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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.62 Belo Horizonte set. 2011

 

O lugar do desejo feminino frente à violência

 

The place of desire to violence against women

 

 

Tharso Peixoto Santos e Souza

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A problemática da violência doméstica contra a mulher se apresenta de modo inquiridor quando as relações amorosas por ela marcadas revelam um tipo particular de gozo, onde o Outro é tudo. Mulheres se submetem a homens violentos e não conseguem romper o ciclo interminável de renúncia em prol do Outro. Para algumas mulheres, a busca insaciável pelo Outro é deslocada metonimicamente da mãe para o homem, perpetuando assim seu lugar de objeto rebotalho, desprezível. Neste lugar, a violência assume conotações de amor, um amor ao avesso, fazendo a mulher gozar da devastação.

Palavras-chave: Falo, Gozo do Outro, Violência, Devastação.


Abstract

The issue of domestic violence against women presents in an inquirer way when the love affairs that are marked by the violence show a particular kind of jouissance, where the Other is everything. Women are subjected to violent men and are inable to break the endless cycle of resignation in relation to the Other. To some women, the insatiable search for the Other is metonymically displaced from mother to man, thus perpetuating her as an despicable object, worthless. For this reason, violence has connotations of love, an inverted love, leading her to enjoy the devastation.

Keywords: Phallus, Jouissance of the Other, Violence, Devastation.


 

 

I – Introdução

A mídia anuncia diariamente a violência contra a mulher. Os números das pesquisas impressionam pela amplitude a que a violência tem chegado, inclusive no ambiente familiar, sendo muitos os casos em que o parceiro a promove. Muitas razões são apontadas, contudo não podem suplantar aquilo que a Psicanálise interroga como causa. Há de se avançar nesta compreensão acerca deste desastre social que aflige algumas mulheres. “Ruim com ele, pior sem ele” parece ser a lei que as guia. Por que manter um relacionamento destrutivo no qual a mulher é vítima de um companheiro? O presente trabalho não interroga aquilo que causa a violência, mas o desejo feminino frente à violência. Entender os motivos que permitem a uma mulher submeter-se silenciosamente ao desamor ou à violência é percorrer os caminhos da escolha desta mulher rumo à feminilidade e seus desdobramentos.

 

II – O impasse freudiano: o que quer uma mulher?

Freud marcou seus textos sobre a mulher como uma história de amor. Foram as histéricas, em suas expressões teatrais, as “loucas” de Charcot, quem abriram aquilo que se apresentava como um enigma. O que quer uma mulher? Foi esta a questão que a histeria suscitou em Freud e na Psicanálise frente à compreensão do feminino, compreendendo que os sintomas falam de algo que vai além do próprio sintoma, algo da ordem da sexualidade, que não está contido apenas no enlaçamento amoroso, mas que remete a este numa dimensão mais ampla, jamais imaginada. Para a mulher, é a inveja do pênis – seu representante, o falo – que assume uma função central e catalizadora daquilo que vem a ser a feminilidade. Esta fantasia universal suscitada pela visão do pênis empurra a menina para o Édipo como pré-condição para o estabelecimento das relações afetivo-sexuais da vida adulta. O que quer a mulher? Foi a questão que deteve Freud. Algo peculiar de sua própria constituição direciona seu desejo de modo distinto ao do homem?

Freud afirmara: “o destino é a anatomia” (FREUD, 1924/1996, p.198), evidenciando que é a partir do corpo que se apresentam os ideais sexuais que buscam a completude na mãe sem, no entanto, jamais encontrar este elo que o une a um estado de plenitude absoluta – sua primeira experiência de satisfação. Estabelece-se uma falta, que promove a si mesmo à condição de desejar. O desejo da mulher remete ao desejo do falo, o que, no caminho da feminilidade, pode equacionar o filho como substituto daquele. Assim, Freud une simbolicamente a mulher e a mãe. Em sua própria travessia em direção ao feminino, a menina precisa superar sua inveja do pênis, afastando-se da masculinidade clitoridiana e de seu “pênis inferior”. Esta passagem insere na mulher uma marca, uma ferida narcísica, que determina sua forma de escolha do objeto amoroso – que geralmente é uma forma narcísica: ama ser amada por ele (FREUD,1933/1996, p.119). Deixa a mãe pelo pai e deste para outro homem que do pai se derive. Ama aquele que possui o que ela não tem. Somente este ser fálico se constitui capaz de realizar este desejo, mesmo que fantasiosamente. É nesse momento, frente ao Édipo, em que se vê castrada como a mãe e impelida a abandonar o objeto original de amor que ela representa, que ressurge na menina o ódio da separação do seio materno, que um dia precisou abandonar. Trocas importantes são feitas, apesar de não serem completas: o clitóris pela vagina e a mãe pelo pai. Diante da impossibilidade de ter o objeto, o traz para dentro de si sob a forma de identificações. Contudo, um resto da relação com a mãe permanecerá no inconsciente feminino. Atribui a esta a responsabilidade de tê-la feito mulher. O caso Dora (FREUD, 1905/1996) exemplifica esta presença materna, pois ilustra que a feminilidade é construída à imagem de uma outra mulher. Quando o Sr. K macula a imagem da Sra. K, Dora vê sua própria imagem de mulher maculada. Freud não enxergou este desdobramento do feminino e manteve a mulher sob a insígnia do continente negro.

 

III – Lacan: além do impasse freudiano

Todavia, foi Lacan quem deu um passo à frente, além do Édipo freudiano, enfatizando a relação da menina com a mãe como o cerne da feminilidade – a mãe como a mulher do pai, como objeto de amor que precisou deixar para seguir seu caminho de mulher ao lado de um Outro, portador do falo. Assim, o psiquismo feminino se constitui sob a ameaça da perda do amor. A perda primordial faz esse sujeito lidar com uma falta-a-ser, que lhe é constituinte, algo presente em ambos os sexos. Contudo, a mulher lida com uma outra falta, que é da ordem do corpo, portanto, uma dupla falta. A mãe não consegue nomear a falta que a castração promove na filha, uma fez que ela mesma é um ser castrado. Seu olhar apresenta um furo inquiridor da ausência de palavras. Esta segunda falta diz respeito a um corpo que não possui o suporte simbólico de que necessita para a constituição de seu sexo. Trata-se mesmo de uma ausência, que obriga a mulher a se utilizar do amor como uma suplência, um substituto do falo. Busca o falo no corpo do homem, e faz isso pelas vias do amor e de seus derivados. Assim, o feminino se constitui algo da ordem do inominável, não dito. Por esta razão, a mulher deseja ser amada por um homem que a nomeie enquanto mulher, que lhe conduza ao lugar do “outro” sexo, o feminino.

A mulher tem uma relação com o falo em três momentos: a mulher é o falo (significante do desejo masculino), a mulher ocupa o lugar de objeto-causa de desejo na fantasia masculina, e a mulher fazendo sinthoma ao homem. Ocupar uma posição frente ao masculino remete a uma fantasia investida de um desejo. A mulher sustenta o desejo e busca recuperar o gozo perdido ao ocupar um desses lugares na fantasia masculina. Apresenta-se como o objeto mais-de-gozar. O homem toma a mulher como objeto mais-de-gozar em sua fantasia como um fetiche, enquanto a mulher busca no homem o objeto erotomaníaco, isto é, acredita ser amada por ele. O gozo que a mulher procura é de saber que é amada por um homem por aquilo que ela não é.

Lacan avança e coloca a mulher “mais além” do Édipo e de sua lógica fálica. Elas estão sob a égide de uma lógica fálica, porém não-toda fálica – o que cria uma dissimetria entre o masculino e o feminino. A mulher não é um homem invertido. A mulher não é um homem castrado. Por não estar totalmente sob uma lógica fálica, a mulher possui um gozo outro, exclusivamente feminino, que deixa os homens de fora. Esse gozo exclusivo é algo da ordem do real, não se pode dizer nada sobre ele, nenhuma palavra. É um gozo mais além do falo.

 

IV – Fantasias de violência no Édipo

Em 1919, Freud escreve sobre um tipo especial de fantasia infantil que revela nuances da sexualidade feminina e se tornará o fundamento de suas escolhas amorosas (FREUD, 1919/1996, p.197). A fantasia se desdobra em três momentos, onde um adulto, identificado como o pai, bate numa criança, identificada como sendo, num determinado momento, aquele que fantasia. Conclusões podem ser elaboradas a partir desta fantasia masoquista: a menina se aproxima de uma posição masculina, identificando-se com o falo, num certo momento. Em outro, nota-se a presença inconsciente da violência na trama afetiva que envolve o amor edípico da menina, percebido por esta como fonte de gozo, unindo-a afetivamente ao pai.

Freud considerava o masoquismo “como expressão do ser da mulher” (FREUD, 1924/1996, p.179). Essa constituição “substitui uma formula de gozo por outra: ‘ser espancado’ substitui ‘ser amado’ no sentido genital” (SOLER, 2005, p.60). Lacan (1966/1998, p.741) acrescenta que esta disposição em ocupar o lugar de objeto refere-se primordialmente ao desejo do Outro e não ao seu próprio desejo. Por esta razão se diz que a mulher ocupa o lugar de objeto fálico na fantasia masculina, enquanto que a masoquista procura ocupar o lugar de objeto depreciado diante do desejo do Outro. Para isso, a mulher usa da mascarada para ocupar um desses lugares e gozar na fantasia do homem, mesmo que para isso tenha que ir de uma pequena concessão até a fustigação. Lacan (1974/2003, p.71) defende que esta vida de concessões no encontro com o mundo masculino gera a mascarada masoquista na mulher. Ela se realiza por procuração do Outro.

 

V – A violência contra a mulher como devastação

A palavra “devastação” (ravage, em francês) em si pode ser definida como arrazar, destruir, arrebentar. Trata-se de uma palavra derivada do verbo ravir, que significa arrancar, encantar, arrebatar – nuances da palavra que nomeia aquilo que, às vezes, é chamado de amor. Para Lacan (1974/2003), a devastação é uma experiência subjetiva que aparece na relação entre a mãe e a filha primordialmente e, posteriormente, na relação amorosa da mulher com o homem e no seu modo de lidar com seu próprio corpo. Trata-se do efeito da mãe sobre a filha, quando esta se mantém numa reivindicação fálica lançada sobre o Outro materno, que faz a filha gozar da mãe e supostamente entender-se como objeto castrado do qual a mãe goza. Assim, em suas escolhas amorosas, a mulher deseja ocupar a posição de objeto mais-de-gozar na fantasia do homem, porém, não sem uma luta: a de não se tornar novamente objeto de gozo na existência do Outro, como ocorreu em sua relação com o Outro materno. É o amor que fará esta mediação. Porém, manter-se como objeto de gozo do Outro, sendo posse do Outro e gozar dessa posição representa uma devastação para a mulher (BROUSSE, 2003, p.62 ).

Em 1931, Freud já havia descoberto algo resistente na subjetividade feminina, algo que a constitui como mulher e que se origina na “catástrofe” que é o deslocamento que a menina faz da mãe para o pai, como um segundo na devastação. Neste texto, Freud aponta os caminhos que a inveja do pênis pode traçar no feminino. Trata-se de um resto que marca a relação mãe-filha e de onde partem as demandas amorosas da mulher. É devastador, é indizível, porque é algo da ordem do impossível de ser suportado (FREUD, 1931/1996, p.242).

Lacan (1974/2003) situa a devastação no campo do desejo do Outro. A mãe é tida como o Outro primordial para a filha, a qual é significada pelo desejo materno enquanto objeto. Quanto mais a mãe investe a filha desse desejo tanto mais a filha depende dele. A filha, enquanto sujeito, identifica e interpreta esse desejo do Outro materno, isto é, o quanto é ou não desejada. Assim, a filha busca o lugar que entende dever ocupar diante desse desejo materno, um lugar de objeto agalmático, objeto a. Quando a menina entra no complexo de Édipo, faz um movimento de ressignificação, abandonando esse lugar ocupado até então no desejo do Outro materno. O pai é agora o Outro que trará um novo significado a ela: de que a mãe não pode significá-la como mulher, uma vez que também vivencia, ela mesma, a falta fálica. Assim, a filha remete ao pai suas demandas fálicas e o Édipo se processa. Se a mãe permanece toda mãe e não dividida pelo gozo fálico de um homem, a filha permanece como objeto de gozo materno, sendo atravessada por esse gozo do Outro que a devasta: é para a mãe um fetiche ou um dejeto. Fetiche quando a criança se torna o “refém fálico” da mãe totalmente ocupada com ela. Dejeto quando a mãe está em nada ocupada com a criança, nomeando-a enquanto injúria, insulto. A falta de uma interdição paterna e a consequente inscrição fálica desse sujeito criam para si o equívoco do nome que possui ou deve possuir. Na incerteza, é o lugar de objeto do Outro que lhe confere um nome. O efeito é devastador. O sujeito é reduzido ao “silêncio”, seu corpo é desfalicizado como um corpo em excesso, que é oferecido como objeto sem valor. O autoaniquilamento se torna uma via possível (BROUSSE, 2003, p.65).

A metonínia da devastação faz com que as escolhas amorosas da filha sigam o padrão de seu relacionamento com a mãe. Na ausência do amor, existe a devastação. O homem-devastação é aquele que a ilude com o engodo de ser tudo aquilo que ela precisa para existir como objeto, mesmo que sendo um objeto rebotalho. Ao marcar o corpo da mulher com a violência, goza perversamente e a faz gozar a devastação. Para ela, a violência assume um significado de amor.

 

VI – Conclusão

É no campo do amor que a violência se manifesta de forma mais cruel e terrível. Uma relação de amor pode esconder uma relação de ódio. O ódio pode ser interpretado como amor. Tratar desta questão é interrogar sobre o que quer uma mulher. No desamparo de seu ser, encontra na violência uma expressão avessa daquilo que deseja de um homem: uma mediação fálica que lhe traga alguma significação como sujeito feminino, que lhe diga o que é ser mulher.

As leis de proteção à mulher apontam seu lugar na sociedade: respeito e integridade. Mas é a mediação do amor que aponta para um caminho que possibilita aplacar a inquietude da falta. Não removê-la, apenas acolhê-la.

 

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RECEBIDO EM: 17/05/2011
APROVADO EM: 26/05/2011

 

 

Sobre o Autor

Tharso Peixoto Santos e Souza
Teólogo. Aluno do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.