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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.60 Belo Horizonte set. 2010

 

Como as análises terminam

 

How the analysis end

 

 

Maria Heloísa Noronha Barros

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora apresenta algumas reflexões sobre o final das análises, segundo Freud e Lacan, ilustradas por dois casos clínicos.

Palavras-chave: Castração, Real, Fantasia, Gozo, Sintoma.


ABSTRACT

The author presents some reflections about the end of analysis, according to Freud and Lacan, illustrated by two clinical cases.

Keywords: Castration, Real, Fantasy, Enjoyment, Symptom.


 

 

Todos sabemos como uma análise começa. Ela começa quando as queixas, trazidas pelo analisando no começo de uma análise, se transformam em sintoma analítico, isto é, quando o analisando percebe que não é uma vítima imbele do destino, mas participa ativamente de sua má sorte; ou seja, ele se implica no próprio sintoma.

Mas o final de uma análise é outra coisa, pode se perguntar até se existe um único fim, ou vários fins possíveis.

O final mais fácil e frequente é a saída terapêutica, na qual o sujeito se vê livre de algum ou alguns sintomas e se dá por satisfeito.

Eu me lembro de uma dentista que me procurou porque queria um noivo. Suas irmãs estavam se casando, suas amigas também, ela já tinha mais de trinta anos e nada, nem um namorado. Permaneceu cerca de um ano, arrumou um namorado, marcou casamento e foi embora. Não consegui convencê-la de que havia ainda muita coisa a tratar...

Claro que este caso passou longe de um final de análise.

Podemos perguntar com Freud, em seu texto de 1937, Análise Terminável e Interminável, se existe algo que se possa chamar término de uma análise e se há possibilidade de se conduzir uma análise a tal término. Freud fala, nos capítulos iniciais, nos obstáculos que podem impedir que se chegue a tal termo: obstáculos da pulsão e de como dominá-la e obstáculos do eu. Por fim, no VIII capítulo do texto referido, Freud fala do enfrentamento da castração, que se dá num final de análise, aquilo que ele chama de rochedo da castração. Enfrentar num final de análise a rocha da castração é comum aos dois sexos, mas a expressão desse conflito, através da transferência, não se dá da mesma maneira para homens e mulheres.

No caso da mulher, o problema central a enfrentar é a inveja do pênis. A inveja do pênis na mulher resulta, num final de análise, em profunda depressão. Ela se desespera porque quer "possuir um órgão genital masculino" (FREUD, v. XXIII, p. 285), mas não acredita mais, nesse momento, que isto é possível.

No caso do homem, o problema é a recusa da feminidade que aparece, num final de análise, como a recusa em receber de um analista homem - substituto do pai - a cura; recusa-se a ser devedor do analista. O resultado é um desafio em relação ao analista.

Uma análise bem-sucedida ocorreria então quando esses dois complexos tivessem sido dominados e o paciente masculino tivesse um sentimento de igualdade em relação ao seu analista, e a paciente feminina aceitasse sem ressentimento seu papel feminino.

Mas enormes resistências aparecem e impedem que a mudança ocorra; não é sem motivo que Freud chama este momento de enfrentamento de rocha da castração. Lacan não nega o rochedo da castração, mas coloca o final de análise para além dele, para uma mudança ou transformação essencial que ele chama de passe e que resultaria de uma última olhada de alguém sobre sua própria análise, olhada que abriria caminho para uma outra maneira de viver a vida.

Para Lacan, três coisas deveriam ocorrer num final de análise:

Algumas identificações devem cair, algumas vezes até a identificação fálica. As identificações são parte do imaginário, mas são elas que formam o arcabouço do sujeito e sua queda costuma resultar numa perda de referências profundamente penosa.

A travessia da fantasia. Colocado diante do rochedo da castração ou, dito de outra forma, diante do impossível da relação sexual, é a fantasia que sustenta o sujeito face à carência de seu desejo. A travessia da fantasia é a perda desse lugar onde ele se sustentava. Considerando-se a fórmula da fantasia, segundo Lacan, sujeito barrado punção de a minúsculo, a travessia da fantasia seria a separação entre o sujeito barrado e o objeto pequeno a, este deslocamento entre sujeito barrado e o objeto pequeno a resultar, num final de análise, em profunda depressão ou entusiasmo maníaco.

Identificação com o sintoma. O sintoma no início de uma análise é aquilo com que o sujeito não se identifica, do qual ele quer se ver livre. O que deve ocorrer com o sintoma no final? No final o sintoma deve ter sido interpretado e depois esvaziado até seu núcleo de gozo, seu núcleo mínimo, seu lado real. Esse real do sintoma deve ser assumido pelo sujeito como seu e ser criativamente usado de uma outra maneira. De uma maneira nova.

Mas o que deve ocorrer numa análise, que caminhos seguir, quais são as estratégias necessárias para conduzir um analisando até este verdadeiro desnudamento do ser?

Jacques-Alain Miller, em O Osso de uma Análise, reinterpreta Lacan, e nos fala de um duplo franqueamento:

O primeiro franqueamento vai do imaginário ao simbólico - nesse momento da análise se ultrapassa o eu e seus conflitos com seus duplos, em direção ao sujeito barrado. O segundo franqueamento vai do simbólico ao real - é a chamada travessia da fantasia.

Como se pode ver, uma análise é uma travessia, um caminhar que começa no sintoma e termina no real, no núcleo do gozo ou na verdade do desejo, que o gozo tamponava.

Mas como se pode atingir o real através da linguagem, da interpretação, se o real é o para além da linguagem, o impossível de dizer, o impossível de interpretar?

É que o real que tentamos atingir já está presente desde o início. O sintoma contém uma parte que é metafórica, que é interpretável, e uma parcela de gozo que é sua parcela de real.

Para operar sobre o sintoma usamos a mediação da fantasia. É preciso decifrar o sintoma como se fosse um enigma e para isto desatamos a fantasia que o sintoma ocultava até que ela domine a cena, num dado momento. No momento seguinte é preciso reduzir a fantasia até que atinja seu ponto mínimo: o fantasma original e depois mais ainda até uma frase ou rede de significantes que representem a vida fantasmática do sujeito. O passo seguinte é a travessia da fantasia - quando se descrê na fantasia básica. Quanto ao sintoma, é preciso esvaziá-lo até que reste apenas seu núcleo de gozo - o real do sintoma.

E o vazio que resta do sintoma, o que fazer com ele?

Um rearranjo possível de se fazer desse núcleo do real é sublimá-lo em forma de arte, ciência ou religião. Trata-se, no caso da arte, de construir alguma coisa em redor do vazio, bordejando-o, isto é, elevar um objeto à dignidade da Coisa - das Ding - ou elevar um objeto de troca à categoria de objeto de gozo. Isto consiste ainda em imputar ao objeto a dimensão do belo.

Atingir o real é apenas um modo de dizer, o real não é um lugar no qual se permaneça, o real é como o não-ser de Parmênides; não se pode frequentá-lo, mas apenas vislumbrá-lo ou até atingi-lo - por um momento -, mas não fazer aí sua morada.

É como na banda de Moebius, podese passar deslizando, num dado momento, para o real, como um ponto de báscula, mas logo se tem que retornar ao simbólico e ao imaginário. É que somos seres de linguagem e o sem sentido não é um lugar onde nos sintamos confortáveis. São apenas momentos de real, mas daí sempre nos saímos melhores.

Talvez o Mito - que é o lugar onde dizemos aquilo que não temos como falar - possa nos ajudar. Há no mito do herói um momento decisivo, é aquele em que o herói - só ele chega àquele lugar - realiza uma catábase, isto é, desce ao inferno e de lá retorna. Não se pode permanecer no inferno, nem se alimentar lá, sob pena de nunca mais voltar. Quando o herói retorna de uma descida aos infernos, volta transformado e de lá traz um objeto mágico, um objeto que pode transformar sua vida.

Psiquê traz um unguento mágico que lhe garante beleza e juventude eternas.

Orfeu traz Eurídice, sua amada morta, mas a perde novamente ao olhar para trás.

Hércules traz vivo o cão de três cabeças, vigia do inferno. Com ele adquire poder suficiente para destruir o rei que o obrigava aos trabalhos impossíveis.

Enéas volta com o dom de prever o futuro. Um conhecimento.

 

Dois casos de análise

Os dois casos que pretendo apresentar não chegaram ainda a um final e não sei se chegarão, mas são os dois mais antigos que acompanho, e talvez se possa através deles vislumbrar um final possível.

Ambas as analisantes começaram comigo há mais de dez anos e permanecem em análise apesar de algumas interrupções. Trata-se de uma histérica e uma obsessiva, o que possibilita pensar um final de análise a partir desses dois pontos de vista.

As duas tinham no início quase 30 anos e eram casadas. Gisele (nome fictício) tinha quatro filhos e inúmeras queixas do marido, do casamento e do trabalho. Nada a satisfazia, parecia antes uma infelicidade geral. Apresentava ainda inúmeras dores físicas.

Maria Hilda (também nome fictício) tinha uma filha pequena e apresentava inibições e não propriamente sintomas. Queria trabalhar e dirigir um carro, mas não conseguia.

As duas tinham o pai como figura central em suas vidas. Mas não da mesma maneira.

Gisele, a histérica, via o pai como sedutor, infiel à mãe, usava a filha como cúmplice e confidente.

Maria Hilda, a obsessiva, via o pai como forte, considerava-se a filha preferida, via o pai como traído pela mãe, que tivera uma filha com o cunhado.

As duas tiveram uma fase da análise em que dominavam os sonhos e as fantasias edípicas e chegaram a um outro momento de queda da identificação em que perderam a imagem idealizada do pai.

Gisele passou a ver seu pai como um garotão irresponsável, conquistador e frágil, precisando da mãe para sustentá-lo.

O pai de Maria Hilda apareceu como um sujeito fraco que nunca tivera voz ativa e não tomava decisões nem dizia nada.

Após esse momento de vivência e queda do momento edípico, profundas mudanças começaram a ocorrer para as duas.

Gisele rompeu o casamento, fez supletivo de segundo grau, entrou para um curso de estética, em nível de terceiro grau. Por outro lado começou a atuar saindo com rapazes muitos novos - de 18, 19 anos -, numa série de relacionamentos que não davam certo. Parou a análise neste momento, mas retorna depois de terminar o curso superior.

Maria Hilda arranjou emprego e aprendeu a dirigir, embora até hoje não tenha conseguido tirar a carteira. Engravidou depois de um sonho edípico e teve uma gravidez muito difícil. Abandonou a análise depois do nascimento do filho, mas volta após a morte do pai.

Gisele tem uma fantasia básica que a confirma como histérica. Consiste numa historinha trágica sobre um amor que não dá certo, envolvendo um casal que morre junto em um incêndio, provocado pelo marido, após a traição da mulher.

Maria Hilda tem muita dificuldade para fantasiar. Sua fantasia básica é antes um medo: medo de ficar louca. É que Maria Hilda tem uma irmã psicótica e três irmãos alcoólatras que jamais saíram de casa.

Atualmente todas as duas vivem uma fase muito depressiva.

Maria Hilda deixou o emprego de que não gostava e procura outro. Afastou-se da casa da mãe, mas se sente muito sozinha. Desistiu de esperar que o marido ganhe mais dinheiro e tenta ela própria um bom emprego.

Gisele não vive uma depressão tão forte, mas perdeu o brilho. Não sai mais com rapazes muito jovens, porém ainda não consegue se acertar com alguém mais próximo da idade dela - 40 anos. Tenta se firmar como esteticista fazendo cursos e procurando dar aulas.

 

Bibliografia

ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DE PSICANÁLISE. Como terminam as análises. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.         [ Links ]

FREUD, Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de. Comentários e notas de James Strachey; prefácio especial para a edição brasileira de Anna Freud; traduzido do alemão e do inglês, sob a direção geral de Jayme Salomão [et al.]. Rio de Janeiro: Imago, 1972-80, v. XXIII.         [ Links ]

JORGE, M.A.C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, v.1: as bases conceituais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.         [ Links ]

MILLER, Jacques-Alain. O osso de uma análise. Seminário proferido no VIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano e II Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise. Bahia: Biblioteca Agente,1998.         [ Links ]

RIBETTES, Jean-Michel. A Terceira Dimensão da Fantasia, p. 185-213. In: WAJCMAN, G.. L'or d'Atalante: art et fantasme. Paris: Champ Vallon, 1984.         [ Links ]

SOLER, Collete. Variáveis de um final de análise. Campinas: Papirus, 1995.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Av. Cristovão Colombo, 519/301 - Funcionários
30140-906 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: + 55 (31)3371-4982
E-mail: noronhaheloisa.barros@gmail.com

RECEBIDO EM: 15/07/2010
APROVADO EM: 29/07/2010

 

 

Sobre o Autor

Maria Heloísa Noronha Barros
Mestre em Filosofia pela UFMG. Licenciada em Letras - Português/Francês - pela PUC-MG. Psicanalista. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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