SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.54 número2A variante menor em Deleuze: uma minoração da linguagemExu e a psicanálise: da culpa à ilusão índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022

 

ARTIGOS

 

Criações e devires em filosofias e teatros menores: intercessões teatrais com Gilles Deleuze & Felix Guattari

 

Creations and becomings in minor philosophies and theaters: theatrical intercessions with Gilles Deleuze & Felix Guattari

 

Creaciones y devenimientos en filosofías y teatros menores: intercesiones teatrales con Gilles Deleuze y Felix Guattari

 

 

Auterives Maciel Júnior*

Universidade Veiga de Almeida - UVA - Brasil
Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RIO - Brasil
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB - Brasil
Sociedade de psicanálise Iracy Doyle - SPID - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trabalha as criações e os devires em filosofias e teatros menores, através da explicitação de tais procedimentos pela filosofia de Deleuze e Guattari. Assim, ao definirmos as noções de maioria, minoria, criações e devires-minoritários nos dois filósofos, mostraremos tais procedimentos como minoritários e criaremos a oportunidade de lermos tais processos ocorrerem no Teatro de Carmelo Bene, para investigamos no final um possível cotejamento entre estes pensamentos. Ao confirmarmos no final o teatro filosófico minoritário de Deleuze e Guattari, criaremos a ressonância indispensável que dará destaque e originalidade política e ética ao empreendimento construtivo dos dois autores.

Palavras-chave: Criação, minoria, devir-minoritário, teatro - filosófico


ABSTRACT

This article works on the creations and becomings in minor philosophies and the theaters, through the explanation of such procedures by philosophy of Deleuze and Guattari. This way, when we define the notions of majority, minority, creations, and minor changes in both philosophers, we will show such procedures as minority and we will create the opportunity to read such procedures in the Theater de Carmelo Bene, to investigate, at the end, a possible comparison between such thoughts. When we conclude in a positive way the minority philosophical theater of Deleuze and Guattari, we will create an indispensable resonance that will give emphasis and political originality and ethics to the constructive enterprise of both authors.

Keywords: Creation, minority, minor-change, philosophical-theater.


RESUMEN

Este artículo trabaja sobre creaciones y devenires en filosofías y teatros menores, a través de la explicitación de tales procedimientos por parte de la filosofía de Deleuze y Guattari. Así, cuando definimos las nociones de mayoría, minoría, creaciones y devenires minoritarios en los dos filósofos, mostraremos dichos procedimientos como minoritarios y crearemos la oportunidad de leer como tales procesos ocurren en el teatro de Carmelo Bene, para investigarmos al final una posible comparación entre estos dos pensamientos. Confirmando al final el teatro filosófico minoritario de Deleuze y Guattari, crearemos la resonancia indispensable que dará protagonismo y originalidad política y ética a la empresa constructiva de los dos autores.

Palabras clave: Creación, minoria, devenir-minoria, teatro-filosófico.


 

 

Introdução

Criações e devires em filosofias e teatros menores é o título escolhido para pensarmos, primeiramente, os atos criadores nestes pensamentos como experimentações que deflagram devires nos seus pensadores. Ao entendermos que tais atos de criações sejam inseparáveis de devires-minoritários, por situarem os seus criadores diante de minorias, propomos o entendimento de tais criações como oriundos de pensamentos minoritários e inatuais. Neste caso, visaremos apresentá-los como criações de pensamentos nômades, menores e teatrais, situando-os na contrapartida dos pensamentos hegemônicos, majoritários, históricos e teatrais que dominam as instancias representativas dos pensamentos ofertados para uma grande maioria presa a uma ortodoxia tradicional.

Além disso, criações e devires em filosofias e teatros menores intitulam procedimentos dramatizados primeiramente por Gilles Deleuze e Felix Guattari, quando concebem a filosofia como uma criação inatual de conceitos e de devires-minoritários - viabilizando assim uma intercessão com a filosofia de Nietzsche - e, em seguida, um procedimento dramatizado por Gilles Deleuze ao abordar a criação teatral de Carmelo Bene1 ara situá-la no âmbito de um teatro menor.

Finalmente, tal título visa situar a filosofia de Deleuze - por razões que ainda vamos explicar - como um Teatro filosófico, apresentando sua metodologia ampliada na colaboração estabelecida com Felix Guattari. Neste momento, Michel Foucault - com o comentário constado em um texto intitulado Theatrum Philosophicum (Foucault, 1970) - será o intercessor que criará as condições de um teatro filosófico minoritário.

Todavia, para darmos uma direção a esta proposta, começaremos a introdução apresentando, sumariamente, três aspectos das filosofias menores com os dois pensadores, para pensarmos depois não só a intercessão de Deleuze com o teatro menor pela abordagem do procedimento de Carmelo Bene, como também a construção do teatro filosófico minoritário, cuja fundamentação será feita com a colaboração de Michel Foucault

Em primeiro lugar, Deleuze e Guattari dirão que a filosofia é a arte de criar conceitos, estando tais criações situadas entre dois combates. Por um lado, cabem aos filósofos criadores combaterem não só as opiniões - como também uma imagem dogmática do pensamento que se erige em torno destas com procedimentos teatrais e representativos -, por outro, eles combatem o caos, para dele extraírem os componentes indispensáveis dos conceitos criados como acontecimentos. Como combatentes das opiniões. eles se insurgem contra as instâncias majoritárias construídas por pensamentos dogmáticos e morais, como pensadores criadores eles travam contra o caos um combate, para extraírem desta virtualidade evanescente o crivo indispensável para a construção do conceito. Convém acrescentar que é no combate contra o caos - aqui descrito como uma virtualidade sem consistência - que o crivo do pensamento fará nascer os problemas que se desenvolverão em conceitos2.

Em segundo lugar, ao retomarmos o termo "Filosofia menor"3 - já trabalhado por nós em um artigo anterior - mostraremos que as criações que animam os procedimentos teatrais de Gilles Deleuze e Felix Guattari são inseparáveis de um plano traçado ao lado de tais criações e dos devires minoritários que habitarão as suas experimentações. Sendo assim, quando os filósofos criam os seus conceitos, eles traçam o plano que funcionará como a terra dos conceitos Se os conceitos que saltam do caos devem ser prescritos como acontecimentos virtuais, a terra de tais conceitos supõe a traçagem de um plano de imanência, que é uma imagem do pensamento, cujo movimento infinito percorre incessantemente os movimentos diagramáticos da matéria. Dentro desta perspectiva, o plano de imanência deve ser entendido geometricamente ou como o meio indivisível ou como o horizonte absoluto dos conceitos acima apresentados. Como terra, meio e horizonte absoluto ele ganha diversas configurações, mas é na nossa problematização um pensamento do fora que percorre o horizonte das criações, configurando a Terra nômade dos apátridas criadores de conceitos.

Finalmente, é preciso que tal meio seja povoado de devires que emerjam das invenções dos pensadores. Se em tal procedimento, o gosto ou a predileção de tais pensadores é descrito como um procedimento nômade ou extemporâneo, talvez seja esta a ocasião para configurarmos os devires que habitam tais criações como inseparáveis de personagens que clamam pela existência de um povo ainda porvir. E aqui os devires minoritários devem ser situados como experimentações de pensadores extemporâneos, isto é, pensadores que criticam o seu tempo para trazerem o novo pela dimensão da criação. Sendo assim, na criação do conceito, a experimentação do pensador faz advir personagens conceituais rigorosamente minoritários, aqui descritos como pensadores que que não só habitam uma criação plasmada no devir, mas inventam nela uma língua nômade para invocar um povo apátrida e irremediavelmente menor.

Ora, com tais descrições preliminares já podemos adiantar que a criação filosófica de tais pensadores além de extemporânea é, igualmente, teatral e menor4. Teatral pelo fato de que tais pensadores constroem no método um agenciamento coletivo de pensadores, em que outros filósofos funcionam como intercessores da construção filosófica. Já teatral e menor porque os seus procedimentos colocam em textos vetorizações minoritárias prioritariamente políticas posicionadas contra a política teatral da representação, cuja ressonância será acentuada pelo cotejamento a filosofia nômade e teatral de Nietzsche.

Claro está que tais características serão devidamente esclarecidas na parte final do nosso trabalho. Todavia, a construção que confere ao artigo uma certa originalidade supõe agora uma abordagem complementar de um pensador de teatro aqui escolhido para o cotejamento de uma outra intercessão. No entanto, para que a apresentação do dramaturgo seja feita, torna-se necessário problematizar, primeiramente, os teatros menores com questões cotejáveis com as considerações que nós fizemos das filosofias

Neste caso, é possível dizer que tais pensadores combatem às suas maneiras os clichês do teatro para construírem as suas obras de artes? Será possível afirmar que nestas artes menores os procedimentos sensíveis inventados pelos teatros supõem planos traçados ao mesmo tempo em que a obra é criada? Por outro lado, podemos afirmar que estas criações artísticas supõem, igualmente, devires dos pensadores inventados pelas criações teatrais? Mas como pensaremos tais planos? E como nomearemos tais devires ?.5 Diremos, ainda que de uma forma provisória, que os teatros menores não só criam experiencias teatrais minoritárias, como traçam planos de composições teatrais ao mesmo tempo em que inventam devires. Neste caso, as criações e os devires nos teatros menores são procedimentos criadores que devem ser situados na inatualidade de um teatro alocado fora da representação teatral. Neste plano de composição teatral, o teatro menor deve ser traçado fora da dimensão histórica e os seus devires devem ser encenados por problemas que surgem das subtrações dos elementos representativos dos procedimentos tradicionais.

Dito isso, já é possível situar Carmelo Bene pela abordagem de Gilles Deleuze que tecerá, com ele, as amputações plausíveis do seu procedimento criador. Sendo assim, não estaria Carmelo Bene construindo, com as suas subtrações, um pouco de virtualidade para criar o seu teatro menor? E o que seria tal subtração senão a condição da retirada dos elementos majoritários das peças de Shakespeare, para que determinadas virtualidades venham a ser desenvolvidas e desdobradas, dando um novo curso a sua invenção? Ou seja, Carmelo Bene é um pensador criador que concebe o teatro fora da representação teatral, ao criar um teatro critico, feito para minorias, construído com uma língua menor em um plano de composição animado por elementos não representativos.

Além disso, no horizonte dos possíveis entreaberto pela sua composição teatral, um pensamento estético deve criar as cenas não representativas, no devir cênico de um teatro que plasma a obra em um meio de composição sem início e sem finalidade. Finalmente, como artista do devir, ele cria espaços cênicos para invocar um devir minoritário no teatro, ao amputar os elementos majoritários que vigoram nas representações teatrais. Nesta última inflexão, o plano cênico da composição teatral torna possível a criação de possíveis fora da dimensão sedimentada da história.

Tendo feito tais apresentações, convém sabermos agora como faremos a roteirização de tais minorações. Apresentaremos, primeiramente, pela filosofia de Deleuze e Guattari, um pensamento minoritário - pelas definições das noções de maioria, minoria e devires-minoritários - para explicitarmos as avaliações feitas por eles de um procedimento minoritário e teatral em filosofia e do teatro de Carmelo Bene - analisado e situado especificamente por Gilles Deleuze entre criações minoritárias do teatro. Além disso, os devires minoritários serão conceituados no decorrer desta primeira parte, para que as criações e devires em filosofias e teatros menores condicionem a abordagem de Carmelo Bene e o teatro menor com o qual ele será relacionado na segunda parte. Na terceira parte, confirmaremos a posição minoritária e teatral de Deleuze e Guattari, pela abordagem que eles fazem de procedimentos minoritários. Finalmente, construiremos na conclusão a explicitação do título "criações e devires em filosofias e teatros menores", apresentando a filosofia destes dois pensadores como um teatro filosófico minoritário e nômade, pela transversalidade que iremos traçar.

 

1 Maioria, minoria e devir-minoritário em Deleuze e Guattari

Para darmos prosseguimento às nossas distinções, convém imediatamente construirmos a seguinte formulação: o que os pensadores entendem pelas noções de maioria, minoria e devir-minoritário? Aqui a noção de maioria deve ser relacionada à um modelo, isto é, ao metro padrão de uma língua standard, língua oficial e majoritária, que se impõe por uma sintaxe construída com constantes universais invariáveis, com uma semântica uniforme e normas rígidas que identificam na linguagem as posições majoritárias daqueles que falam de acordo com as regras da representação. Neste caso, a língua majoritária e a que legitima o poder que alguns exercem sobre aqueles que a eles se encontram subjugados. Além disso, os dois pensadores dirão que nesta situação uma maioria deve sempre se reportar à uma língua dominante, isto é, uma língua oficial que dita as condições da representação em geral. Como língua da representação, ela significa um modelo teatral de pensamento ao qual todos devem estar conformes, mas que, de fato, não representa ninguém.

Por outro lado, encontramos em um meio social, línguas as mais variadas que testemunham pela existência de minorias definidas em oposição ao metro Standard da língua oficial. Aqui, uma minoria se define pela língua à qual um povo se encontra ligado ou pela sua maneira de falar, ou pela sua condição nativa que, na inexistência de um modelo oficial, conferirá a ele a condição de um povo menor. Ou seja, as minorias - embora numerosas - se definem pela inexistência de um modelo, mas nem sempre encontram condições efetivas em um pensamento que as autorizem a se subtraírem da língua dominante

Finalmente, um devir-minoritário é o que acontece quando criadores situados ao lado de minorias, criam um procedimento inatual de conceitos que testemunha pelo devir do experimentador. Além disso, nesta criação conceitual que salta do caos, uma língua estrangeira é inventada por pensadores situados estrategicamente ao lado de minorias, ao mesmo tempo em que devires-minoritários são deflagrados nas suas experimentações. Em filosofias teatrais e inatuais, tais devires minoritários advém como personagens conceituais que invocam, como pensadores, um povo menor para habitar a terra nômade da filosofia situada do lado de fora da representação estatal e teatral. Ou seja, o povo que a filosofia evoca é um povo nômade, prioritariamente apátrida, cuja territorialidade se faz imediatamente sobre a terra dos conceitos, isto é, sobre o horizonte dos devires. Ao pensarmos tal plano de imanência como o horizonte dos devires e dos conceitos criados pelos pensadores nômades, adjetivamos o procedimento apresentado por Deleuze e Guattari como criações minoritárias.

Ora, com tais características retiramos dos filósofos os termos com os quais não só definiremos no final desta parte os seus procedimentos teatrais e minoritários, como também iremos cotejá-los agora com o procedimento filosófico e teatral de Nietzsche e com a criação teatral que Deleuze abordará.

Sendo assim, no âmbito da filosofia, Deleuze e Guattari devem ser situados ao lado de Nietzsche - pensador nômade e inatual que funciona como um precursor do pensamento do Fora. Em um texto intitulado "O Pensamento nômade" (Deleuze, 1973)6, Deleuze evoca Nietzsche como uma máquina de Guerra que cria conceitos e personagens conceituais, configurando a filosofia como um teatro filosófico crítico e contundente da história. Já em O Que é a Filosofia? (Deleuze & Guattari, 1992), os dois pensadores situarão Nietzsche ao lado do devir, ao assinalarem uma vizinhança entre o inatual do primeiro e o devir aqui concebido como uma névoa que circunda a história7. Por outro lado, os devires minoritários inseparáveis dos atos de criação fazem valer sua pertinência na escrita minoritária da língua de Nietzsche, cujo aforismo e o poema testemunham pela existência de uma língua menor. Aqui, enquanto máquina de guerra, Nietzsche é o precursor de um pensamento do fora que aciona uma filosofia habitada por um povo nômade que será cotejado com o povo menor descrito nas análises deste artigo

Por outro lado, em "Un Manifeste de moins", Deleuze aborda Carmelo Bene - em um livro intitulado Superpositions (Deleuze & Bene, 1979/ 1982) - na realidade uma publicação coletiva dos dois autores - para pensar as condições de um Teatro menor pelo procedimento da amputação dos elementos majoritários contidos nas dramatizações de certas peças de Shakespeare Neste caso, a criação de Bene consiste em explorar as virtualidades de uma obra, pela amputação dos elementos majoritários contidos na peça do autor que lhe serve de inspiração. Com tal abordagem, mostraremos o essencial do teatro de Carmelo Bene, colocando ênfases específicas nas construções políticas e minoritárias que fazem valer um teatro de minorias animados por línguas menores e devires dos seus personagens.

Além disso, os termos maioria, minoria e devir-minoritário devem ser encontrados em diversos momentos do Mil Platôs, tais como Postulados da Linguística (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, vol. 2, no platô que investiga os devires (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, vol. 4) e os platôs que tratam da Máquina de Guerra e do Aparelho de Captura (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, vol. 5). Em tais platôs, os Pensadores defendem um uso menor de uma língua, para colocá-la em variação; uma série de devires minoritários, que se iniciam pelo devir intenso culminando naquilo que eles nomearão como devir-imperceptível, uma ciência do fluxo cujo modelo é o devir e um pensamento do fora ou, se quisermos, contra- pensamentos que definem posturas teatrais de pensadores nômades não afeitos com as posturas teatrais de pensadores dogmáticos8.

Neles, as noções ganham sutilezas políticas que não só realocam as criações acima dentro de uma perspectiva filosófica minoritária, como também situam o devir fora do jogo das imitações e das metáforas. Neste novo contexto, os devires são conceituados como reais, pois não consistem na transformação de um termo em outro, nem tampouco na imitação grosseira de um termo que procura reproduzir aquele que se encontra sendo imitado. Assim, por exemplo, no devir-mulher de um criador a mulher como termo final não existe, mas existe o devir-mulher de relações entre partículas e afetos de feminilidade.

Por outro lado, Deleuze e Guattari dirão que não existe devir-homem - já que homem é uma forma majoritária descrita com categorias universais tais como Macho, Dominador, Heterossexual, Bem-Falante, Europeu e Civilizado -, mas existem devires minoritários do homem. Ora, é aqui que as condições políticas e subversivas de um teatro filosófico minoritário definirão sua vocação. Ao se insurgirem contra os direitos de um humanismo universal, eles propõem os devires moleculares do homem como a condição de subtração que cria o horizonte das relações cinemáticas e dos afetos constituintes de tais devires. E assim constroem uma filosofia dos devires, pensando tais situações em criações artísticas e filosóficas. Ao assinalarem tais devires na instância molecular das criações, eles introduzem a noção para pensarem as experimentações que habitam os pensadores que constroem as diversidades dos planos habitados por tais devires. Trata-se, com muita pertinência, de assinalar o devir na sua instância molecular, ao mostrar que a sua consistência decorre das relações de velocidade e lentidão que entram em uma zona de vizinhança com um determinado devir-minoritário.

Ou seja, os devires não são imitações - pois não devem ser situados no âmbito de um imaginário pautado na matriz de um modelo arquetípico que eles devem imitar - nem tampouco metáforas de símbolos que eles procuram dramatizar. Longe da acepção analógica que vigora nos procedimentos da imitação - analogia de proporção fundada por um arquétipo que inaugura uma série de imitações - e da acepção metafórica pertinente a uma analogia pautada no entendimento - analogia de proporcionalidade que difere os termos comparados para encontrar semelhanças entre funções - os devires moleculares devem se situar no real das relações entre as partículas e dos afetos intensivos que se expressam por intermédio de tais relações. Sendo assim, há em todo devir componentes afetivos, isto é, componentes intensivos que se expressam nas relações descritas acima, assegurando a parte intensiva de toda uma série vetorizada por devires-intensos, devir-mulher, devir-animal, devir-criança e, no horizonte, o devir-minoritário e o devir-imperceptível. Além disso, os devires minoritários encadeiam-se em blocos assimétricos que criam zonas de indistinção ou indiscernibilidade, uma vez que é sempre possível que um devir desencadeie outros devires através de procedimentos moleculares presentes tanto nas filosofias quanto nas artes.9

Finalmente, levando em consideração que os traços dos devires já tenham sido conceituados neste início de artigo, explicitaremos os devires em filosofias e teatros menores pela invenção dos personagens conceituais e das figuras estéticas explicitados por Deleuze e Guattari em O Que é a Filosofia?, livro no qual os autores vão pensar os devires nas experiências criadoras de conceitos e dos blocos de sensações que apresentaremos na nossa conclusão. É neste intercurso final que a filosofia dos dois autores é estabelecida como um "teatro filosófico minoritário".

Todavia, para o arremate final deste teatro, torna-se necessário agora construir as condições dramatúrgicas de um teatro menor pela abordagem sucinta de Carmelo Bene feita por Gilles Deleuze. A retomada da filosofia menor nesta perspectiva teatral será feita depois da breve apresentação deste homem de teatro e de cinema.

 

2 O teatro menor de Carmelo Bene e seu intercessor pela leitura de Gilles Deleuze

Em função do espaço aqui reservado para uma justa avaliação de um teatro menor, procuraremos situar a criação de Carmelo Bene ao lado dos procedimentos minoritários citados acima, retirando o essencial do ensaio complexo de Deleuze, que será cotejado com a sua filosofia. Sendo assim, os elementos que animam o processo de criação e a língua por ele construída - com os seus respectivos devires - ganharão relevo na nossa abordagem.

Como ocorre os procedimentos de criação na obra de Carmelo Bene? Através de peças dramatizadas pela amputação de elementos das obras originais. Mas será que tais amputações vão situar o autor na dimensão de um teatro menor? Sim, se considerarmos o procedimento como um ato político e crítico que amputa justamente os elementos de poder contidos na obra matriz. É assim, por exemplo, que Carmelo Bene aborda Shakespeare. Ao apresentar a sua versão de Romeu e Julieta de Shakespeare, Carmelo Bene amputa Romeu, desenvolvendo criticamente no palco uma outra versão, pela virtualidade contida na peça. Assim, ao matar Romeu, Mercúcio ganha uma extensão que ele não tinha na peça original, ao ter sido assassinado pelo Romeu herói - personagem majoritário e representante do estado no drama original. Em Bene, Mercúcio, além de não morrer, politiza a situação da peça ao dar a ela uma versão minoritária que será encenada no teatro.10

Além disso, na reescrita genial de Ricardo III - rei nômade e anárquico que faz exceção nas tragédias tradicionais - ele deixa Ricardo com as mulheres para dar a tragédia um destino minoritário. Aqui, a amputação consiste em subtrair todo o sistema real e principesco, para fazer valer, como pretende Deleuze,

a reintrodução ou a reinvenção de uma máquina de guerra capaz de destruir o equilíbrio aparente ou a paz do estado. Operando a subtração dos personagens de poder do estado, Carmelo Bene vai dar livre curso a constituição de um homem de guerra em cena, com suas próteses, suas excrescências, suas deformações e suas variações. O homem de guerra sempre foi considerado, nas mitologias, como de origem diferente do homem de estado ou do rei: disforme ou tortuoso, ele vem sempre de outro lugar. Carmelo Bene o faz advir em cena: à medida em que as mulheres em guerra entram e saem, preocupadas com seus filhos que gemem, Ricardo III deverá ir se tornando disforme para divertir as crianças e reter as mães. Ele comporta para si mesmo próteses, a partir dos objetos que tira ao acaso de uma gaveta... Ele se formará, ou melhor, se deformará seguindo uma linha de variação continua. A peça de Carmelo Bene começa por uma belíssima "nota sobre o feminino". (Deleuze, 2010, pp. 30-31)

Ora, nestas duas peças exemplificadas já podemos assinalar o procedimento desse criador de teatro: ele cria o seu teatro, curto, ágil e minoritário pela amputação dos elementos de poder ainda contidos nas peças originais. Por outro lado, em S.A.D.E - ali onde ele faz uma recitação petrificada de textos do marquês - o personagem sádico é reduzido a elementos patéticos de tiques de masturbação - que dá testemunho das insuficiências e das impotências do senhor sádico -; ao mesmo tempo em que o servo masoquista ganha a condição dramática de um personagem que cresce, se metamorfoseia e se experimenta a partir da neutralização do senhor.

Assim, ao descrevermos uma criação minoritária plasmada na amputação dos elementos de poder, mostramos o teatro de Carmelo Bene como um acontecimento que está sendo feito no palco, onde nele o personagem forma uma unidade com o conjunto do agenciamento cênico, ao agenciar cores, luzes, gestos e palavras na encenação de um teatro sem propósitos autorais. Ao recusar o teatro de autor, Carmelo Bene faz advir um agenciamento cênico que conjura a representação teatral, para dar "livre curso a uma outra matéria e a uma outra forma teatrais que não seriam possíveis sem essa subtração" (Deleuze, 2010, p. 33). Sendo assim, são os elementos representativos que serão subtraídos para que uma nova potencialidade do teatro possa advir na dimensão de um teatro menor.

Todavia, tal procedimento deve ser acrescido pela sua condição intempestiva e inatual. Ao forjar meios de subtrair o teatro do escopo da representação, ele evoca uma arte do devir que amputa, igualmente, o início e o fim de um drama, para fazer a peça crescer pelo meio. Neste caso, as minorias em cena devem se apresentar para liberar devires contra a história, vidas contra a cultura e pensamentos minoritários. Ao se insurgir contra o teatro tradicional, Carmelo Bene inventa um teatro de minorias, em que nele as cenas inventadas surgem das virtualidades exploradas no palco no momento da sua dramatização.

Todavia, sendo ele um pensador menor que recusa o domínio da autoria, que plasma o teatro na dimensão de um devir criado pela virtualidade obtida pela subtração, já podemos aqui adiantar a segunda característica da sua invenção: fazer a minoração acontecer no devir que invade a cena pela criação de um pensamento intempestivo. Mas será que tal procedimento pode ser acrescido pelo advento de uma língua menor e de uma política minoritária? Cremos que sim e agora justificaremos tais elementos na nossa construção.

Neste caso, o procedimento de subtração de Carmelo Bene nos parece exemplar, por três motivos que descreveremos sucintamente. Em primeiro lugar, sua vocação política consiste em retirar da língua e dos gestos todos os elementos representativos dos teatros tradicionais. Assim, ele subtrai não só a história - já que esta é um marcador temporal de poder - como subtrai também a estrutura, ao concebê-la como um marcador sincrônico que faz valer relações invariantes entre os seus termos. Por outro lado, ele amputa o texto que faz advir uma dominação da língua sobre a fala, subtraindo, igualmente, as constantes universais pertencentes a uma língua maior Retira-se, finalmente, os diálogos codificados por certos universais da linguagem, para eliminar todos os elementos de poder que possam subjugar o teatro à instância da representação.

Todavia, convém imediatamente perguntar: o que sobra? Tudo que se edifica quando os elementos majoritários são subtraídos: uma língua intensa, intensamente sonora e gestos de um teatro radicalmente menor. Naquela, os enunciados são isolados para serem pensados em situações distintas, tais como o grito de uma mulher em guerra, de uma criança pequena ou de uma jovem que renasça em uma linha de variação. Neste caso, um enunciado do tipo "Você me causa horror" - que Lady Anne supostamente pronuncia em Ricardo III, nunca será o mesmo caso ele seja evocado nas três situações acima. E muito embora a frase se repita, os enunciados sofrem variações que irão distingui-los nas situações da mulher em guerra, da criança pequena, ou da jovem, estando tais variações tanto nas inflexões sonoras inerentes aos enunciados, quanto nas situações externas nos quais ele é pronunciado.

Ora, ao situar tais enunciados em uma linha de variação contínua - em que os tensores internos e os sentidos precisados pelas situações irão se permutar - ele acaba por colocar a língua e a palavra em uma variação intensiva, em que tais tensores fazem valer uma língua menor, rica em intensidades, em escalas intensivas de subidas e descidas, em que sua operação consistirá em retirar dela todos os elementos estáveis, para transpô-la no intervalo ou na variante menor. Aqui, quando a língua sofre tal tratamento minoritário, suas inflexões e variações vão permitir, pela operação teatral, que uma diversidade de línguas possa habitar uma mesma língua, tornando possível ao ator gaguejar na língua, para se tornar estrangeiro por este procedimento. A este respeito, Deleuze nos esclarece alguns aspectos deste uso da língua em variação

ser bilingue, mas em uma mesma língua... Ser um estrangeiro, mas numa mesma língua, numa língua única... ser um estrangeiro, mas em sua própria língua... Gaguejar, mas sendo gago da própria linguagem e não simplesmente da fala. Carmelo Bene acrescenta: falar consigo mesmo no próprio ouvido, mas em pleno mercado, na praça pública. (Deleuze, 2010, p. 44)

Todavia, não devemos entender tal bilinguismo como uma passagem de uma língua à outra, em que a primeira seria menor e a outra maior. Em Carmelo Bene não estamos tratando de uma mistura heterogênea de várias línguas ou dialetos. Trata-se, antes, da operação que faz uma mesma língua chegar a ser bilíngue, por meio de uma heterogeneidade alcançada pela variação. Sendo assim, a língua menor do teatro advém quando a gagueira contamina a língua, fazendo com que todos os elementos da linguagem, sejam fonológicos, sintáticos ou semânticos, entrem no trabalho da variação. Dessa maneira, tais procedimentos já verificados em S.A.D.E e em Ricardo III, já podem ser observados no procedimento da variação contínua que tornam Carmelo Bene um dramaturgo menor que opera na língua uma variação cênica de intensidades.

Da mesma maneira, os gestos dos corpos postos em cena, começam a proliferar quando os movimentos são postos em variedades teatrais. Neste caso, o gesto de Ricardo III não para de abandonar sua posição de equilíbrio, para alcançar um estilo gracioso que se prolifera em um meio cênico. Sendo assim, ao mesmo tempo em que a linguagem é arrastada para fora de um sistema dominante, através de uma gagueira que instaura nela linhas melódicas, as graças dos gestos irão se proliferar, para liberar os atores da dominação de um teatro representativo, onde ali os gestos não param de deslizar, de mudar de altura, de cair para reerguer, formando tonalidades que configuram o corpo na escala da variedade gestual

Logo, uma linha de transformação pode ser contada neste teatro "onde o que conta são as relações de velocidade e lentidão, as modificações dessas relações, enquanto acarretam os gestos e os enunciados segundo coeficientes variáveis". (Deleuze, 2010, p. 50). Neste caso,

é por aí que a escrita e os gestos de Carmelo Bene são musicais; porque qualquer forma é então deformada pelas modificações de velocidade que fazem com que não se passem duas vezes pelo mesmo gesto ou pela mesma fala sem obter características de tempo. É a fórmula musical da continuidade ou da forma transformável. Os operadores que funcionam no estilo ou na encenação de Carmelo Bene são indicadores de velocidade... (Deleuze, 2010, p. 50).

Que desfazem a forma em proveito da velocidade, subordinando o sujeito à intensidade do afeto, à variação intensiva dos afetos. Por um lado, temos a variação da língua; por outro, a variedade dos gestos. Em ambas, as duas devem ser colocadas uma dentro da outra, de tal maneira que as duas possam se interromper, se cortar e se reerguer.

Enfim, a política de um teatro menor deve advir no momento em que a representação for dele totalmente eliminada. Se ele quer, por um lado, eliminar as constantes ou as invariantes através de uma linguagem e de gestos, por outro, ele procura se insurgir contra os sistemas da representação teatral, procurando amputar tudo o que exerce poder no teatro, tal como o poder daquilo que o teatro representa (o Rei, os Príncipes, os senhores e o sistema), mas também o poder do próprio teatro.

Ao colocar o seu sistema em variação ele cria uma língua menor na linguagem, um personagem menor em cena, através de uma linha de fuga criada pelo teatro. Nestes termos, ele faz - à sua maneira - uma política minoritária funcionar pelas variedades que extrapolam os componentes majoritários do teatro da representação. Para escrevermos detalhes da sua política minoritária, diremos que o procedimento de Carmelo Bene faz surgir no teatro de minorias um devir-minoritário pelos seus gestos criadores. Ou seja, os atos de criações e os devires minoritários no teatro menor de Carmelo Bene testemunham a favor de um teatro filosófico minoritário que deve constar na nossa próxima exposição e, neste caso, resta agora situarmos Deleuze e Guattari no procedimento final.

 

3 O ato de criação e o devir-minoritário no teatro filosófico minoritário de Deleuze e Guattari

A posição inatual de filósofos que criticam o presente e valorizam o devir pela inovação da criação conceitual, caracterizam as filosofias de Deleuze e Guattari como criações minoritárias. Ao demonstrarmos acima suas predileções por procedimentos minoritários, devemos agora estabelecer as condições reais de um teatro filosófico minoritário, para criarmos o cotejamento com o qual concluiremos nossa argumentação.

Sendo assim, reevocaremos aqui, com algumas modificações, os três critérios principais já apresentados, para explicitarmos as condições de um teatro filosófico menor: A - Nele, a criação conceitual supõe um combate contra as opiniões e as políticas noológicas, estatais e teatrais construídas para a fundamentação daquelas; para que do combate contra o caos uma filosofia teatral plasmada no devir torne possível não só a criação de conceitos nômades, como o traçado de um plano de imanência e a invenção de personagens conceituais B - há, neste procedimento, um acento posto em uma língua inventada para dramatizar conceitos nômades, que situa a filosofia ao lado dos devires-minoritários de criações teatrais que invocam povos nômades ou raças bastardas irremediavelmente menores; C - eles constroem a terra nômade do teatro filosófico com a qual eles a irão habitar com os seus devires imperceptíveis.

A - O combate contra as opiniões deve ser apresentado como uma atitude política de pensadores que criticam as políticas representativas estatais e filosóficas construídas em torno do ideal de uma representação teatral. E embora seja verdadeira a tese de que tal ideal seja sempre configurado por Deleuze no âmbito de uma imagem ortodoxa e dogmática do pensamento, é no âmbito da política que o liame entre a filosofia da representação e o estado vai se configurar. Neste caso, dirão os pensadores no Mil Platôs: "haveria portanto uma imagem do pensamento que recobriria todo o pensamento, que constituiria o objeto especial de uma noologia, e que seria como uma forma-estado desenvolvida no pensamento" (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, Vol. 5, 1997, p. 43). Assim, do Império do pensar verdadeiro - cuja função do mito Platão estabelece nos seus diálogos metafísicos - à república dos espíritos livres - que constitui uma organização jurídica que funda na Ágora as condições de fato de um logos filosófico - toda uma influência do estado far-se-á notar na imagem clássica do pensamento. Neste caso, do mito das antigas soberanias ao logos inaugurado na cidade estado, vemos filósofos construírem uma imagem do pensamento, pautada em uma república dos espíritos, cujo príncipe representaria a ideia de um ser supremo.

Ora, com tais considerações iniciais, já podemos perceber que o combate contra as opiniões deva ser travado no âmbito de uma política do pensamento que se estabelece contra a imagem dogmática, teatral e estatal. Neste caso, o pensamento defendido pelos pensadores nômades e menores deve ser concebido como uma máquina de guerra que cria os seus conceitos no páthos de um pensamento do fora.

Entretanto, para uma melhor explicitação de tal tese, talvez seja necessária ainda uma consideração complementar do vínculo do pensamento filosófico e o estado dentro da sua perspectiva majoritária. Aqui, os pensadores acrescentarão aos seus comentários, considerações mais extemporâneas sobre tal liame, dizendo que o Imperium do verdadeiro e a República dos espíritos livres não é, com efeito, outra coisa senão a forma estado desenvolvida na esfera do pensamento. Neste caso, o consenso estatal - ideal político tanto da soberania imperial quanto das ditas democracias representativas assentadas em instancia jurídicas - pode se desdobrar no ideal de um teatro representativo plasmado no bom senso e no senso comum - presentes na imagem dogmática da filosofia. Nestes termos, Deleuze e Guattari situarão o liame entre o pensamento e o estado, mostrando como um proporcionará uma vantagem ao outro, e como em ambos - incluindo aí o estado moderno - uma forma universal se imporá através de procedimentos majoritários. Com efeito, dirão os pensadores que, "se para o pensamento é interessante apoiar-se na forma estado, não é menos interessante para o estado dilatar-se no pensamento e dele receber a sanção de sua forma única e universal (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, Vol. 5, 1997, p. 44). Ou seja, é do estado moderno que o pensamento recebe a sua forma de interioridade, devolvendo a ela uma universalidade ao dizer que "a finalidade da organização mundial é a satisfação dos indivíduos racionais no interior de estados particulares livres" (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, Vol. 5, 1997, p. 45). Nesta troca entre o Estado e a Razão, cabe à filosofia representar de direito aquilo que o estado deve realizar de fato. Se na filosofia moderna o teatro da representação faz tudo girar em torno do legislador e do sujeito, isso decorre do fato de que a ambição filosófica não visa outra coisa senão fazer do devir da razão a condição de um estado de fato, entrevisto como um estado justo e universal. Ou seja, dos antigos aos modernos a filosofia atribui a si a tarefa de bendizer os poderes estabelecidos, decalcando suas atividades dos órgãos de poder do estado, ao tornar a representação uma instancia dogmática que legitima os valores estabelecidos em uma determinada sociedade

Ora, é este liame entre filosofia e estado - tão presentes nas filosofias de Platão, Kant e Hegel - que fazem os pensadores atacarem o ideal da representação em proveito de contra- pensamentos, isto é, pensamentos intempestivos que situam os dois pensadores ao lado de máquinas de guerras filosóficas e teatrais. Nestes contra-pensamentos uma noologia intempestiva se configura através de pensamentos nômades que podem ganhar, igualmente, a cifra da minoração.

Ora, a noologia entra em choque com contra pensamentos, cujos atos são violentos, cujas aparições são descontinuas, cuja existência através da história é móvel. Talvez o Schopenhauer educador de Nietzsche seja a maior crítica que se tenha feito contra a imagem do pensamento e sua relação com o Estado... Assim, colocar o pensamento em relação com o fora, com as forças do fora, em suma, fazer do pensamento uma máquina de guerra é um empreendimento estranho cujos procedimentos precisos pode-se estudar em Nietzsche... (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, Vol. 5, 1997, p. 46).

Mas, também, em todos os pensadores que pensam o teatro - tais como Bene - como experimentações que deflagram devires-minoritários os mais diversos - "tornando o pensamento uma tribo" (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, Vol. 5, 1997, p. 47). Em Bene, por exemplo, é a virtualidade oriunda da subtração dos elementos representativos, que faz o teatro nascer como um empreendimento minoritário povoado de variações linguísticas e de gestos. Todavia, neste contra pensamento do fora, um teatro filosófico minoritário ganha a extensão de um procedimento, onde nele diversos pensadores intercessores são conectados segundo a lógica de uma bricolagem filosófica que coloca no texto toda uma variação criada por um pensamento problemático e criador de conceitos.

É aqui que Nietzsche é evocado como o pensador filósofo do fora, que cria uma filosofia análoga a um teatro filosófico. Com os seus diversos personagens conceituais - tais como Zaratustra e os personagens antipáticos do homem superior - ele não só apresenta devires na sua criação dramática, como faz a filosofia acontecer como um teatro plasmado sobre um devir aqui nomeado pela sua vocação inatual. Além disso, Nietzsche é, tal como Deleuze e Guattari, um pensador nômade que concebe a filosofia na contrapartida da hegemonia dos estados aqui considerados.

Ora, o que aqui mostramos com Nietzsche - acrescentando aos seus comentários exemplos vindos de Carmelo Bene - aplica-se, igualmente, ao teatro filosófico minoritário de Deleuze e Guattari. Ao tomarmos a expressão "teatro filosófico" de um comentário escrito por Michel Foucault sobre Deleuze, intitulado "Theatrum Philosophicum" (Foucault, 1970), fizemos aqui uma dramatização da criação conceitual dos dois autores, para completarmos dois artigos anteriores, em que neles advogávamos a minoração de um pensamento nômade como os traços noológicos destes dois pensadores teatrais. Todavia, convém acrescentar que o drama teatral é conceitual, e os conceitos são dramatizados por personagens conceituais que dramatizam problemas de um pensamento crítico, nômade e irremediavelmente menor.

Neste caso, quando a filosofia combate o caos pelo combate travado contra a ortodoxia moral e estatal construída em torno das opiniões, ela então se torna, na sua noologia, uma filosofia nômade e teatralmente menor. Ao inventar problemas e criar conceitos - aqui entendidos como acontecimentos virtuais consistidos pelos componentes que ele reúne - a filosofia distingue os filósofos nômades como aqueles que não só criticam o seu tempo, como abrem o pensamento para um fora, criando aí a invenção do pensamento que valorize o novo por intermédio de uma filosofia situada ao lado de um devir. Sendo assim, o ato de criação em teatros filosóficos menores se define pelas suas vocações políticas inatuais, através de uma criação conceitual que situe a filosofia como uma máquina de guerra sem interioridade.

É que tais conceitos - aqui tomados como acontecimentos criados pela criação em geral - quando atestam a sua vocação política, tensionarão a filosofia na vetorização de uma máquina de guerra. Neste caso, é possível ler a filosofia de Deleuze e Guattari como um pensamento nômade que aborda criticamente o aparelho de estado e a sua máquina filosófica representativa, para construir, em contrapartida, a experiencia do fora pela construção de outros conceitos. É assim que entendemos, por exemplo, os conceitos de devir-minoritário, de agenciamento de desejo em sua vertente desterritorializada, de máquina de guerra, de linhas de fuga politicamente criadoras e de línguas estrangeiras traçadas pela necessidade da criação.

De uma outra maneira, os pensadores traçam um plano de imanência situado como a terra nômade da filosofia, ali onde a imanência na sua exterioridade não será compensada por uma territorialidade estatal. Neste caso especifico, pensar a imanência é abolir toda e qualquer referência que possa reportá-la a um sujeito ou a um estado de direito ou de fato, para fazer da imanência uma autoimanência de um pensamento sem referência. Por outro lado, ao advogamos um plano de imanência como horizonte absoluto de tais conceitos, ao colocá-lo na dimensão inatual de um pensamento nômade que percorre os movimentos diagramáticos de uma experiencia do fora, talvez seja a hora de pensar os personagens conceituais inventados nesta dupla ocasião. Mas o que são tais personagens conceituais na criação filosófica?

são aqueles que operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do filósofo e intervém na própria criação dos conceitos... Os personagens conceituais são os heterônimos dos filósofos, e o nome dos filósofos o simples pseudônimo de seus personagens. É o destino do filósofo se transformar em seu ou seus personagens conceituais, ao mesmo tempo em que tais personagens se tornam, eles mesmos, coisa diferente do que são... O personagem conceitual é o devir de uma filosofia (Deleuze & Guattari, 1992, p. 86)

Ou seja, eles são os pensadores que animam o pensamento na criação, tornando o ato de criação inseparável do devir do criador. Neste nível, os conceitos dramatizados por tais personagens conceituais plasmarão a filosofia de Deleuze e Guattari na vocação minoritária de um pensamento construído no horizonte absoluto de um plano de imanência. Cabe lembrar que, desde o método utilizado por Deleuze em Diferença e Repetição (1968) e no Lógica do Sentido (1969) - livros inaugurais da sua criação conceitual - até o encontro com Felix Guattari - realizado em quatro livros que os dois autores escreveram juntos -, toda uma dramatização conceitual é posta em andamento através de intercessores que funcionam como peças de um teatro filosófico. Neste caso específico, os personagens conceituais darão andamento a um teatro filosófico minoritário construído na contrapartida de um teatro da representação.

Com isso, justificamos a noologia de uma filosofia teatral menor pela sua predileção por conceitos menores, por um plano de imanência nômade e pela invenção de personagens conceituais, cuja explicitação será devidamente notada na construção teatral da língua. Neste caso, é preciso mostrar que a criação conceitual - que faz apelo a um povo que falta - é inseparável de uma nova língua da filosofia.

B - Ou seja, a filosofia cifra o conceito em uma língua filosófica e cria um vocabulário conceitual com o qual ela dramatizará a sua posição. Sendo ela intempestiva e nômade, é possível lê-la pela sua língua, uma vez que nela sua vocação política já se encontra assinalada. Neste caso, a língua extemporânea dos conceitos filosóficos vai merecer exemplificações enumerativas, cujas nomeações tornem possível uma explicitação do seu vetor. Assim, os conceitos de agenciamentos, devires-minoritários, linhas de fugas, território, terra, desterritorializações absolutas, máquinas de guerra e espaços nômades serão situados na contrapartida dos conceitos de aparelho de captura, aparelhos de estado, significância, subjetivação e ideal da representação.

Nesta trama conceitual um combate vem a se configurar na obra filosófica e uma língua disposta como ferramenta ganha a sua vocação política e criadora. A proposta é configurar a filosofia como um agenciamento do pensamento, que cria as condições reais de uma outra língua, um outro agenciamento de linguagem e uma outra vocação política.

Ora, nesta configuração percebemos que a criação conceitual supõe uma cifra do conceito na ordem de uma língua, estando tal língua encarregada da dupla função de colocar em evidência os mecanismos da captura da vida e as suas engrenagens representativas, colocando, igualmente, os componentes de fuga através de uma língua não ortodoxa que cifra o conceito criado pelo crivo no caos. Como dissemos no item anterior, que o conceito criado neste empreendimento minoritário surge de um pensamento extemporâneo consagrado à experiencia do fora, podemos agora assegurar que a criação do conceito pode ganhar aqui uma inflexão política. Afinal, criar conceitos é a condição filosófica de criticar o presente e abrir as possibilidades conceituais para o âmbito de um devir traçado por um plano de imanência nômade que será habitado por personagens conceituais que clamam pela existência de um povo. Ou seja, tal empreendimento político é inseparável de um devir-minoritário que vincula a filosofia a um povo que ela não cria, mas pode perfeitamente evocar. Mas qual o povo com o qual uma filosofia nômade e não estatal poderia se vincular? "A raça invocada pela arte ou a filosofia não é a que se pretende pura, mas uma raça oprimida, bastarda, inferior, anárquica, nômade, irremediavelmente menor (Deleuze & Guattari, 1992, p. 141). Neste caso, tanto a arte quanto a filosofia entrarão em um devir minoritário, onde nele o devir do filósofo e do pensador vão se conectar com um povo minoritário, invocado pelas suas criações. Neste teatro filosófico minoritário, um duplo devir pode desencadear na filosofia devires ilimitados situados no lado de fora das representações. Enfim, a filosofia deve criar, nesta ocasião, o devir minoritário de um povo situado fora das representações teatrais majoritária.

C - Ao introduzirmos, assim, o povo nômade pelo viés do teatro filosófico minoritário, é preciso retomarmos ainda alguns aspectos do plano de imanência para singularizá-lo neste empreendimento final. Sendo assim, a imanência absoluta do horizonte de uma filosofia menor, deve se reportar a um plano de pensamento traçado sem a referência a um sujeito ou a um objeto. Por outro lado, ela não deve estar vinculada a uma transcendência estatal ou religiosa, que lhe confira a ilusão de um começo ou de uma finalidade. Finalmente, ela não deve se reportar a um sujeito de enunciação concebido como um cogito da reflexão ou da comunicação. Dessa maneira, trata-se de uma imanência radical de um pensamento nômade, em que nele pensar é traçar o movimento infinito de um horizonte absoluto aqui pensado como a terra dos conceitos.

Ora, pensando a imanência dentro desta perspectiva, Deleuze e Guattari encontrarão em Spinoza o seu expoente o mais radical. Afinal, é dele o mérito de ter pensado um plano de imanência sem referência, ao abolir toda e qualquer transcendência estatal ou religiosa. Além disso, ele não fez a imanência depender de um sujeito ou de um objeto, nem tampouco a concebe como imanência a um termo posto como referente original ou final.

Entretanto, na criação inatual de um pensamento nômade - ou de um teatro filosófico minoritário - é preciso que o pioneirismo de Spinoza seja levado à instancia de um devir ilimitado que trace no seu horizonte a terra nômade da filosofia. Neste caso, há em Deleuze e Guattari uma imobilidade nômade que habita o horizonte ilimitado dos conceitos criados por estrangeiros que habitam a terra nômade da filosofia. Estando tal horizonte situado no lado de fora dos espaços históricos determinados pelas ilusões da representação, nesta imanência nômade - sem referência ou delimitação - as criações conceituais são inseparáveis de um horizonte absoluto de um plano de imanência livre de toda e qualquer ilusão que possa desacelerar o pensamento. Neste caso, pensar a imanência é traçar o plano de um pensamento sem referência que possa suscitar uma ilusão de transcendência.

Além disso, se Deleuze e Guattari criam os conceitos na condição de estrangeiros que habitam uma terra nômade de uma filosofia, é fundamental que este plano seja habitado por personagens conceituais - isto é por devires - que fazem apelo a um povo minoritário. Neste caso, o plano de imanência de um devir ilimitado se constrói na invocação de um povo menor ainda inexistente na história, mas indispensável ao devir da filosofia. Como os pensadores já haviam nos lembrado, seus empreendimentos anteriores, a construção deste plano de exterioridade vai conferir a eles uma posição inatual frente às atualidades históricas. Sendo assim,

há um plano "melhor", que não entrega a imanência à algo = X, e que não simula mais nada de transcendente?... Ele seria o não pensado no pensamento. É a base de todos os planos, imanente a cada plano pensável que não chega a pensá-lo. É o mais íntimo no pensamento, e todavia o fora absoluto. É um fora mais longínquo que todo um mundo exterior, porque ele é um dentro mais profundo que todo mundo interior; é a imanência, a ida e volta incessante do plano, o movimento infinito. (Deleuze & Guattari, 1992, pp. 78-79).

Neste item final, a imanência retomada como horizonte absoluto dos conceitos se aloca no lado de fora dos espaços sitiados pelo aparelho do estado, através de um pensamento do fora que se impõe na contrapartida das ilusões que possam criar referências no pensamento, capazes de restaurarem certas transcendências. Assim, torna-se necessário pensar em uma imanência sem sujeito e objeto como referentes e sem compensações estatais, religiosas ou morais. Na terra nômade dos conceitos, fazer a aposta radical no fora é tornar pensável o impensado, através da criação de conceitos menores que clamam pela existência do novo e de um povo porvir.

Resta entendermos por que chamamos tal procedimento de teatral. É que nele um teatro filosófico é posto em andamento, seja através de um conteúdo filosófico - onde os autores denunciam o teatro da representação apresentado pelas filosofias clássicas -, seja através da sua predileção política. Ao dramatizarem os conceitos, criando uma tensão conceitual entre as noções majoritárias e os conceitos minoritários por excelência, Deleuze e Guattari criarão uma tensão teatral entre conceitos, que situarão a filosofia diante de um combate contra a representação. Por outro lado, ao plasmarem o ato de criação na vetorização de um pensamento que faz fugir os poderes estabelecidos, eles tornam possíveis uma teatralização política da filosofia, através da criação de intercessores filósofos que dramatizarão tais conceitos

É o que acontece, por exemplo, nos procedimentos criadores de Gilles Deleuze: tanto em Diferença Repetição (Deleuze, 1968), quanto em Lógica do Sentido (Deleuze, 1969), percebemos filósofos funcionando como intercessores no texto, ao ponto de erigirem na filosofia todo um teatro filosófico posto a serviço de uma dramatização do pensamento. No primeiro, o conceito puro de diferença será construído na contrapartida das filosofias teatrais representativas - ali onde a diferença em si mesma é banida como algo de irrepresentável, mas retomada na dimensão teatral do Nietzsche intercessor. Já no segundo, Deleuze constrói uma filosofia de superfície invocando pensadores estoicos, Lewis Carol, Leibniz e toda uma lógica do acontecimento dramatizada por diversos filósofos intercessores que construirão pela filosofia de superfície toda uma dramatização do acontecimento posta a serviço da reversão do platonismo. Com tais livros um teatro filosófico é construído através de intercessores que dramatizam ideias e expõem as aventuras de um pensamento não categórico. Como bem observa Michel Foucault, um teatro filosófico

está presente nos textos de Deleuze, pulando, dançando diante de nós, entre nós: pensamento genital, pensamento intenso, pensamento afirmativo, pensamento a-categórico - todos os rostos que não conhecemos, máscaras que jamais vimos: diferença que nada deixava prever e que, no entanto, faz voltar como máscaras de máscaras Platão, Duns Scot, Spinoza, Leibniz, Kant, todos os filósofos. A Filosofia não como um pensamento, mas como teatro... Teatro em que sob a máscara de Sócrates, subitamente explode o riso do Sofista. (Foucault, 1970, p. 254)

Em que a máscara de Duns Scot será vinculada à de Spinoza e reevocada por Nietzsche na estranha trindade que inaugura a Univocidade do Ser. Além disso, tal teatro pode ser encontrado na reversão do platonismo levada a termo pelos estoicos, mas dramatizada por Nietzsche em seu teatro filosófico plasmado sobre o Devir ilimitado do eterno retorno e da vontade de potência. Em suma, há todo um teatro filosófico introduzido no método com pensadores intercessores que darão os motivos conceituais da sua dramatização filosófica.

Já no encontro com Felix Guattari - encontro de dois pensadores confluentes ou, se quisermos, de dois mundos se expressando pela afinidade dos seus problemas - o teatro se amplia pela transversalidade de uma clínica tecida no agenciamento concreto de pensamentos múltiplos e diversos. Aqui, o teatro filosófico minoritário vai ganhar uma dimensão clínica, consistida por dois pensadores que só conservam os seus nomes próprios para disfarçarem os personagens conceituais que os habitam e os fazem pensar.

Nesta última inflexão, a filosofia se instaura como um teatro clinico, político e, decididamente, menor. Como bem observam os seus pensadores, comentando o início das duas colaborações

Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente, por hábito. Para passarmos desapercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar... Não chegar ao ponto em que não se diz mais eu, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer eu. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados. (Deleuze & Guattari, Mil Platôs, vol. 1, 1995, p. 17).

 

4 Conclusão: criações e devires em filosofias e teatros menores

Se a filosofia menor já foi apresentada em um artigo anterior - intitulado "Filosofia menor: a língua inatual dos conceitos" - e o pensamento nômade já foi abordado em inflexões anteriores - agora eles são retomados para ganharem inflexões teatrais. Desta maneira, a imagem dogmática foi relacionada a uma filosofia teatral da representação, da mesma maneira que o pensamento menor foi apresentado como um teatro filosófico de problemas e conceitos não representativos. Nesta última apresentação, uma intercessão com Nietzsche tornou-se possível, estando um teatro filosófico esboçado na dimensão das criações conceituais e dos devires minoritários.

Por outro lado, o teatro menor de Carmelo Bene - abordado por Gilles Deleuze no seu célebre Manifesto de Menos - configurou o nosso procedimento no âmbito de uma teatralização do pensamento, com intercessões cotejáveis com o teatro de Deleuze, através de criações e devires minoritários encontráveis nos seus procedimentos.

Sendo assim, criações e devires em filosofias e teatros menores não teve outro propósito senão o de situar tais pensamentos na transversalidade de empreendimentos políticos que colocassem os pensadores menores em uma zona de indistinção, onde, nela, conceitos e dramatizações tornassem possível uma vetorização intempestiva que incluísse no presente as condições de fuga das representações teatrais, tanto pelo advento da criação filosófica quanto pelo teatro abordado nessas novas intercessões.

Uma vetorização transversal foi alcançada pela admissão de que as criações e os devires que animam tais pensamentos, possam coabitar uma política de minorias que explorem os espaços ainda não capturados pelo aparelho de estado. Notadamente, tais autores precisaram tais fugas em seus empreendimentos, mas mostraram as condições políticas de tais atitudes, ao dizerem, por exemplo, que uma contestação eficaz não pode ser levada ao limite sem uma criação capaz de desestabilizar o presente pela evocação de um devir. Por outro lado, é possível mudar o presente sem um pensamento que torne possível uma outra maneira de viver? Como trazer pelas filosofias teatrais e pelo teatro problemático as condições de um devir-minoritário de uma provável minoria? E como traçar a fuga diante do impossível, ao criar um possível no devir- imperceptível?

Ora, ao falarmos aqui de pensamentos criadores - situando-os no âmbito de criações menores - tivemos, nas duas ocasiões, o cuidado de definir o menor pela sua vocação nômade, pela sua atitude intempestiva e pela política que aqui se ensejaram nas duas criações encenadas. De alguma maneira, buscamos tal cotejamento orientados pelos dois filósofos que dramatizaram conceitos teatrais de um outro pensador e pelo filósofo, que ao abordar o dramaturgo, inseriu os seus procedimentos no intercurso da nossa abordagem. Mostramos, por um lado, as vocações políticas do Teatro de Carmelo Bene - pela abordagem criteriosa de Gilles Deleuze - e procuramos situar, por outro, os dois pensadores no âmago da atitude assumida através das suas próprias abordagens. Assim, nos pareceu pertinente situar Deluze e Guattari como filósofos grandiosos que pensam a minoração como uma via de fuga traçada por uma prática de liberdade. Ao entendermos que tais fugas se traçam nos caminhos criados pelas criações do pensamento, propusemos que os pensamentos menores fossem talhados no limiar da nossa sociedade, para que pusessem em movimento todo um campo social disposto a fazer fugir os movimentos autoritários e arrogantes que ainda habitam a sociedade, através da criação dos novos modos de viver

No decorrer das duas exposições, tivemos o cuidado de ensejar as repetições que alinhavassem a coerência do nosso artigo, mas fizemos - com brevidade assumida - uma exposição estratégica da tática da minoração. Agora, para reunir na finalização a intercessão que no início deflagrou as duas exposições, torna-se pertinente perguntar: o que une estes dois procedimentos minoritários? Uma diagonal traçada que torne possível os processos minoritários que devem ser desencadeados pelos pensamentos que questionam elementos reacionários ainda existentes na nossa sociedade. Que haja neles uma ênfase dada no protesto e no combate aos poderes estabelecidos, isto decorre do fato de que nos procedimentos menores a crítica deva sempre ser associada a criação de uma nova maneira de viver. Ou seja, há, em tais minorações, uma invenção de minorias que enxergam no presente as condições noológicas de uma possível saúde. Trabalhá-las na explicitação de duas políticas filosóficas e teatrais foi a tarefa que aqui nos motivou. Finalmente, é preciso acrescentar que as criações e os devires nos pensamentos menores são atitudes políticas que apostam no novo e no lado de fora ainda não capturado pela soberania da máquina estatal.

O avanço em relação aos artigos anteriores, consistiu na abordagem do teatro de Carmelo Bene. Com ela, propusemos um teatro filosófico construído por personagens conceituais e situado fora das ambientações tradicionais dos dramas representativos. Ao citarmos, na primeira parte do artigo, as predileções dos dois autores, procuramos configurar um motivo que justificasse a retomada das adjetivações anteriores, para a implementação neste novo contexto de um teatro filosófico minoritário. E a ocasião surgiu pela inspiração doada por Michel Foucault. Ao ter escrito o célebre texto - "Theatrum philosophicum" - em que nele dramatiza os conceitos de Gilles Deleuze como uma tentativa de colocar na filosofia todo um drama de ideias que ilustre sua vocação política e revolucionária, ele ofertou a ocasião de uma nova dramatização teatral, cuja sutileza deve constar no parágrafo final deste artigo.

Sendo assim, as criações e os devires em filosofias e teatros menores se conjugaram no plural, pelas capacidades que tais autores tiveram de operarem transversalidades políticas, que retiraram seus procedimentos da legitimação dos valores estabelecidos, para criarem o drama das ideias capazes de forçar o pensamento na dramatização de uma outra maneira de viver. No intercurso dos dois procedimentos, algumas repetições se tornaram inevitáveis, para que as diferenças ensaiadas nos textos anteriores pudessem ser ampliadas nesta nova dramatização. Finalmente, o título ensejou a dramatização de um pensamento porvir, pela nova intercessão agora alcançada entre a filosofia e o teatro. Claro está, assim esperamos, que a função destes teatros seja forçar o pensamento a pensar no porvir das suas respectivas criações.

 

 

Referências

Bene, C. (1977). José Guinot et le Centre International de dramaturgie ont fait connaitre l'oeuvre de C. B. en France, on lui consacré um cahier, comportant la pièce S. A. D. E, des textes de C. B. et une Bibliographie Générale; Carmelo Bene, dramaturgie.         [ Links ]

Dans XX Siècle, (50), on trouvera une belle analise du Théâtre et du cinema de Carmelo Bene, par Jean-Paul Manganaro.         [ Links ]

Bene, C. (1977) a présenté à Paris Roméo et Juliette et S. A. D. E., Festival d'Automne, opéra comique.         [ Links ]

Bene, C. (1978). Richard III. In Bene, C., & Deleuze, G. Superpositions. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

Deleuze, G. (2006). Diferença e Repetição. São Paulo: Graal.         [ Links ]

Deleuze, G. (2006). Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Deleuze, G. (1978). Un Manifeste de Moins In Bene, C., & Deleuze, G. Superpositions. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

Deleuze, G. (2010). Um Manifesto de Menos. In Deleuze, G. Sobre o Teatro - Um manifesto de menos - O Esgotado. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Deleuze, G. (1973/2006). Pensamento Nômade. In A Ilha Deserta. São Paulo: Ed. Iluminuras.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1995). Rizoma. In Mil Platôs. (vol. 1). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1995). Postulados da Linguística. In Mil Platôs. (vol. 2). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). 10-1730 - Devir -Intenso, Devir-Animal, Devir- Imperceptível... In Mil Platôs. (vol. 4). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Tratado de Nomadologia - A Máquina de Guerra. In Mil Platôs. (vol. 5). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Aparelho de Captura. In Mil Platôs. (vol. 5). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1992). O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Foucault, M. (2005). Theatrum Philosophicum 1970 - Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento In Ditos e Escritos. (vol. II). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Auterives Maciel Júnior
E-mail: autermaciel@gmail.com

 

 

*Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Atualmente trabalha como professor adjunto no Programa de Pós-graduação - Mestrado e Doutorado - em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida UVA; e na graduação em psicologia da Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RIO. É professor colaborador do Programa de Pós-graduação - Mestrado e Doutorado - em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e faz formação na sociedade de psicanálise Iracy Doyle (SPID). Pesquisador FUNADESP.
1Carmelo Bene - (1937-2002) foi um dramaturgo, ator, encenador e cineasta nascido em Campi Salentina. Neste artigo, ele será trabalhado mais como dramaturgo por Gilles Deleuze a partir do ensaio "Manifesto de Menos". Com tal abordagem, situaremos o seu teatro como um procedimento minoritário, para cotejá-lo com os teatros menores que abordaremos ao longo do texto.
2Sobre o combate contra o caos e o crivo de onde saem os conceitos indicamos a leitura da conclusão intitulada "Do caos ao cérebro", que se encontra no livro O que é a filosofia?, escrito pela dupla em 1991. Aqui, utilizaremos este livro ao longo da nossa introdução para explicitarmos as noções de conceitos, o plano de imanência e os devires descritos pelos personagens conceituais que apresentaremos no decorrer deste artigo. Dessa maneira, acreditamos que a leitura deste livro seja fundamental para uma criteriosa abordagem da filosofia destes dois pensadores.
3Filosofia Menor - A Língua inatual dos conceitos é um artigo já publicado - escrito em colaboração com Mario Bruno - cuja expressão é retomada com uma outra inflexão: agora, a intenção consiste em configurar a filosofia dos dois autores como um teatro filosófico.
4A característica teatral desta filosofia é o componente conceitual que marca a distinção deste texto, justificando a repetição dos procedimentos minoritários. Mostraremos, ao longo do artigo, como é possível apresentar tal filosofia como um teatro filosófico.
5Tais devires e tais criações devem ser encontrados no livro O que é a filosofia?, principalmente no capítulo intitulado "Percepto, Afeto e Conceito". Neste texto, Deleuze e Guattari situarão a filosofia ao lado das artes, colocando-as como pensamentos também criadores.
6A abordagem de Nietzsche que consta em "O Pensamento nômade" será aqui dramatizada livremente pela necessidade de contextualização do autor. Todavia, para um esclarecimento da situação de Nietzsche como um filósofo nômade sugerimos a leitura do texto "O pensamento nômade" (1973). In A Ilha Deserta. São Paulo: Iluminuras, pp. 319-330.
7Trata-se do exemplo IX que consta no final do capítulo geofilosofia do livro O que é a filosofia? (1992) Nele, Deleuze e Guattari analisam o devir, situando Nietzsche, Péguy e Foucault como pensadores extemporâneos. Cf. pp. 144 -146
8Relembramos tal seriação para vinculá-la agora a uma nova dramatização: aqui tais termos devem situar dois pensamentos teatrais em dissenso, em que o dogma da representação será combatido por um pensamento lúdico e teatral que prima pela invenção do novo e do devir.
9Aqui, o platô principal é aquele que trata do devir- intenso, devir -animais, devir-imperceptível. Vol. 4 da edição adotada neste artigo. As definições aqui adotadas se encontram ao longo das páginas que os autores relembram Spinoza - pp. 39-47; e nas trinta páginas iniciais encontraremos, igualmente, a apresentação do devir enquanto real.
10O texto "Um manifesto de menos" é aqui trabalhado em diversas situações. Na verdade, é a abordagem de Deleuze como intercessor que irá nos interessar, muito embora a condição minoritária de Carmelo Bene possa ser verificada no texto Ricardo III, aqui inserido na nossa bibliografia, e nas peças Romeo e Giulietta e S.A.D.E, cuja referência o leitor irá encontrar no final do artigo.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons