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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022
ARTIGOS
Arquivo do modernismo e brasilidade em Mário de Andrade
Archive of modernism and brazilianness in Mario de Andrade
Archivo del modernismo y la brasilanidad en Mario de Andrade
Joel Birman*
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil
Universidade Paris VII - França
RESUMO
A intenção deste artigo é de realizar a genealogia do modernismo e da brasilidade na obra de Mario de Andrade.
Palavras-chave: Arquivo, genealogia, Modernismo.
ABSTRACT
The intention of this article is to perform the genealogy of modernism and Brazilianness in the work of Mario de Andrade.
Keywords: Archive, genealogy, Modernism.
RESUMEN
La intención de este artículo es realizar la genealogía del modernismo y la brasilidad en la obra de Mario de Andrade.
Palabras clave: Archivo, genealogía, Modernismo.
I. A problemática
Mário de Andrade faleceu bastante jovem, não tendo ainda completado cinquenta e três anos. Morreu precocemente, não apenas para os nossos parâmetros atuais de longevidade, mas também para os de seu tempo e, principalmente, para os que pertenciam à sua classe social. Não obstante isso, produziu uma obra de grande envergadura, que nos foi legada como um patrimônio efetivo da cultura brasileira e que ainda nos incita na atualidade.
Em decorrência disso, se imortalizou pela sua múltipla produção intelectual, dentre as quais se incluem as escritas em prosa e verso, assim como uma ampla e produção no registro da crítica e do ensaio. Além de seus escritos sobre a literatura, a música e as artes plásticas, com efeito, deve-se destacar também as suas crônicas publicadas em jornais, nas quais a experiência social brasileira do dia a dia era não apenas devidamente registrada, mas também delineada com comentários sempre instigantes.
No que concerne a isso, as suas crônicas são perpassadas por pontuações e escansões fulgurantes sobre o que ocorria na nossa cotidianidade, promovendo, assim, um encantamento do que se registrava apenas como fait divers nas demais páginas dos jornais. Pela mediação desses comentários brilhantes, a materialidade bruta da informação era transformada em um esboço interpretativo sobre o 'imaginário' da brasilidade.1 Pode-se depreender disso, portanto, que com os poucos fragmentos dispersos de que dispunha, Mário de Andrade realizava um esforço hercúleo para constituir uma 'cartografia' da memória brasileira.
Assim, essa cartografia estava já então em marcha, de maneira original. As escritas crítica e literária de Mário de Andrade foram constituintes daquela, pelos gestos retóricos e pelas virgulações que imprimiu nos documentos e objetos que não apenas reuniu, mas também compilou e forjou no seu trabalho contínuo sobre a experiência social brasileira. Essa se inscrevia tanto no registro do passado quanto do presente. Foi a dimensão simbólica dessa experiência que Mário de Andrade começou a configurar com paixão. Pôde, então, destacar como as marcas particulares da 'memória' brasileira foram conjugadas em um 'estilo', que delineia a sua 'singularidade'. Seria justamente isso que se precipitaria como signo, em uma modalidade específica de existência e de gestualidade sociais.
Portanto, o que existiria de singular na brasilidade estaria marcado na 'sintaxe' que conjugaria esses diversos signos, que assim se destacaria e se transformaria em um emblema eloquente daquela. Com isso, o próprio trabalho inerente da memória brasileira, que se realizaria em um processo contínuo de transmissão e apropriação estabelecida entre diversas gerações, se conjugaria com o trabalho do intérprete sobre a memória, que delinearia a sua cartografia. Coloca-se, então, em evidência, enfim, a dimensão de 'ficção' que seria efetivamente constituinte da memória, de forma a costurar as marcas indeléveis do passado aos imperativos inadiáveis do presente, com vistas a um futuro possível que se pretendia assim forjar.
Dessa maneira, o trabalho intelectual de Mário de Andrade foi o de transformar a memória brasileira em um 'arquivo' propriamente dito, para me valer de um conceito fundamental oriundo do discurso da história. Entretanto, na inflexão teórica desse conceito que assumo aqui, de forma deliberada e intencional, enuncio logo de saída que estou marcado na leitura desse conceito pelas interpretações realizadas tanto por Foucault, em A arqueologia do saber2, quanto por Derrida, em Mal de Arquivo.3 Enfim, nas diferentes interpretações forjadas por esses autores4, o conceito de arquivo se enunciou com pertinência.
Portanto, se o conceito de arquivo marcaria a emergência e a produção de uma dada cultura, assim como regularia a reprodução e transmissão dessa, em uma escala temporal dimensionada pela história da 'longa duração'5, seria ainda o arquivo que poderia ser reconfigurado a partir dos imperativos da atualidade. No entanto, tais imperativos se regulariam inevitavelmente pela antecipação do futuro, de maneira a entreabrir e delinear o horizonte de outras possibilidades para o arquivo em pauta, com vistas à sua renovação e à afirmação de sua potencialidade efetiva.
Digo tudo isso no sentido ao mesmo tempo teórico e metodológico, para enunciar que na leitura que Mário de Andrade pretendeu realizar da brasilidade, transformando a nossa memória fragmentária e dispersa em um arquivo propriamente dito, o que estava inequivocamente em pauta era o desejo de esculpir os fundamentos da brasilidade. Para explicitar tais fundamentos necessário seria configurá-los pela mediação de diversas materialidades discursivas. Estaria aqui a 'problemática' crucial que pautou o percurso intelectual de Mário de Andrade, nas diferentes retóricas que empreendeu com mestria, seja no registro poético seja no ensaístico. Com efeito, se a compilação documental do passado brasileiro foi crucial no seu percurso intelectual, pretendendo realizar assim uma cartografia rigorosamente documentada da nossa memória, sem dúvida, os imperativos políticos do presente e a antecipação do futuro seriam inseparáveis de seus propósitos teórico, ético e estético. Seria a brasilidade como problemática, enfim, que seria fundamental na pesquisa empreendida por Mário de Andrade.
Por isso mesmo, alguns críticos literários puderam dizer - como Dantas Mota, Wilson Martins, João Etienne Filho e Naief Sáfady - que se Mário de Andrade não foi o nosso maior poeta foi certamente o mais completo. Isso porque realizou não apenas o verso rigorosamente metrificado e rimado, mas também o mais livre. Antecipou-se, assim, à poética social e à poesia participante, em uma prática eminentemente erudita. Pode transformar então o discurso estabelecido e existente sobre o folclore6, por imprimir na sua leitura um olhar ao mesmo tempo antropológico e psicanalítico. Pode-se dizer que Mário de Andrade se deslocou progressivamente dos registros estritamente literário e poético para o da construção crítica do arquivo do Brasil, configurando, então, progressivamente, com seu percurso a morte do poeta7. De qualquer maneira, é a brasilidade, configurada pelas diferentes coordenadas do arquivo e enunciada em diversas materialidades discursivas, o que faz a sua emergência na retórica de Mário de Andrade, de maneira eloqüente e fulgurante.
Portanto, a minha questão fundamental nesse ensaio será a de enfatizar as relações existentes entre os registros da história, da tradição e do arquivo em Mário de Andrade, indicando a presença efetiva do discurso freudiano no pensamento desse. A metáfora e o conceito de 'assombração', enunciada por aquele em uma crônica intitulada "Memória e assombração", publicada em maio de 19298, me oferece uma pista teórica segura para isso, na qual a dicção e a flexão retóricas de Mário de Andrade remetem inequivocamente ao discurso psicanalítico.
Para isso, no entanto, vou me valer também do discurso teórico de Benjamin, além dos de Foucault e Derrida como já disse acima, sobre o arquivo e a modernidade, para me embrenhar na trama discursiva de Mário de Andrade e esboçar assim a sua leitura modernista da tradição brasileira. Enfim, o conceito de 'recepção' desenvolvido por Jauss, no campo da estética da recepção, orientar-me-á também neste percurso.
II. Modernismo e descontinuidade
Não quero propor que Mário de Andrade tenha sido um leitor sistemático de Maquiavel. Bem entendido. Tampouco que tenha realizado comentários eruditos a seu respeito. Compreendo, porém, o solo fundador, responsável por estabelecer com Maquiavel uma nova conjunção entre política e história, delineou o seu percurso teórico. Por isso mesmo, pôde enunciar quase no final de seu "Prefácio interessantíssimo" à Paulicéia Desvairada, de 1921, que "o passado é lição para se meditar, não para reproduzir"9. É claro que Mário de Andrade se refere aqui ao campo da criação artística, isto é, às histórias da literatura, da música e das artes plásticas, e não ao registro da política. No entanto, é a mesma flexão teórica realizada por Maquiavel que está em questão, inscrita agora no registro da estética e em uma reflexão aguda sobre o arquivo. Além disso, como ainda se verá adiante, é pelo viés da política que a dimensão do comando, que é constituinte da concepção de arquivo, encontra o seu solo fundador.
Mário de Andrade não foi especificamente um político, no sentido estrito do termo, mas ocupou cargos públicos importantes, no Ministério da Educação, dirigido então por Capanema, e posteriormente na Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Portanto, realizou a prática política no campo da cultura, delineando escolhas e ações governamentais nesse campo específico. Essa ocupação governamental marcou os anos finais de sua vida intelectual de maneira indelével, certamente, delineando e definindo a sua escrita literária e a sua produção teórica como ensaísta.
Foi nesse contexto histórico, que Mário de Andrade realizou a sua reflexão crítica sobre o movimento modernista no Brasil, que teria provocado uma descontinuidade efetiva na experiência social brasileira. Em uma leitura retrospectiva, sobre o percurso intelectual de Mário de Andrade, pode-se afirmar que foi essa descontinuidade histórica que marcou e delineou decisivamente o seu percurso, definindo a problemática desse.
Estou me referindo aqui às meditações crítica e retrospectiva sobre o modernismo, escritas em 1941, em dois ensaios cruciais, quais sejam, "O movimento modernista"10 e "A elegia de abril".11. Ambos foram publicados, logo depois, em 1943, em uma coletânea de ensaios intitulada Aspectos da literatura brasileira.12 O que nos disse Mário de Andrade nessa releitura tardia sobre o modernismo brasileiro? Como situava esse a descontinuidade histórica que esse produzira?
O modernismo seria não apenas a reivindicação permanente do direito à pesquisa estética e à atualização da inteligência brasileira, mas também à estabilização de uma consciência criadora nacional.13 Se cada um desses traços já se encontrava presentes anteriormente, na história pré-moderna da arte no Brasil, o que teria caracterizado o ideário do modernismo foi a articulação efetiva dessas três exigências em uma totalidade orgânica, de maneira a constituir uma nova consciência coletiva sobre as questões estéticas. Estaria justamente aqui a significação histórica da descontinuidade empreendida pelo modernismo.
O modernismo brasileiro inscrevia-se, assim, em um campo mais amplo, qual seja, a do debate entre os Antigos e os Modernos, que provocara já uma ruptura na tradição europeia nos séculos XVII e XVIII, e que produzia igualmente, mas de maneira tardia, uma descontinuidade radical no imaginário social e estético brasileiro.14 Assim, se os Antigos pretendiam sempre reproduzir os textos de seus antepassados, em uma epopeia repetida que era forjada como pequenas variações sobre os mesmos temas, os Modernos pretendiam constituir, em contrapartida, uma partitura que fosse nova e original15 16. Vale dizer, a querela entre os Antigos e os Modernos representava em um registro especificamente estético, aquilo que foi realizado por Maquiavel na conjunção entre a política e a história. Com isso, o novo teria que ser permanentemente inventado, em uma outra historicidade e temporalidade, em um registro estrito da linguagem. Enfim, o que se produziria aqui de novo, isto é, a descontinuidade produzida no registro da arte, teria então as suas conjunções com a consciência coletiva do Brasil na modernidade.
É apenas neste contexto que a formulação de Mário de Andrade, no prefácio da Paulicéia Desvairada, ganha todo o seu peso, pois, se "o passado é lição para meditar, não para reproduzir" (Andrade, 1980, p. 29), o movimento modernista assume assim a sua condição moderna. Isso porque empreende a ruptura com os Antigos, no registro da história brasileira. Enfim, a descontinuidade assim se estabelece, inaugurando outro percurso no imaginário brasileiro.
No entanto, esta 'postura' modernista não deveria ficar restrita ao campo especificamente estético, seja esse o da literatura, o das artes plásticas, o da música e o do teatro, mas se inscrever também em outros registros do imaginário e da consciência social brasileiras. Por isso mesmo, em uma de suas crônicas publicadas no Diário Nacional, em 1929, e da mesma forma, no ensaio "O movimento modernista", Mário de Andrade evocou Graça Aranha. Este, com efeito, afirmava que a nova postura modernista não deveria ficar restrita ao campo estético, mas se disseminar para os outros registros sociais da brasilidade17, para relançar essa em outros percursos.
Para que isso pudesse se realizar, contudo, a intelectualidade brasileira precisaria empreender a ruptura significativa com a tradição europeia, na qual estaria permanentemente se espelhando. Vale dizer, o intelectual brasileiro estaria sempre escrevendo com o olhar voltado para a Europa e se esquecia assim com o que estaria ocorrendo no Brasil.18 Era esta postura, eminentemente pré-modernista, que assumiria forma e corpo naquilo que Mário de Andrade denominava de "moléstia de Nabuco", isto é, quando esse estava no Brasil sentia saudade da Europa e quando estava nessa sentia saudade daquele.
Nesse contexto, a atmosfera reinante no campo intelectual brasileiro era eminentemente enfadonha, marcada que era pela mesquinharia, pela qual as pequenas intrigas e maledicências sobre os outros delineavam infalivelmente as coordenadas desse campo intelectual.
Porém, para reconfigurar efetivamente o campo intelectual em uma outra direção, entreaberta pelo modernismo, articulando intimamente arte e experiência social, necessário seria forjar outra concepção da arte que a afastasse definitivamente de uma perspectiva pré-moderna e que a inscrevesse agora em uma outra consciência coletiva.
III. Despertar e descobrimento
No ensaio intitulado "O Artista e o Artesão", que foi a sua aula inaugural para os cursos de Filosofia e História da Arte da Universidade do Distrito Federal, em 1938, e que foi publicado posteriormente no livro O Baile das Quatro Artes, Mário de Andrade realizou a crítica sistemática da arte 'individualista' e 'contemplativa', postulando a importância da arte como 'fazer'19. A historiadora Margarida de Souza Neves considera que esse ensaio seria o seu "testamento` estético"20.
Assim, enquanto a arte individualista e contemplativa seria esteticista, pelo culto que realizaria da estética em si própria e pela promoção da arte pela arte, a arte como fazer implicaria em uma prática de trabalho que teria na figura do artesão o seu modelo e paradigma.21 Se o esteticismo, que impregnaria a primeira, se desdobraria em uma limitação estilística, em contrapartida, na arte como fazer se colocaria em pauta um projeto 'messiânico', no qual a transformação do mundo estaria assim necessariamente implicada. Portanto, se a contemplação estatizante se desdobraria em uma imaginação evidentemente onipotente, o fazer artesanal implicaria em uma mudança na materialidade do mundo, visando a sua transformação messiânica. Além disso, na artesania se condensa a tradição de um métier e implica na ideia de 'trabalho ', não sendo a ocupação de elites desocupadas e que podem se dar ao luxo de viverem para contemplar o mundo.
Daí porque a trajetória intelectual de Mário de Andrade implicou no deslocamento da primeira concepção para a segunda, na qual arte como fazer e artesania implicaria um compromisso ético e político com a brasilidade. Razão pela qual Mário de Andrade passou efetivamente a assumir cargos públicos, tanto no governo Federal quanto no Estado de São Paulo, no campo da cultura.
Seria então pela concepção da arte como fazer, que o artista poderia se comprometer com os destinos da nação, se articulando organicamente com o projeto de constituir uma tradição brasileira. Seria por esse viés, portanto, que as consciências estética e social se conjugariam em um novo projeto e consciência coletivos, com vistas a forjar a especificidade da tradição brasileira.
Assim, seria apenas nessa perspectiva que poderíamos 'despertar', pois essa consciência social seria a condição de possibilidade para que pudéssemos sair de nosso 'adormecimento' secular em relação à nossa memória e começarmos a realizar um efetivo trabalho de arquivamento. Foi justamente isso que enunciou literalmente Mário de Andrade no poema intitulado "Descobrimento", publicado em 1927.
Seria então pelo despertar, do brasileiro que estaria adormecido, que seria possível constituir uma tradição propriamente dita, estabelecendo um outro arquivo que instituísse uma nova relação com a nossa história. Portanto, a problemática fundamental que começou a se impor à Mário de Andrade, em uma outra relação com o passado e com o futuro, catalisado que foi pela experiência modernista como consciência crítica da brasilidade, seria a constituição de um arquivo eminentemente brasileiro. Seria, então, arquivo a palavra e o conceito crucial que se constituiu no discurso crítico de Mário de Andrade que, como um fio de prumo, passou a orientar desde então o seu percurso intelectual.
IV. Presente, futuro e passado
Assim, para constituir um arquivo brasileiro propriamente dito, não basta apenas cultuar o passado enquanto tal e em si mesmo, para reproduzi-lo na sua enfadonha mesmidade, mas de retomá-lo criticamente nas suas coordenadas, destacando, então, as suas fraturas e impasses. Se a reconstrução da memória é a condição 'necessária' para isso, não é, contudo, a sua condição 'suficiente', não obstante a importância crucial assumida pelo trabalho reconstrutivo daquela. Portanto, uma outra relação com o passado e a memória se impõe efetivamente, pela qual outra interlocução com estes se realizaria.
Nessa perspectiva, é necessário refinar criticamente o passado e inscrevê-lo decisivamente no presente, com a finalidade seja de reencantar o presente com as trilhas e sulcos lastreados pelo passado, seja de sublinhar o que já existiria potencialmente de presente, no passado, como esboço e linha de força, mas em estado virtual. A relação entre presente e passado teria assim mão dupla, não se restringindo à ação unívoca do segundo sobre o primeiro, em um determinismo e evolucionismo que seriam teoricamente discutíveis.
Para isso, no entanto, é preciso considerar efetivamente que o presente, como atualidade concreta e operante de um arquivo, se projete no futuro como um ponto de chegada, tendo, então, finalidades a serem atingidas e conquistadas. A leitura do passado como memória pressupõe, portanto, a antecipação do futuro como possibilidade, a partir da atualidade. A reconstrução do passado, com o arquivo, implica necessariamente, enfim, o devir desse mesmo arquivo em uma "antecipação" do futuro, pelo tempo verbal do futuro anterior.
É precisamente nesse sentido que estou de acordo com a historiadora Margarida Neves de Souza, quando afirmou que esse ensaio condensa o testamento estético de Mário de Andrade22, pois um testamento nada mais é que um projeto de futuro, isto é, uma antecipação realizada no presente de um possível vir-a-ser da brasilidade. Tudo isso evidencia, no entanto, que Mário de Andrade não assume a posição de realizar uma história "positivista" do passado brasileiro, que valorizaria o registro do "fato" na sua suposta objetividade e que, como tal, devesse ser rememorado na sua eloqüência.
Com efeito, se a leitura dos registros do fato e da memória seria comandado pela atualidade e que visaria antecipar o futuro como possibilidade do arquivo, o que Mário de Andrade realizou efetivamente seria uma 'genealogia' no seu sentido estrito23 24. O que lhe interessa é a reconstrução do Brasil como arquivo, enfim, na qual o trabalho de rememoração do passado histórico brasileiro seria apenas condição necessária para isso, mas não suficiente, repito.
Com efeito, não obstante o rigor que empreendia nas reconstruções do passado brasileiro, principalmente no que concerne à história da música brasileira25 26 27, assim como a sua preocupação em "colecionar" objetos contemporâneos que se materializaram como signos da tradição brasileira - como esculturas, pinturas, textos literários, cancioneiro popular etc. - a preocupação maior de Mário de Andrade foi a de fazer dialogar o passado com o presente, em uma dupla direção de encantamento recíproco. O que pressupunha, é claro, a antecipação do futuro como destino possível da brasilidade. Não é um acaso, certamente, que na concepção da arte-fazer, enunciada no ensaio "O artista e o artesão"28, o que se destacava era a dimensão messiânica da arte como tradição, no qual é o futuro o que se projeta como antecipação do vir-a-ser, a partir das linhas de força que se delineariam na atualidade.
V. Refundar o arquivo
Nessa perspectiva, Mário de Andrade queria efetivamente conhecer e tomar posse simbolicamente do Brasil. Seria a sua maneira de despertar do secular adormecimento face à tradição, desdobrando, assim, uma postura e um gesto simbólicos eminentemente modernistas. Não pretendia, com isso, apenas conhecer o que era o passado significativo da brasilidade, mas também os seus confins e bordas esquecidos no presente, situados que estavam no vasto território continental brasileiro. Portanto, seria por meio de suas viagens 'amadoras' como etnógrafo, como dizia, se assumido assim como um 'turista aprendiz' no seu próprio país29, que Mário de Andrade pretendia inscrever tanto ao passado quanto ao presente.
Como um "turista aprendiz", que esboçava as sendas desconhecidas e desmapeadas dos confins do Brasil, Mário de Andrade começou a realizar outra cartografia do espaço social brasileiro. Novas marcas e traçados passaram, assim, a ser inscritos na carta da brasilidade, modelando sulcos e reentrâncias até então inexistentes. Uma geografia outra do território brasileiro começou assim a tomar corpo e forma, constituindo volumes, planos e retas que não tinham sido ainda desenhados, pois era a geometria do imaginário que estava sendo forjada, pela qual a materialidade do arquivo finalmente se evidenciava.
Assim, as viagens que realizou pelo Brasil foram iniciadas em 1925, com um grupo de amigos modernistas, Mário de Andrade a definiu como a sua "Descoberta do Brasil". Em seguida, o seu percurso se fez sempre rumo ao Norte, buscando seja paisagens seja modalidades outras de civilidade até então desconhecidas e pouco exploradas. Dessa maneira, a cartografia do imaginário brasileiro foi progressivamente se empreendendo, pela reunião sistemática de materialidades simbólicas oriundas de diferentes formas de discursividade (música, texto, escultura, pintura), que se constituíram como 'acervo' daquele imaginário.
Podemos enunciar então que, o que pretendia realizar Mário de Andrade, pelos novos mapeamentos e cartografias que empreendia do imaginário brasileiro, era a 'refundação' do arquivo brasileiro. Enuncio aqui como refundação e não 'fundação', pois o arquivo brasileiro já existia anteriormente ao empreendimento intelectual daquele, nas diversas histórias já escritas anteriormente sobre o Brasil. O que Mário de Andrade quis realizar foi uma reformatação do arquivo da brasilidade, introduzindo seja novos enunciados 'ontológicos' nesse, seja propondo um outro princípio 'nomológico'.
Proponho, assim, o conceito de arquivo de Derrida30, como disse anteriormente, pois esse conceito pode nos permitir balizar o trabalho intelectual de Mário de Andrade de maneira diferente. Este nos dá indicações e algumas pistas teóricas para que essa interpretação possa ser feita.
Assim, se o passado não é algo para ser reproduzido mas para ser meditado, a partir do intérprete situado no tempo presente, como nos disse aquele, o passado não é apenas memória. Se essa é, como um conjunto de impressões e inscrições, a condição necessária do arquivo, não é, contudo, a condição suficiente. Isso porque o arquivo supõe sempre o trabalho sobre a linguagem e o discurso, que delineiam inflexões e direções às inscrições presentes na memória. Esse trabalho da linguagem e do discurso se funda na atualidade, é claro, e antecipa, além disso, o futuro como possibilidade.
Essa operação não pode se realizar no campo da memória, evidentemente, pois depende da relação viva do intérprete sobre as impressões e inscrições daquela. Seria assim por esse viés que o intérprete constituiria ainda novas impressões e inscrições, como realizou Mário de Andrade com os diversos acervos discursivos que constituiu, tanto pela mediação de seu gesto interpretativo, quanto pelas novas documentações que estabeleceu e com a pesquisa 'amadora' de etnografia que empreendeu, nas suas viagens pelo Brasil.
Se no registro "horizontal" o arquivo se apresenta como um conjunto de enunciados, que delineiam a dimensão ontológica daquele, no registro 'vertical' o arquivo tem uma dimensão nomológica, que define a 'lei' que ordena o arquivo. Estaria então na verticalidade o 'comando' desse. A pergunta aqui é "quem" comanda o arquivo?31 No entanto, não há qualquer dúvida que seria por essa dimensão que o arquivo se articula necessariamente com o poder, que define seja um "lugar" para que os documentos sejam arquivados, seja quem for o seu 'guardião'.
É claro que o intérprete se inscreve necessariamente tanto nesse lugar de poder, quanto na gestão da documentação, que é constituinte do arquivo. Assim, a participação de Mário de Andrade em órgãos dos governos federal e estadual de cultura, que definiam políticas para a administração desse campo, indica a presença da 'estatização' no comando do arquivo, do qual aquele fazia parte. É a concepção de cultura como 'Patrimônio' o que já se constitui aqui, no registro histórico.
Por um outro viés interpretativo, Foucault destaca também a dimensão do poder na produção e na gestão do arquivo32. Isso porque a leitura do arquivo não se restringe às dimensões semântica e lógica dos enunciados ontológicos naqueles presentes, mas supõem também a intervenção do poder pela mediação de códigos classificatórios e interpretativos. Dessa maneira, a constituição e a leitura dos arquivos seriam permeados por 'jogos de verdade', para nos valermos de um conceito tardio enunciado por Foucault no final do seu percurso teórico.33
Seria pela mediação decisiva desses jogos de verdade que certas operações interpretativas, que estão presentes tanto na constituição quanto na leitura do arquivo, se realizam na dimensão ficcional e essa se inscreve na tessitura desse. Com efeito, a ficção marcaria então a escolha da documentação, os recortes nessa realizados e as linhas de força que delineiam a sua leitura, não existindo, assim, jamais o documento como puro fato, desenvolvido fora daquelas operações34.
Para inserir uma outra dimensão conceitual e complexificar ainda um pouco mais a leitura que estou aqui propondo, pode-se dizer com Jauss que a composição do arquivo e a sua interpretação seriam também marcados pela dimensão da 'recepção'35. Se esse teórico alemão realizou o seu trabalho no campo da estética e da literatura, onde enunciou uma teoria da recepção, essa leitura pode ser também ampliada para a constituição de outros arquivos. De qualquer forma, no que tange ao trabalho intelectual de Mário de Andrade, era indubitavelmente a dimensão estética do arquivo que estava em pauta, na qual pôde realizar a recepção de diferentes discursos teóricos na sua leitura sobre a brasilidade.
VI. Comando anti-colonial
Se os conceitos de arquivo, formulados por Derrida e Foucault, podem efetivamente contribuir para explicitar e esclarecer o que está em pauta na cartografia e na refundação do arquivo, realizados por Mário de Andrade, assim como o conceito de estética da recepção de Jauss, pode-se dar agora um passo a mais no que tange à dimensão do comando presente nesse trabalho de arquivamento.
Assim, não resta dúvida que Mário de Andrade assume uma posição ética e política face à brasilidade que se desdobra em uma postura rebelde e subversiva, no que tange ao arquivo da brasilidade. Com efeito, a postura daquele é marcadamente 'anticolonialista' e esse pressuposto delineou a direção de leitura de Mário de Andrade sobre a brasilidade. Seria nesses termos que este buscou refundar o arquivo da brasilidade, realizando uma 'desconstrução' sistemática do arquivo existente36, que se fundava em um pressuposto colonialista. O novo pressuposto enuncia-se, na escrita de Mário de Andrade, pela metáfora recorrente da "moléstia de Nabuco". Essa metáfora condensa a postura colonizada presente em parcela significativa da intelectualidade brasileira, que tem os olhos sempre voltados para a Europa e não enxergam o que se passa no Brasil.
Além disso, esse mesmo pressuposto colonialista se condensaria ainda na concepção individualista da arte, que é estetizante de acordo com os cânones, sempre copiados e imitados, do que se prescreve na Europa. Nesses termos, realizar a leitura da arte como fazer implicaria em uma crítica sistemática do pressuposto colonialista presente no imaginário brasileiro e enunciar agora um outro pressuposto nomológico37. Recentrar o arquivo na idéia de brasilidade, enfim, implicaria efetivamente em constituir um outro comando.
Nesta perspectiva, podemos aproximar o trabalho de refundação do arquivo da brasilidade de Mário de Andrade das reflexões de um outro arquivista importante, que buscou fundar o arquivo da modernidade no Ocidente. Assim, quero me referir agora a Walter Benjamin, que pretendeu fundar o arquivo da modernidade em toda a sua obra, mas que assumiu com a pesquisa realizada nas Passagens38 uma inflexão decisiva. A investigação que começou a realizar na Biblioteca Nacional de Paris, nos anos finais de sua vida, foi fundamental para isso, como se sabe.
Foi nesse contexto, histórico e teórico, que Benjamin escreveu o seu último ensaio, publicado apenas posteriormente, após a sua morte, por Hannah Arendt (Benjamin, 1991). Estou me referindo aqui ao ensaio "Sobre o conceito da história". Pode-se enfatizar, nesse ensaio magistral, pelo menos duas grandes teses, que podemos aproximar da refundação do arquivo da brasilidade por Mário de Andrade.
Antes de tudo, de que a história escrita e legitimada é sempre a história dos 'vencedores', que registram assim a memória dos fatos que contam efetivamente e compõem o seu arquivo a partir da posição de quem vence, isto é, de quem domina e impõem a sua versão dos acontecimentos aos 'vencidos'. Essa documentação arquival passa necessariamente pela ficção dos vencedores, qual seja, de suas façanhas e conquistas. Os vencidos não têm história, pois os seus arquivos nem foram constituídos. Portanto, a escritura histórica seria tão simples e trágica como isso. Vale dizer, para que os perdedores pudessem vir a ter uma história, necessário seria que pudessem sair dessa posição dominada e se deslocarem para a de vencedores (ibidem). Somente assim poderiam constituir o seu arquivo a partir dos traços de sua memória e da imposição de um outro comando nomológico.
Em seguida, Benjamin enfatiza, ainda, como desdobramento da tese anterior, que a concepção moderna e iluminista do 'progresso' não passa de uma ideologia, formulada pelos vencedores, é claro. Isso porque, se olharmos para trás e para o passado, - como na pintura "Angelus Novo", de Klee -, o que se pode constatar é que em cada passo dado em direção ao suposto progresso, o que se realizou ao mesmo tempo foi um ato de 'barbárie', pelo qual os vencedores destituíram os perdedores e implantaram a sua dominação política. Destituição essa que passa necessariamente pelo apagamento da memória e da impossibilidade dessa se inscrever como arquivo, enfim, e que estabelece o processo simbólico de dominação.
Essas teses de Benjamin sobre a filosofia da história devem muito teoricamente, como se sabe, ao ensaio de Nietzsche sobre a crítica do discurso da história39, realizada na segunda metade do século XIX. Nas suas Segundas considerações intempestivas40, com efeito, Nietzsche empreendeu a crítica sistemática da história alemã, realizando uma crítica contundente à ideia de 'origem' presente no discurso histórico, em que enfatizava, em contrapartida, as dimensões de interpretação e de ficção que estariam necessariamente presentes nas reconstruções históricas. Vale dizer, Nietzsche caminhava já aqui na direção de forjar decisivamente a genealogia como saber, em oposição à história e ao historicismo.
Se retomarmos essas formulações de Benjamin para realizar a leitura do percurso teórico de Mário de Andrade, podemos dizer que, ao empreender a crítica do pressuposto colonialista presente no arquivo do Brasil, aquele desarticulou o seu princípio nomológico pela proposta de um outro, qual seja, voltado agora ao recentramento sobre o Brasil, e não mais voltado à Europa. Com isso, a voz dos vencidos poderia ganhar espaço e passaria a ser inscrita no arquivo da brasilidade, começando a desbancar, assim, a voz dos vencedores. Enfim, as viagens etnográficas de Mário de Andrade lhe possibilitaram os meios para dar voz aos vencidos, excluídos até então da cartografia do Brasil, e inscrevê-los então no arquivo da brasilidade.
Além disso, ao dar voz aos vencidos, a dimensão de barbárie presente na leitura dos vencedores começou também a ser questionada, pela qual se pôde reconhecer não apenas a atrocidades dos dominadores, mas também o que existe de civilidade no mundo dos dominados. As viagens sempre rumo ao Norte, realizadas por Mário de Andrade, rearticularam e refundaram o imaginário da brasilidade, constituindo para esse então um outro arquivo.
Pode-se dizer, portanto, que a pesquisa teórica de Mário de Andrade não era nem a de um colecionador do Brasil, nem tampouco a de um folclorista. Pelo contrário, aquele pretendia forjar um outro arquivo da brasilidade, refundando-o pela desconstrução do arquivo instituído, ao inscrever nesse não apenas novos enunciados ontológicos, mas principalmente pela proposição de um outro princípio nomológico de comando. Recentrando-se agora no pressuposto anti-colonialista do comando e criticando o antigo pressuposto colonialista, Mário de Andrade participava de um novo projeto nacional popular para repensar o Brasil a partir da atualidade e com vistas ao seu futuro como nação. A constituição da problemática do discurso sobre o Patrimônio Nacional, com Rodrigo de Melo Franco, enfim, foi o desdobramento desse projeto no plano da política de Estado.
Para isso, no entanto, seria necessário pensar o Brasil como uma 'totalidade orgânica', isto é, como uma 'nação' propriamente dita, que não mais se restringisse a certos estados e regiões. Portanto, seria fundamental superar os regionalismos e o seu correlato, qual seja, o discurso do folclore, para que se constituísse uma leitura 'universalista ', e não mais 'particularista', sobre a brasilidade. Seria assim, enfim, que a tradição brasileira poderia se constituir.
VII. Da voz à escrita
Por isso mesmo, Mário de Andrade se empenhou em conceber a existência de uma 'língua brasileira', enunciando que esta não se restringiria às coordenadas da 'língua portuguesa'. Assim, formulava que no Brasil nós falamos o brasileiro especificamente, com formas, inflexões e acentos que seriam singulares. Existiria, assim, uma decalagem entre a 'fala' e a 'escrita' no Brasil, pois falávamos o brasileiro, mas escrevíamos ainda em português. Seria necessário, então, ultrapassar e superar essa decalagem, inscrevendo decisivamente agora a voz brasileira em uma outra escrita.
Pode-se depreender disso, então, como a crítica ao princípio nomológico do arquivo colonial orientava a leitura de Mário de Andrade na refundação do arquivo da brasilidade, no que tange à sua problemática fundamental, qual seja, a da língua. Isso porque, sem a referência a esta, na sua especificidade e singularidade, não seria possível constituir um arquivo da brasilidade, centrado em um pressuposto anticolonial.
Essa problemática se encontrava já presente, de maneira bem precoce, no percurso teórico de Mário de Andrade. Desde a Paulicéia Desvairada, com efeito, aquele já enunciava que o brasileiro como língua se constituiu desde os primórdios do Brasil colonial, construindo uma tradição linguageira específica, pelo qual se produzia uma 'diferença' significativa face ao português como matriz linguística41 42. Essa tradição linguageira foi constituída de maneira 'inconsciente'; no entanto, os falantes brasileiros não "se davam conta" da diferença que já imprimiam na língua portuguesa com suas inflexões e as singularidades de suas vozes.
Encontramos já aqui uma primeira referência importante à psicanálise no discurso de Mário de Andrade nessa alusão à apropriação brasileira do português, pela diferença imprimida na produção de uma nova voz. Com isso, Mário de Andrade enuncia um processo brasileiro de recepção da língua portuguesa, em que esta foi transformada de maneira inconsciente pelos falantes. Além disso, na decalagem entre os registros da voz e da escrita, acima referidas, da língua brasileira face à língua portuguesa, tal dimensão inconsciente da língua brasileira se enunciaria ainda de forma similar.
Assim, se a língua portuguesa foi efetivamente constitutiva da tradição brasileira e do arquivo originário da brasilidade, sem dúvida a língua brasileira foi se constituindo progressivamente, de maneira inconsciente, ao lado da primeira, pelas diferenças que foram sendo lentamente produzidas. Dessa maneira, o arquivo da brasilidade estaria se constituindo desde os primórdios da colonização do Brasil, marcando de maneira inconsciente a sua ruptura e descontinuidade face ao arquivo português e colonial. Enfim, a desconstrução da língua portuguesa pela brasileira estaria então já em pauta, construindo, assim, a leitura do mundo de uma outra maneira, já que orientado por um outro olhar delineado pela nova língua.
Como foi que Mário de Andrade teorizou sobre isso? De maneira sugestiva e interessante esse afirma que as línguas em geral 'precedem' efetivamente as suas gramáticas43. Portanto, tanto do ponto de vista histórico quanto lógico, a língua como voz e fala precedem a sua constituição e formalização no registro da gramática.
Impõem-se aqui novamente, na escrita de Mário de Andrade, a segunda referência à psicanálise e ao inconsciente, pois esse processo de constituição da língua se daria também de maneira inconsciente. Isso porque este, como estrutura fundamental do psiquismo, não conheceria as gramáticas, tampouco as línguas organizadas. A lógica do inconsciente, enfim, seria diferente da lógica da consciência, que estaria no fundamento da constituição das diferentes gramáticas.
Portanto, se o projeto teórico de Mário de Andrade era o de refundar o arquivo brasileiro, com um fundamento nomológico anticolonial, o seu ponto de partida tinha que ser necessariamente o de destacar a construção singular da língua brasileira, na sua diferença com a língua portuguesa, desde o início da colonização do país. Isso porque a construção do arquivo e da tradição da brasilidade foi realizada desde os nossos primórdios, pela desconstrução efetiva da língua portuguesa realizada pela língua brasileira.
Nessa perspectiva, o movimento modernista foi então a assunção plena, no registro da consciência estética, do arquivo da brasilidade, nos anos 1920, mas esse processo já teria se iniciado desde os primórdios do Brasil colonial. Por isso mesmo, a voz da brasilidade se efetivou inicialmente e se diferenciou face à escrita ainda portuguesa, que permaneceu como marca emblemática da tradição colonial. Porém, uma outra escrita começou a se forjar com a poética modernista, que passou a escrever efetivamente em brasileiro, como realizou Mário de Andrade com minúcias na disseminação das retóricas indígena e africana, ao lado da portuguesa, no seu romance intitulado Macunaíma44.
VIII. Loucura, primitividade e criação
Para realizar a desconstrução do arquivo fundado no princípio colonial de comando, em prol de um princípio nomológico centrado na brasilidade como tradição, seria necessário fazer 'trabalhar' a língua brasileira, fundamento do novo arquivo. Dessa maneira, os particularismos e os regionalismos folclóricos poderiam ser superados pelo novo arquivo, que passaria a delinear o Brasil como nação e como totalidade orgânica.
Como empreender isso? O intelectual brasileiro deveria assumir uma postura 'desvairada' face às suas supostas representações erudita e europeia, para que pudesse se curar da crônica "moléstia de Nabuco". Estou me valendo aqui propositalmente do significante 'desvairado', pois foi justamente esse que Mário de Andrade escolheu para intitular o seu primeiro livro de poesia: Paulicéia desvairada. No entanto, mais do que uma palavra lançada ao léu, o significante desvairado pretende remeter para um 'método' de desconstrução do arquivo colonialista, com vistas a refundar o arquivo da brasilidade.
Assim, seria pelo emblema simbólico do 'desvairismo' que Mário de Andrade empreendeu o percurso inaugural da sua poética, na medida que aquele emblema seria um princípio metódico 'negativo'. Por que negativo? Esse princípio seria negativo na medida que suas teorias seriam um "disparate"45. Se essas não explicam e não valem "coisíssima nenhuma", com efeito, teriam a potência de desorganizar o arquivo brasileiro pré-modernista e possibilitar a constituição do arquivo da brasilidade, a começar pela sua proposição axiomática, qual seja, o enunciado de uma língua brasileira. Portanto, o dito desvairismo, mediado pelo disparate, seria o princípio metódico negativo que poderia realizar a desconstrução do arquivo colonialista brasileiro e abrir espaço retórico para a construção do arquivo da brasilidade propriamente dito.
Evidentemente, que a alusão ao desvairado remete à metáfora da 'loucura', considerada que foi aqui por Mário de Andrade como signo marcado pela positividade e não pela negatividade. Com efeito, como para alguns dos modernistas e principalmente Oswald de Andrade, nos seus manifestos - "Manifesto Pau-Brasil"46 e "Manifesto Antropófago"47, - as figuras do 'primitivo' e do louco são positivadas como potências de vida e de 'criação'. Não seriam, então, signos da decadência e da regressão biológica, social e simbólica, em uma perspectiva teórica que já realizava a crítica sistemática do evolucionismo, no qual aquelas figuras seriam signos eloquentes de involução e de degeneração.
A positividade presente na experiência da loucura implicaria no reconhecimento de que a experiência da criação pressupunha a destruição prévia de algo, em uma rebeldia eminentemente criativa, que remete tanto ao discurso romântico quanto ao discurso nietzschiano sobre o gênio. Foi neste sentido, me parece, que Mário de Andrade pôde se referir a Olavo Bilac, no qual a destruição implicaria em criação, no prefácio da Paulicéia Desvairada48.
No que concerne agora ao primitivo, este seria a condensação 'virtual' de todas as possibilidades, metáfora por excelência que seria da 'potência' e da criação. Daí porque a figura do primitivo se transformou em uma das figuras heroicas do ideário modernista, tanto em Mário de Andrade quanto em Oswald de Andrade. Seria justamente pelo reconhecimento da positividade e da potência do primitivo, face ao europeu (supostamente) civilizado, que a constituição do arquivo da brasilidade seria possível, pois todas as potencialidades estariam abertas para o futuro da tradição brasileira. A primitividade seria o grande trunfo para a constituição dessa, enfim, pois todos os percursos seria possíveis a partir dessa virtualidade potente.
No entanto, a loucura e a primitividade estariam inscritas no registro psíquico do inconsciente, enquanto a suposta civilização e a gramaticalidade que lhe seriam correlatas no registro da consciência. Por isso mesmo, como a loucura e a primitividade, a criatividade poética seria também inconsciente. E, também, em consequência, a impulsão lírica e a inspiração poética49. Portanto, apenas posteriormente a consciência reconheceria e diria algo sobre o que se produziu no ato poético, procurando justificar logicamente o que já teria acontecido50.
Assim, foi justamente nesses termos que Mário de Andrade procurou articular a relação existente entre o conjunto de poemas que constituíram a Paulicéia Desvairada e o "Prefácio interessantíssimo", que é a sua introdução. O corpo poético da obra constituiu-se primeiramente de maneira inconsciente, como impulsão lírica, sem qualquer planificação racional e, apenas posteriormente, com os poemas escritos, a teorização sobre a obra foi então possível e escrita como prefácio51.
O que implica dizer que a arte seria a afirmação da 'vida', como potência e linguagem, sem qualquer presunção da gramaticalidade e da lógica formal, e que se constituiria da mesma forma que o 'sonho'. A concepção de inconsciente se evidencia aqui novamente, com bastante clareza e literalidade, na escrita de Mário de Andrade. Pode se depreender aqui tanto as referências ao discurso psicanalítico de Freud52 e ao discurso filosófico de Nietzsche53, quanto ao discurso estético do romantismo54, que delinearam a poética e a estética com tais cânones acima destacados. Portanto, a vida seria efetivamente poiesis e sonho, antes de mais nada, que balbuciaria a sua voz como linguagem e o ser poderia assim se afirmar como potência.
Essa afirmação da vida como potência é o que nos levaria não apenas a sonhar, mas também ao 'riso' e ao 'sofrimento'55. Com efeito, o escárnio e a dor seriam modalidades outras de manifestação da vida e do inconsciente. Porém, o pensamento crítico sobre essas experiências primordiais se constituiria somente posteriormente, em uma 'reflexão' ao que se produziu inicialmente como poiesis, da mesma forma que a gramática e a língua formalizadas.
Nessa perspectiva, a impulsão lírica, amalgamada que seria com a matéria-prima da primitividade e da loucura como potências do inconsciente, seria de ordem 'instintiva'. Daí a sua 'feiura' e a sua marca eminentemente 'escatológica'56. Portanto, o que é 'belo' seria então uma transformação desse magma originário, que seria inicialmente mal-cheiroso, mal-educado e louco. O que estaria aqui em pauta seria a operação psíquica da 'sublimação'57, mediante a qual a beleza seria a transmutação daquilo que seria originariamente feio e horroroso.
A referência teórica à psicanálise é também aqui evidente. Com efeito, ao aludir ao sonho e ao inconsciente, Mário de Andrade se refere ao livro de Freud, A interpretação do sonho58, até mesmo porque a equação simbólica entre a loucura, o primitivo, o infantil e o inconsciente foi aqui formulado. Além disso, o que se enuncia agora é uma referência explícita ao conceito de sexualidade infantil de Freud, forjada nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade59. Assim, a concepção de que a sublimação seria uma transformação do que seria originariamente erótico, feio e horroroso é uma das teses de Freud nessa obra constitutiva do discurso psicanalítico.
Porém, as referências teóricas à psicanálise continuam a pulular intensivamente na escritura de Mário de Andrade sobre a poética. Foi a problemática da linguagem que foi agora retomada, em um aprofundamento crucial. Assim, a outra tese daquele sobre a poesia é que esta deveria se aproximar da 'música', na medida que essa seria forjada no inconsciente60. A música, com efeito, teria abandonado há muito a 'melodia' em nome da 'harmonia'. Retomando Wagner, Mário de Andrade afirma que a harmonia seria de ordem inconsciente e estaria então longe de qualquer gramaticalidade. A melodia seria, de tal modo, a resultante de uma operação de imposição da gramática sobre uma harmonia originária, que seria constitutiva do inconsciente.
Vale dizer, a linguagem seria constituída por sonoridades harmoniosas e não melódicas, nas quais o inconsciente estaria plasmado como potência de vida, nas suas dimensões erótica, feia e escatológica. Seriam essas sonoridades que constituiriam a impulsão lírica, que teria então uma base eminentemente instintual. Portanto, inscrito que estava nas tramas discursivas de Freud e de Nietzsche (Wagner), Mário de Andrade forjava agora um conceito de linguagem e de poiesis que se fundaria nos instintos, pelos quais o inconsciente e a vida se amalgamariam como afirmação de potência do ser.
Em diferentes ensaios dos anos 1960, Foucault forjou o conceito de linguagem como 'murmúrio'. Assim, pela escrita as palavras e as frases viriam aos borbotões, sem ordenação lógica, reguladas apenas pelo 'acontecimento ' que seria a sua condição de possibilidade. A concepção de linguagem como murmúrio pode ser perfeitamente aproximada da formulação de Mário de Andrade da linguagem como harmonia e não como melodia. Nesse particular, o que aproxima Foucault e Mário de Andrade é o discurso filosófico de Nietzsche.61 62
Para concluir este tópico, é preciso ainda evocar as figuras do louco e do primitivo no campo agora das artes plásticas. Em uma crônica de 1929, centrada na leitura da obra de Cícero Dias, Mário de Andrade enfatizou o estilo surrealista presente nas suas imagens pictóricas, destacando a proximidade da linguagem do surrealismo com as do louco e do primitivo. Seria ainda a referência ao inconsciente que estaria aqui em pauta, de maneira decisiva, no registro da pintura. Enfim, Mário de Andrade estaria bastante distante do discurso do evolucionismo antropológico e da psiquiatria no que concerne à loucura e ao primitivo, aproximando-se e valendo-se efetivamente dos conceitos freudianos.
IX. Inconsciente, fantasma e arquivo
Se o que disse até agora ficou claro e evidente, o discurso freudiano impregnou a retórica de Mário de Andrade, tanto para constituir a estética modernista quanto para conceber os conceitos de arquivo da brasilidade.
Assim, os conceitos de Freud se impõem no "Prefácio interessantíssimo" da Paulicéia desvairada: subconsciente63, censura64, inconsciente65, instinto66, recalcamento sexual67 e sublimação68. Tudo isso foi enunciado para nos dizer que o discurso teórico sobre a arte e a literatura não poderia se fundar na tradição do racionalismo filosófico. Foi por esse viés que os conceitos de inconsciente e de instinto seriam constituintes não apenas da linguagem, mas também da memória do arquivo.
É o que pretendo demonstrar agora, com um pouco mais de rigor, no que se refere aos registros do arquivo e da memória, articulando esses à concepção estética de Mário de Andrade, pela mediação do conceito de inconsciente.
Assim, Mário de Andrade realizou a sua leitura sobre a memória e o arquivo em uma dupla direção teórica, que são complementares. Na primeira, o que foi colocado em pauta foi a ideia de 'assombração', enquanto na segunda o que estava em questão foram as idéias de 'marca' e de 'traço'. Antes de tudo, a memória e o arquivo se materializariam como assombração, de maneira que a ênfase aqui foi colocada na dimensão da ficção. O que implica em dizer que o que se destaca é o registro da imaginação e não o da sensorialidade.
O que significa essa formulação, afinal de contas? O que estaria em pauta é que a relação do sujeito com o mundo não se daria mais na direção classicamente estabelecida entre os pólos da sensorialidade e do entendimento, pelo qual o direcionamento iria do primeiro para o segundo registro. Uma inversão significante ocorreria, colocando em suspensão esse modelo cognitivo clássico. Com efeito, seria agora o arquivo permeado que é por traços e palavras que passaria a encantar o mundo, de maneira a produzir assombrações. O arquivo ficcionalizaria as relações do sujeito com o mundo, pelas assombrações imaginativas, que seriam advindas dos traços e palavras que lhe perpassariam.
Evidentemente, essa impregnação e disseminação encantatória do mundo pelas assombrações, implica na existência de 'fantasmas' que estariam presentes no campo do arquivo. Com efeito, se não existissem fantasmas nesse porque então falar em assombrações? Parece-me que isso é óbvio. Portanto, permeado que seria por fantasmas/assombrações, o arquivo se fundaria na imaginação, que como potência de ficção encantaria então o mundo.
O arquivo, assim, não seria constituído apenas por reminiscências estáticas, como ocorreria com o registro da memória, mas permeado por fantasmas que perpassaria os interstícios das reminiscências e que promoveriam nessas até mesmo um certo dinamismo rítmico. Os fantasmas/assombrações se inscreveriam no corpo, assim como nos intervalos entre as palavras e as frases, conferindo uma outra ênfase, direção e acento nas relações do sujeito com o mundo, que fundaria o campo da própria experiência.
Porém, ao lado disso e em conjunção com isso, o arquivo seria também constituído como 'trilhas' e como 'rastros' de signos, que se fariam presentes no espírito, como sulcos impressos que delineariam direções a serem percorridas. Foi justamente essa concepção de arquivo que estava presente na escrita de Mário de Andrade, quando esse se referiu aos passos do Índio peruano Huitota que tanto lhe encantaram:
Quando permito que o passado se lembre de mim, às vezes sinto esses pés Huitotas andando na minha memória. E à medida que o tempo me afasta deles, vai ficando cada vez mais passos e cada vez mais memórias (...) Se eu os posso identificar com a minha memória e só pelo que está neste papel é que os homens podem saber o que foram estes passos69.
Assim, o sujeito está aqui efetivamente 'descentrado' - "quando permito que o passado se lembre de mim" - face à memória, evidenciando novamente aqui Mário de Andrade a suposição teórica do inconsciente freudiano. Ao lado disso, o objeto real se perde (o índio peruano, seu andar rápido) e no seu lugar ficam apenas as marcas de seus passos, como trilhas e rastros na memória, isto é, como signos que remetem à sua existência pretérita. Como 'ausência', no entanto, a existência coletiva desses passos não pode subsistir sem que sejam 'impressos' e 'inscritos' em uma folha de papel pelo escritor, que os transmite. Portanto, diferentemente da memória que é íntima e evanescente - ela pode ou não se lembrar de mim, em uma temporalidade que é incontrolável no seu retorno e repetição -, o arquivo é o que permite que a memória seja inscrita como um conjunto de traços em um dado 'suporte'70, que é, no caso, a folha de papel.
Esse conjunto de traços que se imprime se constrói então como trilhas e rastros, isto é, marcados que são pela 'diferença' dos signos que se opõem. O que importa na marcha rápida e vigorosa do índio peruano é a maneira e a forma como impactaram o olhar e a experiência de Mário de Andrade, que os fixou inicialmente como marcas, em uma 'ausência' do referente (o índio peruano) que ocorreu no passado. Portanto, a evocação realiza-se de maneira eminentemente ficcional, pela qual a ausência se torna presença fantasmática fugidia, pela via da assombração e da espectralidade71. Seria essa 'escrita' psíquica que se imprime posteriormente no suporte do papel, na sua transmutação em discurso e em texto, que então se escreve.
O que está em pauta aqui é o modelo de psiquismo, delineado por Freud no famoso capítulo VII de A interpretação dos sonhos72. O que se passa no registro da consciência-percepção se perde imediatamente a aparece posteriormente como traço e signo, constituindo então o registro psíquico do inconsciente. É o psiquismo como arquivo e como sistema arquival o que se destaca aqui, portanto, de maneira eloquente. Os fantasmas, como espectros que nos perpassam de maneira permanente e insistente, seriam assim fulgurações que circulam nos interstícios desses traços e signos, aparecendo então como assombrações.
Vale dizer, para Freud o arquivo se ordena no registro do inconsciente, sendo forjado por traços e signos daquilo que se perdeu como presença e que se fixou como ausência, pela mediação dos quais a ausência pretende se tornar novamente presença pela circulação dos fantasmas, como assombrações que se impõem a nós. Portanto, para Mário de Andrade, seria essa matéria-prima marcada no inconsciente que constituiria o arquivo brasileiro propriamente dito que, fundando-se na especificidade da língua brasileira na sua diferença com a língua portuguesa, nos possibilitaria alçar a posição de universalidade pela afirmação do que é singular na brasilidade.
Se Macunaíma foi o contraponto poético das pesquisas teóricas e críticas de Mário de Andrade sobre a tradição brasileira73, seria porque condensa na sua escritura a concepção de arquivo forjada por Mário de Andrade, não apenas na sua linguagem que amalgama propositalmente os registros popular e erudito da brasilidade, mas também nas suas problemáticas, temas e reflexões. Com efeito, se o personagem Macunaíma é o nosso herói sem nenhum caráter, foi porque esqueceu a tradição e o arquivo da brasilidade, estando, pois, ainda adormecido como os demais brasileiros. Por isso mesmo, o percurso imaginário de Macunaíma seria o de realizar a Descoberta do Brasil, como realizou, aliás, Mário de Andrade, para sair de sua condição adormecida, despertando então para a tradição da brasilidade.
Porém, se o arquivo como conjunto de signos se atualiza na atualidade, visando constituir o futuro como possibilidade efetiva, pelas assombrações e pelos espectros, seria porque o registro da sensorialidade como percepção se encontra parcialmente obstruído pelo impacto do 'excesso', que se transforma inevitavelmente em trauma. Assim, se já precocemente no seu "Prefácio interessantíssimo" à Paulicéia Desvairada, Mário de Andrade nos dizia já que os sentidos eram frágeis74, em "Táxi: Memória e Assombração" ele é ainda mais enfático em relação a isso quando afirma:
(...) na verdade o que a gente faz é povoar a inteligência de assombrações exageradas e secundariamente falsas. Esses sonhos de acordado, poderosamente revestidos de palavras, se projetam da inteligência pros sentidos e dos sentidos pro ambiente exterior, se alargando cada vez mais. São as assombrações. 'Diferentes pois das sensações, as quais do ambiente exterior pros sentidos e destes para a inteligência vêm se diminuindo cada vez mais'. E essas assombrações por completo diferentes de tudo quanto passou é que a gente chama de "passado"75.
É possível aproximar essa leitura arguta de Mário de Andrade, sobre a recente modernidade brasileira, da que foi realizada por Benjamin, quando este se refere à poesia de Baudelaire e o impacto traumático da modernidade sobre a experiência social e o discurso poético76. Benjamin procurou delinear as novas condições do arquivo na modernidade, se valendo do ensaio de Freud sobre o 'traumático', a 'repetição' e a 'pulsão de morte', intitulado "Além do princípio do prazer"77. Nesse contexto, a figura poética do 'narrador' se faz então impossível78 e a poesia moderna tem que ser construída a partir de tais restos traumáticos, para procurar dar sentido à experiência social agora fragmentária.
Portanto, em Mário de Andrade a modernidade brasileira seria então efetivamente impactante, tornando, assim, frágeis os nossos sentidos. Para contornar esse obstáculo, necessário seria então acordar e despertar os nossos espectros e fantasmas, para encantarmos o mundo e a experiência social com as trilhas e assombrações dos arquivos da brasilidade, para realizar assim a construção da brasilidade a partir dos signos marcadas no inconsciente. Com isso, poderíamos ter um futuro possível, retomando as nossas marcas arquivais para nos direcionar ficcionalmente na fragmentação presente na atualidade.
Foi isso que o movimento modernista brasileiro realizou na Semana de 1922, como despertar brasileiro, do qual Mário de Andrade foi um de seus mais importantes arautos.
Endereço para correspondência
Joel Birman
E-mail: joelbirman@gmail.com
*Psicanalista, Membro do Espace Analytique e do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), Diretor de Estudos em Ciências Humanas, Universidade Paris VII.
1Moraes, E. J. de. (1979). A Brasilidade Modernista: Sua Dimensão Filosófica. Rio de Janeiro: Graal.
2Foucault, Michel. "Qu'est-ce qu'un auteur". (1969). In Foucault, M. Dits et écrits. Volume I. Paris, Gallimard, 1994.
3Derrida, Jacques. Mal d'archive. Une impression freudienne. Paris, Galilée, 1995.
4Idem. Foucault, M. Três tempos sobre a história da Loucura. Rio de Janeiro, Dumará, 2000.
5Braudel, F. Écrits sur l'histoire. 2a parte. São Paulo, Perspectiva, 1976.
6Etienne Filho, J. (1980). Poeta completo. In Andrade, M. Poesias completas. Volume I. Belo Horizonte, Itatiaia, p. 1.
7Jardim de Moraes, E. (2010). Mário de Andrade: A Morte do Poeta. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.
8Andrade, M. (2005). Táxi: Casa de Pensão (11 de abril de 1929). In Andrade, M. Táxi e Crônicas no Diário Nacional. Belo Horizonte, Itatiaia, pp. 82-83.
9Andrade, O. (1980). Prefácio interessantíssimo. In Paulicéia Desvairada (1921). In Andrade, M. Poesias Completas. Belo Horizonte, Itatiaia, p. 29.
10Andrade, M. (2002). O movimento modernista (1941). In Andrade, M. Aspectos da literatura brasileira. (6ª ed.) Belo Horizonte, Itatiaia, pp. 266-276.
11Ibidem.
12Ibidem.
13Ibidem.
14Ibidem.
15Dejean, J. (1997). Ancients against Moderns. Chicago/London, The University of Chicago Press.
16Lecoq, A. M. (2001). La Querelle des Anciens et des Modernes. Paris, Folio Classique (Editions Gallimard).
17Idem, "O movimento modernista" (1941). Op. cit.
18Idem, "Cícero Dias" (2.6.1929). In Táxi e crônica no Diário Nacional. Op. cit.
19Andrade, M. "O artista e o artesão" (1938). In: Andrade, M. O Baile das Quatro Artes. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1975.
20Neves, M. de S. (1998). Da Maloca do Tietê ao Império do Mato Virgem. Mário de Andrade: Roteiros e descobrimentos. In Chalhoub, S. e Pereira, L.A.M. (Orgs.). A História Contada. Capítulos da história social da literatura do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
21Andrade, M.(1938). O artista e o artesão. In Andrade, M. O Baile das Quatro Artes. Op. cit.
22M. de Souza Neves, Da maloca do Tietê ao império do Mato Virgem. Mário de Andrade: roteiros e descobrimentos, p. 4. Op. cit.
23Nietzsche, F. (1971). La généalogie de la morale. Paris, Gallimard.
24Foucault, M. (1994). Nietzsche, la généalogie, l'histoire (1971). In Foucault, M. Dits et Écrits. Volume II. Paris, Gallimard.
25Andrade, M. (1999). Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte, Itatiaia.
26Ibidem.
27Andrade, M. (1991). Aspectos da música brasileira. Rio de Janeiro/Belo Horizonte, Vila Rica.
28Andrade, M. O artista e o artesão. (1938). In Andrade, M. O Baile das Quatro Artes. Op. cit.
29Andrade, M. (1976). O turista aprendiz. São Paulo, Duas Cidades.
30Derrida, J. Mal d'archive. Une impression freudienne. Op. cit.
31Ibidem.
32Foucault, M. L'archeologie du savoir. Op. cit.
33Foucault, M. Les tecnologies de soi-même. In Foucault, M. Dits et écrits. Volume IV. Op.cit.
34Derrida, J. Mal d'archive. Une impression freudienne. Op. cit.
35Jauss, H. R. (1978). Pour une esthétique de la recéption. Paris, Gallimard.
36Derrida, J. (1967). De la grammatologie. Paris, Seuil.
37Derrida, J. Mal d'archive. Une impression freudienne. Op. cit.
38Benjamin, W. (2006). Passagens. Belo Horizonte, UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
39Gagnebim, J. M. (1994). História e narração em W. Benjamin. São Paulo, Perspectiva.
40Nietzsche, F. (1988). Seconde considération intempestive. De l'utilité et de l'incovénient des études historiques pour la vie (1874). Paris, Flammarion.
41Andrade, M. Prefácio interessantíssimo. In: Paulicéia desvairada (1921), p. 28. Op. cit.
42Idem, O movimento modernista (1941). pp. 267-272. Op. cit.
43Andrade, M. Prefácio interessantíssimo. In Paulicéia desvairada (1921). p. 28. Op. cit.
44Andrade, M. (1970). Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. São Paulo, Martins.
45Andrade, M. Prefácio interessantíssimo. In Paulicéia desvairada (1921). p. 28. Op. cit.
46Andrade, O. (1972). Manifesto da poesia pau-brasil. (1924). In Andrade, M. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Obras Completas - 6. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/MEC.
47Ibidem.
48Andrade, M. Prefácio interessantíssimo. In Paulicéia desvairada (1921). p. 28. Op. cit.
49Ibidem, p. 27.
50Ibidem, p. 13.
51Ibidem, p. 13 e 14.
52Nietzsche, F. (1977). La naissance de la tragédie. Paris, Gallimard.
53Freud, S. (1976). L'interpretation des rêves (1900). Paris, PUF.
54Gusdorf, G. (1983). Le Romantisme, vol. I e II. Paris, Payot.
55Andrade, M. Prefácio interessantíssimo. In Paulicéia desvairada (1921). p. 28. Op. cit.
56Ibidem, p. 19.
57Ibidem.
58Freud, S. L'interprétation des rêves (1900). Op. cit.
59Idem, Trois essais sur la théorie de la sexualité (1905). Paris, Gallimard, 1962.
60Andrade, M. Prefácio interessantíssimo. In Paulicéia desvairada (1921), pp. 22-25. Op. cit.
61Foucault, M. Distance, aspect, origine (1963). In: Dits et écrits, vol. I. Op. cit.
62Idem, Qu'est-ce qu'um auteur? (1969). In Dits et écrits, vol. I. Op. cit.
63Andrade, M. Prefácio interessantíssimo". In Paulicéia desvairada (1921). pp. 22-25. Op. cit.
64Ibidem, p. 28.
65Ibidem, p. 13.
66Ibidem, p. 19.
67Ibidem, pp. 18-19.
68Ibidem, p. 19.
69Andrade, M. (2005). Táxi: 'De-a-pé' (22.12.1929). In Andrade, M. Táxi e Crônicas no Diário Nacional. Belo Horizonte, Itatiaia. pp. 147-148.
70Ibidem, pp. 82-83
71Ibidem.
72Freud, S. L'interpretation des rêves (1900). Op. cit.
73Andrade, M. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. Op. cit.
74Andrade, M. (1921). Prefácio interessantíssimo. In Paulicéia desvairada. pp. 17-31. Op. cit.
75Andrade, Mário. (10 de maio de 1929). Táxi: Memória e assombração. In Andrade, M. Táxi e Crônicas no Diário Nacional. Belo Horizonte, Itatiaia, pp. 82-83, grifo meu, Op. cit.
76Benjamin, W. ([1940] 2000). Sur quelques thèmes baudelairiens. In Benjamin, W. Oeuvres III. Paris, Editions Gallimard (Folio), pp. 387-390.
77Freud, Sigmund. ([1920] 1981). Au-de là du principe du plaisir. In Freud, S. Essais de psychanalyse. Paris, Payot.
78Benjamin, W. Oeuvres, Volume III. Op. cit.