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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022

 

ARTIGOS

 

Corpo feminino e sexualidade: gordura, feiura e exclusão social

 

Female body and sexuality: fatness, ugliness and social exclusion

 

Corps féminin et sexualité: graisse, laideur et exclusion sociale

 

 

Joana de Vilhena Novaes*

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
Universidade Veiga de Almeida - Brasil
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
Université Denis - Diderot Paris 7 - França.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo busca investigar o lugar do corpo na atualidade, uma vez que ele nunca é totalmente apreendido pelos dispositivos culturais que possibilitem sua submissão completa às expectativas sociais. Neste sentido, é legítimo afirmar haver certa dificuldade epistêmica, no que tange às disputas de narrativas em torno do corpo gordo. Culturalmente legitimado, observamos um discurso dominante que sugere a responsabilização do sujeito por sua condição corporal. De modo análogo, a criminalização da gordura aumenta quando a sobrepomos à questão de gênero, conforme ilustrarão algumas vinhetas; fruto de entrevistas realizadas anteriormente pela autora, na pesquisa que desenvolve sobre corpo feminino, imagem, sofrimento psíquico e regulação social. A "feiura" ou o "estranho", muitas vezes poderão ser tomados como uma mensagem, cuja força reside, justamente, na sua surpreendente apresentação. Neste sentido, as práticas corporais podem ser compreendidas em um cenário de indiferenciação, na estetização da vida cotidiana, de sujeição ao discurso do outro, mas também, como uma contestação, como problematização do estatuto do corpo na contemporaneidade.

Palavras-chave: Corpo feminino, gênero, gordura, feiura e exclusão social.


ABSTRACT

This article seeks to investigate the place of the body nowadays, since it is never fully apprehended by cultural devices that allow its complete submission to social expectations. In this sense, it is legitimate to affirm that there is some epistemic difficulty, regarding the disputes of narratives around the fat body. Culturally legitimized, we observe a dominant discourse that suggests the responsibility of the subject for body condition. Similarly, the criminalization of fat increases when we overwrite it the issue of gender, as some vignettes will illustrate; the result of interviews previously conducted by the author, in the research she develops on the female body, image, psychic suffering and social regulation. The "ugliness" or the "strange" can often be taken as a message, whose strength lies precisely in its surprising presentation. In this sense, body practices can be understood in a scenario of indifferentiation, in the instantiation of everyday life, of subjection to the discourse of the other, but also, as a contestation, as a problematization of the body's status in contemporaneity.

Keywords: Female body, gender, fatness, ugliness and social exclusion.


RÉSUMÉ

Cet article cherche à étudier la place du corps de nos jours, car il n'est jamais complètement appréhendé par des dispositifs culturels qui permettent sa soumission complète aux attentes sociales. En ce sens, il est légitime d'affirmer qu'il existe une certaine difficulté épistémique, en ce qui concerne les disputes de récits autour du corps gras. Culturellement légitimé, nous observons un discours dominant qui suggère la responsabilité du sujet pour son état corporel. De même, la criminalisation des graisses augmente lorsque nous écrasons la question du genre, comme certaines vignettes l'illustreront; le résultat d'entretiens précédemment menés par l'auteure, dans la recherche qu'elle développe sur le corps féminin, l'image, la souffrance psychique et la régulation sociale. La «laideur» ou l'«étrange» peut souvent être prise comme un message, dont la force réside précisément dans sa présentation surprenante. En ce sens, les pratiques corporelles peuvent être comprises dans un scénario d'indifférenciation, dans l'estantiation de la vie quotidienne, de soumission au discours de l'autre, mais aussi, comme contestation, comme problématisation du statut du corps dans la contemporanéité.

Mots-clés: Corps féminin et sexualité, graisse, laideur et exclusion sociale.


 

 

Introdução

Se é verdade que o corpo entrou em cena como lócus de investimento na atualidade, é igualmente legítimo afirmar haver certa dificuldade epistêmica, no que tange às disputas de narrativas em torno do corpo gordo. Culturalmente legitimado, observamos um discurso dominante que sugere a responsabilização do sujeito por sua condição corporal. Tal fato, serve de ilustração para a dificuldade de entendimento da gordofobia enquanto uma questão estrutural e coletiva. Talvez isso explique, em parte, certa morosidade com que as questões do corpo gordo vieram a se firmar enquanto campo de estudos.

Da mesma forma, a gordofobia é naturalizada na sociedade brasileira sendo, frequentemente, alvo de escárnio ou depreciações morais. O culto ao corpo uma, das mais importantes formas de sociabilidade contemporânea, observado através de gerações modeladas por aparelhos de ginástica e intervenções cirúrgicas, levou a uma relação persecutória com o espelho, ancorada em uma lógica punitivista. O que, por sua vez, resultou em um imaginário de profunda intolerância e severidade em relação a qualquer desvio estético. De um direito, a beleza transformou-se em dever

Não trata, pois, de afirmarmos com isso que, corpos gordos não fossem alvo de preconceito e estigma social em outros momentos históricos. Todavia, é possível detectar a agudização e o acirramento da lógica que associa magreza excessiva à saúde e beleza. E como um segundo corolário, atribui a esses corpos o estatuto de serem desejáveis e "normais". Neste sentido, os corpos gordos integram, atualmente, as pautas tratadas pelo conceito de interseccionalidade.

De modo análogo, a opressão sobre os corpos gordos aumenta quando sobrepomos à questão de gênero, diversos marcadores. De tal forma que, às mulheres gordas, negras, lésbicas, trans, com deficiência e pobres experienciam, proporcionalmente, incidir maior regulação, marginalização e violência sobre seus corpos.

A lógica consumista contribui para que um certo conjunto de atitudes perceptivas e comportamentais, concernentes à estética, conviva, simultaneamente, com ideologias e valores extremamente conservadores. Uma boa expressão disso são as representações de masculino e feminino que, apesar das conquistas e transformações sofridas neste âmbito, possuem um referencial ancorado em valores tradicionais

Uma vez que o corpo nunca é totalmente apreendido pelos dispositivos culturais, que possibilitem sua submissão completa às expectativas sociais, a "feiura" ou o "estranho", muitas vezes poderão ser tomados como uma mensagem, cuja força reside, justamente, na sua surpreendente apresentação. Neste sentido, as práticas corporais podem ser compreendidas em um cenário de indiferenciação, na estetização da vida cotidiana, de sujeição ao discurso do outro, mas também, como uma contestação, como problematização do estatuto do corpo na contemporaneidade. De qualquer forma, o corpo está em cena, sem que haja qualquer possibilidade de predizer o futuro e seus limites.

 

Gordura e sexualidade

Remaury (2000) aponta a mulher como sendo o Outro da cultura. A mulher para o autor traria consigo uma dupla estranheza - estranha e estrangeira, uma vez que o masculino é pensado sempre a partir de seu idêntico.

Assim, seja no discurso científico, aquele que busca entender o lugar e o futuro biológico do homem, seja nas técnicas de cuidados de si, ou mesmo nas substâncias associadas a estas mesmas técnicas é sempre necessário colocar a mulher no outro lado da cultura humana. A mulher é por excelência a alteridade radical do homem (p. 238, grifos do autor).

Exagero, excesso e deslimite parecem ser termos que nos definem, às vezes, nos reduzindo a uma identidade presumida, ou a um estereótipo aprisionante. É a partir desta distinção que parte o autor. Falemos, contudo, deste excesso por uma outra via, qual seja, a da pletora alimentar e da obsessão purgativa que, segundo Remaury, habitam o imaginário feminino.

Para o autor, a imagem de excesso que o feminino carrega estaria ligada ao caráter de inquietude provocado pela mulher. O corpo dos excessos, poroso e com recheios não é apenas inquieto (por conta da saúde e da estética como apontamos acima), é inquietante porque ser diferente do corpo de referência - o corpo masculino.

Observamos então que a mulher, a despeito dos avanços reais que a história soube imprimir à sua imagem, permanece ligada à representação de uma corporeidade tão radical que a remete permanentemente à estranheza e à alteridade. Para o autor, se o homem sempre teve consciência de possuir um corpo, nós ainda não nos demos conta até que ponto a cultura destinou à mulher a ser um corpo - seu corpo. (p. 250)

Foucault (1985), em sua genial História da Sexualidade, já nos mostrava os dispositivos empregados para buscar controlar as tensões entre o homem e seus desejos:

Evitar-se-ão os discursos, os pensamentos, as concupiscências venéreas e, acima de tudo, o sujeito se defenderá daquilo que os olhos vêm, sabendo muito bem que todas essas coisas, mesmo em sonho...excitam à copulação quando alguém se absteve do coito, após alguém ter comido pratos suculentos e em abundância (p. 139).

Aqui, novamente vemos a sexualidade associada aos excessos, aos líquidos e à abundância. E ao falarmos em excesso, parece que falamos em mulher, como já nos ensinava a psicanálise. Mas dela nos ocuparemos um pouco mais adiante. Façamos um breve voo no tempo e no espaço: "Deus Todo-Poderoso". Criou o desejo sexual em dez partes, então Ele deu nove partes às mulheres E uma aos homens" - Ali ibn Taleb, Marido de Fátima, filha de Maomé e fundador da facção xiita do Islã. (Sabbaht, 1986, p. 32).

Quantas vezes nos indagamos e nos escandalizamos com os horrores do regime talibã? Por que a burca? Para que o chador? O que estaria por trás de tantas proibições? Por que tanto medo desta sexualidade feminina? Certamente não vamos nos alongar neste tema aqui, mas a curiosidade nos levou a investigar um pouco acerca da representação da mulher no imaginário muçulmano, uma vez que é pela via do excesso, da abundância e do deslimite que ela é vista.

Em um interessante livro chamado La mujer en el inconsciente musulmán, Fatma Aít Sabbah, pseudônimo da autora, vai nos conduzir não apenas pelo Islã da jurisprudência (este do poder e das leis a sharia), mas também ao Islan amoroso, místico - o Islan da poesia e das lendas sufis. É neste segundo que veremos o amor, o prazer e o desejo, ao contrário de muitos sistemas religiosos, ser incorporado nas dimensões do humano.

Segundo a autora, enquanto para os Imãs da jurisprudência a mulher é a encarnação de Satã, para os sufis ela é um reflexo do Deus-Amor, que é o Deus do islamismo. Mas é a primeira representação que nos interessa - por quais desvios a mulher passa a ser tão temida e, consequentemente, precisa ter sua sexualidade tão anulada em uma religião onde encontramos obras sobre a sexualidade desde pelo menos o século XII. O tratado O jardim perfumado e Como o ancião recuperará sua juventude pela potência sexual, datam, o primeiro, do século XII; e o segundo, de 1573.

É nas lendas e nas poesias que vamos encontrar parte das respostas. A mulher, tal qual aparece nestes escritos, é uma mulher corpo, exclusivamente física - omnisexual, nas palavras da autora. O sexo da mulher é vivido pelos homens como um polo de energia animal, irresistível, que vibra e faz vibrar o universo em seu ritmo e no qual o corpo masculino se reduz a um simples olhar hipnotizado: " Se acostó, dejó al descubierto los muslos y su parte caliente y me la mostró agitándola (...) jadeó con fuerza y oí un relincho parecido al de una jumenta " (1986, p. 52).1

A mulher navegaria também por zonas em que a distinção entre o humano e o animal é inexistente. Seu sexo é descrito como, " Un terrible y asombroso órgano que semeja la cabeza de un león por su anchura, especialmente cuando es carnoso y se irgue monumental. Órgano al que llaman alcancía, por el que no pocos hombres murieron, suspirando por su poesía " (ibid)2

São também frequentes as descrições sobre a impossibilidade de saciar uma mulher e a necessidade de tudo fazer para buscar satisfazê-la. A mulher é detentora de um sexo-ventosa que a todos atrai para se sentir satisfeita. Esse sexo-ventosa está programado para o orgasmo e há um consenso de que o desejo feminino supera em muito o masculino, não sendo jamais satisfeito. Puro Lacan! "Parece que, aunque se copule día y noche y años con una mujer esta no alcanza nunca el punto de saturación. Su sed de copular no se sacia nunca (1986, p. 54).

Os relatos acerca da imensa voracidade e esperteza feminina são também inúmeros e, frequentemente, vamos encontrar crônicas de como as mulheres enganavam seus maridos com jumentos - únicos capazes de satisfazê-las:

La mujer cogía con la mano el miembro, lo restregaba entre los labios calientes y se lo metía dentro del vientre hasta hacerlo desaparecer. Después, con el miembro metido dentro, se agitaba hasta que le venía el placer. El pollino se acostumó a esas manobras que le daban gusto. Cada vez que la mujer se le acercaba, dejaba salir su miembro (1986, p. 57).3

Não é de se espantar que muitas vezes a burca não baste e seja preciso recorrer à mutilação genital tão frequente em alguns países da África. Curiosamente, esta mesma religião que, segundo alguns, em uma má leitura do Corão, destina à mulher tais espaços e práticas aviltantes, aceita e estimula todos os tipos de práticas sexuais (não homossexuais) entre marido e mulher. Para os muçulmanos suas mulheres se enfeitam para eles, enquanto nós ocidentais nos enfeitamos para os outros. Assim, ficamos sabendo que a mulher do Aiatolá Komeini pintava os cabelos, as unhas e fazia depilação (Brooks, 1996).

Mas por que este desvio? Afinal de contas, estamos longe de usar burcas no Rio de Janeiro! Muito pelo contrário. Talvez, exatamente por isso. A história das mulheres não pode ser desvinculada de uma busca normatização de seus corpos e de contorno de seus excessos. O livro de Nunes (1999), no qual infelizmente não poderemos nos deter, vai nos mostrar como, historicamente, a mulher foi esquadrinhada por todos os saberes, sobretudo o médico e aprisionada no lugar do excesso.

Minha hipótese é de que a gordura, tal qual a percebemos em nossa sociedade, traz à tona todo o desmedido feminino que precisa, de qualquer forma, ser contido. Onde há risco de a sexualidade se manifestar, instalam-se dispositivos de vigilância e de confissão e implantam-se imediatamente as bases de um regime médico-disciplinar.

 

Ser desejada

Frequentemente, ouço em minhas pesquisas de campo, através de minhas entrevistadas, mulheres das classes médias e altas carioca, que variam entre 18 e 65 anos, as expectativas acerca das mudanças e transformações ocorridas em seus corpos. Não há como negar, sobretudo no campo das cirurgias bariátricas, que a simples possibilidade de poder frequentar o cinema, viajar e levar uma vida medianamente normal, por si só basta para inserir estas mulheres em um mundo mais rico em termo de relações pessoais, alterando radicalmente suas formas de sociabilidade. Extremamente conscientes da maneira como operam, muitas mulheres nos falam de seus aspectos compulsivos, de suas mentes obesas e de suas relações vorazes.

Não sei se você já reparou, mas gordas são pessoas compulsivas - compulsivo por comida, por trabalho, por bebida, por afeto. (C. 38).

Não há como negar também, que a busca de um outro olhar de aprovação apresente-se de forma marcante neste grupo. Da sexualidade que lhes é negada, da moda de qual não podem usufruir, aos programas que lhes são barrados, tudo aponta para um olhar que quase lhes nega o direito de existir como sujeitos. Contudo, as expectativas de mudança não estão restritas a este grupo. Quer sejam as frequentadoras das academias de ginástica, quanto aquelas que se submeteram às diferentes cirurgias plásticas, a mesma característica mostrou-se como constante - a busca pela aprovação do olhar do outro.

O que muda é que fico até com mais tesão; fico mais feliz. Saio na rua e as pessoas me dizem: nossa como você está bonita. (A. 46).

Não importa se este olhar de desaprovação é suposto ou imaginado, como nos dois casos em que as mulheres relatam a perda do interesse de seus maridos após a colocação de prótese nos seios - "tão aí duros, rijos, mas não dão vontade de apertar, só admirar". O que parece estar em pauta é atender a uma estética corporal, imaginariamente definida como bela. Nossas entrevistadas parecem nos dizer, com bastante frequência, o quanto dependem deste olhar, que de certa forma, lhes confere um valor "mais feminino". Nos falam, também, como, ao não se enquadrarem neste perfil, sofrem o exílio designado às feias.

Eu fico reparando nos meninos lá da faculdade: eles são cruéis com todo mundo, a pessoa não pode ter um defeitozinho que eles caem na pele, gente gorda e feia então, nem se fala! Eu é que não vou me expor. (B. 25).

Lembremo-nos da estreita ligação entre mulher, beleza e o seu corpo. Proponho fazermos um pequeno desvio, no sentido de refletir sobre o que a psicanálise pode nos dizer a este respeito.

Para tal, tomarei como eixo de nosso raciocínio o instigante trabalho de Medeiros (2003) O belo e a morte, em que o autor define o termo 'estética' como uma função que atende a dois propósitos, quais sejam: mitigar a angústia diante do vazio e consubstanciar o objeto do desejo, nos diz o autor.

A partir daí, Medeiros (2003) propõe pensar que, se o mandamento estabelecido pelo superego masculino é ter o falo, o caminho apontado pelo Ideal do Eu das meninas é ser desejada, é ter sobre seu corpo o olhar amoroso e desejante daquele que supostamente tem. Assim, ter uma estética que o discurso imagético, determinado sócio historicamente, definiu como belo e atraente é uma tarefa imposta pelo Ideal do Eu. Neste sentido, é na busca desta estética que o sujeito feminino se constituiria.

Eu gosto da cirurgia estética porque deixa as pessoas mais felizes, operando muitas vezes verdadeiros milagres da vida da gente (A. 43).

Em Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos [1924], Freud atribui ao temor da castração o fator decisivo para o desfecho do conflito edípico para a criança do sexo masculino. Entretanto, para a menina seria exatamente o complexo de castração que a levaria em direção ao conflito edípico, a buscar no campo do masculino, aquilo que sentiria em si faltar.

Para Medeiros (2004), não seria propriamente a falta do pênis que implicaria as vicissitudes da construção de um "psiquismo feminino", mas sim a não visibilidade do órgão genital feminino e sua incompreensão pela criança pequena.

Concordando com Lanouzière (2003), quando retoma a introjeção dos objetos bons constitutivos do narcisismo primário para destacar entre estes o olhar materno amoroso, um olhar que, dirigido à filha, buscaria compensá-la pela falta de uma forma visível, através da valorização de tudo que é visível. Assim, segundo Medeiros, se a tarefa de construção da subjetividade masculina repousa no "mandamento fálico", isto é, na sustentação da posse imaginária do falo, a construção da posição subjetiva feminina tem como tarefa primordial sustentar o olhar compensatório sobre seu corpo.

Dessa forma, a relação das mulheres com a estética de seu corpo seria tão antiga quanto a constituição de seu narcisismo e reforçada pela estruturação edípica. O que a menina busca encontrar no campo do masculino não é propriamente o que lhe falta, mas o reconhecimento do que foi posto em seu lugar: um olhar amoroso sobretudo que, em si, é visível. É, portanto, na busca deste olhar que encontraremos o sujeito feminino.

Você pode achar besteira - mas gosto que me achem gostosa! Detesto quando vou para a Europa ou para os Estados Unidos que os homens nem te olham. (R. 44).

Retomemos um dos textos mais antigos da civilização humana, A Odisseia, para relembrar a sedução exercida sobre os valentes argonautas pelo canto das sereias.

Desde então, tais misteriosos seres aparecem como representantes legítimos do sexo feminino. Interessante pensar, no entanto, que mesmo no mito, tais seres jamais possuíram um sexo genital, ao menos um que fosse humano e feminino. Desconcertante paradoxo, um ser dessexualizado representar um dos sexos. Talvez nem tanto se tivermos em mente que é a estética do corpo e não uma parte, ou um órgão, quem representa a mulher" (Homero citado por Medeiros, 2001, p. 86).

Talvez agora possamos compreender também por que as mulheres gordas são vistas como dessexualizadas. Se o feminino é aquilo que captura o olhar, uma estética que obtura a falta do falo, a representação do gênero feminino é dada então pelo olhar desejante do outro. A mulher, a quem o discurso estético de uma determinada época sócio-histórica não distinguiu com este atributo, de alvo do desejo do outro, é marcada com uma falta a mais.

Rodin (citado por Eco, 2004, p. 72) disse, certa vez, que não era a beleza que faltava aos nossos olhos, mas estes é que falhariam em não a perceber. Interessante pensar na feiura como uma "falha" do olhar. A feiura não seria então a falta de beleza e sim a incapacidade de percebê-la. Talvez o artista nos ajude a compreender o estranho fenômeno do horror e da discriminação que se atribui a tudo que possa ser designado como feio.

Para Freud (1930), a beleza era um atributo derivado do sexual. O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. "O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade... Beleza e atração são, originalmente, atributos do objeto sexual" (p. 90). Assim, para Freud, beleza e atração seriam atributos idênticos e referidos ao objeto do desejo sexual. Como acabamos de afirmar, segundo o referencial da psicanálise, o conflito edípico lança o sujeito numa relação com o falo, um conflito que apresentará duas possibilidades: alguns imaginarão tê-lo, outros suporão sê-lo.

Freud (1937) deteve-se na dinâmica da posse do falo, tê-lo, imaginariamente, como pênis seria constitutivo do superego masculino, e tê-lo simbolicamente, como um filho, seria a saída feminina... "o desejo apaziguado de um pênis destina-se a ser convertido no desejo de um bebê e de um marido, que possui um pênis" (p. 285).

Lacan e seus seguidores introduziram a dinâmica do ser o falo. Medeiros (2001[1993]), citando Alain Miller, dirá:

Exatamente por não possuir um pênis, o suporte imaginário do falo, a menina conclui o Édipo por onde começou, isto é, procurando colocar-se como completude do desejo do outro. O falo que não foi para sua mãe permanecerá como causa de sua subjetivação (p. 45).

Reunindo as duas abordagens, ninguém sairia inteiramente castrado do conflito edípico. O sujeito neurótico, seria então aquele que fantasia ter ou ser, ter o falo ou ser o objeto de desejo. A negação dessas duas possibilidades estabeleceria o sujeito castrado. O campo do feminino, como vimos, é instituído pelo ser o objeto, ser aquilo que provoca o desejo. Por outro lado, como assegura Freud, "belo é o que atrai o olhar".

Ora, se "beleza e atração são idênticos" e o sujeito feminino é aquele que se define por exercer a atração, então ser bela é uma condição e uma imposição para tal posição subjetiva. O horror e a discriminação dirigidos à mulher designada como feia decorre da castração que se mostra com a queda da máscara do desejo. O escultor tem razão, não é a beleza que falta aos nossos olhos, e sim o desejo que se ausenta de nosso olhar.

E, finalmente, se a subjetividade feminina se constrói sobre os pilares do desejo, a cirurgia plástica, bariátrica ou qualquer outro processo cultural que estabeleça uma estética sócio-histórica definida como bela, produzirá uma "nova identidade". Esta será justo aquela reclamada pela subjetividade feminina: ser mulher.

 

O horror da feiura

Toda vez que desejamos nos debruçar sobre algum tema um bom ponto de partida é a investigação de suas origens etimológicas. Assim, o termo feiura tem sua raiz no latim foeditas e quer dizer, simultaneamente, sujeira e vergonha. No francês, a palavra laider é uma derivação do verbo laedere e significa ferir. Já no alemão, a palavra utilizada para designar feiura é Hässlichkeit, termo derivado da palavra Hass, que quer dizer ódio. E, finalmente, em japonês, a palavra feio - minikui -, significa "difícil de ver".

Em um interessante artigo sobre alteridade e estética, Feitosa (2004 citado por Kupermann, Katz & Mosé) busca demonstrar como estética e feiura não são categorias excludentes, ao contrário do que costumamos pensar. Através da análise histórica das inúmeras estéticas do feio, o autor busca desnaturalizar o que entende ser um senso comum na atualidade: a ideia de que o feio é a antítese do belo e de que a sua negação representa a feiura como sinônimo de falta de beleza. Em síntese, como nos aponta Feitosa, "a feiura parece ser, nesse contexto, algo a ser melhorado ou eliminado". (2004, p. 29).

A definição do autor parece estar em consonância com a fala de nossas entrevistadas que, através de relatos contundentes, nos transmitem a dor e o difícil fardo que é carregar o gosto amargo da exclusão daqueles que são considerados esteticamente imperfeitos, bem como desviantes dentro do cenário de moralização da beleza na qual o culto ao corpo é a religião.

Frases que são proferidas com o intuito de estimular ou mesmo reforçar positivamente as pessoas gordas a persistirem com dietas e/ou rotina de exercícios, ilustram bem a ideia do corpo magro como um ideal a ser atingido, bem como a representação social do gordo como um imperfeito que deve ser reeducado, de forma eficiente à moralização do bom comportamento. Neste sentido, conforme afirmado tantas vezes neste trabalho, nada espelha melhor a moral do culto ao corpo do que a disciplina, a perseverança e a obstinação.

Vejamos alguns exemplos:

O seu corpo é um reflexo do seu comportamento - se você for uma pessoa ativa, metódica, disciplinada, terá um corpo magro e sequinho, condizente com a sua personalidade, mas se for paradona, preguiçosa do tipo que só gosta de comer e dormir, fatalmente será gorda, caída e toda flácida. (L. 48).

Finalmente, um dos relatos que melhor afirma a ideia da exclusão social infligida às mulheres gordas, será, justamente, a negação de sua sexualidade, conforme apontamos acima.

A fala do amigo de uma de nossas entrevistadas evidencia como a imagem da mulher gorda é desvinculada da de beleza e, portanto, do poder de atratividade e incitação do desejo sexual masculino. Como veremos a seguir, caso desejem ser belas e atraentes, devem, primeiro, se livrar da gordura.

Um amigo meu uma vez me disse: se quiser ser desejada, emagreça, pois é óbvio que ninguém vai olhar para gordinha, e sim para a saradona. Agora, se quiser continuar se contentando em ser aquela garota apenas simpática - aí tudo bem, não falo mais nada, mas também não venha mais choramingar no meu ombro infeliz, porque os carinhas só te querem como amiga. (B. 28)

Parece que a fala do amigo diz à nossa entrevistada que ela é menos mulher por ser gorda, logo, feia. Ser gorda lança-a na condição de apenas amiga dos homens, ou seja, só as magras podem exercer sua feminilidade plenamente, pois conseguem despertar o desejo dos "carinhas". Conforme veremos mais adiante, feiura é índice de menos-ser.

Dentre os inúmeros questionamentos sobre o estatuto da feiura que Feitosa propõe, tendo como abordagem principal os critérios artísticos de julgamento sobre a feiura, quer seja na literatura, na música, na grande mídia sensacionalista, na aparência humana ou de uma paisagem, nos chamou atenção um deles em especial; o que haveria no feio que ao mesmo tempo nos atrai e nos repele?

Se por um lado, no que concerne as relações humanas, a convivência com pessoas feias em espaços públicos tem se tornado bastante complicada, no tocante à mídia televisiva de massa é cada vez maior a audiência de programas que exploram diversas facetas da feiura.

Citemos, alguns exemplos ilustrativos: a falta de pudor ao expor as tragédias humanas e a intimidade dos sentimentos em rede nacional, bem como a superexposição do corpo e outras formas de bizarrices como o voyeurismo incentivado em programas em que se pode acompanhar o cotidiano de pessoas trancafiadas em estúdio durante meses. Tudo isso é mostrado no sentido de conquistar a preferência dos telespectadores e caracteriza o grotesco televisivo da atualidade.

Como, então, explicar a ambivalência de sentimentos causados pela feiura? Encontramos, simultaneamente, fascinação e prazer versus uma política de tolerância zero que vimos em relação aos gordos.

É curioso notar que, a mesma dificuldade por nós encontrada em relação a uma literatura especializada em refletir sobre a feiura, foi pelo autor também constatada no âmbito filosófico, ou seja, parece existir uma carência de questionamentos sobre o estatuto da feiura.

De qualquer forma, apesar do tema da feiura ter sido negligenciado ao longo da história do pensamento, tentaremos retraçar o caminho feito por alguns pensadores acerca da feiura. Portanto, ainda que seja através da compreensão que estes mesmos autores tinham da feiura como o Outro da beleza, tentaremos extrair algumas proposições sobre o conceito.

Para tal, começaremos nosso percurso histórico com Sócrates. No diálogo platônico de Parmênides, Sócrates é categórico ao dizer que as coisas feias não participam do mundo inteligível o que destitui o feio de qualquer qualidade que mereça ser pensada.

Ao contrário do que vimos em relação ao grotesco, no qual as coisas imperfeitas, sujas e desprezíveis eram a matéria prima das manifestações populares ou estranhadas e repelidas na sua versão romântica tardia, no caso de Sócrates, o feio não era, sequer, passível de representação. Destituído então de uma identidade, o feio nada podia ser. Nas palavras de Feitosa: "O feio é um 'me on', algo que não deve ser; logo, pensar o feio é uma forma de pensar o nada ou de nada pensar." (2004, p. 30).

Dando continuidade às reflexões socráticas sobre a feiura, Platão, mais tarde, afirmará que a feiura humana é a manifestação de uma perturbação afetiva, podendo ser considerada como uma irrupção do racional. Como exemplo, Platão cita o estado de rebaixamento da consciência presente tanto na loucura como no caso de embriaguez. Ambas geram uma perda de identidade que, em última análise, caracterizam a feiura.

Na contramão do que afirmam Sócrates e Platão, nossas entrevistadas reivindicam uma identidade, um lugar bem marcado diante do olhar social que lhes nega o direito a uma vida plena de prazeres. Ao invés do "não-lugar" e do alijamento social, a afirmação de uma identidade gorda integrada ao todo social. Na esteira da questão da representação, estaria a ideia de que a feiura é um desprazer que se manifesta como uma violência aos sentidos. Entretanto, parece estar referida somente a percepção sensível mais sofisticada, ativa e racional, como no caso da visão e da audição. Nas palavras de Feitosa:

Um rosto deformado agride o olhar, uma dissonância musical fere os ouvidos. Existem diversos objetos que ofendem também o tato, o gosto e principalmente o olfato, entretanto a ofensa a esses sentidos, ditos inferiores ou sombrios em razão de sua passividade, não é estética. O cheiro da matéria em decomposição é desagradável, mas não é feio (Feitosa, 2004, p. 30)

No entanto, as acusações em relação ao feio não estão baseadas somente no critério daquilo que é agradável aos sentidos. As distinções entre beleza e feiura também remetem aos aspectos morais. Dessa forma, o que se apresentam são pares de distinções que utilizam a feiura como categoria acusatória do mal, associada aos qualitativos depreciativos da moral.

Assim, se pudéssemos falar em uma representação platônica da feiura, ela conjugaria a ideia de excesso, desequilíbrio, desmedida, caos, enfim, tudo aquilo que se opõe à beleza e, portanto, é ruim. Em contraposição, como era de se esperar, temos a beleza associada ao bem e as virtudes do caráter, ou seja, à simetria, ao equilíbrio, à proporção, à ordem e ao esplendor.

Desde a Ilíada, de Homero, vemos a feiura interpretada como característica das pessoas que possuem desvios de conduta. Para Homero, ela seria uma consequência, uma espécie de castigo mandando pelos deuses em retaliação a demonstração humana de falta de nobreza nas atitudes. Como nos mostra Feitosa (2004):

Se a cultura grega tinha um ideal do Kalos-Kagatos, a correspondência entre virtude e beleza (e, em certo sentido, também de verdade), tudo indica haver, em contrapartida, a ideia não tematizada de Kakos-Kaischros - cunhei esse neologismo, do grego Kakos, ruim ou mau; e aischros, feio - quer dizer, uma relação necessária entre feiura e o mal. (p. 31).

Como vimos, fica patente certa correspondência entre o ideal grego que associa virtude à beleza e feiura à maldade e o atual comportamento social gerador de exclusão e preconceito em relação às pessoas gordas. A forma como nossas entrevistadas relatam serem tratadas como seres desprezíveis e repulsivos, que devem ser privados dos espaços públicos e, simultaneamente, os papéis que muitas vezes se veem obrigadas a exercer, uma vez conscientes dos estereótipos morais ligados às pessoas gordas, nos fazem pensar que se na cultura grega a feiura não deveria ser representada, na cultura atual o sentimento crescente de lipofobia afasta dos espaços públicos a feiura indesejada dos gordos, bem como do nosso imaginário a presença dos esteticamente imperfeitos.

Este é o caso do exemplo que demos acerca da produção cinematográfica americana. O desserviço mencionado sobre o papel de Hollywood no imaginário social é da ordem da não representação dos feios em papéis cujos personagens ocupem uma posição de prestígio na trama, donde se conclui que aos feios e, sobretudo, aos gordos, restam personagens estereotipadamente marcados por serem maus, enjeitados, fracassados ou, na melhor das hipóteses, alguém que não deu certo na vida; é relapso, preguiçoso e até mesmo brincalhão.

Os gordos são, assim, os "novos feios" ou como destacamos na seção deste trabalho em que tratamos da nova massa de excluídos das praias cariocas - vimos atribuídos aos gordos, aos farofeiros e aos gringos, a categoria de "bárbaros da praia". Como nos aponta Feitosa, feios são todos aqueles cuja reprodução das normas sociais da polis se dá de forma tosca, aparentando, aos cidadãos que ditam as normas locais, tratar-se de um estrangeiro, um desviante que, por definição, é aquele que transgride as regras através dos maus costumes. Portanto, dentro desses parâmetros, ser um bárbaro, estrangeiro e desviante é ser feio.

Acho que as pessoas confundem gordura com falta de educação. É um absurdo, fala sério, eu sei que eu tenho modos, só que como as coisas erradas em excesso, mas esse simples fato já faz de mim uma pessoa mal-educada por não saber, mesmo que privadamente, a hora de parar de comer. Atualmente, penso mesmo é que a gordura agride aos olhos. (M. 43)

A este respeito, vale trazer para a nossa discussão uma contribuição valiosa de Rozenkranz (citado por Feitosa, 2004) em seu tratado sobre a Estética do Feio, datado de 1853. O filósofo, que era discípulo de Hegel e ficou famoso por elaborar e organizar a biografia de seu mestre, em um dado momento da elaboração de sua estética dialética argumenta que o feio não é o outro da beleza, mas um momento da constituição da ideia belo - uma etapa a ser transposta, contudo necessária na formação do belo. Na leitura de Feitosa sobre o filósofo, o feio: "é uma manifestação secundária do processo de vir-a-ser do belo, quer dizer, um momento necessário, mas 'desaparecente' do próprio belo" (p. 36).

Tomando de empréstimo as ideias de Rozenkranz, poderíamos, analogamente, pensar no corpo gordo como um corpo em trânsito, um devir de corpo, um corpo evanescente ou fazendo outro empréstimo, dessa vez com o título do livro de Denise Sant'Anna - Corpos de Passagem. Um corpo que não pode existir, senão em processo de emagrecimento e aprimoramento e cuja identidade não pode ser exercida plenamente, pois não encontra um lugar social e ainda, de acordo com os relatos transcritos acima, um corpo que deve, a todo custo, ser modificado, cortado, retaliado, a fim de que possa enquadrar-se no ideal vigente de corpo magro.

Dentro da linha de raciocínio que vimos construindo, seria errado dizer que os gordos são uma cópia mal-acabada daqueles que representam o ideal de beleza vigente? Se a feiura remete à finitude, à incompletude e consequentemente à nossa própria morte - seria dessa ordem o estranhamento e a repulsa que temos atualmente às figuras gordas?

Segundo Feitosa (2004):

Uma análise mais aprofundada das estéticas tradicionais do feio, aquelas que o compreendem como o outro do belo, talvez mostre que, na verdade, nossa repulsa emerge da incapacidade de lidar com o outro de maneira geral, seja na forma do bárbaro e do estrangeiro, seja no irracional, no feminino, no sensível. Se Hegel tem razão ao determinar, em Lições sobre Estética, o prazer do belo como prazer narcísico do Espírito, o prazer do ser humano em ver-se refletido tanto na arte como na natureza, então o desprazer do feio tem origem justamente no confronto com o que é diverso, deferente, estranho, enfim, com a alteridade (p. 34).

Lembremos, contudo, que a feiura também provoca riso, podendo, talvez, explicar os papéis bufos outrora representados não só pelas pessoas gordas, mas também pelos anões, os aleijados, os loucos etc. Encarnações da feiura, estas figuras serviam para espelhar algo de valoroso da vida social.

Na estética, uma das formas tradicionais do feio se apresentar é através da comédia. Na Poética de Aristóteles a feiura aparece em uma dimensão mais amena e não causadora de dor ou sofrimento, pois tem no ridículo e no risível uma de suas formas de expressão. Também nos gêneros literários da caricatura, da sátira, da paródia, da ironia, da anedota o feio foi explorado esteticamente em sua dimensão risível.

Contudo, segundo Feitosa, não há consenso na tradição do pensamento filosófico de que a ideia de graça atribuída ao feio lhe garanta um aspecto menos agressivo. Nas palavras do autor, um pouco da mitologia grega serve para ilustrar sua argumentação:

A figura do deus Hefesto é típica de uma feiura ridícula. Homero conta que, quando o deus de baixa estatura e coxo adentrava o Olimpo, os deuses não podiam conter as gargalhadas, deixando entender que esse riso tinha uma função apaziguadora (pp. 34-35).

Mais adiante em seu artigo, Feitosa mostra-nos a visão discordante de Platão a esse respeito. Para Platão, o riso não torna aquele que ri sobre o feio superior, muito pelo contrário, faz com que a feiura se submeta, emprestando ao humano um caráter animalesco. O riso, para o filósofo grego, seria algo desqualificante e menor. Vejamos:

O riso para Platão não era sinal de poder sobre o feio, mas sim de capitulação diante dele. O riso sobre o feio enfeia aquele que ri. Quem ri deixa sua face se desfigurar, tem suas feições animalizadas. Quem ri perde a beleza que advém da racionalidade, quem ri perde sua identidade se inferioriza, e por isso o riso é a principal atividade dos loucos, das crianças, dos escravos, das mulheres, enfim, daqueles que não tinham um Si para perder. (Ibid)

Talvez fosse o caso de acrescentarmos a esta lista os gordos em sua função social de pessoas engraçadas. A aceitação social, por meio do ato de fazer graça e provocar riso, é um papel social não negligenciável no imaginário social sobre as pessoas gordas - lembremo-nos dos obesos benignos e malignos descritos por Fischler (1995). Não nos esqueçamos, também, quando nossas entrevistadas falam acerca da zombaria causada ao serem percebidas tentando exercer sua sexualidade. Ao contrário do que pregava Platão, a atitude social de riso, como forma de desqualificação da figura dos gordos, parece ratificar a inferioridade atribuída aos mesmos, colocando aqueles que riem em uma posição de superioridade. Aqui, a moeda de troca é a magreza.

O riso como uma resposta à sexualidade parece ser implacável: a agressividade expressa na forma de escárnio, destitui de qualquer valor a sexualidade. O olhar social que dessexualiza a gordura é o mesmo que pode lançá-la na categoria de monstruosidade. Ao relatarem sentirem-se como uma aberração, explicitavam o monstruoso que sua figura evoca.

Quando uma gordinha se aventura a entrar numa boate ou andar pela rua com uma roupa sensual tem que fingir que não percebe os risinhos, os cochichos, ser alvo das pessoas apontando na rua, como se estivessem numa apresentação de circo, boquiabertas, onde são apresentadas às coisas exóticas, bizarras, aberrações da natureza. Se não tivesse acostumada a fingir que não percebo a reação das pessoas, viveria trancafiada dentro de casa e não sairia à rua para nada. (M. 26).

Nesse contexto, é pertinente retomar a ideia platônica de feiura. Para Platão, a feiura revelaria não somente uma imperfeição da conduta e da moral, como também redundaria em um problema de ordem ontológica - feiura é índice de menos-ser. A estética, reitera Feitosa, não tem o direito de ser normativa:

Beleza e feiura não podem ser definidas em termos absolutos - segundo Nietzsche, só o que não tem história é passível de definição. Pensar a historicidade do belo e do feio implica em questionar sua gênese fisiológica. É preciso desconfiar de nossa necessidade de beleza e de nossa aversão à feiura. Será que o prazer do belo não reflete um instinto de segurança, de estabilidade, de ordem? Será que nossa repulsa do feio não é um sintoma de nosso medo da morte, nossa incapacidade de lidar com o efêmero, nossa dificuldade em aceitar a finitude da existência? (...) Trata-se não apenas de reconhecer o outro como próprio, mas principalmente de reconhecer a si mesmo como outro, uma diferença sutil, mas importante. O feio nos ensina que a morte não é um outro absoluto, que faria de nós um outro de nós mesmos, mas sim que nós mesmos somos estruturalmente essa exterioridade absoluta e absurda, enquanto entes mortais. (pp. 37-38).

A imagem da gordura como uma deformidade monstruosa nos faz estabelecer uma analogia com uma fábula muito conhecida - a de Frankenstein. A reação de medo e horror causado nas pessoas pela aparição do monstro também nos faz lembrar que a pobre criatura estava destinada a viver só, ainda que tivesse se apaixonado por uma mulher. Vale lembrar que, tal qual nossas entrevistadas, o monstro sai da cidade em que vivia juntamente com o seu criador para isolar-se nos confins no mundo. O seu fim resulta em uma existência triste e solitária. Talvez a gordura seja o monstro que a medicina atual tenta combater. A obesidade e seus fatores de morbidade acenam como o grande mal contra o qual os discursos médico e científico se empenham em retardar - a morte, a dor, o sofrimento e a finitude, em suma, tudo aquilo que caracteriza a condição humana.

 

Considerações finais

Onde há saber, há poder. Ao longo deste artigo procurei mostrar como a imagem da mulher se confunde com a de seu corpo e quais as consequências por ela vividas.

Ao contrário, de tempos anteriores, observamos agora uma moralização do corpo feminino, atribuindo às mulheres o dever de serem belas - a beleza, de um atributo da natureza, passou a ser um denotativo de caráter. Se você não se cuida, não malha, não come saudavelmente, não exercita toda a sua disciplina, não há lugar para você - nem mesmo no mundo do trabalho, onde você terá, certamente, muito mais dificuldades em arranjar uma boa colocação.

Afinal de contas, quem não agencia seu próprio corpo não pode ser competente para agenciar a sua vida e seu trabalho! Busquei mostrar com que facilidade discriminamos o diferente e o sofrimento que somos capazes de infligir ao outro, sem que nos sintamos, por momento algum, responsáveis. Torno aqui a afirmar o que disse na introdução deste trabalho - a feiura é fruto de uma exclusão sem culpa! Discriminamos os feios sem nenhum sentimento de vergonha, culpa ou desconforto, uma vez que a eles tributamos toda a responsabilidade de um "descuidado consigo mesmo".

Cevasco e Zafiropoulos (2001) utilizam a expressão narciso pós-moderno, para definir o sujeito que se constitui sob o direito de ser absolutamente igual a si mesmo - reagindo a toda e qualquer diferença.

Este mundo e feito para os magros, jovens, brancos, caucasianos e sem nenhum tipo de deficiência física. Quem não pertencer a um desses grupos, com certeza ficará à margem sofrendo inúmeros preconceitos. (D. 24).

Todavia, se é verdade que onde há saber, há poder, não é menos verdade que onde há poder, há resistência!

A palavra sujeito, tão cara aos profissionais da área psi, pode ser entendida em duas acepções: ora podendo designar o indivíduo dotado de consciência, autodeterminação e desejo, ora significando um adjetivo, aquele que está submetido, sujeitado à ação de outros agentes.

Como aponta Leal Cunha (2004):

Não é possível deixar de perceber que quando alguém é colocado no lugar do dominador e o outro tem seu desejo subjugado o que veremos é uma interlocução estéril, onde não é possível nenhuma operação de reconhecimento - e aí, só há lugar para algum tipo de violência. Quando o racista nega a existência humana do negro diante dele, não há alteridade possível - e os dois se veem presos nesta armadilha onde a única forma de contato é a violação do corpo do outro. Da mesma forma, a cada momento, somos despossuídos de nossos corpos, e temos o território do nosso desejo ocupado não só pelo discurso médico - que recomenda como devemos exercitar a nossa sexualidade ou como devemos higienizar e purificar o nosso corpo - mas também pela propaganda que nos ensina o que é o belo e o que é preciso fazer para reconquistá-lo e uma outra série de discursos morais e religiosos que delimitam os limites do prazer e transformam o território do desejo em domínio da culpa. Essa história não é nova, e certamente Foucault já nos ensinou muito sobre ela. (p. 2).

Por isso, não existe o "fora" do poder.

Estamos todos envolvidos nessas lutas e nosso trabalho só fará sentido se animado pela esperança e pelo compromisso com a mudança. Mudança não apenas daquele que nos procura em seu sofrimento, mas de nossas práticas do cuidar. Cuidar de si, cuidar do outro, cuidar de nossas relações implica combater o consumo que nos consome e fazer valer o cuidado com a vida. Se por um lado, novos saberes e novas tecnologias ampliam e aprofundam os poderes na sociedade disciplinar em que vivemos - por outro, sujeitos cada vez mais conscientes lutam contra as forças que tentam reduzi-los à objetos, contra as múltiplas formas de dominação sempre criativas e renovadas.

 

 

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Endereço para correspondência
Joana de Vilhena Novaes
E-mail: joanavnovaes@gmail.com

 

 

*Pós-doutoranda em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem Pós-doutorado em Psicologia Médica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (2012), e em Psicologia Social pela mesma universidade (2008). É Professora do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (Lipis) da PUC-Rio e do Laboratório de Pesquisa Social Integrada (Lapsi/UVA). Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine - Université Denis-Diderot Paris 7 CRPM-Pandora. Membro do Conselho Consultivo da Fundação Dove para a Autoestima? DSEP DOVE/UNILEVER Londres. Membro do Conselho Científico e Editorial da Coleção PSI da Editora Appris. Autora e organizadora de inúmeros livros e coletâneas. Bolsista da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior (Funadesp). Orcid:0000-0002-0275-1866.
1Deitou-se, deixando descobertas suas coxas e sua parte quente e mostrou-a agitando... Suspirou fortemente e ouvi um relincho semelhante ao de uma jumenta. (tradução nossa)
2Um terrível e assombroso órgão que se assemelha à cabeça de um leão por sua largura, especialmente quando é carnudo e se ergue monumental. Órgão a que chamam cloaca, pela qual não poucos homens morreram suspirando por sua poesia. (Tradução nossa)
3A mulher segurava com a mão o membro o esfregava entre os lábios quentes e o enfiava dentro do ventre até fazê-lo desaparecer. Depois, com o membro dentro de si se agitava até gozar. O jumento se acostumou a estas manobras que lhe davam prazer. Cada vez que a mulher se aproximava, deixava sair o seu membro. (tradução nossa).

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