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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.55 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2023
ARTIGOS
Uma nova voz, um novo olhar: armadilhas da formação humorística1
A new voice, a new look: traps of the humorous formation
Une nouvelle voix, un nouveau regard: les pieges de la formation humoristique
Laene Pedro GamaI*; Jean-Michel VivesII**; Ana Magnólia Bezerra MendesI***; Daniela Scheinkman ChatelardI****
IUniversidade de Brasília - UnB - Brasil
IIUniversidade Côte d' Azur - França
RESUMO
O estudo sobre os tipos de comicidade, em especial o humor, preocupou os românticos e influenciou os estudos no começo do século XX. Freud, influenciado por esse contexto tanto quanto o influenciando, escreveu duas obras que tratam do assunto. Neste artigo, o tema humor leva a algumas discussões: o riso humorístico como o emolduramento do afeto e o efeito da fala afável do supereu para essa formação. Entender a plástica representada pelo riso humorístico leva a considerar que esse processo reúne duas possibilidades de armadilha, que podem se constituir tanto por via da pulsão invocante quanto da escópica. A primeira, pela fala afável e consolatória do supereu, parece funcionar como um doma-voz; a sonoridade dessa fala oferta um novo lugar que não apenas o do imperativo mortífero. A segunda armadilha seria o riso humorístico, o qual se pode pensar como um doma-olhar. O riso contido que emoldura a sensação de travessura frente ao risco enfrentado, mesmo sabendo-se que esse desafio persiste para fora de sua borda, o que avizinha as lágrimas. Para pensar os efeitos das características estéticas e artísticas do humor, dois episódios da obra Dom Quixote de la Mancha são tomados como ilustração. Os trechos do romance ajudam a pensar como o riso, pela sua expressão imagética e sonora, pode emoldurar os afetos ou trans-bordar em excesso. Essa compreensão estética ajuda a situar o seu alcance, que tanto pode ser o compartilhamento do prazer ou a reafirmação solitária do gozo. Assim, o sorriso humorístico pode funcionar como uma armadilha para o afeto, emoldurando-o de modo a revelar, contidamente, que aquilo que aterroriza pode ser enfrentado, mesmo que não seja aniquilado; o resto é excesso. Portanto, mesmo que de forma arriscada, o humor é capaz de construir o discurso da falta que remete o sujeito ao seu desejo.
Palavras-chave: Humor, supereu, gozo, desejo.
ABSTRACT
The study about the types of comicality, and in special the humor, worried the romantics and had an influence on the studies in the beginning of the XX century. Freud, influenced and influencing this context, writes two works that treat about this thematic. In this paper, the theme humor goes to some discussions: the humoristic laugh like the framing of the affection and the effect of the affable speech of the Superego for this formation. When the plastic represented by the humoristic laugh is understood, it takes into consideration that this process gathers two possibilities of a trap, both can be constituted either as by the invoking drive or as the scopic drive. The first, by the affable and consolatory speech of the superego, that seems to work as a voice-tamer, the sonority of this speak offers a new place that is not only the deadly imperative. The second trap would be the humoristic laugh, which can be thought as a look-tamer. The contained laugh that frames the sensation of the mockery play in front the risk confronted, even knowing that this challenge persists for out of your edge, which can be approached to tears. To think the effects of the artistic and esthetic characteristics of the humor, two episodes of the work Dom Quixote de La Mancha are taken as illustration. The parts of the romance help to think how the laugh, through the imagistic and sonorous expression, can frame the affections or overflow in excess. This esthetic comprehension helps to situate your reach, that either can be the share of the pleasure or the lonely reaffirmation of the jouissance. Thereby, the humoristic smile can work as a trap for the affection, frames it reveling, retracted, that what terrifies can be faced, even that's not annihilated; the rest is excess. Therefore, even in a risky way, the humor is capable of constructing the utterance of the loss, that remits the subject to their desire.
Keywords: Humor, superego, jouissance, desire.
RÉSUMÉ
L'étude des types de comique, et plus particulièrement de l'humour, intéressa les romantiques et influença les recherches du début du XXème siècle. Freud, influencé et s'inscrivant dans ce contexte, écrivit deux ouvrages qui abordent cette thématique. Dans cet article, ce thème est discuté de la façon suivante: le rire lié à l'humour permettrait le bordage d'un risque, effet de la parole consolatrice du Surmoi. Appréhender la plasticité impliquée par le rire humoristique conduit à considérer que le processus humoristique convoque deux possibilités de pièges pouvant se manifester aussi bien par l'intermédiaire de la pulsion invocante que de la pulsion scopique. Premièrement, par la parole douce et consolatrice le Surmoi se constituerait comme dompte-voix. La sonorité de cette parole offre un nouvel espace au-delà de l'impératif mortifère. Le second piège serait le rire humoristique pouvant être compris comme dompte-regard. Le rire limite la sentiment désagréable face au danger, même s'il reste évident que le problème persiste hors de l'espace dessiné par l'humour ce qui peut conduire aux larmes mêlées au rire. Pour penser les effets esthétiques et artistiques de l'humour deux épisodes de l'oeuvre Don Quichotte de la Mancha sont utilisés. Les parties du roman permettent de penser comment le rire, dans sa dimension imageante et sonore peut encadrer les affects ou dé-border excessivement. Cette compréhension esthétique aide à situer sa portée: partage de plaisir autant que réaffirmation solitaire de la jouissance. Ainsi, l'humour peut fonctionner comme piège pour l'affect en l'encadrant, révélant par là-même qu'il est possible de faire face à ce qui terrifie même s'il ne peut être annihilé; reste en excès. Par conséquent, même d'une manière non dépourvue de risques, l'humour est capable de construire le discours de l'absence renvoyant le sujet à son désir.
Mots-clés: Humour, surmoi, jouissance, désir.
O estudo sobre os tipos de comicidade, em especial o humor, preocupou os românticos - inicialmente os alemães - e influenciou os estudos no começo do século XX (Carignano & Garcia, 2007). Esses estudos refletem sobre diversas obras, inclusive Dom Quixote de la Mancha (Cervantes, 1605), e destacam o humor como um tipo de comicidade que representa o mundo romântico e moderno pela especificidade de sua sensibilidade, que diz respeito à natureza humana e não a uma individualidade específica. Assim, o humor coloca em xeque não o outro, mas o mundo e a si mesmo. A apreensão da visão humorística acontece por meio de e no próprio eu do humorista, levando à identificação com o outro, ao mesmo tempo que diferencia o humor do cômico, porque neste último o outro é tomado como objeto do risível. Enquanto o cômico adverte o contrário, o humor reflete sobre o sentimento do contrário, tornando-o amargo, mas revelador da natureza humana e daquilo que a aflige.
O cômico gargalha, sinaliza de forma estrondosa aquilo que se pretende dizer, e o faz constatando-o em uma outra figura, como no clássico exemplo daquele que é alvo de derrisão ao escorregar em uma casca de banana - imagem que pode ser expressa em palavras como "antes ele do que eu". Na verdade, gargalha-se da imagem afastada de si, e assim levanta-se uma defesa, mas não reflete-se sobre aquilo que ela recalca. O humor, por sua vez, assume o contrário daquilo que se pretende dizer, permitindo acesso ao afeto que angustia, sem dissociar a função intelectual do processo afetivo.
Freud, influenciado por esse contexto tanto quanto o influenciando, escreveu sobre as formações do cômico em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905/2017) e, especificamente sobre o humor, em 1927. No intervalo de tempo entre as duas obras, 22 anos, Freud avança nos seguintes construtos psicanalíticos: narcisismo, investimento pulsional, sublimação e supereu, resgatando e ampliando, assim, a problemática do humor.
Inicialmente, Freud apresentava o prazer obtido pelos tipos de comicidade - o Witz2 (traduziremos por piada), o cômico e o humor - por um modelo econômico de energia psíquica baseado em um princípio de retenção e liberação de tensões psíquicas. O prazer das piadas procederia de uma economia na despesa com a inibição; no cômico, de uma economia na despesa com a ideação; e no humor, de uma economia na despesa com o afeto. Nas três formas o prazer deriva do ganho de uma economia, e todos concordam em representar métodos que restabelecem, a partir da atividade psíquica, um prazer que se perdera no desenvolvimento dessa mesma atividade. O resgaste dessa perda remonta ao período da infância, momento em que o trabalho psíquico é realizado com pouco gasto: "... quando não conhecíamos o cômico, não éramos capazes de fazer chistes e não precisávamos do humor para nos sentirmos felizes na vida" (Freud, 1905/2017, p. 334).
Transcorrido o tempo entre as duas obras, Freud desloca a ênfase do humor de uma explicação econômica para uma dinâmica na qual ganha projeção a figura do humorista. Agora essa formação psíquica é vista como o triunfo do narcisismo na afirmação da invulnerabilidade do eu, ao recusar as provocações traumáticas do mundo externo e demonstrar que elas não passam de ocasiões para obter prazer. Morais (2008) lembra que, se em 1905 Freud não havia desenvolvido o construto do narcisismo, em 1927 ele já tem condições de descrever o humor como uma formação psíquica que denuncia o fracasso e a impossibilidade de realização das ilusões narcísicas do eu. Essa condição permite a desidealização e desmontagem das certezas, possibilitando ao sujeito a abertura de caminhos pulsionais que levem ao desejo. Assim, o humor não é apenas o triunfo do eu, mas também do princípio do prazer sobre a crueldade das circunstâncias reais, opondo-se à resignação masoquista do sujeito diante do real e das exigências sociais. Esse movimento torna o humor teimoso e rebelde, por insistir no erotismo e no desejo do sujeito mesmo diante das adversidades, mantendo a recusa do indivíduo ao sofrimento, ainda que sem desenvolvimento de psicopatologias.
Ao longo dos vinte anos que separam as duas publicações, o supereu ganha papel determinante na formação humorística. Ele participa dessa construção psíquica não como aquele senhor rigoroso ao qual estamos habituados, mas dirigindo um convite em tom afável e benevolente a um eu amedrontado: "[...] veja aqui, este é o mundo, que parece tão perigoso. Uma brincadeira de criança, bem interessante, para se fazer uma piada a respeito" (Freud, 1927/2017, p. 280). Esse convite, em tom afável e benevolente, é dirigido pelo supereu a um eu amedrontado e revela o medo de enfrentar o real, bem como o estranhamento da origem do convite.
O papel do supereu no humor é amplamente discutido, em especial após Lacan (1957-1958/1999) evidenciar que a propulsão do humor não se encontra na volta dada ao supereu como instância psíquica benevolente, e sim é sustentada pelo processo sublimatório que dá voltas no recalque quando a piada alcança o Outro, criando um novo significante. A piada no humor, mais do que a busca pelo prazer compartilhado, ganha valor de tirada espirituosa quando autenticada pelo Outro, localizando-se aí a fonte do prazer para o sujeito que a formula. Esse resultado afasta o humor de um processo de defesa e o afirma como processo sublimatório.
Os estudos sobre o humor que precedem os de Freud discutem a diferenciação entre piada e humor. Posteriormente, Lacan (1957-58/1999) foi determinante nessa discussão ao articular as formações humorísticas ao sujeito capturado pela linguagem, entrelaçado pelos três registros: o real, o imaginário e o simbólico. O autor estudou o cômico como forma de comicidade relacionada ao imaginário, (concordamos com a alteração)à piada investida no simbólico e (concordamos com a alteração)ao humor enfrentando o real. Destacamos, em especial, suas contribuições ao humor quando ele ressalta a importância do reconhecimento do Outro para essa formação e o processo sublimatório como uma resposta ao real, mesmo que esse fosse lembrado ao eu de forma benevolente pelo supereu. A partir de seus estudos, passou a haver uma tendência em não separar a piada do humor, devido à mesma localização psíquica de ambas, o inconsciente, e à realização do processo sublimatório. Invariavelmente a piada utiliza-se de técnicas como brevidade, representação pelo oposto, facilidade de entendimento, efeito surpresa, nonsense,3 e outras, e é tratada como tirada espirituosa, termo cunhado por Lacan.
Abrimos espaço para uma discussão abreviada em torno das formações cômicas, em especial do humor e da piada, buscando através da reflexão dessas diferenças e semelhanças, compreendermos mais sobre a dinâmica do humor. É própria do cômico a comparação por imagem, como muito exemplificado na obra freudiana, o que implica uma pessoa tornar-se objeto de derrisão de outra. Essa comparação pressupõe uma sensação de superioridade momentânea ou não. Para Vasconcelos (2001), tal fato aponta para uma via imaginária marcada pela semelhança, pela pacificação do igual e pilhéria ao outro. Já a piada é marcada por um jogo de linguagem, necessitando de um terceiro que a compreenda e a valorize. Para a autora, essa formação psíquica é o aprimorar da linguagem pelo investimento simbólico, e a denúncia do não senso é o que caracteriza o processo da piada. Quanto ao humor, sua marca é o deslocamento do afeto. A palavra afeto, aqui compreendida como algo que leva o sujeito a se afetar por alguma coisa, por uma ideia intolerável.
Ribeiro (2008) traça as diferenças entre os tipos de comicidade a partir das duas principais características do humor, o triunfo do eu sobre o princípio da realidade e sua recusa em sofrer, caracterizando-o como uma forma espirituosa sem arrogância e niilismo. A autora acentua uma possível distinção entre o humor e a piada, ressaltando as diferenças apontadas por Freud entre as duas formações. A piada é uma ideia recalcada no inconsciente, que sob pressão surge na consciência. Ela exige um público da mesma representação recalcada, submetido à mesma experiência tópica, e requer três lugares, o sujeito, o assunto e alguém que a confirme através de uma gargalhada. O humor tem sua origem no pré-consciente, por atuação do supereu na evitação de um sentimento doloroso, e não se confirma por uma gargalhada, como a piada, e sim por um riso mais discreto, entretanto mais sublime. Ambas as formações estão a serviço do princípio do prazer, mas de formas diferentes, e obtêm o mesmo resultado, divergindo apenas em sua intensidade. A necessidade de um público também é a mesma, a presença do supereu acionado no humor é o que se enuncia em maior contraste. Slavutzky (2014) contesta a diferenciação de lugar psíquico que Freud postula para a piada e o humor, a primeira no inconsciente e o segundo no pré-consciente. Para o autor não cabe diferenciar piada e humor, ambos estão ligados ao mesmo lugar psíquico, o inconsciente, e ambos possuem raiz na segunda tópica, mais precisamente no supereu.
Para Kehl (2005), é bem mais difícil nos jogos verbais do que nas encenações corporais estabelecer uma distinção rigorosa entre a comicidade, a piada e o humor. O efeito do riso parece ser o elemento que leva Kehl a traçar as diferenças entre os tipos de comicidade. O humor diferencia-se da piada pois não visa a produzir um ataque de riso, mas apenas o distanciamento do eu em relação a uma situação que o ameace ou humilhe. A autora busca entender o significado do distanciamento entre o eu e a situação humilhante ou ameaçadora percebida no humor, o que o leva a uma dinâmica própria. O prazer do humor, se existe, revela-se ao custo de uma liberação de afeto que não ocorre, portanto procede de uma economia na despesa do afeto. O fato de que a situação seja dominada pela emoção de caráter desagradável que deve ser evitada coloca fim na possibilidade de compará-la com as características do cômico e das piadas.
Retratada a discussão sobre a piada e o humor, voltamos a atenção às questões levantadas por Freud (1927/2017) que nos instigam a compreender a incapacidade, por parte de algumas pessoas, de assumirem a posição do humorista, ou ainda de desfrutarem o prazer que lhes é ofertado humoristicamente. Tais limitações certamente (concordamos com a alteração)pautam-se(concordamos com a alteração) pelo risco proposto pela perspectiva humorística ao desvelar conflitos que os sujeitos tentam manter em equilíbrio. Em auxílio, e como forma complementar de pensar essa dificuldade, nós hipotetizamos que o riso, que no humor é econômico - como poeticamente descrito por Freud, na sua obra sobre o chiste, um sorrir entre lágrimas -, imageticamente composto ou sonoramente prenunciado, emoldura a produção espirituosa e de alguma forma potencializa os processos identificatórios pela via pulsional escópica e invocante. Talvez o sorriso contido do humor revele o prazer e o gozo do sujeito em arriscar-se ao revelar o recalcado através de uma piada. Lacan (1959-60/1986) estabelece uma distinção entre o prazer e o gozo, que reside na tentativa permanente do último de ultrapassar os limites do princípio do prazer, movimento que se liga à busca da coisa perdida. Essa busca incessante é causa de sofrimento, o que não é suficiente para erradicar por completo o gozo. O sorriso humorístico emoldura um processo revelador da impossibilidade da irrupção total com aquilo que é recalcado, mas reafirma, de tempo em tempo, a possibilidade de atravessar o peso do real. A função é cumprida (concordamos com a alteração)por meio de uma brincadeira fulgurante que desafia (concordamos com a alteração)as adversidades da vida.
Enveredar pela questão posta por Freud - a dificuldade de assumir a posição humorística e/ou de usufruir do seu convite - nos convoca a seguir esse trajeto e interpõe o desafio de pensar o sorriso como moldura dessa formação psíquica. Outro desafio a ser tratado é uma questão levantada também no final de O humor e que trata diretamente da figura do supereu. No humor, essa figura, o senhor rigoroso, adota uma fala afável e protetora para consolar e defender o eu do sofrimento. Para Freud, há muito o que se aprender sobre essa instância psíquica. Isso nos convida a pensar se há algo nessa fala a ser esclarecido pela pulsão invocante revelada pelas tessituras da voz do supereu benevolente, o que indicaria se essa fala leva a um cala boca do afeto ou se instigaria o processo criativo.
As pulsões escópica e invocante, assim tratadas por Lacan, são importantes para o andamento das duas hipóteses levantadas pelo presente artigo: o sorriso humorístico como o emolduramento de um desafio e o efeito da fala afável do supereu. O trabalho do psicanalista Jean-Michel Vivès é o guia para o trajeto que se inaugura aqui; também trechos do livro Dom Quixote de la Mancha são utilizados para que o cavaleiro da triste figura possa ilustrar a formação humorística, sempre feita de risos e lágrimas.
O humor e o humorista
Em Freud, a virada na compreensão do processo humorístico se dá quando as características do processo anímico do humorista ganham maior destaque. Isso permite explicar o humor a partir de um enfoque dinâmico, e não apenas por um modelo econômico de energia psíquica. A obtenção do prazer (concordamos com a alteração) ocorre pelo processo identificatório, o reconhecimento dado pelo Outro frente a uma formação inconsciente que brinca com as imposições do real. Assim, torna-se necessário conhecer a construção humorística e a importância da participação de um terceiro.
Essa construção pode ser composta de dois modos, quando o próprio humorista é o objeto do humor, ou quando uma segunda pessoa torna-se objeto da construção humorística. Em ambos os casos, o processo completa-se com a participação de um outro, um ouvinte. Na primeira composição, o ouvinte se beneficia da construção humorística como espectador; na segunda, o ouvinte toma para si como objeto a pessoa que fora o alvo da construção humorística (Freud, 1927/2017). Independentemente da sua forma de construção, esse processo proporciona ganho de prazer semelhante, tanto naquele que produz o humor quanto naquele que o escuta.
O ouvinte espera do humorista, pronto a acompanhá-lo, uma manifestação de afeto que exprima sentimentos variados, como irritação, lamento, medo, raiva, dor, horror, desespero. Entretanto, revertendo o esperado, o humorista não manifesta o afeto aguardado e sim faz uma piada, tornando supérflua a ligação afetiva. O prazer humorístico deriva dessa economia de afeto, e nisso Freud já se fizera claro em 1905. Como dito anteriormente, o ganho de prazer é o mesmo, tanto no humorista como no ouvinte; a manifestação se dá pela via do riso em ambos, mesmo que não seja um riso efusivo, como o percebido no chiste e no cômico. Entretanto, para compreender a obtenção do prazer no humor, é preciso aproximar-se do humorista, o que se passa com ele é o que revela a sua postura, já que o ouvinte apenas copia esse processo.
O humor não apenas carrega algo liberador, como na piada ou no cômico, mas possui "[...] algo de extraordinário e elevado [...]" (Freud, 1927/2017, p. 275). O ganho de prazer dessa formação diferencia-se das demais, não se resumindo apenas à liberação de afeto: ao se afastar da realidade que o aflige, ele é também o triunfo do eu. O humor recusa-se a atormentar-se por uma causalidade da realidade; ele é teimoso e resiste a ser afligido pelos traumas exteriores, mostrando que esses podem ser uma oportunidade de obtenção de prazer. Essa outra característica do humor, a afirmação do princípio do prazer, é a sua segunda principal marca. O que o torna não apenas resignado mas também consolador; não significa apenas o triunfo do eu, é também o triunfo do princípio do prazer, ao afirmar-se contra a adversidade da realidade. Tudo isso sem o desenvolvimento de psicopatologias. Mas como isso é possível?
O humorista, ao reconhecer como nulo o sofrimento que parece grandioso à criança, conta uma piada, colocando-se no lugar do adulto em contraposição a essa criança. O humorista identifica-se com o pai e o outro copia a identificação com a criança. Para avançar nessa articulação, é preciso compreender como o humorista reinvindica esse papel. Freud (1927/2017) retoma o momento da criação do humor, quando o próprio humorista é objeto da piada. Nesse momento ele questiona a dualidade de papéis vividos por uma única pessoa ao se tratar como uma criança e ao mesmo tempo representar o papel de um adulto reflexivo. Frente a esse impasse, a figura do supereu é apresentada emO humor. A duplicidade de papéis é explicada em decorrência de o eu abrigar o supereu, com quem muitas das vezes se entrelaça, em algumas dessas relações de forma indiferenciável e em outras rigorosamente diferente. "O Supereu é o herdeiro genético da instância paterna [...]" (Freud, 1927/2017, p. 277) e trata o eu frequentemente em estrita dependência, como nos primeiros anos a criança era tratada pelo par parental.
Pode-se então compreender a dinâmica humorística: o humor tira o acento do eu para sobreinvestir o supereu. A partir dessa distribuição de energia, o supereu cresce e o eu diminui, tornando mais fácil para a primeira instância reprimir qualquer reação do eu. Enfim, "[...] o humor seria uma contribuição para o cômico, por meio da mediação do Supereu" (Freud, 1927/2017, p. 277). Ungier (2001) é uma das autoras que questiona esse acento transferido para o supereu. Para ela, não é essa instância psíquica que contribui para a formação humorística e sim a volta em torno do real pelo processo sublimatório ao se criar uma pequena obra de arte, a piada. Para a autora, se com o livro das piadas Freud define o humor como um mecanismo de defesa - em forma de frase espirituosa provocaria alívio no orador, evitando o desprazer -, no segundo escrito, após a mudança teórica introduzida pela segunda tópica, ele passa a tratar o humor como um fenômeno que, apoiado pelo supereu, evidencia ganho de prazer. A autora evoca os estudos sublimatórios como acréscimo para essa mudança. Segundo ela, no humor a pulsão contorna o real e encontra o trajeto natural de circulação. "Diante do real, fruto da pulsão de morte, engendra-se uma curiosa obra de arte (...) o humor é produto da sublimação, destino pulsional por excelência e marca da constituição do sujeito (p. 12)". Em outras palavras, essa criação, a piada, permite ao sujeito combater com o sorriso o despontar da mortificação na qual seria precipitado em função da inclemência do supereu.
Causa estranheza que um senhor rigoroso, expressão pela qual Freud (1927/2017) jocosamente cunhou o supereu, permita ao eu um pequeno ganho de prazer, mas a partir dessa afabilidade alguns pontos são considerados. A intensidade do prazer obtido pela via do humor não é a mesma conquistada pela piada e pelo cômico. No presente artigo, para compreender essa intensidade, o riso é tomado como referência. Em três traduções de O humor para o português - pelas editoras Autêntica, Companhia das letras e Imago, consecutivamente -, o humor é visto como algo que "[...] nunca se entrega ao riso efusivo [grifo nosso]..." (Freud, 1927/2017, p. 279); "[...] jamais se expressa em riso aberto [grifo nosso]" (Freud, 1927/2014, p. 329) e que "[...] jamais encontra vazão no riso cordial [grifo nosso]" (Freud, 1927/1996, p. 194). Destaca-se como esse sorriso, que não se entrega à efusividade, que não se mostra aberto e que não encontra vazão na cordialidade, parece, justamente (concordamos com a alteração)por meio dessa característica contida, emoldurar a formação espirituosa.
O sorriso humorístico mimetiza um estado de espiríto que conhece o perigo daquilo com que se brinca, mas ainda assim prefere correr o risco, mesmo que em busca de um prazer efêmero. Entretanto, segue Freud (1927/2017), apesar da pouca intensidade do prazer obtido no humor, expresso por um sorriso e não um riso ou gargalhada, ele possui um caráter bastante valorizado e pode ser percebido como libertador e elevado. O que nos leva a pensar que esse caráter se pauta pelo que Freud evidencia em seguida, quando ressalta que a piada produzida humoristicamente não é o essencial dessa formação e sim o efeito mobilizante do humor sobre a própria pessoa e o Outro. Freud aponta ainda, sem maiores detalhamentos, para a dificuldade de se conquistar essa atitude humorística, um talento raro e refinado, que atinge tanto quem propõe o dito espirituoso como o ouvinte. Buscamos então no trajeto cursado por Freud identificarmos como se dão os efeitos dessa atitude na relação que compreende o Outro.
A trajetória humorística: um jogo de equilíbrio entre o prazer e o gozo
O texto " Personagens psicopáticos no palco" (Freud, 1905-06/2017), escrito no mesmo ano que a obra O chiste e sua relação com o inconsciente, apresenta a tragédia no teatro e as formações do cômico como possibilidades de abertura de fontes de prazer que há muito se tornaram inacessíveis. É o desafogar dos afetos que conduz esse processo; o gozo daí resultante corresponde ao alívio por meio da liberação de afetos, mas também corresponde "[...] à excitação sexual conjunta" (Freud, 1905-06/2017, p. 45). A libinização como um ganho secundário a todo despertar de afetos é para o ser humano um sentimento muito valorizado. No espetáculo, esse ganho torna-se coletivo por ser conquistado pelo olhar participativo da plateia, que através da identificação com o herói teatral pode usufruir de suas conquistas, e não apenas isso: a plateia é poupada do sofrimento que acompanha a conquista heroica. O gozo obtido pelo espectador tem como pressuposto uma ilusão originada de duas certezas: a de que o sofrimento será vivido por um outro e a de que tudo não passa de uma cena, uma brincadeira. Essa ilusão é possível, porque o sujeito reconhece no outro a luta psíquica travada na busca do equilíbrio entre os afetos sentidos.
A arte e o humor primam pela construção dos processos identificatórios, ao aproximar os sujeitos pela fantasia de superação dos seus conflitos neuróticos e afastar aquilo que não se assemelha a essa incessante busca de equilíbrio. Em Freud (1905-06/2017), esse afastamento evidencia-se pela ausência de identificação com personagens que trazem pronta a sua loucura, que não apresentam ambivalências psíquicas. Próxima da psicopatologia, essa representação provoca uma a-versão às causas que não se apresentam como neuróticas e ficam no lugar do recalque.
A dinâmica de ganho ilusório contribui para pensar a postura humorística e a dificuldade em alcançá-la. O supereu é introduzido para explicar justamente esse posicionamento: "[...] é também verdade que o Supereu, quando dirige a atitude humorística, recusa de fato a realidade e oferece uma ilusão" (Freud, 1927/2017, p. 279). Portanto, atores, escritores, artistas e humoristas convidam as pessoas a fantasiarem e compartilharem libidinalmente afetos até então recalcados, estabelecendo, mesmo que por um momento, um circuito de prazer. A arte teatral e as formações cômicas permitem abrir fontes de prazer ou de gozo. Essa última fonte fica bem evidenciada no teatro, pelo jogo ilusório da aniquilação do sofrimento a partir das conquistas heroicas e da brincadeira frente à realidade dolorosa, no humor. A fonte de prazer parece ser conquistada quando há o compartilhamento da história que é encenada ou da piada que é construída, fluidificando um enredo que permite o compartilhar de fantasias então coletivamente.
Foi preciso o desenvolvimento de novos construtos psicanalíticos para que esse delineamento ganhasse contornos e indicasse de forma clara a fonte de prazer dos processos criativos, o compartilhamento ilusões que, originadas de fantasias, permitem a correção de uma realidade.
Avançando no construto da fantasia, Freud, em O poeta e o fantasiar (1908/2017), apresenta algumas características da fantasia que contribuem para pensar o lugar que ela ocupa na formação humorística. Quem fantasia é o insatisfeito, os desejos insatisfeitos são a sua força impulsionadora "[...] e toda fantasia individual é uma realização de desejo, uma correção da realidade insatisfatória" (Freud, 1908/2017, p. 57); os desejos que a impulsionam variam conforme o sujeito. Freud afirma ainda que "O oposto da brincadeira não é a seriedade, mas a realidade" (p. 54). Ele discorre sobre como o brincar infantil empresta seus objetos e situações imaginárias para coisas do mundo real. É a falta de censura da criança em empregar os seus recursos infantis à realidade, e não outra coisa, que diferencia o brincar do fantasiar.
Assim como a criança que brinca, o poeta cria um mundo de fantasia que leva a sério, isto é, ele o dota de afeto e, ao mesmo tempo, o separa rigidamente da realidade. Esse ato é traduzido pelo uso da linguagem que une a possibilidade do brincar infantil ao criar poético (Freud, 1908/2017). O poeta utiliza objetos concretos passíveis de representação como se tratasse de uma brincadeira, uma irrealidade do mundo poético, e o faz através da comédia, da tragédia e dos atores, com suas representações. Essa irrealidade da técnica artística provoca importantes consequências para aquele que a usufrui, como a conquista do gozo por objetos que em situação real não o provocariam e a transformação de afetos desagradáveis em fonte de prazer.
A irrealidade poética permite o compartilhar de fantasias que portam elementos que a princípio causariam repulsa no outro ao perceber ali coisas que o envergonhariam. O poeta constrói assim uma técnica que proporciona o fruir conjunto do prazer e supera uma repulsão ligada às limitações existentes entre entre o eu e os outros. O compartilhamento da fantasia, a verdadeira ars poética para Freud, é possível pela atenuação dos devaneios egoístas por meio de alterações e ocultamentos realizados pelo poeta e que levam o público a um ganho de prazer estético. No humor esse prazer é conquistado pelo compartilhamento da piada, e a prova disso pode ser constatada no vislumbre do sorriso entre lágrimas - seja por sua imagem ou por sua sonoridade (quando há) -, que permite emoldurá-lo tanto escopicamente quanto pela invocação, eternizando momentaneamente a efemeridade do prazer. Essa cena se repete pelo gozo na reprodução de piadas que renovam-se nos efeitos produzidos no Outro, ligandos-se aos processos identificatórios pela possibilidade de repetição.
Em Além do princípio do prazer, Freud (1920/2010) abre espaço para compreendermos que o jogo adulto compartilha algo doloroso, assim como na tragédia teatral, e convida o outro à sensação de fruição do desprazer, ajudando-o a tornar objeto de recordação e elaboração psíquica aquilo que é desprazeroso. Nesses casos, a estética contida na arte e no humor dá conta do princípio do prazer, algo menos primitivo do que a compulsão à repetição - que é da esfera da pulsão de morte - e que ajuda a compreender o sujeito submetido na busca para dar conta da natureza conflitual do seu desejo, tornando mais claro o ganho obtido pela via do gozo ou pelo circuito erótico.
Já em Formulação sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (Freud, 1911/2010), a arte é apresentada como uma criação que consegue reconciliar os princípios da realidade e do prazer através da fantasia. Por intermédio dessa via peculiar, o artista afasta-se da realidade e concede aos seus desejos inteira liberdade. Ele transforma fantasia em realidade e somente o consegue afetando outros sujeitos que partilham da sua insatisfação, manifesta na substituição do princípio do prazer pelo da realidade. Entretanto, o processo artístico não alcança a todos e a negação da realidade pode se dar por vias sintomáticas, momento em que o neurótico dá as costas à realidade por considerá-la, no todo ou em parte, insuportável. Ainda assim, esses sujeitos não abandonam a relação erótica com as pessoas e coisas.
Freud (1914/2010), ao abordar a atração que a figura narcisista exerce sobre o outro, lembra do humorista e de sua conquista sobre o interesse do público, a partir da coerência narcísica com que afasta de seu eu tudo o que possa diminuí-lo. Tal postura, que aparenta um estado psíquico preservado, uma posição libidinal inatacável, parece provocar inveja e fascínio sobre aquele que desistiu da satisfação plena de seu narcisismo e está em busca do amor objetal. Essas características narcísicas são abandonadas quando as pulsões libidinais, confrontadas com ideias morais e culturais, sofrem o destino do recalque. Entretanto, ao longo dessa trajetória, sabemos que a postura humorística consiste em desafiar os pressupostos do real. e então, mais do que o puro exercício do fascínio, o humorista atrai o terceiro pelo convite que lhe envia e é bem sucedido quando este é partilhado.
A formação humorística lida com o recalque, assim como a sublimação, destinos da pulsão, conforme apontado em A repressão (1915/2010a) e As pulsões e seus destinos (1915/2019). O recalque origina-se após a divisão da atividade psíquica entre consciente e inconsciente, e sua essência consiste em manter afastado algo da consciência, com o propósito de evitar o desprazer. Afasta do consciente as ideias ligadas ao afeto, que seguem destinos diferentes, mas fracassa quando não impede o sentimento de angústia. Um afeto surge quando consegue uma nova representação na consciência, que abrange a representação da coisa inconsciente e de sua palavra correspondente. "A representação não colocada em palavras ou o ato psíquico não sobreinvestido permanece então no inconsciente como algo reprimido" (Freud, 1915/2010b, p. 147).
Lacan, como já ressaltado, contribuiu para pensar as formações humorísticas e, em especial, por articulá-las ao registro da linguagem. Sendo assim, decidimos tomá-lo (1955-56/1988) em sua insistência para compreender o inconsciente estruturado como linguagem - que mesmo articulada não garante o seu reconhecimento -, para pensarmos como o humor pode verbalizar aquilo que é da ordem do recalque.
A piada, ao utilizar técnicas que lhe permitem brevidade, imediatismo, ineditismo, consegue capturar o afeto que é deixado à deriva no circuito pulsional, conferindo através de um jogo de palavras sentido simbólico para aquilo que estava recalcado e que retornou. Lacan (concordamos com a alteração)ensina-nos(concordamos com a alteração) que: "O que cai sob o golpe do recalque retorna, pois o recalque e o retorno do recalcado são apenas o direito e o avesso de uma mesma coisa" (1955-56/1988, p. 21). O sujeito recusa no mundo simbólico a ameaça da castração, e por isso persistem as formações humorísticas e outras formações psíquicas, como o sonho, o ato falho e sintomas perfeitamente articulados. Nesse momento, sabemos que o humor enfrenta o real, e se o faz é porque não possui como objetivo apenar rir, e sim transformar o afeto frente à angústia.
Mas Lacan (1955-56/1988) também nos adianta que a recusa do acesso às coisas na ordem do simbólico reaparece no real. Nesse caso, aquilo que não é integrado pelo sujeito reaparece na ordem puramente intelectual, como por exemplo em sintomas alucinatórios. Nos interessa pensar como se comporta o humor, já que ele responde ao real sem as formações psicopatologizantes. Através de uma operação intelectual e estética, ele permite uma nova representação do afeto na consciência, operação que se dá no encontro com o vazio, fruto da consciência do sujeito, de forças que não consegue domar, mas nem por isso deixando-se tomar pelo desespero: ao contrário, faz uso desse vazio para criar algo novo, que ganha contornos ao ser autenticado pelo Outro.
Os dois principais processos que alimentam o humor, a invulnerabilidade do eu - processo reativo - e o princípio do prazer - processo regressivo -, nos ajudam a compreender a posição humorística e porque ela se afasta dos processos psicopatologizantes. Na descrição metapsicológica do humor haveria um superinvestimento do eu, agora esvaziado, para o supereu, que viria em seu socorro, acalmando-o. O drama do eu cederia lugar à tragicomédia humorística pela intervenção do superego, que revela sua intenção, como Freud descreveu: "...veja aqui, este é o mundo, que parece tão perigoso. Uma brincadeira de criança, bem interessante, para se fazer uma piada a respeito" (1927/2017, p. 280).
Para Kupermann (2005), entretanto, a posição subjetiva evidenciada no humor não se confundirá com o triunfo narcísico, que é um processo reativo. O humorista não é apenas o adulto superior que sorri ao revelar a fragilidade do outro, ele também ri de si mesmo ao perceber a falência de suas idealizações, pautadas em tempos remotos. O humorista se identifica até certo ponto com o pai, evocando-o e criando condições para o trabalho criativo - a alteridade do psiquismo é o que permite essa elaboração -, mas ao evocá-lo ele sabe que falhou e, portanto, não possui pretensão fálica nem para si nem para o outro. Cabe ressaltar que para Kupermann essa ausência de pretensão fálica não precisa necessariamente significar desespero, descrença sim, porém não desespero. Para o autor (Kupermann, 2010), o humor tanto no processo de desidealização da figura paternal, ou o reconhecimento da orfandade, impõe-se como o avesso do incremento do potencial mortífero do supereu promovido pela idealização do objeto, oferecendo-se como paradigma do processo sublimatório.
Essa trajetória leva a repensar o lugar do humor como um processo psíquico que permite à pulsão caminhar para o universo da simbolização, evitando a explicação meramente econômica e o distanciando dos mecanismos de defesa. Somam-se as novas nuances ao enriquecimento da leitura dos caminhos pulsionais quando dois novos objetos, o olhar e a voz, são inseridos como objetos pulsionais por Lacan. Esse ganho psicanalítico permite estruturar o conceito de pulsão invocante, revisitada e revisada pelo autor Jean-Michel Vivès, que contribui para pensar o humor pela sonoridade da voz superegóica e também abrir novas fontes para pensar a pulsão escópica contida no sorriso humorístico.
Uma nova voz... Um novo olhar
"Se realmente o Supereu é aquele que no humor fala [grifo nosso] tão afável e consolador a um Eu amedrontado, nós queremos advertir que ainda temos muito o que aprender acerca de sua natureza" (Freud, 1927/2017, p. 280). Essa fala é um dos nortes desse trabalho, é a adoção de uma nova tonalidade de voz para se dirigir a um eu assustado; é essa troca de lugares entre a severidade e a benevolência que faz com que o poderoso supereu seja escutado. E é essa mudança de posição que convoca a pensar sobre quem fala/que voz é essa. Os efeitos do brincar com aquilo que amedronta, convite do supereu ao eu, somado ao convite explícito de Freud sobre o muito que se tem a aprender sobre o supereu, leva à aquiescência para bordejar essa nova voz superegóica através do que é sabido sobre a pulsão invocante, especialmente em Vivès. E assim busca-se entender a plástica representada pelo riso humorístico como um emolduramento daquilo que foi escutado, um rir entre lágrimas, que de forma fulgurante estabelece o laço social.
A pulsão invocante permite a passagem do sujeito invocado (sujeito da demanda) para o sujeito invocante (sujeito do desejo). O caminho pulsional, percorrido da demanda para o desejo, implica o reconhecimento da falta e do outro, levando à formação do laço social (Vivès, 2013). O ponto-surdo, em Vivès, contribui para a compreensão do circuito pulsional da voz ao remeter o sujeito ao lugar ativo de tornar-se ele próprio invocante na relação com o Outro, "[...] sustentando que há um Outro não surdo capaz de escutá-lo" (Mattos, 2012, p. 927).
Vivès (2013) prossegue o seu estudo e, em referência a Lacan, discute as armadilhas que envolvem o circuito pulsional do olhar: o quadro é uma armadilha, uma moldura para reter questões persecutórias próprias do olhar. O indivíduo é olhado desde o seu nascimento; quando nasce habita um espaço panóptico; é olhado o tempo todo sem que saiba de onde vem esse olhar. Para ter prazer com o olhar é preciso que se esqueça do peso do olhar do outro sobre si. No caso do neurótico, ele desenvolve disposistivos para mantê-lo à distância - o quadro é uma dessas armadilhas. Em relação à pulsão invocante, Vivès pensa o canto como uma armadilha para manter à voz primordial à distância. Entretanto, no circuito da pulsão invocante há uma ressalva, a mesma voz a ser mantida à distância, por capturar o sujeito, é a voz que o permite desenvolver sua linguagem subjetiva.
Vivès (2013) explica a armadilha da voz evocando as figuras míticas das sereias no episódio da Odisseia de Homero, que trata do retorno de Ulisses para casa. O autor decifra a língua grega antiga e elucida um equívoco de tradução (traduttore-traditore!4) que persiste na interpretação da Odisseia. Homero, ao falar do som emitido pelas sereias, nunca escreveu o canto das sereias e sim phtoggos das sereias. Phtoggos é um termo grego que remete ao inarticulado, ao indistinto, ao grito das sereias, que nada tem de bonito, que porta um apelo incondicional. "Um apelo que diz: Venha! Venha a você o saber absoluto. E para o psicanalista o saber absoluto corresponde ao gozo" (Vivès, 2013, p. 21). Nesse ponto da voz, em que o sujeito se perde no apelo ao gozo infinito, para além do princípio do prazer, é que se encontra a matriz das sereias.
O canto funciona como armadilha para essa voz gutural, esse grito, esse apelo primário, a demanda. O canto é uma mistura do real, já que a voz está aí implicada, mas é também ligado ao simbólico, porque nele há a palavra. Contudo, não é como o grito da sereia, esse, o puro real. O canto seria um doma-voz para a voz, assim como o quadro seria um doma-olhar. Domar a voz não para fazer desaparecê-la, mas para lhe dar um lugar-tenente. Lugar onde a voz é sustentada, pois suporta o canto que cala a voz do Outro, enquanto também o invoca. O canto participa de um gozo arcaico que não recebeu a castração simbólica, mas ainda assim participa do desejo. O doma-voz permite que a invocação do sujeito cantante implique ali o reconhecimento do lugar vazio do objeto, tornando-o presente pela sua vocalização, sua sonoridade melodiosa, que ao mesmo tempo o sublima e o mascara (Vivès, 2016).
A discussão das armadilhas em Vivès, como aquilo que atrai simbolicamente/artisticamente o real, nos leva a considerar que o processo humorístico reúne duas possibilidades de armadilha, que podem se constituir tanto por via da pulsão invocante quanto pela escópica. A primeira armadilha seria a fala afável e consolatória do supereu, que parece funcionar como um doma-voz; essa sonoridade da fala oferta um novo lugar, que não aquele ocupado pelos característicos imperativos mortíferos dessa instância psíquica. A segunda armadilha seria o sorriso humorístico, o qual pode-se pensar como um doma-olhar. O sorriso contido que emoldura a sensação de travessura frente ao risco enfrentado, mesmo sabendo que esse desafio persiste para fora de sua borda, retornando às lágrimas. Outra questão que se apresenta é a do riso humorístico, que pela sua sonoridade, mesmo apenas enunciada pela imagem, também pode ser pensado como um elemento do doma-voz. A insistência do uso de claques em programas humorísticos, ou como efeito de plateias acompanhando pessoas que pretendem alguma forma de humor, denuncia a busca, por vezes desajeitada e apelativa, do efeito sonoro e plástico do riso.
Ainda sobre a fala do supereu no humor, Ribeiro (2008) defende o papel do supereu benevolente que se dirige ao eu de forma consoladora e amorosa, permitindo o gozo não proibitivo, vital. O supereu utiliza do imperativo goze!, adotando uma tonalidade que difere do seu uso na proibição de gozo pelos pais da infância, quando o indivíduo não se sente autorizado a suplantar as figuras de autoridade. Esse comando imperativo se repete na base da voz da sereia, classificada como pura materialidade sonora por Vivès (2009), e que pode se tornar um ordenamento ao gozo, a ponto de arrastar para o fundo das águas aquele que lhe atende.
A voz, ou esse grunhido inarticulado, leva o eu, por ele acuado, a cometer contra si atos de extrema violência, como o suicídio. Quando essa voz superegóica soa como um apelo ao qual nada se tem para responder, o sujeito é confrontado com o real e lhe restam duas escolhas. A primeira seria o do campo do simbólico, ou o que Vivès diz abrir a boca, simbolizando a situação ameaçadora; a outra seria se submeter ao desejo do Outro, como se esse fora o seu, e então tornar-se um objeto ao sabor do som gutural que lhe é direcionado. Pode-se pensar que o humor em resposta ao afeto que provoca a angústia escolhe o abrir a boca, e o faz duas vezes, articulando em palavras uma brincadeira e esboçando um riso comedido.
Calar a voz gutural requer perpassar o recalque originário e proporcionar um ponto surdo que permite ao sujeito ensurdecer-se para o imperativo do gozo e proferir o seu discurso (Vivès, 2009). Essa voz silenciada, ao se tornar um objeto errático sem poder de simbolização, ganha dois destinos: o retorno, significando o interdito por uma piada, uma voz alucinatória e por uma interpretação; ou a assunção do sujeito como falante ao esquecer-se de que é receptor do timbre originário. Neste caso surge uma nova voz, que modula o real e o simbólico, reinaugurando a subjetividade do sujeito ao inseri-lo na cadeia da pulsão invocante.
Esse duplo tratamento estará, por um lado, na origem do Supereu - trata-se da primeira parte do circuito da pulsão invocante: O Outro se endereça ao sujeito, mas o sujeito é incapaz de fazer o que quer que seja com esse endereçamento - e, por outro lado, permitirá a emergência da voz do sujeito, na medida em que, para poder ter uma voz, ele teve que perder a do Outro após tê-la aceitado. (Vivès, 2009, p. 338).
O processo humorístico pode se apresentar na primeira parte do circuito da pulsão invocante - quando é permitida a entrada do Outro, pela falta - e possibilita modular o imperativo do supereu em um novo chamado. Também pode se apresentar no momento do circuito da pulsão que, ao tentar superar as exigências do mundo externo e do próprio supereu, se traduz no espaço da fala, por não pretender concluir um discurso e sim abrir novas vias de fluxo (Ungier, 2001). Quando cria a tirada espirituosa, o sujeito não foge daquilo que o atemoriza, e sim descobre recursos para enfrentá-lo sem desmerecer a realidade ameaçadora nem comprometer sua capacidade em avaliá-la. Ele investe o afeto penoso em uma parte mais agradável da realidade e desta forma evita momentaneamente o sofrimento.
Para encerrarmos a exposição da temática, ilustramos os efeitos das características estéticas e artísticas do humor, características que facilitam a montagem de suas armadilhas, a partir de dois episódios da obra Dom Quixote de la Mancha.
Dom Quixote de la mancha e a estética do humor
Freud possuía bom conhecimento da língua espanhola, derivado de sua leitura de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, escritor por quem nutria admiração e que escolheu ler em sua língua original. Ele afirma essa admiração e o aprendizado em uma carta datada de 07/05/1923, endereçada a Luiz Lópes-Ballesteros, tradutor de suas obras em espanhol: "Siendo yo un joven estudiante, el deseo de leer el inmortal 'Don Quijote' en el original cervantino me llevó a aprender, sin maestros, la bella lengua castellana" (Freud, 1923 citado por Duque, em Sigmund Freud, p. 137).
Na obra sobre os chistes, na nota de rodapé de número 74 (Freud, 1905/2017, pp. 328-329), Dom Quixote é tomado como exemplo de uma figura que seria cômica, mas que em sua construção perde esse efeito e ganha contornos humorísticos. O humor contido nessa obra, a sua influência sobre a temática nos estudos alemães e o declarado domínio de Freud sobre ela permitem que algumas passagens do romance sejam aqui utilizadas para retratar os estudos do humor na psicanálise.
Logo no segundo capítulo de Dom Quixote, é narrado o episódio em que o cavaleiro da triste figura e seu fiel escudeiro chegam em uma pobre estalagem, que imediatamente é entendida, por D. Quixote como sendo um castelo. Na entrada do castelo alucinado, estão duas moças, que inicialmente se assustam com a figura do fidalgo. Na tentativa de acalmá-las, ele as chama de donzelas e, nesse momento, o espanto das moças é substituído por risadas, como descrito:
Miravam-no as moças, e andavam-lhe com os olhos procurando o rosto, que a desastrada viseira em parte lhe encobria; mas como se ouviram chamar donzelas, coisa tão alheia ao seu modo de vida, não puderam conter o riso; e foi tanto, que D. Quixote chegou a envergonhar-se e dizer-lhes: -Comedimento é azul sobre o ouro da formosura; e demais, o rir sem causa grave denuncia sandice [...]. A linguagem que as tais fidalgas não entendiam, e o desajeitado do nosso cavaleiro, ainda acrescentavam nelas as risadas, e estas nele o enjôo [...] (Cervantes, 1605, p. 7).
Tratadas por D. Quixote como donzelas - aquilo que elas não são -, as moças possuem motivos para rir e assim o fazem. As risadas frente ao engano denunciam que tal condição de nobreza é distante da realidade de ambas e do próprio cavaleiro. Esse fato é de conhecimento apenas delas, já que ele alucina uma outra realidade - no seu entendimento o riso é sem motivação, ato de sandice. Quer dizer, a fala ganha sentido humorístico para quem ouve e não para quem profere a palavra. O significante "donzela" é tomado de forma espirituosa pelas moças, pois permite uma mobilidade de afeto que ambas se permitem compartilhar jocosamente. Essa é uma função do humor, como previsto em Lacan (1957-1958/1999, p. 29), designar, "[...] e sempre de lado, aquilo que só é visto quando se olha para outro lugar. As personagens apropriam-se da palavra "donzela" para brincar entre si, permitindo que o susto inicial seja afastado por uma boa piada.
Na Figura 1,5 percebe-se o medo sentido pelas moças frente a uma figura que se apresenta como aquilo que não é. Pela gravura, fica dimensionado o temor que logo será substituído por um manifesto de prazer.
Figura 1. Chegada de Quixote a uma estalagem (Doré, 1863).
No capítulo 21, percebem-se alguns elementos fronteiriços do humor, ou seja, o quanto esse convida a rir de forma compartilhada e o quanto esse pode ser excessivo, tornando-se uma afronta para o outro. A cena a ser descrita trata da descoberta por parte de D. Quixote e Sancho Pança da origem de um "[...] horríssono ruído" (Cervantes, 1605, p. 93-95), que os amedronta por toda a noite anterior e leva D. Quixote a se preparar para enfrentá-lo, animando-se para um grande feito. Ao descobrirem que o som vinha de um pisão (engenho acionado normalmente por energia hidráulica), D. Quixote é tomado por vergonha e melancolicamente verga a cabeça sobre o peito. Entretanto, ao voltar o olhar para Sancho, percebe que o escudeiro contém com grande esforço um riso; frente à visão, o fidalgo também sorri junto a Sancho Pança.
Olhou também D. Quixote para Sancho, e viu que estava de bochechas entufadas, e a boca cheia de riso, com evidentes sinais de estar por um triz a arrebentar-lhe a gargalhada. Não pôde tanto com o bom do cavaleiro a sua melancolia, que à vista da cara de Sancho se pudesse conter que também não risse. Sancho, vendo que o próprio amo lhe abria o exemplo, rompeu a presa de maneira que teve de apertar as ilhargas com as mãos ambas, para não rebentar a rir (Cervantes, 1605, p. 95).
Figura 2. Dom Quixote e Sancho Pança aproximando-se do pisão (Doré, 1863).
Note na Figura 2 (Doré, 1880/2004) a postura de ambos os personagens antes do compartilhamento do riso. O riso inicialmente contido de Sancho permite que D. Quixote transforme a angústia que lhe assalta em um riso compartilhado. Entretanto, a cena não se encerra nesse momento, Sancho agora explode em risadas sucessivas e, através de palavras, debocha de Quixote. As risadas incessantes acompanhadas de galhofa provocam furor em seu amo, que o castiga fisicamente. A partir desse acontecimento, inaugura-se um interessante diálogo entre ambos: "- Tenha mão Vossa Mercê, senhor meu, que tudo isto em mim é graça. - Pois se é graça em ti, em mim é que não o é - respondeu D. Quixote" (Cervantes, 1605, p. 95).
Nesse trecho, uma bela representação do circuito do humor é explicitada. A angústia e vergonha do fidalgo por ter se enganado são expressas corporalmente e capturadas por Doré (vide Figura 2). Quando os dois personagens se permitem achar graça do engodo que viveram por toda uma noite, modificam a postura para um riso compartilhado. Infelizmente, essa parte do circuito humorístico, a permissão para rir daquilo que mortifica, não foi retratada por Doré. O circuito prazeroso é encerrado pelo excesso de Sancho, cujas gargalhadas repetidas e estridentes, somadas às galhofas, denunciam um gozo que expulsa o outro do circuito, pois não lhe permite o assento: o excesso afasta o prazer. Gustave Doré representa esse momento emoldurando a gargalhada de Sancho e a raiva de D. Quixote.
Figura 3. Sancho Pança ri-se do engano (Doré, 1863).
Referindo-se ao "horríssono" som do pisão, D. Quixote afirma a Sancho que não é obrigado a distinguir por sons aquilo que não conhece, principalmente por se tratar de sons que jamais houvera escutado. O cavaleiro defende a ideia de que, mesmo frente ao desconhecido, ele se lançara a uma aventura e por isso não entende o motivo de ser tomado como objeto de galhofa. D. Quixote parece dizer que os sons inauditos, ameaçadores, não o paralisaram, ao contrário, o levaram a botar-se em movimento de desafio. A atitude faz com o que o servo, aparentemente, mude de postura, levando-o a confessar que o seu estado de galhardia extrapolou o estado de riso. Ele faz uma proposta a D. Quixote que é prontamente recusada:
[...] agora que fizemos as pazes [...] não foi coisa de rir, e não é para se contar, o grande medo que tivemos? Pelo menos o que eu tive, que de Vossa Mercê já eu sei que o não conhece, nem sabe o que venha a ser temor nem espanto. - Não nego - respondeu D. Quixote - que o sucesso não fosse merecedor de riso; mas digno de contar-se é que não é, porque nem todas as pessoas são tão discretas, que saibam pôr as coisas em seu lugar. (Cervantes, 1605, pp (concordamos com a alteração). 95-96)
Aqui, D. Quixote parece convocar o processo identificatório para o estabelecimento do circuito humorístico. Para ele, o que é passível de se compartilhar é a maneira como os medos de ambos foram dissolvidos quando encontraram o pisão, momento em que ambos puderam colocar as coisas em seu lugar através da cumplicidade de um riso. Essa saída torna-se suficiente e encerra a aventura, pelo menos para Quixote, pois o certo é que novas virão. Ele ainda pede perdão a Sancho pela agressão: "[...] e perdoa o passado, pois és discreto, e sabes que os primeiros movimentos não estão na mão do homem" (Cervantes, 1605, p. 96). Cervantes situa esteticamente a passagem ao ato, precedido de afetos, como os sentidos por D. Quixote, que nesse caso foram vários: o medo, a coragem, a frustação, a melancolia, a raiva.
D. Quixote prossegue, chamando a atenção de Sancho sobre sua característica falante e o lembrando de outros servos que se calam frente aos seus amos, ao contrário dele que não se cansa de palrar, isto é, articular sons vazios de sentido (Mini Aurélio: dicionário da língua portuguesa, 2004, p. 527). Finalmente, D. Quixote adverte Sancho Pança pela sua postura excessiva e esvaziada de sentido.
Fica porém, daqui para o diante advertido duma coisa, para que te abstenhas e coíbas no falar demasiado comigo [...] em verdade que o tenho por grande falta da tua e da minha parte; da tua, porque nisso mostras respeitar-me pouco; e da minha, porque me não deixo respeitar como devera. (Cervantes, 1605, p. 96)
A postura excessiva de Sancho Pança parece ter atacado Dom Quixote narcisicamente e o uso de palavras e gargalhadas esvaziadas de sentido evocam nele uma ira, pois, como o mesmo já dissera, não há obrigatoriedade em se reconhecer sons que não dizem nada ao sujeito, ou seriam sons que despertam o desamparo no sujeito? O que não foi dito é que tais sons, não elaborados, inarticulados, despertam afetos incontroláveis e assustadores como os sentidos pelo cavaleiro da triste figura.
Os trechos do romance ajudam a pensar o processo humorístico e, em especial, como o sorriso, pela sua expressão imagética e sonora, pode emoldurar os afetos ou trans-bordar em excesso. Essa compreensão estética ajuda a compreender e situar o seu alcance, que tanto pode ser o compartilhamento do prazer ou a reafirmação solitária do gozo.
Considerações finais
Como fugir do imperativo goze !, que se renova em tantos outros? Como se proteger do supereu e sua voz imperiosa? A metapsicologia do humor vem auxiliar a trilhar esse caminho, que diz da falta e do desejo. O eu, ao perceber sua vulnerabilidade frente às exigências do real, apresenta-se ao supereu como objeto de desamparo. Identifica-se em parte com o supereu, em outras palavras, identifica-se com aquilo que lhe falta, ou com aquilo que deseja, a outrora proteção perdida. Quando assim acionada a proteção contida pelo supereu como representante parental, o que lhe é tirânico, é posto de lado. Assim, a poderosa instância repressiva pode convidar o eu a fazer uma pilhéria sobre os perigos do mundo.
A dificuldade em conquistar a postura humorística, e/ou de desfrutar o prazer ofertado por ela, encontra-se bem assentado nos construtos psicanalíticos. Essa dificuldade parece dizer do medo paralisante e angustiante frente ao real, que tende a ameaçar o difícil equilíbrio entre os princípios do prazer e da realidade que os sujeitos almejam conquistar. Afinal, o desequilíbrio revela um excesso, o gozo, ou aponta para o prazer, aquele fugidio. E quantas pessoas estão dispostas a arcar com o que é efêmero? A postura humorística suplanta as ilusões narcísicas e lança um convite ao outro para juntos construírem objetos amorosos fundados na falta, e por isso permite a passagem pelo real, sem o terror do aniquilamento de sua caminhada. Não serão todos que se permitirão ouvir um chamado ao novo, ainda são muitos os que quietam frente às suas ilusões, sem a permissão de construírem novas fantasias.
A pilhéria do humor que leva a um sorriso, um rir entre lágrimas como dito por Freud, remete à hipótese deste artigo sobre o sorriso humorístico emoldurar, seja por sua imagem, seja por sua sonoridade, o que é pretendido pelo humor. Sobre esse riso, a armadilha de Vivès tem algo a ensinar. O canto é uma armadilha para a voz, um doma-voz. O sorriso no dito espirituoso não seria isso? Um doma-afeto? Algo que utiliza tanto do elemento imagético, envolvendo a pulsão escópica, o olhar dirigido ao riso, como do elemento sonoro, a pulsão invocante, um rir quase, ou mesmo, inaudível, que sugere: a coisa está lá, mas por hoje nós vencemos. Assim, o sorriso humorístico pode funcionar como uma armadilha para o afeto, pois a angústia que o afeto suscita é dominada pelo riso. O riso o emoldura, revelando contidamente que aquilo que aterroriza pode ser enfrentado, mesmo não sendo aniquilado; o resto é excesso.
Outra questão lançada por Freud, sobre a necessidade de se saber mais sobre o supereu benevolente, nos arrasta de olhos e ouvidos abertos para pensar a respeito da mudança de posição da ter-rível instância psíquica. Aqui recorre-se ao que Vivès (2013) diz sobre a voz primordial e a necessidade de sobreviver ao inaudito, projetando-se armadilhas tão necessárias para mantê-la à distância ou para mantê-la domada. Nesse jogo ardiloso, é preciso considerar que a mesma voz a ser mantida à distância por capturar o sujeito é a voz que o permite desenvolver sua linguagem subjetiva. O mesmo supereu que oprime é capaz de falar com benevolência quando vislumbra o desamparo que lhe é dirigido; a sua fala é alterada, o seu papel de proteção é invocado. A mudança de posição se dá pelo reconhecimento da falta no Outro e isso só é possível porque esse Outro se percebe e se assume faltoso. Talvez não seja um risco dizer que, frente a essa prévia autorização, o supereu benevolente inaugura ou se permite participar do jogo do Fort-da juntamente com o eu.
Esse é um jogo delicado sustentado por um tênue cordão e revela o quanto é difícil sustentar posturas que nos expõem às angústias do mundo. O segundo episódio entre D. Quixote e Sancho Pança aqui retratado parece mostrar a fulgacidade dessas relações. O palrar, emissão de sons vazios de Sancho, através de gargalhadas incessantes, parece assemelhar-se ao phtoggos das sereias de Homero, ao arrastar Quixote para um acesso de ira, uma passagem ao ato. Os sons sem sentido remetem ao imperativo goze!, inaugurando um circuito que arrasta o outro ao fundo do oceano ou a um estado de ira. Nota-se que Quixote deixa-se arrastar para um estado de furor após uma mudança de postura de Sancho. Inicialmente, Sancho adota uma postura frente à dor de Quixote, ofertando um riso contido, o qual Quixote compartilha, e que é substituída por uma nova postura de galhardia excessiva, à qual Quixote responde com fúria.
O humor é um movimento juvenil, fulgurante e fadado ao término, mas interessante demais para não ser vivido, pois é justamente a certeza da efemeridade do sujeito e daquilo que o cerca que sustenta esse brincar, retirando-o de uma posição de gozo. Portanto, mesmo que de forma arriscada, o humor é capaz de construir o discurso da falta que remete o sujeito ao seu desejo.
Para finalizar, outra questão se apresenta: o que fazer com o afeto domado pelo humor? Compartilha-se socialmente o que foi revelado, mas mantê-lo circulando não é algo fácil, especialmente em contextos que insistem em calar o novo e manter o gozo. Como na poesia Antes do nome, a armadilha apanhou um peixe em um momento de graça, mas o que fazer com o peixe fisgado? Essa questão fica em aberto, por enquanto.
[...] A palavra é disfarce de uma coisa mais/grave, surda-muda,/foi inventada para ser calada./Em momentos de graça, infrequentíssimos,/se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão./Puro susto e terror. (Prado, 2008, p. 19)
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Endereço para correspondência
Laene Pedro Gama
E-mail: laenegama@gmail.com
Jean-Michel Vives
E-mail: jeanmichelvives@gmail.com
Ana Magnólia Bezerra Mendes
E-mail: anamag.mendes@gmail.com
Daniela Scheinkman Chatelard
E-mail: dchatelard@gmail.com
*Doutoranda de Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília, com cotutela pela Université Côte d'Azur. Mestre em Psicologia Social, Trabalho e Organizações da Universidade de Brasília. Integrante do Grupo de Pesquisa Subjetivação, Clínica e Cultura: do moderno ao contemporâneo, Integrante do projeto de pesquisa Os Arquivos do Cinema, entre a Adaptação e a Reescrita - CNPQ. Psicóloga da Universidade de Brasília.
**Psicanalista e professor de Psicopatologia Clínica na Universidade Côte d'Azur (França). É membro do movimento Insistance em Paris e do Corpo Freudiano - RJ (Brasil).
***Professor Titular da Universidade de Brasília (UnB) no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho e no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações, Coordenadora do Núcleo Trabalho, Psicanálise e Crítica Social e do Grupo de Pesquisa e Atendimento em Psicanálise do Trabalho. Pesquisadora associada ao Centre de Recherche du Travail et du Développement (CRTD) do CNAM, Paris.
****Professora associada no Programa da Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura - IP- Universidade de Brasília. Pós-doutorado na USP no Departamento de Psicologia da aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade no IP e ao Programa de Pós-Graduação de Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano (2019). Pós-doutorado na Universidade de Tel-Aviv - Departamento de Psicologia- Faculdade de Ciências Sociais (2020).Mestrado em Psicanalise - Universite de Paris VIII (1994) e Doutorado em Filosofia - Université de Paris VIII (1999).
1Agradecemos à professora Terezinha de Camargo Viana (in memoriam), entre lágrimas e risos você sempre se fará presente.
2Utilizaremos aqui a tradução da palavra alemã Witz por piada e não chiste. Mezan (2005) explica que a Edição standard brasileira, ao escolher traduzir Witz por chistes, influenciada pela tradução da língua espanhola, comete um equívoco ao não considerar que no Brasil não se conta ou escuta chistes e sim piadas. Torna-se uma tradução dispendiosa, já que para brasileiros piada evoca imediatamente uma anedota ou história engraçada, algo que se assemelha mais a Witz. O autor apresenta uma breve digressão sobre a etimologia da palavra e conclui que é o Witz que reúne a inteligência. O conhecimento de algo pode resultar em uma piada, não apenas aquele tipo de piada clássica, com princípio, meio e fim, mas também um dito mordaz, espirituoso. Mediante essa constatação, o autor, assim como outros, opta por adotar a palavra piada como tradução de Witz, a mesma escolha adotada neste artigo.
3Fernandes (2012) retoma claramente o surgimento nas tiradas espirituosas do nonsense (perspectiva freudiana) ou peu-de-sense (perspectiva lacaniana), sendo que a última perspectiva explicita que na linguagem constituída pelas tiradas espirituosas há sempre uma passagem de sentido e não uma falta de senso.
4Traduttore-traditore é um provérbio italiano que, literalmente, significa que o tradutor é um traidor, mas que, na realidade, quer dizer que toda a tradução não corresponde exatamente ao sentido original da frase. Essa expressão é aqui lembrada por corresponder ao que se seguiu à descoberta de Vivès. Ele constata que a palavra phtoggos fora traduzida por canto, palavra que pode guardar alguma intencionalidade com grito, mas em muito modifica a significância da ideia pretendida por Homero. Freud (1905/2017) utilizou esse provérbio italiano para tratar nas piadas do processo de condensação e, desde então, deixou claro que as palavras não têm um sentido unívoco, portanto mais de uma "tradução" pode ocorrer.
5A ilustração é de Gustave Doré (Cervantes, 1880/2004), artista francês do século XIX, que, em uma série de 370 gravuras em metal e xilogravuras, ilustrou a edição francesa de 1863 da obra de Cervantes.