesionales blancos.
Palabras clave: Psicólogos negros, Interseccionalidad, Raza, Subjetivación, Clínica.
Introdução
Neste artigo1, analisamos a relação entre psicólogas pretas e pacientes pretas2, considerando questões como a representatividade negra no campo da clínica, o racismo estrutural na formação e campo profissional e as identificações entre pacientes e profissionais psi, pautando a potência da coletividade e a busca pelo aquilombamento na psicologia. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com seis psicólogas clínicas da cidade do Rio de Janeiro. Suas falas foram analisadas a partir do referencial feminista interseccional e dos estudos de relações raciais.
É nítida a escassez de pesquisas cujas participantes sejam psicólogas pretas que questionem a raça/cor da profissão e sua posição no enfrentamento ao racismo. Isso não necessariamente significa que esta discussão não esteja sendo feita por pessoas pretas mas, como afirma Grada Kilomba (2019, p. 51), "o fato é que nossas vozes, graças ao sistema racista, têm sido sistematicamente desqualificadas, consideradas conhecimento inválido, ou então representados por pessoas brancas que, ironicamente, tornam-se 'especialistas' em nossa cultura, ou até mesmo em nós.".
A escassez de estudos dessa natureza sinaliza a omissão conveniente no campo da psicologia em relação às temáticas de raça e racismo, assim como o apagamento e desqualificação de estudos feitos por e com pessoas pretas que não constam nas bases de produção acadêmica devido ao racismo estrutural. Como destaca Bell Hooks, o processo de apagamento e invisibilização de intelectuais pretas "em função do racismo do sexismo e da exploração de classe institucionalizados é um reflexo da realidade de que grande número de negras não escolhem o trabalho intelectual como sua vocação." (1995, p. 467).
Nos acompanhará na discussão das falas das entrevistadas a pergunta: como as interpelações dos movimentos sociais e de minorias políticas contribuem para pensarmos a escuta clínica? Essas interpelações, sabemos, têm diferentes enunciações, desde apontar uma posição refratária de psicólogas/os às pautas dos movimentos sociais, até problematizar de que maneira a teoria que se produz no campo psi revela visões de mundo e posições políticas de um determinado perfil hegemônico na área (branco, privilegiado economicamente, heterossexual e cisgênero).
A (não) marcação racial na prática profissional da psicologia
No ano de 2017, o quesito raça/cor passou a ser inserido no cadastro de psicólogos e psicólogas no Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro - CRP/RJ, como reconhecimento da importância da inserção desse quesito para possibilitar intervenções, identificar os pontos críticos e evidenciar as desigualdades raciais. Conforme o documento de referências técnicas para a atuação de psicólogos nas relações raciais:
é crucial, por exemplo, que o quesito cor esteja presente nos formulários, fichas cadastrais das(os) usuárias(os), de modo a poder visualizar o perfil da população atendida, bem como a forma com que as ações alcançam os diferentes grupos raciais. Tal como a variável renda, sexo e idade, a raça/cor é também de grande relevância ao conhecimento do perfil da(o) usuária(o) atendida(o) e suas especificidades, e é elemento essencial ao reconhecimento das desigualdades. (Conselho Federal de Psicologia et al., 2017, p. 116).
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) reconhece que é comum que essa informação não seja considerada no preenchimento do cadastro dos usuários, o que pode apontar questões relativas tanto às dificuldades de autodeclaração dos usuários quanto às informações que o profissional considera relevante e se sente preparado para recolher. O CFP (2017) destaca a necessidade de trabalhar as relações raciais com as equipes profissionais, para que elas tenham ciência quanto à importância do quesito cor/raça, bem como das questões que faz emergir, como a verificação de desigualdades históricas, além da possibilidade do cruzamento do quesito cor/raça com outros dados, tais como gênero, idade e escolaridade, considerando o aumento do acesso ao serviço e melhoria dos resultados. Com isso, questões que permaneceriam invisibilizadas caso a cor/raça não fosse levada em consideração podem se manifestar.
Mesmo com o reconhecimento da relevância e de todos os desafios enfrentados para o preenchimento do quesito cor/raça, o CFP não possui dados sistematizados em relação aos profissionais cadastrados. No que se refere aos Conselhos Regionais, cada conselho passou a incluir e analisar a composição racial da categoria de forma própria, principalmente através de comissões e Grupos de Trabalhos específicos dos conselhos voltados às relações raciais. No CRP-RJ, mesmo havendo a informação cor/raça, ainda não há a análise desses dados.
É notável que, mesmo de forma tímida, a relevância da inclusão do quesito cor/raça em documentos e cadastros tem sido considerada na psicologia, porém ainda se restringindo aos usuários/clientes dos serviços. A discussão do perfil racial parece ser, na maioria das vezes, direcionada aos pacientes, os "outros". Mas quais as implicações de pensarmos o perfil racial e os efeitos da raça de profissionais psi em suas práticas? Neste trabalho, partimos da escuta de psicólogas pretas falando sobre suas estratégias de (re)existências em suas práticas profissionais, na construção de uma discussão que não reproduza o que Guerreiro Ramos (1995, p. 191) chamou de "negro como tema" nas pesquisas, quando pessoas negras são tomadas como objeto de estudo, mas sem terem o protagonismo na construção do conhecimento.
Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro tem sido, entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados "antropólogos" e "sociólogos" ponto como vida ou realidade efetiva, o negro vem assumindo seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe tem permitido as condições particulares da sociedade brasileira. Uma coisa é o negro- tema; outra, o negro vida. (Ramos, 1995, p. 115).
Interessa-nos acompanhar os modos de vida, de existir e de produção das subjetividades das entrevistadas, por meio da escuta de suas experiências. Entendemos que, apesar das diversas tentativas de desumanização e coisificação de pessoas negras, seus movimentos de construção de outras formas de ser e estar no mundo devem ser tomados como importantes referências antirracistas. Merece destaque, ainda, que a presença preta tanto na psicologia quanto nas redes e coletivos psis é principalmente de mulheres pretas.
Interseccionalidades e (re)existências nos movimentos de psicólogas pretas
Nos últimos anos, percebemos o interesse crescente de pesquisas acadêmicas sobre o movimento de mulheres, assim como a divulgação de ideias, reflexões e experiências sobre o movimento de mulheres em diferentes mídias. Quando esse interesse é voltado especificamente para a articulação política das mulheres pretas, geralmente, está relacionado ao protagonismo que essas mulheres exercem nos diferentes aspectos da vida social (Figueiredo, 2018).
Werneck (2010) aposta na restituição do papel de mulheres pretas como elo importante na construção da diáspora brasileira. A autora também pensa a resistência de pessoas pretas como um imperativo de sobrevivência, pois as formas organizativas de mulheres pretas tiveram um importante papel nas ações de resistência à escravização no Brasil. Nesse sentido, (re)existir para pessoas pretas possui o sentido de estar sempre atualizando e reinventando a própria existência diante da lógica colonial (Alves & Amaral, 2018).
Ana Lúcia Souza expõe em sua pesquisa as formas de (re)existência de pessoas do movimento Hip Hop e utiliza o termo Letramento de Reexistência, que, para ela, é:
uma reinvenção de práticas que os ativistas realizam, reportando-se às matrizes e aos rastros de uma história ainda pouco contada, nos quais os usos da linguagem comportam uma história de disputa pela educação escolarizada ou não. Para os rappers, a educação e a posse da palavra são marcadas pelo esforço de reconhecimento de si, desafiando, de diferentes maneiras e em diferentes formatos, a sujeição oficialmente imposta, ainda materializada no racismo, nos preconceitos e discriminações. (Souza, 2011, p. 33)
A arte sempre foi constitutiva nas formas de resistências do povo preto, seja através do samba, rap, jazz, blues, ou do grafitti. Diante de diversas formas de desumanização, o rap produz humanização quando diz para o menino preto que ele pode chorar e para menina preta que ela pode sonhar. Uma geração educada pelo rap hoje o utiliza como instrumento de emancipação.
Souza (2011) aposta na singularidade das micro resistências cotidianas, que não são significadas apenas no seu conteúdo, mas na linguagem, na fala, nos gestos, nas roupas, nas formas de dizer, o que remete tanto à natureza dialógica da linguagem como também às proposições dos estudos culturais que revelam "que as identidades sociais estão sempre em construção, se dão de forma tensa e contraditória, própria de situações em que se está em disputas por lugares socialmente legitimados" (p. 33).
Ao falarmos sobre resistências, diante de tanta opressão sofrida, podemos incorrer no erro de romantizar as opressões. Neste trabalho, buscamos reconhecer as relações complexas entre a opressão e o que ela pode suscitar no oprimido, inclusive em suas diversas reações, para pensar as práticas clínicas racializadas. "Estar à margem é tanto estar num local de repressão quanto local de resistência, ambos os locais estão sempre presentes porque onde há opressão, há resistência. Em outras palavras, a opressão forma condições de existência." (Kilomba, 2019, p. 68-69).
Com o propósito de compreender as vivências de mulheres pretas, a interseccionalidade caracteriza-se como um conceito/ação chave, que busca analisar a forma pela qual racismo, patriarcalismo e opressão de classe criam desigualdades que estruturam as relações sociais. A interseccionalidade pode ser entendida como a interação dinâmica entre dois ou mais eixos de subordinação (Crenshaw, 2002; Collins & Bilge, 2021). Nesse sentido, interseccionalidade constitui-se em uma ferramenta teórica-conceitual fundamental para ativistas e teóricas comprometidas com análises que desvelem os processos de interação entre relações de poder e marcadores sociais da diferença em contextos individuais, práticas coletivas e arranjos culturais e institucionais (Rodrigues, 2013).
Os processos coloniais e imperiais que escravizaram, desumanizaram e exterminam material e epistemologicamente mulheres pretas estão na base da formulação das interseccionalidades. Com base no pensamento de intelectuais pretas, a contribuição das experiências pessoais corrobora para o desenvolvimento das teorias e práticas. E assim, historicamente, a perspectiva em primeira pessoa é fundamental para a construção de novas epistemologias, novas histórias. A epistemologia, no entendimento de Patrícia Hill Collins (2019), indica como as relações de poder determinam em quem você acredita e por quê.
Como discorre Collins (2019, p. 408), "muitas de nós, mulheres pretas, somos vistas como testemunhas não confiáveis da nossa própria experiência. Assim, acadêmicas pretas que optam por acreditar em outras mulheres pretas podem ser vistas como suspeitas". Diversas são as acusações em relação à produção de conhecimentos por pesquisadoras e intelectuais pretas. Janaina Damaceno Gomes (2013) resgata as acusações de bruxaria feitas às mulheres nas ciências sociais, especialmente à socióloga e psicanalista Virgínia Bicudo, que foi chamada publicamente de charlatã. A autora relaciona as acusações de bruxaria com as denúncias de "militância" feitas por docentes contra estudantes negros:
Contra estudantes negros, a acusação de bruxaria mais recorrente entre nós é a de militante! Sempre haverá um professor em alguma banca com o dedo em riste para acusar: "Bruxo!", "Militante!". Dá no mesmo. É um jeito delicado de dizer que não fazemos ciência, de que não nos distanciamos de nossos objetos! "Bruxa!" (Gomes, 2013, p. 60).
Mudam o tempo e o contexto e as acusações se reformulam, mas permanecem, contra aquelas que estão em posições que desafiam a manutenção masculina, branca e burguesa do saber-poder. Sabemos que o problema não está somente nas metodologias, teorizações ou práticas de pesquisas, tampouco em haver ou não engajamento em movimentos sociais. Está na cor, em ser mulher preta, cotista, está na não correspondência às normas sociais de acadêmicas, pesquisadoras, psicanalistas, psicólogas, médicas, professoras, advogadas, e/ou qualquer profissão/ocupação que não seja dedicada exclusivamente a servir à branquitude.
Matilde Ribeiro (1995) faz um chamado a todas as mulheres para a construção de uma outra história. Ela chama a atenção para que se perceba a forma secundarizada com que o caráter das opressões que incidem sobre mulheres pretas e suas organizações foi tratado pelos movimentos negros e feministas. A autora destaca a diferença das experiências e reivindicações de feministas brancas para feministas pretas, pois "falava-se na necessidade de a mulher pensar o próprio prazer, conhecer o corpo, mas reservava-se à mulher pobre preta, em sua maioria, apenas o direito de pensar na reivindicação da bica d'água" (Ribeiro, 1995, p. 448). Diante de todas as desigualdades sociais que o racismo coloca para as pessoas pretas, a luta por subsídios materiais é necessária e digna. Porém, diversas violências são reproduzidas quando as reivindicações de pessoas pretas e pobres são limitadas a coisas materiais.
Mesmo nos movimentos feministas a mulher preta e pobre é vista através de estereótipos, e seus sonhos não são considerados. A mulher preta não pode pensar para além da sua subsistência. Somadas aos estereótipos, todas as desigualdades a que a população preta está submetida, no imaginário social, ainda não se espera que a mulher preta esteja ou planeje estar presente em profissões elitizadas e brancas, como a psicologia. O processo de desumanização na Psicologia apresenta-se com a negação da relevância de pessoas pretas na sua construção, ou no branqueamento daqueles/as em que a participação para a consolidação desta ciência e profissão foi inegável. A seguir, analisamos como esse contexto e essas questões foram problematizados pelas entrevistadas, e de que forma pensam o lugar do debate racial em suas clínicas, a presença do racismo no exercício da profissão e como percebem a demanda por profissionais psi pretas.
Metodologia
A presente pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa XXXXXX com seres humanos e aprovada em 20 de dezembro de 2019 sob o parecer número: XXXX. Todas as atuações relacionadas à pesquisa consideram o Código de Ética Profissional do Psicólogo; a Resolução do CFP Nº 018/2002; e o documento "Relações Raciais: Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)" do CFP (2017) para a análise dos dados coletados.
Inicialmente, foi feito um mapeamento de movimentos de psicólogas/os pretas/os atuantes no Rio de Janeiro, principalmente em contato e indicação de outras psicólogas, brancas e pretas e também na realização de busca nas redes sociais. A partir desta busca, foi feito o contato com uma representante do Núcleo da Articulação Nacional de Psicólogas/as Pretas/os e Pesquisadoras/es (ANPSINEP), e a partir daí a primeira autora foi incluída nos grupos do núcleo e do GT de diversidade do CRP-RJ, participando de atividades em que encontrou outras psicólogas pretas participantes de coletivos e atuantes no Rio de Janeiro e contatou as entrevistadas.
Participaram do estudo seis psicólogas autodeclaradas pretas, atuantes em movimentos de psicólogas antirracistas da cidade do Rio de Janeiro e Região Metropolitana. As entrevistas foram feitas a partir da disponibilidade das psicólogas. As entrevistas tiveram duração média de uma hora e ocorreram no segundo semestre do ano de 2020. Foram realizadas online, em função da pandemia de Covid-19, gravadas e transcritas3. Seguiram um roteiro semiestruturado que indagava sobre as trajetórias pessoal e de formação da entrevistada, sua percepção sobre a psicologia e as relações raciais, sua atuação no coletivo, sua construção enquanto mulher preta psicóloga e sua visão sobre a participação das mulheres pretas nos movimentos sociais.
Neste artigo, analisamos as respostas das entrevistadas que foram reunidas no eixo temático intitulado "Eu quero uma psicóloga preta" - Relação paciente e Psicóloga preta e a potência da coletividade e a busca pelo aquilombamento na Psicologia. A fundamentação teórica da pesquisa é construída a partir de intelectuais pretas e teorias interseccionais, que consideram as relações de raça, classe, gênero e sexualidade. As falas foram trazidas de forma mais fluída possível, com o objetivo de respeitar o que foi dito e o movimento de construção das entrevistadas. Entendemos, ainda, que cada entrevistada também é uma intelectual e suas falas dizem sobre suas trajetórias e constroem teorias e práticas em Psicologia.
A busca de pacientes pretas/os por psicólogas pretas
A procura por psicólogas pretas tem aumentado nos últimos anos e a busca por essa minoria dentro da profissão tem gerado algumas inquietações na psicologia. Essa demanda tem sido evidenciada nas redes sociais, em grupos de indicação e busca de serviços, também pela mídia na realização de matérias e mapeamento de profissionais.
O que tem feito pacientes buscarem profissionais com características específicas? Quais os efeitos da identificação/correspondência racial nas relações entre psicólogas e pacientes pretas? Tentamos compreender essas questões e como elas aparecem para as psicólogas entrevistadas, entendendo que é um assunto incipiente na psicologia, mas que tem encontrado algumas resistências, principalmente porque envolve a atuação na área clínica, área que envolve muitas idealizações sobre status, prestígio, remuneração e reconhecimento profissional.
Todas as psicólogas participantes da pesquisa já atuaram na área clínica, e apenas uma não está mais trabalhando na área. Na Tabela 1 são apresentadas algumas informações sobre a atuação e ocupação das entrevistadas.
Tabela 1 - Atuação/ocupação
Nome | Profissão/ocupação | Área de atuação: | Linha teórica |
Barbara | Psicóloga e estudante de mestrado | Clínica | Gestalt |
Cecilia | Psicóloga | Clínica | Transdisciplinar |
Carolina | Psicóloga | Clínica | Junguiana |
Liziane | Psicóloga e professora | Clínica | Transdisciplinar |
Luísa | Psicóloga e estudante de doutorado | não está atuando | não possui |
Helena | Psicóloga, estudante de doutorado e professora aposentada | Clínica | Reichiana |
Fonte: As autoras.
A psicologia desconsiderou por muito tempo as relações raciais e não tem pensado como as diferenças raciais e culturais se expressam na relação terapeuta-paciente, pois a maioria dos psicólogos e pesquisadores são brancos e não se entendem como racializados, "o que colabora para reificar a ideia de que quem tem raça é o outro e para manter a branquitude como identidade racial normativa" (Schucman, 2014, p. 84). S omos formadas para sermos profissionais neutras com habilidade para lidar com toda e qualquer demanda, e a " relação terapêutica é tratada no universal, não no específico, como um encontro entre dois seres 'humanos' " (Gouveia & Zanello, 2019, p. 13). O "humano" se torna sinônimo de branco, e há a universalização de uma série de características e privilégios desse grupo racial para o restante da humanidade, pautadas como indicativo de normalidade e apagando especificidades produzidas, inclusive, pelas desigualdades raciais e de gênero.
Entretanto, na prática clínica lidamos com pessoas diferentes com realidades distintas daquelas exemplificadas nos livros e manuais eurocêntricos e estadunidenses de psicologia, que não preparam criticamente as e os psicólogos/as para lidar com demandas relacionadas a essas desigualdades, o que frequentemente leva a/o profissional a sequer conseguir reconhece-las, agindo como se não existissem ou se não fossem legítimas, produzindo contextos em que violências acabam sendo reproduzidas na relação terapêutica. Uma relação que deveria ser de cuidado acaba fazendo parte de experiências violentas. Thaíse Mendes Farias e Fernanda Barcellos Serralia (2021) apontam as micro agressões raciais que podem acontecer na clínica, demonstrando os modos pelos quais psicoterapeutas podem agredir pacientes distintos de si a partir da:
cegueira racial (negação das experiências raciais/culturais suas e do paciente), patologização de valores culturais e imposição de estilo de comunicação (quando terapeuta impõe seu conjunto de valores, transformando em anomalia os valores culturais e formas de comunicação do paciente), atribuição de descapacidades (questionamento de inteligência ou competência, estabelecimentos de rótulos intelectuais com base na raça do paciente), suposição de superioridade (generalização das experiências de pessoas não brancas, tratando-as como um "pacote de problemas" por causa da sua raça), invisibilidade (indicadores verbais e não verbais da falta de conexão e compreensão que ensejam rupturas precoces do processo), estrangeirização (comentários que comunicam um senso de "outro", de separação). (Farias & Serralia, 2021, s./p.).
O medo de sofrer racismo e as experiências violentas anteriores com profissionais brancos são dois fatores que levam os pacientes a buscarem por psicólogos/as pretos/as. Um estudo4 feito nos Estados Unidos em 2018, tem como dado que pacientes negros relataram sentir menos incômodo durante as intervenções médicas quando eram atendidos por médicos negros do que quando recebiam procedimentos de médicos brancos ou hispânicos. Os resultados mostraram, ainda, que indivíduos que sofreram discriminação e estavam mais preocupadas em passar por esse tipo de preconceito novamente, foram as mesmas pessoas que mostraram a maior redução nos níveis de dor quando eram atendidos por um médico de sua cor.
Podemos pensar que esse resultado também se replica na clínica psicológica. Pacientes que tiveram experiências racistas e/ou violentas com psicólogos brancos podem viver com o medo de que essa experiência se repita e se sentirem mais confortáveis com um/a psicólogo/a preto/a.
A entrevistada Helena relata essa busca: "Eu tenho tido essa procura, existe realmente essa busca de psicólogos negros e negras". A psicóloga descreve a forma com que essa demanda chega a ela:
relatam, além de ligar mesmo, 'eu tô procurando uma psicóloga negra, eu sempre quis, e me deram seu contato, vim de psicólogos brancos e realmente tem assuntos que não dá pra tratar, de mudar de tema, eu queria que pudesse tratar mais abertamente' e tem aqueles cuja a demanda foi realmente recusada 'ela ou ele nunca achou que esse assunto era relevante', então essa recusa de alguns de não reconhecer o racismo, a discriminação como objeto de intervenção, de pensar a discussão, isso de fato ocorre e isso é denunciado pelas pessoas que procuram. (Helena, 70 anos)
A fala de Helena apresenta a forma como pacientes negros chegam a ela já denunciando que psicólogos brancos não conseguiram lidar com conteúdo racial nos atendimentos, e que isso foi decisivo para o processo de busca por uma profissional preta. Além disso, tais pacientes já enxergam nela uma pessoa com que pudessem tratar desses assuntos que, em outros tratamentos, foram silenciados: "Comentam sobre percepções pessoais de tipo, 'ah eu queria um psi preto porque já tive experiências ruins com psis brancos', ou 'queria psi preto porque não me sentiria à vontade com psi branco', coisas assim..." (Helena, 70 anos).
A reprodução do racismo, a partir de conteúdos que são silenciados ou não são trabalhados porque o profissional não se dedica a pensar como as diferenças raciais se expressam na clínica, pode produzir rupturas no processo terapêutico:
psicólogos que não se dedicam a compreender como as questões raciais e culturais influenciam o processo terapêutico e não exploram de forma razoável (ou suficientemente terapêutica) as experiências de preconceito e discriminação vividas pelos seus pacientes de minorias raciais e/ou culturais, podem contribuir para reprodução do estranhamento, do preconceito e do racismo, expressa, de modo velado e não consciente em sua prática e muito possivelmente poderia conduzir o processo terapêutico a impasses, rupturas e interrupções prematuras (Farias & Serralia, 2021, s./p.)
A entrevistada Liziane também fala sobre como os pacientes pretos chegam a ela e trazem essa demanda de quererem ser atendidos por uma psicóloga preta. Fala também sobre os questionamentos que fazem em relação à (não) escuta de psicólogos brancos: "Muitas mulheres chegam questionando essa escuta de psicólogos brancos, que não escutam na verdade [...] tem chegado muito nos últimos tempos, é muita gente com essa demanda, 'eu tô aqui porque eu quero uma psicóloga preta, eu quero uma psicóloga preta'." (Liziane, 48 anos).
A invalidação dos sofrimentos advindos do racismo é algo vivenciado cotidianamente por pacientes. Além disso, apontam o direcionamento do que deve ou não deve ser falado na clínica por pessoas pretas:
uma vez eu fiz uma entrevista com uma mulher e ela falou, no espaço super conceituado no espaço público e ela falou 'não a psicóloga falou para mim que racismo era coisa da minha cabeça'. Como que você vai falar isso para uma preta retinta? [...] E aí depois ela também colocou outra afirmação: 'isso não é o que tem que ser trazido para clínica'. Então quantas vezes, já de uma forma direta ou indireta, esse desconforto e essa violência não acontece nos espaços da clínica?. (Liziane, 48 anos, grifos nossos)
Na fala de Liziane percebemos a indignação com a fala racista da psicóloga, mas também o espanto por essa situação ter ocorrido com uma paciente preta retinta. Liziane faz parte de uma família interracial, tem a pele mais clara e relata ter vivenciado um não-lugar em seu processo de racialização. Mais recentemente, tem se reconhecido como negra. Após relatar a situação acima, conta sobre sua construção racial e levanta questões sobre pigmentocracia (formas de discriminação baseadas nos tons de pele). Sua surpresa com a fala da psicóloga para a paciente retinta pontua como, ainda que o fenótipo da paciente não deixasse dúvidas sobre sua raça, o racismo foi apagado na situação.
O desconforto de psicólogos com as relações raciais tem sido maior comparado a outros marcadores sociais (gênero e sexualidade) e tem refletido na forma com que pacientes pretos são tratados na relação com terapeutas brancos (Farias & Serralia, 2021). Uma das questões que refletem esse desconforto é o fato de a psicologia ainda estar mais presente em espaços particulares, onde psicólogos brancos, que vêm de uma formação brancocêntrica, por muito tempo na sua prática também não tiveram contato com pacientes pretos. A forma com que o racismo se estrutura e institucionaliza faz com que a população negra tenha pouco acesso aos serviços particulares de saúde, o que contribui para que os profissionais liberais não percebam ou problematizem as especificidades do atendimento clínico a esta população (Tavares & Kuratani, 2019).
Conforme a psicologia vai ocupando outros espaços, isso reflete no acesso das pessoas pretas ao serviço, desmistifica o que faz uma psicóloga, em quais situações esse atendimento pode ser necessário, desenvolvendo a necessidade de repensar a prática profissional constantemente:
Na ONG, quando apresentava quem era a psicóloga, não via muita surpresa não, via alguma curiosidade, principalmente das crianças 'o que faz um psicólogo?', 'vai ler a mente?', um desconhecimento da psicologia, era legal porque tinha oportunidade de explicar para as pessoas, para as crianças e até para os adultos que não tinham acesso ao serviço, o que é a psicologia, o que eu faço. Tinha que fazer toda essa apresentação, do que é o trabalho do psicólogo e o que era o trabalho do psicólogo ali naquele espaço, mas não tinha muita surpresa. (Carolina, 45 anos)
A procura por psicólogas pretas aumenta também com a ampliação de serviços públicos, na assistência social, na saúde, no sistema penitenciário, na educação e com a chegada da psicologia enquanto profissão compondo as equipes desses espaços: "com a ampliação de políticas no SUS, no SUAS, no sistema penitenciário, no judiciário que as psicólogas deixam de estar só nestes espaços privados, mas ganham o público, e é nesses espaços que a grande parcela que é atendida é a parcela preta." (Helena, 70 anos).
Interessante pensar o caminho que tem sido feito: trata-se de sair dos espaços privados, onde se tinha uma maioria branca, para ocupar os espaços públicos, onde se tem maioria negra e, assim, ganhar visibilidade para conseguir alcançar outras pessoas pretas que têm a possibilidade de estar no espaço privado. Esse movimento diz respeito à importância dos processos de identificação, acessibilidade e oportunidades. Para além da relação público-privado, precisamos nos questionar acerca de quais informações, representações e estigmas a prática da Psicologia perpetua, e a maneira como as pessoas pretas significam estas informações, contribuindo para que mesmo as pessoas que tenham condições de buscar atendimento privado não o façam. As inacessibilidades, desconhecimentos e ausências refletem a falta de profissionais pretas ocupando este lugar. Quando enfim aparecem, esses espaços vão sofrendo pequenas modificações.
É preciso perceber as relações de classe que também estão envolvidas entre as pessoas pretas que conseguem acessar os consultórios de psicologia. Os pacientes pretos nesse contexto geralmente têm uma maior escolaridade ou chegam através de convênios empresariais. A atuação de psicólogas que estão divulgando seu trabalho e estudos voltados para relações raciais, saúde mental de pessoas pretas, também tem trazido essas pessoas aos consultórios de psicologia:
Eu acho que isso mudou muito assim, a minha clínica virou totalmente. Tipo tanto no SPA [Serviço de Psicologia Aplicada, na universidade], quanto no início da clínica particular pós-formada, a clínica era majoritariamente branca durante uns dois anos e depois mudou completamente, hoje eu atendo, sei lá, 80% de pessoas pretas e pouquíssimas pessoas brancas e isso é muito bom, assim, eu me sinto muito à vontade com o trabalho que eu faço [...] e a gente gosta muito também partilhar esse trabalho do Com-porpretas com psicólogas, tem muitas psicólogas que participam no grupo e é muito legal da gente poder tá trocando, elas se cuidando pessoalmente e também levando para o trabalho delas. (Cecilia, 30 anos)
Os grupos terapêuticos, por terem um número maior de participantes, podem oferecer um valor reduzido e são uma alternativa para quem não consegue arcar com o atendimento individual, tornando-se uma proposta atrativa para quem deseja desenvolver o acompanhamento psicológico e se sente à vontade de compartilhar suas experiências em grupo. Por mais que se visualizem avanços em termos de acessibilidade e conscientização sobre os serviços disponíveis, precisamos considerar que a população preta ainda se encontra, majoritariamente, em meio às implicações das vulnerabilidades socioeconômicas, e os valores propostos pela categoria não contemplam a realidade da maioria destas pessoas.
Temos, ainda, as dificuldades territoriais, de locomoção, o acúmulo de atividades laborais e domésticas; e a própria ideia de que o seu cuidado deve sempre ser destinado ao outro. Nesse sentido, Liziane (48 anos) nos ajuda a entender que: "uma outra questão que a gente não pode deixar passar é a questão de classe [...] porque as mulheres que participam dos grupos são mulheres que a maioria não tem condições financeiras de investir em cuidado terapêutico, então são mulheres negras de classes sociais subalternas" (Liziane, 48 anos). Barbara, por sua vez, estando em outro território, percebe a chegada de pacientes pretos ainda de forma menos expressiva: "mesmo estando na região da Baixada, o paciente preto ainda é num número menor, na minha experiência a maioria dos pacientes ainda são pacientes brancos".
Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021) enfatizam que toda e qualquer análise interseccional das experiências de pessoas pretas precisa ser estrutural e também integrada, tratando a opressão como resultado das operações relacionais dos principais sistemas de opressão: raça, gênero, sexualidade e classe, que formam uma complexa estrutura social de desigualdade.
Helena fala sobre parte da população preta que consegue fazer um atendimento particular e a identificação que surge nessa relação:
há aquela parcela de população negra que tem possibilidade, condições de estar fazendo um atendimento particular e agora 'ah que bom que tem psicóloga preta que possa trazer minhas demandas' e falar como se estivesse falando de igual pra igual porque enquanto profissional negra eu também vivencio situações semelhantes àquelas pessoas que me procuram na condição de pessoa preta então há aí uma identificação e isso tem um efeito em termos da questão terapêutica, essa questão da identificação ela é importante. (Helena, 70 anos, grifos nossos)
A identificação racial tem sido algo importante no debate de tais demandas de atendimento, e traz a expectativa de que a psicóloga tenha experiências raciais semelhantes à cliente/paciente. Essa expectativa pode se confirmar ou não, mas, como relatado pelas entrevistadas, ela tem sido importante no início e sustentação do processo terapêutico de pessoas pretas.
Contudo, uma psicóloga preta atendendo uma pessoa preta, sem ter a compreensão da forma como o racismo se estrutura e se integra com outras opressões e determina as condições de saúde da própria população, pode acabar não realizando um atendimento qualificado: "eu trabalhei um tempo no hospital psiquiátrico com muitas pessoas negras, eu atendia aquelas pessoas como pessoas negras, mas durante um tempo eu não conseguia associar deles estarem naquele espaço, naquele hospital e do adoecimento mental que o racismo causava naquelas pessoas" (Luísa, 54 anos).
Estar no lugar social de ser uma psicóloga preta não significa necessariamente ser uma profissional que ocupa o lugar epistêmico/político de realizar práticas contra-hegemônicas, ou que percebe naturalmente as opressões que estão envolvidas nas questões dos pacientes pretos, pois o projeto do sistema-mundo moderno/colonial reside justamente em levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido a pensarem e agirem epistemicamente como aqueles que se encontram em posições dominantes (Bernardino-Costa & Grosfoguel, 2016).
Mesmo reconhecendo a relevância da identificação racial com as psicólogas pretas, a falta de estudos sobre relações raciais na formação, apontado também pelas entrevistadas, é percebida pelos pacientes pretos:
A falta de formação sobre relações raciais é apontada por clientes pretas tanto para psicólogas brancas, como para psicólogas pretas, porém na relação com psicólogas brancas a sensação de ter que ficar explicando conteúdos que deveriam fazer parte de suas formações enquanto terapeuta foi um ponto destacada como um fator negativo e motivação para mudança de terapeuta. (Gouveia & Zanello, 2019, p. 10).
O desejo de não precisar fazer explicações sobre relações raciais para psicólogas brancas é relatado por uma das entrevistadas de Gouveia e Zanello (2019) "Eu gostaria muito da sensação de não ter que ficar explicando, porque eu acho que a formação do profissional é trabalho do profissional, e não do cliente [...]" (Gouveia & Zanello, 2019, p. 8). A sensação das pacientes pretas é semelhante aos relatos das psicólogas entrevistadas, quando falaram sobre precisar fazer tais explicações para seus professores brancos durante a graduação.
Sabemos que parte do tratamento psi se produz justamente no processo de colocar em palavras aquilo que é pensado, vivido ou sentido, e essas palavras são direcionadas ao outro, no dispositivo clínico. Nesse sentido, faz parte de qualquer tratamento psicológico falar sobre o que incomoda. Entretanto, quando se trata de situações de racismo ou atravessadas pelas complexas relações raciais, há uma recusa da psicologia, especialmente clínica, em ouvi-las considerando a dimensão psicossocial do racismo. A invalidação de queixas e sofrimentos com base no racismo por parte de profissionais brancos é recorrente, como vimos até aqui. Precisar explicar, ensinar sobre raça e racismo a todo momento para pessoas brancas vai muito além de contextualizar um fato isolado ou um caso específico. Tem o peso de precisar explicar um sofrimento que tem raízes em desigualdades estruturais da sociedade, e isto pode gerar a sensação de que, para ser escutada/o, é preciso se colocar na posição de se justificar a todo momento, demandando de pessoas pretas a violência de guardar seus próprios sentimentos para poder estar disponível a ensinar pessoas brancas sobre racismo.
Carolina fala da participação em um curso sobre Psicologia Preta, e conta que nesse espaço foi provocada a pensar sobre essas questões por uma pessoa que contou sua experiência com uma psicóloga branca.
Eu estava num curso sobre Psicologia Preta [...] uma professora que era preta ela começou e disse 'olha eu vou mudar a minha terapeuta branca, por uma terapeuta preta', porque ela sentiu que não estava sendo ouvida nas questões dela, inclusive ela colocando lá pro grupo que na morte de Marielle ela passou alguns dias muito impactada, chorando, ela chorou muito vivendo aquele luto, mesmo que ela não conhecesse Marielle e ela levou isso pra psicóloga dela e aí a psicóloga a orientou a parar com aquilo [...] (Carolina, 45 anos).
Esse processo de vivenciar o luto de pessoas com quem não necessariamente se teve contato direto é sentido por pessoas pretas e dificilmente compreendido por uma perspectiva ocidental. As conexões criadas a partir da experiência da diáspora, as estratégias de criação de vínculo, os elos formados com aquelas e aqueles que oferecem alguma referência e lutaram para que outras vidas fossem potencializadas, mesmo que não tenham vivido no mesmo tempo, espaço e contexto, é algo de que a psicologia hegemônica sozinha não dá conta. Para uma Psicologia Preta, do enegrecimento, é necessária a incorporação de outros conhecimentos para compreensão de tais fenômenos, por exemplo, em algumas etnias africanas quando um indivíduo enfraquece, morre, significa perdas da Força Vital, todo o grupo precisa dedicar cuidados para que ele próprio não enfraqueça e morra (Nascimento, 2018).
O assassinato de Marielle se tornou um marco para muitas mulheres pretas no Brasil e no mundo, e precisar explicar a comoção com esse fato é reviver novamente essas dores. Ser convocada a "parar com isso" é precisar deixar os cuidados próprios e com sua população, se colocar no lugar de não mais se comover com a política e o projeto de extermínio em curso, que coloca pessoas negras como um possível alvo, produzindo um processo de desumanização.
A respeito da escuta que pode ser oferecida por profissionais pretas, Barbara nos diz: "é um acolhimento de outra ordem, já que pessoas negras sofrem racismo até mesmo em terapia, que deveria ser um espaço de cuidado. [...] Os participantes se sentem mais à vontade para falar de suas questões sem serem tratados como vítimas."(Barbara, 26 anos).
Além do acolhimento e do estabelecimento de confiança entre psicóloga e paciente pretos, as entrevistadas trouxeram algumas especificidades que percebem no atendimento de pessoas pretas, como a relação com a morte: " [...] tem uma diferença que eu acho que não consegui nomear o que é, você sente que tem uma diferença na questão do paciente preto e o paciente branco [...] vou usar uma palavra da Psicanálise, talvez uma pulsão de morte fosse mais próximo, tem algo mais tenso na questão do paciente, muito ligado ao racismo" (Carolina, 45 anos).
Carolina também fala sobre outras especificidades da população preta no território do Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense que vão permear o trabalho das psicólogas nesse contexto:
primeiramente, a violência, um território muito marcado pela violência [...] tem a questão do genocídio da população negra, do jovem negro mais especifico [...] e a gente passa a se mobilizar também a essas mulheres que vem perdendo os filhos pela violência de estado, como essa violência vem exterminando o povo preto, tanto o jovem quanto as mulheres, todo tipo de violação, fora a violação de direitos, moradia, empregabilidade. (Carolina, 45 anos).
Com auxílio de Lélia Gonzalez (1982), podemos contextualizar o ambiente enfrentado pela psicóloga, e percebemos que no relato de Carolina muitas coisas permaneceram e foram atualizadas da ditadura cívico-militar até o momento atual na Baixada. Sobre o negro e na ditadura militar, Lélia relata que:
A Baixada Fluminense, neste sentido, apresenta-se como um exemplo privilegiado. Seu crescimento populacional (a inchação de que falamos) gerou suas cidades-dormitórios e, em pouco tempo, levou-a a ocupar as manchetes do noticiário policial; foi transformada em área preferencial da ação dos esquadrões da morte e congêneres. Seus habitantes logo se acostumaram a um novo componente da paisagem: os "presuntos" (cadáveres) "desovados" pelos "justiceiros" da nova ordem. Vale notar que 70% desses justiçados eram negros. Discriminação racial? Era proibido falar dessas coisas naqueles anos de milagre, uma vez que se estaria ferindo a Lei de Segurança Nacional por crime de subversão. (Gonzalez, 1982, pp. 16-17).
É importante destacar que a Baixada Fluminense é onde se concentra a maior população preta no Estado do Rio de Janeiro5. As questões históricas da Baixada Fluminense são marcadas pela violação de direitos, precariedade dos serviços públicos, ações de grupos de extermínio e a invisibilidade do Estado para as necessidades básicas de cidadania como saúde, educação e segurança. Nesse contexto, a Baixada também é um local de resistência preta e dos moradores em geral.
Diante do genocídio e do extermínio, a solidão se faz presente, não só no sentido em que há uma maior visibilidade da solidão da mulher preta nas relações afetivo-sexuais, mas também a solidão para as mães pretas que perdem seus filhos pela violência do Estado e para as mães que têm seus filhos encarcerados. Além das mães, amigas, irmãs e demais familiares que passam a enfrentar sozinhas não só o sofrimento que envolve cada situação, mas também o desamparo e a luta pela responsabilização do Estado.
A solidão para as mulheres pretas também é muito presente nos espaços institucionais, trabalho, estudos, na família e nos relacionamentos afetivo-sexuais: "eu diria que o que mais aparece é a solidão de diversas formas, a solidão perpassa a coisa de ter que dar conta de muitos trabalhos sozinha, de não ter apoio, da maternidade, de várias formas" (Cecilia, 30 anos).
As questões raciais estão presentes também no atendimento a pessoas brancas. A entrevistada relata como essas são atravessadas pelas questões raciais e o que está presente ao ser atendida por uma psicóloga preta: "Eu atendo pessoas brancas também e é um desafio estar atenta, [...] como que elas atuam, agem enquanto brancas até possivelmente comigo mesmo, de estar sendo atendida por uma psicóloga preta." (Helena, 70 anos).
Atender uma pessoa branca pode gerar desconforto ou medo de sofrer racismo também nessa relação, que pode buscar validação da psicóloga sobre um posicionamento supostamente antirracista, o sentimento de estar sendo ou ter seus conhecimentos testados, mas também pode interferir no processo do próprio atendimento. Helena relata comportamentos dos pacientes brancos como: não conseguir se colocar como sujeitos racializados, fazer uma discussão muito teórica sobre relações raciais, não conseguir falar a palavra negra/preta para se referir a ela ou a outras pessoas, utilizar a frase "eu tenho uma amiga como você", como se a raça/cor fosse um segredo ou uma ofensa. O que estaria envolvido em não conseguir nomear a palavra preta/negra?
Uma pessoa branca construída em uma sociedade racista, ao evitar falar a palavra negra pode querer controlar a evocação de imagens negativas que associa a pessoas negras, pois a questão não está na palavra, está relacionada a estereótipos raciais que podem ser conscientes ou inconscientemente acionados:
Nesse sentido, quando a palavra N. é proferida, a pessoa que o faz não se refere somente à cor da pele negra, mas também à cadeia de termos associados à palavra em si: primitividade - animalidade - ignorância - preguiça - sujeira - caos etc. Essa cadeia de equivalências define o racismo. Nós nos tornamos a corporificação de cada um desses termos, não porque eles estão inscritos fisicamente na superfície de nossas peles e não porque eles são reais, mas por causa do racismo, que, como mencionei anteriormente, é discursivo e não biológico; funciona através do discurso, através de uma cadeia de imagens que se tornam associativamente equivalentes, mantendo identidades em seu lugar. (Kilomba, 2019, p. 157).
Após uma indicação, o acesso à internet diminui a surpresa de ser atendida por uma profissional preta, seja pela busca do perfil da profissional nas diferentes redes sociais, seja no momento de entrar em contato por aplicativos de mensagens, ou até mesmo em sites de busca, em que é possível acessar a foto da psicóloga (mesmo que a profissional não tenha redes sociais ou não tenha disponibilizado diretamente suas fotos, pode ter suas informações disponíveis em outros sites ou perfis de amigos). Através do contato online, uma introdução sobre a abordagem da profissional e eventuais dúvidas podem ser sanadas antes mesmo do contato direto ou presencial. Essas possibilidades contemporâneas, entretanto, não resolvem ou diluem a presença do racismo em nossa sociedade, que pode comparecer também no encontro clínico.
Helena ressalta que a compreensão das experiências negativas dos pacientes com psicólogos brancos e seu posicionamento como psicóloga preta não implica dizer que um profissional branco não pode atender pessoas pretas com qualidade. Para que isso seja possível, entretanto, deve ter escuta, cuidado, estudo e entendimento das especificidades raciais e culturais de nossa sociedade, sem apostar nem na psicopatologização das experiências de pessoas pretas, nem em sua deslegitimação:
também é possível que um psicólogo branco atenda, desde que ele não queira ser preto, desde que ele possa escutar essa demanda, esse sofrimento não com ânsia de interpretar essas demandas, mas é de ouvir mesmo e de que maneira pode oferecer uma escuta que proporcione àquela pessoa que tá ali precisando, que ela possa enfrentar essa dificuldade, enfrentar esse momento. (Helena, 70 anos)
Discutir a raça não só dos pacientes, mas dos profissionais, tem gerado algumas compreensões equivocadas na psicologia. A raça dos profissionais é tão silenciada que quando se fala "psicóloga preta", os questionamentos em relação à capacidade profissional são acionados, o preto ganha destaque e parece que não se está falando mais de um psicóloga com a mesma formação de outra psicóloga branca.
Carolina anteriormente relatou não sentir a expressão de surpresa por parte dos pacientes ou usuários dos serviços em que trabalhou ao verem que ela - uma mulher preta - era a psicóloga. Relata que essa surpresa e o não reconhecimento dela como psicóloga parte principalmente de outros profissionais: "a surpresa acho que era mais pelos profissionais [...] eu lembro de situações de eu estar ali naquele espaço, mesmo que eu estivesse de jalequinho branco, da pessoa não [me] reconhecer como profissional, do nível de uma psicóloga [...] isso sempre rolava em todos os espaços que eu trabalhei" (Carolina, 45 anos).
Muitas críticas são lançadas por psicólogos/as brancos/as ao direcionamento de profissionais pretos/as para o estudo das relações raciais, no intuito de manter a prática psicológica como "racialmente neutra". Questionamentos em relação ao distanciamento profissional do psicólogo preto que atende um paciente preto são feitos constantemente com objetivo de deslegitimar o que é feito por e para pessoas pretas.
Psicólogas pretas estão rompendo com essa necessidade de suposta neutralidade, e com isso colocando questionamentos às concepções das relações construídas e reproduzidas por psicólogos brancos. Proposições de diferentes práticas têm sido feitas a partir de outro lugar: "A gente não propõe uma clínica distanciada, afastada, neutra e não afetada, pelo contrário, a gente propõe uma clínica muito afetada, uma clínica da presença, do corpo, de estar junto tudo e isso passa pelas nossas vivências também." (Cecilia, 30 anos).
Mas essas questões não são novas e nem inéditas. Profissionais pretas da área psi já vêm estudando e tentando compreender como se dá a identificação-distanciamento na relação terapeuta-pacientes pretas/os. Isildinha Nogueira, em sua tese de doutorado em 1998, já questionava os sentidos que seu corpo preto causava na clínica. A autora se pergunta:
me vejo diante de um impasse: teria eu condições de refletir sobre questões que me falam tão de perto, com o distanciamento necessário para entender que processo é esse que se dá numa relação analítica, paciente negro - analista negra ou paciente não negro - analista negra, quando se é, ao mesmo tempo, analista e negra (Nogueira, 1998, p. 120).
Barbara fala sobre como ela sente estar nesse lugar: "é muito difícil ter pessoas pretas do lado de lá, e do lado de cá, nós temos questões que atravessam esse trabalho, mas é uma constituição que de fato a graduação não proporcionou e enfim é uma coisa alegre" (Barbara, 26 anos). A fala de Barbara diz sobre as especificidades dessa relação entre psicóloga-pacientes pretos/as que não foram pensadas na graduação, o que reafirma o que a literatura tem pontuado sobre a crença da psicologia em uma a suposta neutralidade para a constituição racial dos pacientes e, principalmente, dos/as profissionais. As dificuldades enfrentadas por psicólogas pretas se repetem, pois: "no campo da psicologia clínica brasileira, não se tem um corpo de conhecimentos, métodos ou estratégias sistematicamente desenvolvidas para o manejo clínico das repercussões do racismo sobre a saúde mental da população negra" (Tavares & Kuratani, 2019, pp. 2-3). Psicólogas e pacientes estão envolvidos nas mesmas questões raciais, o que pode ser uma experiência alegre como diz Barbara, mas que também pode gerar algumas inseguranças.
Isildinha Nogueira (1998) relata o medo permanente de romper a linha tênue da sensibilidade de analista - que trabalha com os sintomas que falam no paciente - e se expor personagem de seu próprio drama pessoal. Embora em psicanálise nunca falemos somente do corpo físico, mas também corpo que fala e, principalmente, que é falado, do corpo sexual, quando se é analista preta/o, percebe-se que o corpo físico é investido de um significante peculiar:
A cor negra funciona como um evocador de significações; uma expressão, um sentimento não controlável pelos que me procuram, insignificante que se liga outros significantes. No setting, a anulação da presença do meu corpo negro nunca acontece, ao contrário do que ocorre fora do setting. (Nogueira, 1998, p. 120, grifos nossos).
De acordo como que é destacado pela autora, a anulação do corpo preto não acontece no contexto terapêutico. Seja na clínica, na escola, no hospital, nos CAPS, nos presídios, uma psicóloga preta, mesmo que não queira, será vista como uma psicóloga preta. Fora desse contexto, ainda podem ocorrer tentativas (simbólicas e materiais) de anulação do corpo preto, que provoca nos pacientes sentimentos que são expressos em algum momento, de forma consciente ou não, pois a raça não é física, mas produzida nas relações discursivas - e, com isso, produz materialidades.
As redes e coletivos pretos na psicologia, para além de sanar uma demanda de pacientes, mas também como meios de elaboração coletiva dessas provocações já trazidos por Isildinha, Neusa, Virgínia e outras que nos antecederam. O que envolve ser identificada e se posicionar enquanto psicóloga preta? Qual é o peso de ser uma psicóloga preta que se dedica à população preta? Cecília fala sobre essa afirmação enquanto psicóloga preta:
eu percebo uma diferença muito grande, de cinco anos para cá muita coisa mudou, que bom que a gente pode assumir muito mais o lugar de psicóloga preta, saber a importância disso, dessa afirmação, a chegada de pessoas pretas no consultório por se sentir mais à vontade com a gente e com as psicólogas pretas que estão botando a cara mesmo, que tão fazendo pesquisa, que tão fazendo lives, divulgando o trabalho e também na rede, acho que isso faz também que as pessoas pretas se sintam mais à vontade de procurar acolhimento. (Cecilia, 30 anos, grifos nossos)
Bárbara também fala sobre o que implica estar nesse lugar, repensar sua própria construção enquanto mulher preta psicóloga, e reflete sobre a responsabilidade que estar nesses espaços pode ter para a população preta no geral:
Eu acho que nós mulheres pretas estamos na psicologia um pouco trazendo isso dessa urgência [...] e eu acho que a gente tá um pouco nesse lugar tentando construir novas narrativas para as nossas vidas e ao mesmo tempo possibilitando caminhos para que outras narrativas de pessoas pretas aconteçam [...] Eu acho que eu nunca pensei muito sobre isso, então não sei como me demorar muito nessa pergunta. (Barbara, 26 anos, grifos nossos).
A pergunta a que Barbara se refere é "como você percebe a presença de mulheres pretas na psicologia?". Ela diz nunca ter pensado sobre isso, mesmo sendo uma pessoa que estuda e tem envolvimento com a discussão racial na Psicologia e também sendo uma profissional que lida com a palavra, ela fala sobre as dificuldades em colocar em palavras essa questão. Esta fala nos diz sobre a relevância da pesquisa, a partir da não evidência das perguntas e respostas.
Algumas considerações
Neste artigo, discutimos as falas de psicólogas pretas que atuam no Rio de Janeiro acerca de sua prática clínica e de como a raça - sua e de seus/suas pacientes - atravessa seu trabalho. Para tanto, lançamos mão do referencial dos estudos das relações raciais e dos feminismos interseccionais, para pensar o quanto a psicologia, como ciência e profissão, produz corpos e lugares racializados como alteridade, demarcando, em um movimento correlato, determinados lugares discursivos como o universal. Interessou-nos escutar essas profissionais para pensar como seus questionamentos, em consonância com aqueles dos movimentos negros, colocam questão para a clínica, sem tomá-los como "identitarismo" ou radicalismos?
Quando a demanda por psis pretos/as emerge, vale nos perguntarmos sobre o que as e os colegas brancos andam fazendo em seus consultórios. É preciso olharmos com honestidade para as práticas e discursos de nosso campo e nos fazermos essa indagação, sem desqualificá-la. Dizer que o racismo está na cabeça do paciente, ou deslegitimar o sofrimento relacionado a condições materiais muito distantes da experiência do psicólogo são situações recorrentes, que surgiram nas entrevistas aqui analisadas.
Em contrapartida, não se trata de romantizar os ativismos e os movimentos políticos e sociais. Há nestes a produção de nomeações e normativas que, frequentemente, reproduzem lógicas que pretendem desestabilizar. Qualquer pessoa que tenha se comprometido com tais movimentos reconhece que se pode produzir adoecimento, culpa, autovigilância e até mesmo moralizações em nome das causas e bandeiras coletivas. É frequente que essas questões cheguem aos consultórios, não sem um considerável sofrimento. Nesse sentido, uma clínica que esteja atenta e reflita sobre as relações raciais em sua complexidade pode oferecer condições de escuta necessárias no tempo presente. As lutas das minorias vão no sentido de humanizar grupos que historicamente foram objetificados (inclusive como mercadoria), animalizados, torturados, assassinados. Lutar por seus direitos é lutar pela garantia de poderem ser sujeitos, singulares, e não tomados como um todo ou um grupo homogêneo. Na clínica, a dimensão da singularidade comparece de forma central, e trata-se de operar uma escuta que permita que o sujeito produza um caminho que é seu, inédito, e que ainda que marcado por materialidades e opressões compartilhadas com outros sujeitos, não pode ser totalmente pensado ou explicado por características relacionadas a essas materialidades. Há algo de radicalmente singular aí. Sustentar essa aposta parece ser uma direção importante tanto na clínica quanto nos ativismos.
Referências
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Endereço para correspondência
Tainá Valente Amaro
E-mail: tainaamaro88@gmail.com
Amana Rocha Mattos
E-mail: amanamattos@gmail.com
*Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social/UERJ. Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande/FURG.
**Professora Associada do Instituto de Psicologia/UERJ; professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social/UERJ; coordenadora do DEGENERA - Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros. É bolsista PROCIÊNCIA/Uerj e Jovem Cientista do Nosso Estado/Faperj.
1Este artigo é desdobramento da pesquisa de mestrado de autoria da primeira autora e orientada pela segunda autora, defendida no Programa de Pós Graduação em Psicologia Social, cujo objetivo foi mapear e compreender as trajetórias e estratégias de (re)existências criadas coletivamente por psicólogas pretas do Rio de Janeiro, assim como perceber de que forma o racismo incide sobre a construção de suas humanidades. A primeira autora teve bolsa Faperj e Faperj Nota 10 para desenvolver seu mestrado.
2No Brasil, os termos negro/a e preto/a têm sido ressignificados/positivados pelos movimentos negros como termos políticos para autodefinição. Como indica Cristiano Rodrigues (Estado de Minas, 2020, s/p.), "As duas categorias funcionam. Elas têm uma semântica que expressa, tanto para o racismo, quanto para o antirracismo, o que se quer dizer com essas palavras. Não há nenhum tipo de problema com as palavras. O problema é com o racismo!". Nesse sentido, optamos pelo uso da categoria "preta", acompanhando a autodeclaração das entrevistadas - salvo em alguns pontos específicos do texto.
3O texto das transcrições foi enviado para as participantes para que pudessem corrigir ou complementar algum ponto, e também elucidar alguma questão que julgassem necessário. Após seu retorno, foram feitas as complementações apontadas pelas participantes e só então o texto das entrevistas foi analisado.
4Resultados do estudo disponível em: <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/09/04/pacientes-negros-sentem-menos-dor-quando-sao-atendidos-por-medicos-negros.htm>
5Sobre racismo, resistência e história da baixada fluminense, acessar: <http://www.canalibase.org.br/baixada-fluminense-resistencias-e-o-racismo-institucional-de-todos-os-dias/>