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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.26 n.51 Belo Horizonte dez. 2004

 

ARTIGOS

Perversão - pulsão, objeto e gozo

 

 

Carlos Antônio Andrade Mello*; Maria Lúcia de Salvo Coimbra*; Maria Luiza Arrojado Lisboa*; Maria Luiza Duarte Vilela*; Stella Maris Anchieta*

* Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

 

 


RESUMO

A maneira como a pulsão é vivida singularmente pelo sujeito aponta as diferentes estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. O perverso, em seu agir, é comandado pelo imperativo categórico do gozo: vive para o gozo, para apoderar-se dele, organizá-lo e prorrogá-lo. O desejo, na perversão, não surge como uma pergunta pelo desejo do Outro, como na neurose. Ele se faz presente como uma resposta dura e inflexível, sob a forma de vontade de gozo. E a questão do real de gozo em análise? Como o analista escutaria o perverso?

Palavras-Chave: Montagem pulsional, Objeto, Vontade de gozo, Desejo, Desejo do analista


ABSTRACT

The way the pulsion (Triebe) is lived in a singular manner identifies the different clinical structures: neurosis, psychosis and perversion. The perverse in his act is determined by the imperative categorical "jouissance": lives for the "jouissance", to take its possession to organize it and to prolong it (to extend it). The desire, in the perversion, doesn't emerge as question about the desire of the Other as in the neurosis. It makes its presence as a hard and inflexible response under the form of will of "jouissance". What about the real of "jouissance" in psychoanalysis? How would the analyst listen to the perverse?

Keywords: Pulsional mounting, Object, "Volonté de jouissance", Desire, Analyst desire


 

 

..."mas com faltas, ó deuses! nos fizestes, a fim de que pudéssemos ser homens."1

"Se a perversão é algo de articulado e do mesmo nível que a neurose, algo de interpretável, de analisável, na medida em que nos elementos imaginários alguma coisa se acha numa relação essencial do sujeito ao seu ser, sob uma forma essencialmente localizada, fixada - a neurose se situa numa ênfase dada ao outro termo da fantasia, isto é, no nível de S."2

 

A montagem pulsional no corpo, a montagem do desejo e gozo no fantasma traçam os rumos humanos do ser-para-o-sexo, no descompasso entre sexualidade e significante, na desordem ou devastação causada pela paixão.

A maneira como a pulsão é vivida singularmente pelo sujeito aponta para as diferentes estruturas clínicas: neurose, psicose, perversão.

Na perversão o sujeito busca manejar, dominar o pulsional se colocando como objeto de gozo do Outro. Em seu agir, o perverso é comandado pelo imperativo categórico do gozo: vive para o gozo, na tentativa de apoderar-se dele, organizá-lo, administrá-lo e prorrogá-lo.

Pulsão e perversão não são uma única e mesma coisa. A semelhança entre o circuito pulsional em geral e o específico da perversão nos permite vislumbrar melhor o mecanismo das perversões, mas uma distinção se faz necessária.

A satisfação da pulsão é correlativa ao fechamento de seu circuito e retorno. Nela o objeto é o mais contingente, já alertava Freud, a pulsão visa apenas contorná-lo, o que o define como falta ou perda, puro vazio. O alvo da pulsão é o retorno em circuito. Esta é, pois, dinâmica, sem sujeito, acéfala; já a perversão, nos fala Lacan, se define exatamente pela forma como o sujeito aí se coloca, encarnando o objeto que falta e que seria o alvo da pulsão, seu fecho. Daí a fixidez da perversão, seus roteiros repetitivos e intermináveis, onde o perverso não tem nenhuma liberdade, é escravo do gozo do Outro.

No texto freudiano, onde se localizaria o gozo, significante lacaniano? Em "Além do Princípio do Prazer", Freud observa que os dois princípios - prazer e realidade - não dão conta de um excesso de energia, um resto, que insiste e atua na compulsão à repetição.

Em "O Problema Econômico do Masoquismo" Freud introduz a noção de masoquismo primário, erógeno, como um resto mortífero da pulsão, que não é dirigido pelo sadismo ao objeto, sendo um remanescente da fase anterior à fusão das pulsões. É um sofrimento que promove satisfação. Está aí a marcação freudiana do gozo.

Inicialmente, contudo, a noção de masoquismo em Freud fica circunscrita à sua relação com o sadismo, na pulsão parcial que ele chama de sadomasoquista. Parte do sadismo dirigido ao objeto retorna em direção ao próprio eu do indivíduo. O fim deste movimento pulsional - diminuição de tensão e, portanto, prazer - é atingido, mas há aí, também, tanto uma mudança de objeto como uma mudança da atividade para a passividade, duas das vicissitudes da pulsão.

Nesse circuito pulsional, o retorno da pulsão ao próprio corpo é correlato ao abandono do objeto. O percurso se faz através do campo do Outro onde o objeto é perdido. No lugar do vazio do objeto, no lugar desta falta/perda, há uma singular marcação de gozo, única para cada sujeito.

No texto freudiano "Uma Criança Está Sendo Espancada...", a voz passiva - ser batido e seus correlatos - fecha o circuito pulsional e pode ser considerada como paradigma de qualquer construção fantasmática. Porém, para o gozo masoquista perverso, a voz média reflexa é a que melhor expressa seu caminho pulsional, onde a atividade da pulsão é máxima. É o infinitivo em sua forma pronominal, apontado por Lacan, "fazerse comer, cagar, olhar, ouvir", que realiza o contorno gramatical do objeto perdido do gozo, objeto a, mais-de-gozar. Diferentemente da neurose, na qual o sujeito está determinado pelos dois elementos do matema do fantasma (S <> a), na perversão o sujeito se determina a si mesmo apenas como objeto: objeto de uma vontade de gozo.

Até que ponto situar o gozo no campo aberto por Freud modifica nossas referências às estruturas clínicas (especialmente as perversões), questionando o próprio diagnóstico (neurose, perversão, psicose), a condução da cura e o final de análise? As questões sobre a angústia articulada ao desejo, gozo e pulsão nos pressionam, vindas da própria clínica psicanalítica que, como sabemos, é uma forma muito especial de laço social.

Sabemos que é no Édipo, por excelência, que se organiza a posição do desejo.

Mas o que é o desejo? O desejo é sem dúvida um conceito complexo e, segundo Freud, pode ser recalcado, realizado através dos sonhos, e sofrer modificações por intermédio da experiência analítica. Habita o sintoma, o lapso, o sonho, o ato falho, e a interpretação freudiana se ocupa de buscá-lo nos diversos lugares onde possa ser reconhecido e revelado ao sujeito.

Por outro lado, se o desejo pode ser modificado, ele é inextinguível, eterno e, estando preso ao trilho da metonímia, é conduzido sempre para o além, para o depois, é sempre desejo de outra coisa, pois não há o significante único que possa identificá-lo.

Entretanto, o desejo pode ser capturado por um significante que pode fixá-lo, interrompendo o seu vagar, o seu deslizamento, o movimento de reenvio, e aí entramos na dimensão do sintoma que surge como uma fixação significante do desejo.

Se é da natureza do desejo seu eterno perambular pelas ruas do significante é porque ele tem na castração o seu ancoradouro. O neurótico é justamente aquele que estabelece a fixão-ficção de um objeto particular do desejo e justamente por isso a análise deve operar no sentido de lançar o sujeito da posição neurótica em que se encontra: de "eu desejo algo" para "estou causado por uma falta".

O ponto de articulação entre Lacan e Freud nesta questão é justamente a teorização do objeto a como resto da perda fundamental na teoria freudiana3.

Na neurose há uma tentativa por parte do sujeito de dar consistência ao Outro, fazê-lo existir como lugar da verdade. E se o sujeito ocupa o lugar do objeto ou assume a posição de objeto para o Outro, é justamente para dar-lhe consistência. O desejo é então uma pergunta sobre o desejo do Outro e a resposta é o fantasma.

Assim, em se tratando da neurose, concluímos que o objeto a como mais-de-gozar, como lugar de captura e recuperação de gozo, implica na castração, na renúncia ao gozo todo, bem como numa aceitação ou consolo com a diversificação de gozos possíveis que se apresentam como recuperação. O neurótico não se lança na empreitada de resgatar o gozo todo ou tentar fazê-lo voltar seja lá de onde for4.

Tais pontos e o mecanismo da Verleugnung vão marcar a diferença radical da neurose em relação à perversão.

O perverso é aquele que também padece da castração, mas que talvez não tenha feito da falta (castração) seu bem maior. Assim, na perversão, a falta não tem o mesmo estatuto na sua articulação com o desejo. O desejo na perversão não surge como uma pergunta pelo desejo do Outro como na neurose - ele se faz presente como uma resposta dura e inflexível.

O desejo perverso assume então a forma de vontade de gozo, daí Lacan afirmar que os perversos são os verdadeiros crentes, acreditam no gozo todo, tentando fazê-lo retornar ao campo do Outro. No lugar do objeto a, tentam fazer voltar o gozo ao campo do Outro, ao mesmo tempo que, através do gozo, procuram dividir e subjetivar seu parceiro.

Perversão nomeia uma posição do sujeito ante a castração, uma atitude dividida - diferente da neurose e da psicose - cuja estratégia fundante é o desmentido (Verleugnung) em oposição ao recalque e à foraclusão. O perverso afirma o falo e desmente a castração, já afirmada como castração do Outro primordial. Mas desmente como?

O desmentido é uma vicissitude da idéia, uma maneira de lidar com a realidade, é um ato psíquico que consiste em tratar uma percepção como impensável. Caracteriza-se pela manutenção de um não investimento específico de certas representações do mundo externo, mediante a retirada de sua possível significação. Não age sobre o dado perceptivo e sim sobre o que Freud chamou de vestígio mnêmico da percepção, ou seja, tomando a Carta 52, lembra Solal Rabinovitch que o desmentido opera entre Wz e Ubw, entre a 1ª. e a 2ª. inscrição do texto inconsciente. Produz uma deformação do texto inconsciente antes que ocorra o recalque que opera em Ubw.

No desmentido, diferentemente do recalque, a representação não é apagada, mas reduzida a uma espécie de não-significância, de não-valor no plano simbólico. Pressupõe uma afirmação primordial, quer dizer, a criança percebeu a diferença de sexos e concluiu que o pênis pode lhe faltar, vivencia a angústia de castração, e, só então, faz um deslocamento de valor, transfere a significação do pênis para outra parte do corpo ou objetos adjacentes. Ao contrário da foraclusão, não alucina um pênis onde não há, evidenciando que a Verleugnung é uma operação no real cujo retorno se dá no imaginário.

Como trabalhar as questões do real de gozo em análise? Como o analista escutaria um perverso?

Parece ser consenso acreditar que os perversos não procuram consultórios de psicanalistas - será que aceitamos tratálos? De qualquer forma, nós os achamos em nosso trabalho nas escolas, prisões, postos de saúde e no serviço público em geral.

A posição do psicanalista e a condução de uma análise diante de um caso de perversão constituem, mais uma vez, um aspecto tão comum nesta prática que envolve dificuldade, mas não impossibilidade e, como tal, devem ser consideradas.

Noticiou-se, recentemente, a recusa de analistas franceses de tomar em análise sujeitos pedófilos, gerando um texto de Serge André, de indignado protesto contra esta atitude.

A escuta de uma prática perversa, por exemplo, a pedofilia, destituída do julgamento e da censura, como se espera de um analista, correria o risco de ser equiparada a uma anuência, quase beirando à cumplicidade. Esta parece ser a razão justificada para a admitida recusa noticiada.

Ao sujeito do analista, embora fora de cena em favor do sujeito do inconsciente, na perversão, mais do que nas outras estruturas, estaria assegurada a assepsia de seu lugar e função, supostamente garantidos por sua análise e todo seu arsenal teórico? Trata-se de uma questão antes ética do que técnica.

Como funcionar como semblant de objeto a, assim movimentando todo o processo, se é como objeto que seu analisante se apresenta?

Questionamos se seria um recurso válido utilizar a vacilação calculada da neutralidade, aventada por Lacan diante da histeria, na "Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano", em que afirma:

Esta observação não constitui, é claro, um conselho técnico, mas uma visão aberta para a questão do desejo do analista, para aqueles que de outro modo não poderiam ter idéia dela: como deve o analista preservar para o outro a dimensão imaginária de sua não-dominação, de sua imperfeição necessária...5 [grifos nossos]

Se a escuta de uma prática como a pedofilia pode suscitar no analista um correlato de horror - efeito almejado pelo perverso -, caberia aí o emprego de tal recurso?

Como vacilar, taticamente, ou seja, com o extremo tato que este procedimento supõe? E se, em vez do horror, o analista pudesse colocar algo da ordem do ... humor? Como seria o efeito deste ato, da ordem do inesperado e, portanto, com alguma chance de desestabilização da certeza do perverso sobre seu poder, sacudi-lo, ainda que momentaneamente, de sua imersão no gozo?

Enfim, busca-se uma forma de evitar que a escuta analítica (J'ouïs) tenha seu correspondente de gozo, atendendo ao imperativo daquele que fala (Jouis), mesmo diante da estrutura neurótica, por exemplo, que de modo algum está a salvo de cair numa montagem perversa, até mesmo favorecida pela experiência analítica.

Será que precisamos considerar uma nova posição para o analista, com função separadora, fazendo cair as roupagens imaginárias do objeto a, comovendo significantes do ideal e promovendo a separação do falo imaginário (?) e do objeto a, abrindo portanto o espaço para a causa do desejo ex-sistir? Ou seja, "onde Isso era [onde era o real, o gozo] o sujeito deve acontecer, [advir]"6. Imperativo ético da psicanálise, com valor, também, para sujeitos perversos.

 

Bibliografia

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1 SHAKESPEARE, W. Antony and Cleopatra Act V Scene 1 (Trad. Carlos Alberto Nunes) Ed. Tecnoprint 1981.
2 LACAN, J. Le désir et son interprétation. Lição de 15/4/1959. Disponível na Internet:
http://www.ecole-lacanienne.net/seminaireVI.php3 (Trad. de Carlos Antônio Andrade Mello).
3 O objeto a como real apresenta duas dimensões: de causa de desejo, que remete ao conceito de desejo tanto em Freud como em Lacan, e uma outra, especificamente lacaniana, que é a de mais-de-gozar, inseparável da vertente da satisfação pulsional.
4 O conceito de mais-de-gozar tem uma articulação necessária com o conceito de perda de gozo e, só assim, podemos pensar o objeto a na vertente pulsional como lugar privilegiado de recuperação e captura de gozo. O mais-de-gozar é então correlativo da inexistência do Outro do gozo, uma vez que não há saber sobre gozo sexual ou sobre gozo de cada sexo como tal, pois a proporção com o Outro sexo está perdida para todos que ingressaram no universo da linguagem e da palavra.
5 LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, p. 839.
6 LACAN, J. Le Séminaire - Livre XI : Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Paris: Éditions du Seuil, 1973, (Trad. de Maria Lúcia de Salvo Coimbra).

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