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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.32 no.60 Belo Horizonte set. 2010
The look of Signorelli
Arlindo Carlos Pimenta
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Partindo do episódio de esquecimento de nomes próprios descrito por Freud e que ficou conhecido como o caso Signorelli, o autor faz uma análise do mesmo não sob a vertente significante, mas sob a vertente do objeto olhar, cuja epifania se dá sob a forma do " überdeutlich".
Palavras-chave: Esquecimento de nomes próprios, Objeto olhar, Efeito überdeutlich, Olhar do pai.
ABSTRACT
Considerating the episode of the lapse of proper names, described by Freud and known as "Signorelli case", the author analyses the same, not from the point of view of the significant, but from the point of view of "the look object", whose epiphany happens under the form of " überdeutlich".
Keywords: Lapse of proper names, Signorelli case, Looking impulse, The look object, " überdeutlich" effect, The look of the father.
"Jamais me olhas lá de onde te vejo".
O que eu olho não é jamais o que eu quero ver.
(Lacan - Seminário XI)
Em agosto de 1898, Freud viaja em férias à Itália, onde visita várias cidades, encaminhado-se depois para Dalmácia, nas costas do Adriático, resolvendo então fazer uma parada em Ragusa. No artigo intitulado "O mecanismo psíquico do esquecimento"1, Freud relata que parte de Ragusa, juntamente com um companheiro de viagem, para visitar uma cidade da Herzegovina. Durante a viagem, a conversa gira em torno das características próprias dos turcos que habitavam aquela região. Comentam a respeito da atitude resignada daqueles habitantes diante da doença e da morte, o mesmo não acontecendo em relação aos distúrbios da sexualidade. Em seguida a conversa deslocou-se para a Itália e seus artistas. Freud, ao tentar se lembrar do nome do pintor que decorara a capela do Duomo em Orvieto, apresenta um lapso de memória que ficou famoso como um paradigma das formações do inconsciente.
Além da análise desse fato feita por Freud no referido artigo e de sua retomada na "Psicopatologia da vida cotidiana"2, poderíamos indagar:
Ele faz a análise do esquecimento pela vertente do significante; no entanto, não haveria aí um além?
No sintoma, constatamos sempre um gozo embutido. Seria razoável pensar se nas demais formações do inconsciente - no caso o esquecimento e o lapso - ocorreria algo semelhante. Este gozo escópico (Schaulust) se manifestaria de forma particular como pretendemos desenvolver.
Partindo do que nos assinala Freud, e do que nos relembra Dominique Fingermann, ou seja, que a Psicanálise é tecida da experiência clínica e da especulação que esta experiência exige do psicanalista3, este trabalho parte de dados clínicos e tenta articulá-los a desenvolvimentos teóricos ligados ao objeto olhar e ao gozo escópico.
Teceremos então alguns comentários a respeito da pulsão escópica, para em seguida tentarmos algumas articulações a respeito do impacto que o olhar de Signorelli, através de sua pintura, poderia ter causado no sujeito Sigmund Freud.
Breves considerações a respeito da pulsão escópica, do objeto olhar e do quadro
Sabemos que a teoria pusional vai se desenvolvendo paulatinamente no pensamento de Freud. Assim, desde o Projeto de 1895, podemos perceber os primórdios da teoria pulsional com os conceitos de quantidade (Q e Qn'), bem como com a descrição de mola pusional ou Triebfeder. Esse desenvolvimento conceitual encontra um ponto de chegada, provisório, nos "Três ensaios" de 1905 bem como no texto metapsicológico: "A pulsão e suas vicissitudes".
Na teoria pulsional e na constituição da sexualidade, o campo escópico ocupa um lugar sui generis, pois não parte do que seria da ordem da necessidade nem se situa no nível da demanda, tomando de empréstimo os significantes de outras pulsões.
A pulsão escópica e suas vicissitudes foram descritas por Freud. No entanto, é Lacan, no Seminário XI, que, descrevendo a esquize da visão e do olhar, marca sua diferenciação fundamental. Como afirma Antonio Quinet, o olhar em questão em Psicanálise não é um olhar do sujeito, é um olhar que incide sobre o sujeito. É um olhar que o visa: olhar inapreensível, invisível, pulsional.4
O mundo da percepção visual é da ordem do imaginário, estruturado e sustentado pelo simbólico. "Lá onde pousam os olhos, acende-se o belo e arde o olhar".5
Das vicissitudes da pulsão escópica interessa-nos, em particular, a sublimação expressa na curiosidade, no efeito de beleza, no desejo de saber e na arte pictórica.
No capítulo VIII do Seminário XI - A linha e a luz, e no capítulo IX - O que é um quadro, Lacan trabalha a distinção entre o ver e o olhar e apresenta o esquema triangular, onde enfatiza o ponto geometral, o ponto luminoso e o quadro.6
A dimensão geometral, afirma Lacan, nos permite entrever como o sujeito é preso, manobrado, captado no campo da visão.
O que é a pintura? - pergunta Lacan. Quando o sujeito decide criar a obra que tem por centro o olhar, de que se trata? Pois é como olhar que o pintor pretende se impor a nós.
Retomemos a questão dos dois sistemas triangulares. O triângulo do campo geometral põe aí o sujeito. O outro me faz quadro sob o objeto olhar. O que nos seduz e nos põe em jubilação na pintura é sua armadilha, o objeto a enquanto olhar.
O criador dialoga com o objeto a, e o cede por assim dizer à "Sociedade de arrendatários".7
O quiasma do campo escópico
O quiasma do campo escópico é então constituído pelo entrelaçamento dos dois triângulos, a saber, um que é sustentado pelo sujeito que vê, e o outro causado pelo objeto olhar. Ainda segundo Quinet, o quiasma é constituído, por um lado, pelo plano geometral, dado pela conjunção do simbólico e do imaginário, e, por outro, pela luz que representa a presença do olhar.8
Os afrescos de Orvieto9
Nascido em Cortona por volta de 1445, Luca Signorelli é um dos pintores mais famosos da Renascença italiana. Em 1501, é contratado para pintar os afrescos da Capela San Brizio da catedral de Orvieto. Termina em 1504, com algumas interrupções devido à peste que grassava na região e à perda de seu filho.
Signorelli executa, a partir da Divina Comédia de Dante Alighieri, as pinturas que retratam os novíssimos do homem (morte, juízo, inferno e paraíso) em A presença do Anticristo, A ressurreição da carne, O purgatório, A coroação dos eleitos e Os condenados ao inferno.
Nos afrescos, predomina o estudo das figuras humanas, descrição perfeita de sua anatomia e exaltação da forma plástica. Signorelli pintou nas paredes cenas admiráveis. Neste conjunto de esplêndidos nus, a delicadeza da harmonia cromática se equipara à força do modelo, que não sobrecarrega as formas e as ilumina.
No caso dos eleitos, demonstra a expressão de gozo, retratada, por Signorelli, num tipo raro de refinada e delicada beleza.
Na cena de ressurreição da carne, em lugar das tumbas que se entreabrem, os corpos - em pleno vigor físico - ressurgem do chão, mesmo com dificuldades, se abraçam carinhosamente, outros ainda voltam o rosto e os braços ao céu. Nestas figuras a expressão gozosa é bem marcada.
No sermão do Anticristo, aparecem como espectadores o pintor e Fra Angelico, em pose enérgica e forte, e que no relato de Freud aparece como efeito do "überdeutlich" como veremos mais adiante. Nos temores da vida, nos terremotos, nas inundações e sinais do céu; na ameaça dos turcos e na peste que fazia milhões de vítimas no campo e na cidade, em tudo isso, a fantasia do artista podia ver o anúncio próximo da vinda do Anticristo e a iminente catástrofe do universo.
Signorelli deu ênfase ao demônio instigador do pregador do anticristo, representando-o em uma cena, já conhecida, a dos temores da vinda próxima do Deus julgador. Dos demônios que do alto fulminam os homens, fez sair da boca faixas de fogo e estrondos horríveis, a exemplo dos soldados que através da artilharia provocam uma chuva de fogo.
Os condendados - Signorelli pintou seus demônios lívidos e arroxeados, e em quase todos os lugares, em vez de misturas de cores e tonalidades progressivas, usou a rede de vedação, que dá os efeitos do claro-escuro. Se as terríveis cenas dos condenados são mais eficazes do que os tranquilos grupos dos eleitos, isto se deve à plasticidade que na fantasia do artista podiam assumir melhor as penas dos condenados que os prazeres dos beatos.
Que aspecto mais torpe, horripilante e gozoso podia dar o artista aos membros do demônio que se enredavam horrendamente nos condenados, pintando-os lívidos e arroxeados, como os atacados pela peste que morriam aos montes, enquanto Signorelli trabalhava seus afrescos?
O überdeutlich - Ao analisar o esquecimento do nome de Signorelli, Freud menciona um detalhe que a meu ver não deixa de ser bastante significativo. Diz ele textualmente: "Exerci meus poderes de recordação fazendo desfilar pela memória todos os detalhes do dia que passei em Orvieto, e convenci-me de que a maior parte dele fora obliterada ou tornada indistinta. Inversamente, eu podia evocar os quadros com maior vividez sensorial do que me era comum. Vi diante de meus olhos com nitidez especial o autorretrato do artista - com face séria e as mãos dobradas - que ele pusera no canto de um dos quadros, próximo ao retrato de seu predecessor, Fra Angelico de Fiesole; mas o nome do artista, geralmente tão familiar para mim, permanecia obstinadamente escondido, sem que meu companheiro de viagem pudesse auxiliar-me".10
Freud observa que no caso de lembrança recalcada emerge na consciência, em lugar da lembrança, ideia ou detalhe aparentemente sem importância, mas sempre de forma "überdeutlich", traduzido como ultraclara. É o que observamos quando em seu artigo sobre as lembranças da infância, "Lembranças encobridoras", ele e seu primo e prima colhem flores amarelas (dente-de-leão comum). A garotinha tem um ramo mais bonito. Os dois garotos arrebataram as flores dela, que em lágrimas é consolada pela camponesa com um pedaço de pão preto. O pão que os garotos também recebem tem um sabor delicioso.
O amarelo das flores, diz Freud, é um elemento desproporcionalmente proeminente na situação como um todo, assim como o sabor do pão. Freud associa esta lembrança a uma recordação de adolescência quando ao visitar sua terra natal se apaixona pela filha de seu hospedeiro.11
Ficou bem marcada, em sua memória, a cor amarela do vestido que ela usava quando se encontraram pela primeira vez. Possivelmente haveria conexão entre o amarelo do vestido da adolescente e o amarelo ultraclaro ( überdeutlich) das flores de sua cena infantil.
É porem num texto tardio, "Construções em análise" (1937), que Freud retoma esta questão e dá para ela uma explicação. Assinala que em certas análises uma construção apropriada produziu nos pacientes um fenômeno surpreendente. Estes evocaram recordações vivas que descreviam como " überdeutlich", ultraclaras.12
A evocação, no entanto, não era de fatos ligados à construção oferecida, mas de pormenores relativos ao tema (rostos das pessoas envolvidas, detalhes de móveis, etc.). A mesma característica do " überdeutlich" aparece também em sonhos e fantasias.
Freud assim explica o fenômeno: o impulso ascendente do recalcado, colocado em atividade, esforçou por conduzir os importantes traços de memória para a consciência. Uma resistência, porém, alcançou êxito - não em deter o movimento - mas em deslocá-lo para objetos adjacentes de menor significação.
Freud então liga os fenômenos do ultraclaro a algo experimentado na infância e depois esquecido. Algo que a criança viu ou ouviu em uma época que mal podia falar, e que agora força seu caminho rumo ao sistema PCS/CS, provavelmente deslocado e deformado pela censura.
Podemos pensar o escópico e o invocante, relacionados ao visto e ouvido, como o que provavelmente aparece aqui nas manifestações do überdeutlich - o ultraclaro.
Especialmente no caso de Freud, seus biógrafos Ernest Jones e Peter Gay relatam que em sua tenra infância (dois anos e meio) cuidou dele uma babá rude e grosseira, católica, que também teria sido sua "mestra em questões sexuais".
Além do mais, "implantou em sua mente as ideias de céu e inferno, e provavelmente também de salvação e ressurreição".13 Certamente, como assinala o próprio Freud, podem fazer parte dos traços do visto e ouvido, da tenra infância.
Em nota de pé de página ao comentário do episódio na "Psicopatologia da vida cotidiana", Freud diz não estar muito convencido da ausência de conexão interna entre os dois grupos de pensamento - sexo e morte - expressos nos afrescos de Orvieto.
Sobre o olhar de Signorelli e o olhar do pai
Como já vimos, é a pulsão escópica que confere o caráter de beleza ao objeto desejado do mundo sensível. Segundo Quinet, o gozo escópico (Schaulust) que esta pulsão proporciona é o gozo do espetáculo, mas traz também o horror, causado pelo desvelamento do objeto. O olhar, não se pode se ver a não ser à custa do desaparecimento do sujeito, pois toda pulsão é também pulsão de morte.14
As instâncias do ideal do eu I(A) e do supereu são passíveis de ser representadas reciprocamente pelas versões do pai, a saber, pai desejo e pai-gozo. O ideal do eu é o herdeiro do pai pacificador da lei do desejo e do amor narcísico, enquanto a vertente superegoica aponta para o pai gozador. O gozo se presentifica no olhar do pai, visando o sujeito sob a forma de supereu.15
A instância do ideal do eu é o suporte simbólico da identificação imaginária. O ponto do ideal do eu é aquele onde o sujeito se verá visto pelo Outro. Trata-se do ponto no Outro do significante a partir do qual o sujeito se vê como susceptível de ser amado por aquele que vem ocupar o lugar do Outro.
É o lugar onde o sujeito aguarda um olhar de amor, o reconhecimento de seu valor, um olhar de aprovação para seus atos. É no Outro que o sujeito busca sua imagem ideal, ou seja, o paradisíaco da realização ilusória do eu ideal.
O sujeito busca um pai ideal que encarne o ideal do eu. Às vezes mesmo o fabrica como Deus. A ética do bem supremo faz existir o Outro apresentando também sua face do pior. Usamos, com Fingermann e Mendes Dias, o pior no sentido do cúmulo, do demoníaco, mas, sobretudo, como o avesso do Ideal, do bem supremo sonhado pela filosofia, pela religião e pela ciência.16
O olhar de Signorelli, a partir dos afrescos de Orvieto, apresentando as duas versões do pai (do ideal e do horror) do sexo e da morte, faz-nos supor que ante este impacto o efeito medusa produz o desvanecimento do sujeito Freud, o retorno do recalcado e a manifestação ultraclara do objeto olhar. Esquecimento tornado, no entanto, inolvidável para todo psicanalista.
Endereço para correspondência:
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E-mail: arlindopimenta@gmail.com
RECEBIDO EM: 22/06/2010
APROVADO EM: 30/06/2010
Sobre o Autor
Arlindo Carlos Pimenta
Psiquiatra. Psicanalista. Membro Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG. Membro da Escola de Psicanálise e do Campo Lacaniano (EPCL - Brasil).
1. FREUD, S. O mecanismo psíquico do esquecimento. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.III, 1976, p.315. [ Links ]
2. FREUD, S. O esquecimento de nomes próprios em " A psicopatologia da vida cotidiana". ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.VI, cap.I, 1976. [ Links ]
3. FINGERMANN, D. Sexualidade e Inconsciência - Conferência proferida no Fórum do Campo Lacaniano, Belo Horizonte, 1/4/2006. [ Links ]
4. QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. [ Links ]
5. QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 79. [ Links ]
6. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. [ Links ]
7. FREUD, S. Construções em análise, ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.XXIII, 1976, p.289. [ Links ]
8. QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.151. [ Links ]
9. VALIGI, C. Gli affreschi di Luca Signorelli. Pubblicazione aggionata Edita per il VII Centanario della Fondazione del Duomo do Orvieto. [ Links ]
10. FREUD, S. O mecanismo psíquico do esquecimento. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.III, 1976, p.319. [ Links ]
11. FREUD, S. Lembranças encobridoras. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.III, 1976, p.285- 304. [ Links ]
12. FREUD, S. Construções em análise. ESB. Rio de Janeiro: Imago, v.XXIII, 1976, p.289. [ Links ]
13. GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 24. [ Links ]
14. QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zarhar, 2002, p.49. [ Links ]
15. QUINET, A. Idem, p.113. [ Links ]
16. FINGERMANN, D. e MENDES DIAS, M. Por causa do pior. São Paulo: Iluminuras, 2005. [ Links ]