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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.43 no.81 Belo Horizonte jan./jun. 2021
PSICANÁLISE E SEXUALIDADE
Santificado seja o vosso nome
Hallowed be thy name
Samir Caetano Amim Jorge
Licenciado em letras pela UFMG. Gestor cultural. Escritor. Aluno participante do Programa de Formação em Psicanálise do CPMG. E-mail: samircajorge@gmail.com
RESUMO
Digitemos os termos "abuso sexual", "líder" e "religião" na barra de pesquisa do Google. São milhares de páginas e referências encontradas. Temos aí a nossa matéria... São histórias dignas de romances policiais ou enredos ficcionais da mais alta imaginação. São tantas as ocorrências de abusos sexuais cometidos por líderes religiosos que não podemos deixar de desconfiar que essas histórias resguardam padrões. Neste artigo, temos por objetivo analisar o psiquismo do próprio líder religioso, assumindo a hipótese de uma regressão ao estágio narcísico anterior à experiência de castração.
Palavras-chave: Abuso sexual, Líder religioso, Narcisismo.
ABSTRACT
Let's type the terms "sexual abuse", "leader" and "religion" into the Google search bar. There are thousands of pages and references found. We have our story there ... These are stories worthy of detective novels or fictional plots of the highest imagination. There are so many occurrences of sexual abuse committed by religious leaders that we cannot help but suspect that these stories guard patterns. In this article, we aim to analyze the psyche of the religious leader himself, assuming the hypothesis of a regression to the narcissistic stage prior to the castration experience.
Keywords: Sexual abuse, Religious leader, Narcissism.
Entre os vários casos encontrados sobre o tema, elegemos três histórias reais para o estudo. Essas escolhas foram baseadas tanto por sua abundância de materiais para análise quanto pelo seu alto valor social. É importante ressaltar que não temos a intenção de esgotar a análise desses casos, menos ainda formar qualquer juízo decisivo sobre a estrutura psíquica específica dos líderes envolvidos (o que só é possível mediante uma análise pessoal).
No fim das contas, os casos servem apenas como material ilustrativo para a apresentação de hipóteses genéricas e incompletas, porém com algum valor teórico. Além disso, estamos cientes da possibilidade de algumas imprecisões em sua biografia. Apresentarei uma breve sinopse dos casos, e outros detalhes surgirão no decorrer do estudo.
Caso 1 - Sri Prem Baba (55 anos), paulista, guru espiritual da linha hinduísta Saccha. Nascido em família de classe média baixa, recebeu as primeiras lições e influências espirituais de sua avó materna, evangélica e benzedeira. Iniciou os estudos em psicologia e atuou como massoterapeuta, instrutor de ioga, acupunturista e xamã. Aos 33 anos de idade, embarcou em uma viagem de aprofundamento espiritual em Rishikesh, cidade indiana aos pés do Himalaia. Segundo ele, estava obedecendo a um chamado espiritual que o acompanhava desde a adolescência. Quatro anos depois, nasceria Prem Baba (o "pai do amor divino"). Defensor do celibato, o guru passou a realizar palestras, orientações espirituais e retiros. Não tardou para que ganhasse prestígio em todo o Brasil. É autor de quatro best-sellers e acumulou um patrimônio milionário. Em 2018, foi acusado de abuso sexual por três mulheres discípulas. Prem Baba admitiu para a comunidade que não era mesmo adepto convicto do celibato e assumiu as relações, mas negou o abuso sexual. Outros três casos surgiriam nas redes sociais após a publicização das histórias. Prem Baba se recolheu por um período curto, mas ainda hoje realiza, de forma discreta, as mesmas funções de orientação espiritual de outrora.
Caso 2 - Bikram Choudhury (76 anos), indiano, é o internacionalmente reconhecido fundador da Hot Ioga, uma técnica de cura e aumento de desempenho corporal. Relata que desde cedo demonstrou talento anormal para a ioga, vencendo três campeonatos nacionais quando criança. Segundo seu próprio depoimento, abdicou das competições para que outros pudessem também ganhar. Mudou-se para os Estados Unidos, onde teria tratado do presidente Nixon. Logo se tornaria uma febre nacional na América. Formou milhares de iogues em todo o país, tornou-se multimilionário e foi alvo de incontáveis matérias e estudos. Em 2014, recebeu acusação de abuso sexual e estupro de cinco mulheres. Outros casos vieram em seguida. Antes do final de seu julgamento, fugiu dos Estados Unidos e passou um tempo escondido no Extremo Oriente, mas hoje continua realizando treinamentos para milhares de seguidores no México e na Europa. Jornalistas que investigaram posteriormente sua história declararam que grande parte de seus relatos precedentes eram baseados em mentiras.
Caso 3 - João de Deus (78 anos) é um renomado líder espiritual brasileiro. Nascido em família pobre do interior de Goiás, sua primeira manifestação mediúnica ocorreu aos 9 anos de idade. Ainda jovem, iniciou-se nos trabalhos de cura espiritual. Sempre realizando cirurgias curativas, foi ganhando fama nacional por todo o mundo. Fundou a Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO). Foi objeto de inúmeros livros, documentários e entrevistas. Em seu auge, atendia mais de 3.000 pessoas por dia. Em 2018, a equipe de jornalismo da Rede Globo revelou 8 histórias de abuso sexual cometidos por João de Deus. Poucos dias após a publicização das denúncias, o Ministério Público de Goiás recebeu centenas de acusações (mais de trezentas). Inclusive, de uma de suas filhas, que havia sido abusada pelo pai durante décadas, desde os nove anos de idade. Surgiram também acusações de posse ilegal de armas, lavagem de dinheiro e assassinato. O líder espiritual foi condenado a 60 anos de prisão e hoje cumpre pena domiciliar em sua mansão em Anápolis (GO).
Antes de anunciar a hipótese central deste estudo, gostaríamos de elencar algumas semelhanças externas que puderam ser observadas entre os casos:
As cenas de abuso são repetitivas, isto é, quase sempre são operadas de acordo com o mesmo procedimento, uma forma fixa.
Há ausência de sentimento de culpa aparente em seus relatos e testemunhos.
Há indícios, a partir do relato das vítimas, que demonstram que o ato sexual, a satisfação do líder, seria um merecimento ou uma compensação por seus sacrifícios missionários.
Há um estrondoso reconhecimento do virtuosismo desses líderes, que teriam habilidades únicas e especiais - um virtuosismo assumido pelos três como inerente e presente desde a infância.
Há uma ascensão social e econômica consistente: os três líderes vieram de classes inferiores e alcançaram grande fortuna, prestígio e amplo reconhecimento social.
Negam a culpa pelas acusações ou, se a assumem, distorcem os fatos, de modo a trazer a noção de sexo consensual ou que objetivavam o bem da vítima (são "inocentes").
Nos três casos, é notória uma atuação perversa frente às vítimas.
Nos três casos, há momentos de fraqueza e vulnerabilidade expostas pelo líder à vítima (como se buscassem a sua compaixão).
São proferidores de valores, regras e condutas que são seguidos por todos os demais.
São vistos pelos membros como unânimes, dotados de valores sobre-humanos, e são alvos de um explícito sentimento de admiração expressado como 'amor'.
Têm autoestima, determinação e força de vontade inabaláveis.
Todos os três relatam total entrega pessoal, um sacrifício feito em prol do bem do grupo e dos membros.
Todos viveram uma etapa de transformação da personalidade social: ou seja, há uma personalidade anterior à formação do líder, de modo que esta praticamente sucumbe num passado remoto e superado, numa clara descontinuidade. (No caso de João de Deus e Prem Baba, o caso é ainda mais expressivo por terhaver, inclusive, alteração de nome).
De imediato, precisamos declarar algo da natureza psíquica geral dos líderes de grupos: uma elevação da tendência narcísica em sua distribuição libidinal, isto é, o investimento no eu como objeto da própria libido. A partir dessa posição geral, podemos dar o passo para estabelecer nossa hipótese: partimos do pressuposto de que esses líderes religiosos se elevaram de tal forma que o seu narcisismo, em vez de se manter em uma tendência apropriada, alcançou um estado tão extremo que impeliu seu psiquismo a um verdadeiro estado de regressão, a saber, à etapa do narcisismo supremo pré-complexo de castração. Dessa forma, o abuso sexual seria apenas uma manifestação típica e adequada, como uma repetição das vivências dessa fase.
Sabemos que oscilações periódicas são características da libido, mas sempre haverá uma porção investida para dentro e outra para fora, agindo simultaneamente. Há ocasiões, no entanto, em que o equilíbrio dessa distribuição se desfaz, como no estado da paixão, por um lado, ou no estado da doença, por outro. Ainda assim, mesmo nesses estados, a libido não alcança seus extremos, isto é, jamais está investida integralmente em um dos polos (pelo menos em uma perspectiva neurótica).
Mas talvez os líderes religiosos que aqui analisamos possam nos apresentar outro exemplo de distribuição libidinal incomum e exagerada para dentro. No entanto, não é apenas pela distribuição libidinal que o narcisismo se designa. Há outros elementos que participam da fundamentação dessa condição e o tornam um fenômeno padrão. São exemplos de circunstâncias internas que coadunam a expressão do narcisismo: na infância, a ausência de um supereu estruturado (completo); na vida adulta, a relação do ideal do eu com o supereu.
Nesse sentido, não resolveremos o nosso caso afirmando apenas que ocorreu um superinvestimento narcísico nos líderes religiosos abusadores. Esse é apenas o meio pelo qual teria se dado a regressão. Como isso é economicamente viabilizado? É difícil saber ao certo.
Talvez seja pela vigorosa repetição da cena infantil: um mesmo quadro sendo vivido dia após dia, reiterado por inúmeros membros do grupo, ao longo de anos, favoreça o convencimento psíquico necessário para que este volte a agir exatamente como naqueles estágios primitivos. Por ora, não conseguimos sabê-lo. Podemos apenas analisar o quadro dinâmico.
Designamos aqui o narcisismo supremo justamente como o estágio máximo da tendência narcísica infantil. Esse estágio possui tal imponência psíquica justamente por valores advindos de duas fontes: uma inerente à própria ocasião e outra a posteriori.
Sobre a primeira, temos o quadro padrão: a criança é convencida de sua centralidade no desejo da mãe. O pequeno ser redescobriu maneiras de manipulá-la: dessa forma, o desprazer, que por tanto tempo foi indomável, agora voltaria ao seu controle. Convence-se de seu extraordinário valor como objeto de gozo. Por meio da crença nesse valor, advém sua onipotência. O reconhecimento de um terceiro, nesta etapa, importa pouco, pois ainda não é verdadeiramente uma ameaça.
Freud ([1914] 1996, p. 98) explicita:
A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação - 'Sua Majestade, o Bebê'.
Essa etapa é tão ilusoriamente vivida que tenderia a não deixar rastros tão profundos em nosso psiquismo, se não fosse, evidentemente, pelo abismo em que caímos logo no degrau seguinte. O reconhecimento da diferenciação sexual, a percepção do desejo da mãe ao terceiro, a instauração da falta, a ameaça do pai, a proibição de entrada na cena sexual. O complexo de castração toma forma. E é justamente porque ele advém tragicamente logo depois de uma etapa tão elevada, que o próprio narcisismo perdido será, a posteriori, supervalorizado. Deixará consigo uma marca. Um ponto de fixação. O momento anterior à angústia da falta é a posição para a qual sempre queremos retornar. A posição não castrada. É a essa posição que regressará o nosso líder religioso abusador.
Na trajetória dos líderes há pontos comuns que merecem destaque. O primeiro deles é a 'descoberta' precoce, durante a infância, de uma vida que seria marcada por grandes realizações: manifestações mediúnicas, revelações de missões espirituais, etc. Sobre isso, pode-se dizer apenas que seus relatos dão pista de uma tendência muito específica: demonstram a presença precoce de um elevadíssimo 'desejo de exclusividade'.
Em outras palavras, podemos supor que ambicionavam, desde cedo, um potentoso reconhecimento coletivo, desejavam 'fazer o seu nome'. Demarcar a singularidade de sua identidade. Não bastaria a grandeza, seria preciso ser único. Para alcançar esse nível de distinção, João Teixeira de Faria se tornou João de Deus. Janderson Fernandes se tornou Prem Baba. E Bikram se tornou um estrangeiro em terras americanas.
A vivência infantil narcísica é marcada pela ilusão da exclusividade. Mas como reencontrar tamanha distinção depois de alcançada a vida adulta? Sem dúvida, seria preciso estar acima de todos os homens. Assumir o nome do pai maior (João de "Deus"; "Pai do amor divino"). Centro de todos os interesses. Mito coletivo. Símbolo da verdade. No fiml das contas, só existe um lugar para a exclusividade: o lugar do pai da horda primeva. Bikram: "Você nunca vai conhecer um ser humano mais puro que eu"; "Eu vendo a verdade" (BIKRAM..., 2019, 26 min). Quando confrontado por uma jornalista, Bikram ainda anunciou: "Eu sou o homem mais espiritualizado que você vai conhecer em sua vida, mas você não tem idade, educação, esperteza, inteligência, sabedoria e experiência suficientes para entender quem eu sou" (Bikram..., 2019, 47 min).
Essa supervalorização, contudo, possui um obstáculo: existiu, de fato, uma vida anterior à notoriedade, uma época de fracassos e vulnerabilidades. A memória da falha. A vida amorosa de João de Deus e as falências empresariais de Prem Baba puderam ser ocultadas pela assunção de um novo nome, uma nova identidade. O passado, frágil e humano, foi justaposto em um único significante: o momento da revelação espiritual. Em Bikram, a saída de sua terra de origem possibilitou a criação de uma nova versão do seu passado.
A assunção dessa nova identidade exigiu deles a narrativa do herói. Mas essa narrativa não é para o outro. Apenas é para o Outro. É uma narrativa narcísica. A fé do líder religioso é fé em si. Amar a Deus é reforço narcísico.
O herói é alguém que teve a coragem de rebelar-se contra o pai e, ao final, sobrepujou-o vitoriosamente (Freud, [1939] 1996, p. 23).
São homens excepcionais. Dotados de grande vontade e autoconfiança. São milhares de relatos de membros que atestam a transformação em sua vida. Nesse sentido, toda a sua trajetória de elevação dependeu tanto desse virtuosismo quanto da própria narrativa. E por essa mitologia receberam a recompensa: a adoração.
O amor dos membros é um ingrediente fundamental para a regressão psíquica do líder religioso. Em certo ponto, tal como na cena infantil, ele se convenceu de que todas as correntes de libido existentes afluíam unicamente para si. É objeto de satisfação do todo. Representante do gozo. É ovacionado como alma sublime. Jamais é contrariado. Esse banho libidinal reforçará o narcisismo já acentuado do líder, levando essa identificação a um estado extremado, a uma cisão de personalidade.
Em Freud ([1923] 1996, p. 23) encontramos:
Pode ocorrer uma ruptura do eu, em consequência de as diferentes identificações se tornarem separadas umas das outras através de resistências; talvez o segredo dos casos daquilo que é descrito como 'personalidade múltipla' seja que as diferentes identificações apoderam-se sucessivamente da consciência.
Ora, o narcisismo desses líderes não define o 'eu comum' como alvo de sua libido interna, mas o eu do semblante superior, o seu alter ego. Essa construção possibilita um engano favorável. A libido objetal, que esbarra na angústia de castração, pode agora ser investida num novo objeto, nomeado, totalizado, convencendo-o de sua posição não castrada.
Freud ([1914] 1996, p. 101) afirma:
Esse eu ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (self-love) desfrutado na infância pelo eu real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo eu ideal, o qual, como o eu infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor.
A dinâmica da autoestima do líder religioso exerce um papel ainda mais esclarecedor. O que podemos esboçar sobre o ideal do eu desses líderes? A vivência do narcisismo supremo estampa em nós para sempre a imagem cicatrizada do eu ideal: o ponto narcísico imediatamente anterior ao complexo de castração. Pelo efeito dramático dessa vivência, a imagem tomba, mas não perdemos a referência. Muito pelo contrário, a imagem do eu ideal refletirá seu símbolo dentro do constructo do ideal do eu.
Assim, todos os valores oriundos do Outro que nos servem como referência para sermos aceitos, desejados, reconhecidos, amados, pertencidos, dignos, honrados (isto é, o ideal do eu em si) terão como empuxo a marca da imagem do eu ideal perdido.
Cremos também que essa criação foi feita com a intenção de restabelecer a autossatisfação que estava vinculada ao narcisismo infantil primário, mas que, desde então, sofreu assim tantas perturbações e mortificações (Freud [1917] 1996, p. 429).
Antes do grupo e da notoriedade coletiva, o eu ideal do líder religioso reemergiu das profundezas por meio das revelações e contatos mediúnicos. No fundo, a mensagem era simples: um dia, seremos grandes mais uma vez. Daí a força de sua determinação, da sua incansável obstinação, da fé em sua própria virtude. Contudo, até certo ponto de sua trajetória, por mais que houvesse uma fina proximidade entre o eu e o ideal do eu desses líderes, que sempre lhe conferiam grande autoestima, ainda assim existia algum grau de distância.
Houve um momento, no entanto, em que, talvez possamos afirmar, essa distância desapareceu. E foi aí que as coisas realmente se complicaram. Vejamos bem: o operador que regula a dinâmica de distância entre o eu e o ideal do eu é justamente o supereu, como nos diz Freud ([1923] 1996, p. 49):
O supereu retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso O complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir ao recalque [...] mais severa será posteriormente a dominação do supereu sobre o eu, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa.
Ora, mas quando a distância entre o eu e o ideal do eu desaparece, temos um quadro problemático: o supereu perderia sua função? As coisas podem realmente ser assim? Reconhecemos a inexistência do sentimento de culpa nesses líderes religiosos. Todos se declaram inocentes e seguem a vida como se toda a repercussão social pouco significasse para sua autoestima. Parece haver inexpressão da angústia. Porém, antes de chegarmos a qualquer noção sobre o que teria ocorrido ao supereu, teríamos de nos perguntar: como isso poderia ocorrer? A qual turning point nos referimos acima?
Bem, a distância entre o eu e o ideal do eu do líder religioso se desvanece quando o líder se torna, ele próprio, o ideal do eu de seu grupo, conforme proposto por Freud ([1921] 1996) em Psicologia de grupo e análise do ego. Para os membros do grupo, já conhecemos bem de que forma o líder opera como ideal do eu coletivo.
Contudo, o que ocorre com o seu próprio ideal do eu nesse momento? Ora, o líder se identifica com o seu ideal. Confunde-se com o seu ideal. Nesse ponto, ele já é possessor de todos os desejos, regulador de todas as condutas, fonte de todas as regras, exemplo de todos os valores. Pai da horda. É nesse específico ponto que João Teixeira se torna apenas uma sombra de João de Deus; Janderson Fernandes de Prem Baba; e o indiano pobre para a estrela multimilionária da Hot Ioga. Um delírio narcísico: o eu ideal foi alcançado. O seu ideal do eu, como referência advinda do Outro sempre para além, recobre e aliena a consciência. Não há falta.
Efetiva-se, dessa forma, a regressão ao "[...] narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal" (Freud, [1914] 1996, p. 101). No final das contas, a uma defesa muito bem efetuada contra a castração.
Assim, o eu do líder (a parcela de si identificada ao ser superior) funcionaria como um supereu para sua outra personalidade (seu eu do passado - seu eu infantil). E, para esta última, bradaria seu imperativo: goza! Daí também os obscuros episódios de lamúria e angústia frente às vítimas (o que somente ocorre nas adjacências da cena sexual). Avaliemos, dessa forma, como o contexto do abuso sexual corresponde bem a essa dinâmica.
Evidentemente, esses líderes teriam indiscutível êxito se buscassem se envolver e se relacionar afetiva e sexualmente com pessoas ou membros do grupo por vias normais.
Bikram (2019) disse sobre o abuso: isso é
[...] mentira. Eu não faço isso. Não preciso. Se eu quiser fazer sexo com uma mulher, não preciso atacá-la, estuprá-la, abusar dela ou assediá-la. Há uma fila com milhões de mulheres no mundo, que são voluntárias.
Por que, então, o estupro? Ora, as vias normais de sedução demandam o reconhecimento da falta do outro, da lógica da demanda de desejo e da frustração, em suma, da assunção do complexo de castração. A satisfação precisa incidir por outra via.
Mas há também outras questões importantes a considerar: a posição libidinal do narcisismo supremo não considera a anuência da mãe (de seu objeto de desejo). A criança age de forma a manipular sua presença para fins totalmente egoicos de satisfação. Como objeto de gozo da mãe, ela está ali para servi-lo, e o desconhecimento de sua falta estrutural faz crer sua exclusividade; acima de tudo, seu incomensurável valor fálico. Essa criança não tem dúvidas: sua demanda será sempre atendida. O outro está ali para sua satisfação.
Além disso, é importante destacar a conduta caracteristicamente infantil das preparações do abuso sexual desses líderes religiosos. Bikram, com frequência, repetia o ritual: chamava as vítimas para seu quarto de hotel para assistir filmes de Bollywood (de sua terra natal), deitados na cama. Também interpelava as vítimas durante o treinamento, com frases de supetão, sem qualquer sinal anterior de sedução: "O que vamos fazer a nosso respeito? Vamos assumir o relacionamento?". (Bikram..., 2019, 27 min). Para ele, o vínculo sempre existira; o amor do outro já era consumado. João de Deus repetia o discurso de salvação da vítima, na mesma sala, com os mesmos toques.
Freud ([1914] 1996, p. 101) aponta que
[...] um homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal elevado do eu, nem por isso foi necessariamente bem-sucedido em sublimar suas pulsões libidinais.
Em Freud ([1917] 1996, p. 327), sobre a sexualidade pervertida, lemos:
[...] todas as suas ações se dirigem para um fim - geralmente um único fim: uma das pulsões componentes assumiu predominância, e, ou é a única pulsão observável, ou submeteu as outros a seus propósitos.
Ainda há um último fator relevante para a escolha do abuso sexual como ato apropriado a essa condição psíquica: a ausência do pai. O fim do narcisismo supremo começa no advento simbólico do pai, a partir da percepção do desejo da mãe. É a marca que inaugura todo o valor do complexo de castração. Para que o líder pudesse assumir a forma de sedução normal, ele teria também de assumir o pai. O abuso, então, responde bem a essa situação por denegar a sua existência. O abuso possibilita a repetição da vivência típica de satisfação do momento anterior à castração, pois ainda não havia o pai para privá-lo da entrada na cena sexual desconhecida. Se o abuso sexual é, em primeira instância, a reconquista da mãe que tinha sido roubada, no fundo, é apenas a negação de que um dia ela realmente partiu. Negação da falta.
Há um caso de abuso sexual cometido por João de Deus que ilustra de forma especial esse argumento: ele convoca uma das vítimas para a mesma salinha de 'cura particular'. Ela, contudo, leva consigo o pai que a acompanhava: por sofrer de crises de pânico, ela se sentia mais segura na presença dele. Entretanto, em vez de solicitar que ele se retirasse da sala, João de Deus apenas pediu que o pai virasse de costas para não ver o que iria acontecer. Além disso, ordenou que o pai orasse enquanto abusava da filha. Simbologia melhor não há.
Vemos, portanto, uma fecunda operação psíquica que permitiu a um sujeito reocupar o assento do pai da horda primeva. Sem culpa, representante do próprio ideal, possuidor de todas as mulheres e, ainda, nomeado como tal e ovacionado por todo o bando. Em nossa trajetória individual, só há um lugar, um momento, em que nos aproximamos dessa condição: no narcisismo supremo pré-castração. Regressar a essa condição, no entanto, exigiu desses líderes um potentoso trabalho psíquico construído ao longo de décadas.
Mais uma vez, o campo da religião se mostra propício para esse desenvolvimento:
[...] os impulsos emocionais de uma criança são intensa e inexaurivelmente profundos, num grau inteiramente diferente dos de um adulto; só o êxtase religioso pode trazê-lo de volta. O enlevo da devoção a Deus foi assim a primeira reação ao retorno do grande pai (Freud, [1939] 1996, p. 145).
A construção de um ideal religioso tão elevado parece ser, assim, fruto de um horror infantil tão inominável que somente a revelação de Deus em carne pudesse ampará-lo. Sendo assim, já estaríamos diante de sujeitos que, desde cedo, já se propunham a voos tão altos, a embates internos tão violentos, que somente uma cruzada de fé lhes permitiria êxito. O abuso sexual seria, portanto, apenas uma decorrência de terem ido tão longe e conquistado sua terra santa.φ
Referências
BIKRAM: yogi, guru, predator. Direção: Eva Orner. Pulse Films. Estados Unidos. 2019. [ Links ]
BRASIL on-line. Em vídeo, Sri Prem Baba admite relacionamentos e pede perdão. Bol Vídeos. 30 de agosto de 2018. Disponível: https://videos.bol.uol.com.br/video/em-video-sri-prem-baba-admite-relacionamentos-e-pede-perdao-0402CC1C3860CCA96326. Acesso em: 17 fev. 2021. [ Links ]
DAL PIVA, J. A ciranda de sexo, dinheiro e mentiras de Prem Baba. Época, Rio de Janeiro, 13 set. 2018. Disponível em: https://epoca.globo.com/a-ciranda-de-sexo-dinheiro-mentiras-de-prem-baba-23066393. Acesso em: 17 fev. 2021. [ Links ]
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Recebido em: 27/02/2021
Aprovado em: 16/04/2021