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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0031n01A03 

SEÇÃO TEMÁTICA - PARENTALIDADE E CUIDADOS PRIMÁRIOS HOJE

 

Os processos de constituição psíquica do sujeito na perspectiva da psicanálise de família e casal

 

The processes of psychic constitution of the subject in the perspective of the family and couple psychoanalysis

 

Los procesos de constitución psíquica del sujeto en la perspectiva de psicoanálisis de familia y pareja

 

 

Suziani de Cássia Almeida LemosI; Anamaria Silva NevesII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Psicóloga Clínica Professora Adjunta do Curso de Psicologia do Instituto Luterano de Ensino Superior (ILES/ULBRA), Itumbiara, GO, Brasil. suzianilemos@gmail.com
IIDoutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) Professora Associada do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil. anamaria@umuarama.ufu.br

 

 


RESUMO

Este estudo busca analisar os processos de constituição psíquica na perspectiva da psicanálise de família e casal, trabalhando os conceitos de Parentalidade e Transmissão Psíquica entre Gerações. A partir de uma organização cultural e social, as famílias mantêm dinâmicas relacionais que oferecerão ao bebê um terreno propício ou interditado à sua constituição psíquica. A implicação do sujeito naquilo que é herdado fala da apropriação de sua própria história e dos processos de transformação, diferenciação e individuação. Nisso se opõem a repetição patológica de lugares preestabelecidos de forma passiva e a possibilidade de atribuir ativamente significados a essa herança. No movimento de apropriação e transformação do que é herdado, o sujeito pode advir em um processo de subjetivação e diferenciação. É fundamental entender como o sujeito se constitui na trama de seus vínculos e de suas heranças, buscando analisar seus processos de ligação e separação em relação ao outro e ao grupo.

Palavras-chave: sujeito; constituição psíquica; psicanálise de família e casal.


ABSTRACT

This study seeks to analyze the processes of psychic constitution in the perspective of family and couple psychoanalysis, working on the concepts of Parenting and Psychic Transmission between Generations. From a cultural and social organization, families maintain relational dynamics that will offer the baby a propitious or interdicted ground for their psychic constitution. The subject's implication in what is inherited speaks of the appropriation of their own history and the processes of transformation, differentiation, and individuation. This is opposed to the pathological repetition of pre-established passive stances and the possibility of actively assigning meanings to this inheritance. In the movement of appropriation and transformation of what is inherited, the subject may come into a process of subjectivation and differentiation. It is fundamental to understand how the subject is constituted in the fabric of their links and their inheritances, seeking to analyze their processes of connection and separation in relation to the other and the group.

Keywords: subject; psychic constitution; psychoanalysis of family and couple.


RESUMEN

Este estudio busca analizar los procesos de constitución psíquica en la perspectiva del psicoanálisis de familia y pareja, trabajando los conceptos de Parentalidad y Transmisión Psíquica entre Generaciones. A partir de una organización cultural y social, las familias mantienen dinámicas relacionales que van a ofrecer al bebé un terreno propicio o prohibido a su constitución psíquica. La implicación del sujeto en lo que es heredado habla de la apropiación de su propia historia y de los procesos de transformación, diferenciación e individuación. A esto se opone la repetición patológica de lugares preestablecidos de forma pasiva y la posibilidad de atribuir activamente significados a esa herencia. En el movimiento de apropiación y transformación de lo que es heredado, el sujeto puede venir en un proceso de subjetivación y diferenciación. Es fundamental entender cómo el sujeto se constituye en la trama de sus vínculos y de sus herencias, buscando analizar sus procesos de unión y separación en relación al otro y al grupo.

Palabras clave: sujeto; constitución psíquica; psicoanálisis de familia y pareja.


 

 

Introdução

A noção de sujeito na Psicanálise remonta à teoria freudiana, ainda que nela careça de definição formal, surge implicitamente nos textos de Freud contrapondo-se à noção de cogito cartesiano e à supremacia do eu. Em Pulsões e suas vicissitudes, Freud (1915/1996) qualifica o sujeito (der Subjekt) pelo duplo movimento que o constitui: pela inversão das polaridades pulsionais ativas/passivas e pelo retorno das posições correlativas do objeto e do sujeito, do ego e do outro (Barroso, 2012; Kaës, 2011).

Segundo Cabas (2009), em Freud, sujeito não é um conceito construído explicitamente, mas algo que surge nas entrelinhas apresentando-se como o nome do desejo. Mostra-se estranho e estrangeiro ao eu (ego) porque é inconsciente, oriundo dos imperativos da pulsão. Ele é o que insiste, a repetição que se impõe. Logo, o sujeito não existe por si, mas pode advir a partir do inconsciente.

É em Lacan, mais tarde, que a noção de sujeito ganha estatuto de conceito, peça central da obra lacaniana e do que o autor nomeia "retorno a Freud". Lacan (1960/1998) distingue o eu, enquanto construção imaginária, do sujeito do inconsciente, o sujeito do desejo. Para ele, eu e sujeito não coincidem e este só pode advir mediante uma barra, uma divisão entre o sujeito e ele mesmo.

Assim, a concepção de sujeito pelo viés do simbólico tem lugar em Lacan, marcado de maneira inevitável pela linguagem, alienado no significante. A castração instaura o sujeito barrado, dividido, da linguagem, do inconsciente, do desejo. O que Lacan chama de sujeito é justamente esse enigma trazido pela barra, pela divisão que funda o inconsciente, que descentra o indivíduo e a razão (Barroso, 2012).

Partindo para uma concepção de sujeito que considera a noção intersubjetiva em sua constituição, evidencia-se a contribuição de Kaës (2001), que amplia a noção de sujeito freudiano para sujeito da herança, na medida em que este se define cada vez mais, necessariamente, no espaço intersubjetivo, "e mais precisamente, no espaço e no tempo da geração, do familiar e do grupal" (p. 5). Na obra Um Singular Plural (2011), Kaës sustenta que o sujeito do inconsciente é sujeito do grupo e, de modo mais geral, sujeito da e na intersubjetividade.

Nesse sentido, destacam-se também os aportes teóricos desenvolvidos por Berenstein e Puget (1997, citados por Gomes & Zanetti, 2009), que ampliaram a Psicanálise de Família e Casal com a inclusão do conceito de transubjetividade, representando a inscrição inconsciente dos modelos socioculturais no sujeito (Gomes & Zanetti, 2009).

A partir dessa noção de sujeito, este estudo tem como objetivo delinear os processos de constituição psíquica na perspectiva da psicanálise de família e casal, abordando os conceitos de parentalidade, herança psíquica entre gerações e diferenciação do sujeito. É fundamental entender como o sujeito se constitui na trama de seus vínculos e de suas heranças, buscando analisar seus processos de ligação e separação em relação ao outro e ao grupo.

 

A formação do sujeito no vínculo

Na década de 70, um grupo de psicanalistas franceses e argentinos, partindo dos estudos de Bion acerca dos grupos, cria um referencial próprio denominado Psicanálise das Configurações Vinculares, enfocando tanto a família quanto grupos maiores formadores das massas sociais. São representantes dessa linha teórica Kaës (2001) e Eiguer (1998), que, por meio do desdobramento de seus conhecimentos, partem para temas específicos que definem novos rumos para a psicanálise de família e casal (Gomes & Levy, 2009).

O grupo argentino, na América Latina, comandou a construção dos principais referenciais teóricos da Psicanálise Vincular, tendo como expoentes máximos os autores Berenstein e Puget (1997, citados por Gomes & Zanetti, 2009), que introduziram as noções de intersubjetivo e transubjetivo, representando a inscrição inconsciente dos modelos socioculturais no sujeito. Ou seja, a partir dessa concepção, o mundo sociocultural torna-se importante elemento para o entendimento dos processos de constituição psíquica (Gomes & Levy, 2009; Gomes & Zanetti, 2009).

Kaës (2011) utiliza a noção de sujeito para descrever um modo de existência que se encontra sob o efeito de uma ordem da realidade que o governa e o organiza: suas pulsões, suas fantasias, seus desejos e seus conflitos inconscientes. No entanto, para o autor, o sujeito não é dividido somente a partir de dentro, pelo efeito da Spaltung criada pelo inconsciente. Divide-se também entre a realização de seu próprio fim e o lugar que ele assume nos vínculos que o constituíram. Essa segunda divisão é, também ela, estrutural e exerce um efeito decisivo sobre a formação do sujeito do inconsciente.

Na obra Um Singular Plural, Kaës (2011) dirige sua atenção ao processo de subjetivação no contexto grupal, o "tornar-se Eu" em um conjunto intersubjetivo (p. 15). Para o autor, o grupo primário é o espaço e o processo em que o Eu pode advir, sob a condição de que o sujeito, tendo efetuado e contratado as alianças estruturantes necessárias à formação de sua vida psíquica, deixe esse grupo e, em um movimento de diferenciação, coloque em jogo os conteúdos de sua própria filiação, apropriando-se dos mesmos e atribuindo sentido à sua história.

Cabe observar que o "Eu" colocado por Kaës, "o Eu que pode advir", refere-se à tradução do Je francês, que traz em si a dimensão do sujeito do inconsciente e não ao eu (ego) de ocultamento em Freud. Tanto o Je quanto o Moi são traduzíveis do francês por "eu", o que traz problemas para a clareza em português. A categoria do Je designa o sujeito do inconsciente, em oposição ao Moi utilizado para traduzir o Ich (eu) freudiano, comumente traduzido por ego (Yaekashi, 2012).

Evidenciando a noção de intersubjetividade na constituição psíquica do sujeito, Kaës (2011) a delimita como algo muito distante da mera concepção de interação, apreendendo-a no campo das formações inconscientes que ocorrem entre dois ou mais sujeitos:

Nessas condições, chamo de intersubjetividade a estrutura dinâmica do espaço psíquico entre dois ou vários sujeitos. Esse espaço compreende processos, formações e experiências específicos, cujos efeitos infletem o advento dos sujeitos do inconsciente e de seu futuro Eu no seio de um Nós. Segundo essa definição, estamos muito distantes de uma perspectiva que reduziria a intersubjetividade a fenômenos de interação. (Kaës, 2011, p. 24)

Kaës (2011) sustenta suas formulações teóricas nas obras freudianas, das quais extrai a base de suas proposições. Lembra que foi Freud (1921/1996) o primeiro a introduzir a noção de psique de grupo (Gruppenpsyche) em Psicologia de grupo e análise do ego. No entanto, Freud não se interessou por esse nível de organização psicossocial em sua obra. Kaës destaca então três momentos da obra de Freud nos quais ele formulou os primeiros esboços da superação da oposição entre indivíduo e grupo com conceitos construídos a partir da situação de cura individual.

O primeiro momento aparece em Totem e tabu (1913/1996), com a hipótese de uma psique de massa (einer Massenpsyche), noção que descreve tanto uma realidade psíquica específica quanto um continuum com a psique dos indivíduos que compõem o grupo. No segundo momento, em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1914/1996, p. 86) escreve que "O indivíduo leva realmente uma existência dúplice: uma para servir às suas próprias finalidades e a outra como o elo numa corrente, que ele serve contra sua vontade ou pelo menos involuntariamente".

Nesse mesmo texto, Freud nota que o narcisismo da criança se apoia sobre os sonhos de desejo irrealizados dos pais. Podemos ler essa observação como consequência dessa dupla existência. Observamos, então, que não é somente do indivíduo, em sua ancoragem corporal e biológica, que fala Freud: trata-se do sujeito na medida em que está submetido a uma ordem intersubjetiva que o constitui, a dos desejos inconscientes daqueles que o precedem.

O terceiro momento se afirma na introdução de Psicologia de grupo e análise do ego, quando Freud (1921/1996, p. 77) anuncia que:

O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. (...) Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social.

A partir dos fundamentos freudianos, Kaës se interessa em suas pesquisas pela posição do sujeito no grupo, dedicando particular atenção ao papel desempenhado pelo grupo na estruturação do psiquismo, ou seja, compreender como a vida psíquica do sujeito se constrói em suas relações com o espaço psíquico comum e partilhado por vários sujeitos nos vínculos e na matriz do grupo primário. Para ele, "o sujeito do inconsciente é sujeito do grupo" (Kaës, 2011, p. 46).

Partindo para as contribuições de Berenstein e Puget (1997, citados por Gomes & Zanetti, 2009), destaca-se o desenvolvimento da perspectiva de psicanálise de família e casal associada à noção de vínculo, diferenciando-se do aparato teórico construído a partir da noção de relação de objeto, oriunda da Psicanálise inglesa, sobre relacionamento de casal e família.

Nesse sentido, Trachtenberg, Kopittke, Pereira, Chem e Mello (2005, p. 172, citados por Gomes & Zanetti, 2009, p. 98), procuram diferenciar as noções de vínculo e de relação de objeto. Definem vínculo como:

(...) uma relação entre dois egos no mínimo, com características de extraterritoriedade da perspectiva do aparelho psíquico, delimitando o espaço intersubjetivo. (...) Já a relação de objeto é entendida como o registro no mundo interno dos objetos parciais ou totais nos quais o ego investe de forma unidirecional, é intraterritorial da perspectiva do aparelho psíquico, delimitando o espaço intrasubjetivo.

Para Gomes e Levy (2009), a noção de vínculo adquire uma especificidade no tratamento psicanalítico das famílias e casais, pois define o indivíduo sempre ligado à noção de "pertencimento" aos grupos dos quais provêm: família, instituição, sociedade. Berenstein e Puget (2004, p. 2, citados por Gomes & Levy, 2009, p. 155) definem o "vínculo como sendo o inconsciente em sua maior densidade: é o que dá pertencimento e estabelece uma descontinuidade e uma continuidade entre os eus. Esta última se constrói na fantasia como defesa ante a percepção de descontínuo".

Dessa forma, o "entre" é um estado psíquico derivado do contato com a presença do outro, com a alteridade. E o outro visto como algo novo, diferente do Eu. Conforme já mencionado, nessa perspectiva vincular, está presente também a noção de transubjetividade, referindo-se à inscrição inconsciente dos modelos socioculturais no sujeito (Gomes & Zanetti, 2009).

Assim, no contexto teórico-clínico da Psicanálise de Família e Casal, é essencial promover a reflexão sobre alguns elementos que operam no sujeito a partir do outro e do grupo ao qual ele pertence. É nesse sentido que as noções de Parentalidade e da Transmissão Psíquica entre Gerações se colocam nesse estudo.

 

A parentalidade e a constituição psíquica do sujeito

A noção de parentalidade foi introduzida no final dos anos de 1950 pelo psicanalista americano Thomas Benedekt. O autor criou o termo parenthood, retomado por Paul Racamier, em 1961, na França, como parentalité. Trata-se de um neologismo surgido a partir da escuta psicanalítica das consultas dos pais com o bebê. Este conceito é tratado a partir da noção de parentesco na obra de Freud, onde é possível encontrar os pontos nodais da noção de parentalidade (Vidigal & Tafuri, 2010).

René Clement (1985, citado por Vidigal & Tafuri, 2010) atribui ao termo parentalidade todos os processos mentais conscientes e inconscientes envolvidos na experiência do "tornar-se pai", fruto de um trabalho psíquico que consiste em elaborar o que herdamos de nossos próprios pais e o que transmitimos para nossos filhos, a partir da vivência da maternidade. O autor diz ainda que "tornar-se pai" é um processo complexo, consciente e inconsciente. Dessa forma, a parentalidade se constitui em uma estreita e determinante relação com os intrincados processos de constituição psíquica do ser.

A noção de parentalidade enquanto conceito envolve questões centrais: o estudo psicanalítico sobre o parentesco, o lugar da criança na família e o desejo de ter um filho.

O termo "parentesco", segundo o dicionário Petit Larousse (citado por Solis-Ponton, 2004, p. 29), é definido como "a relação de consanguinidade ou de aliança que une duas ou mais pessoas entre si". Esse termo designa também o vínculo jurídico que une as pessoas descendentes umas das outras ou de um ancestral em comum.

Para compreender melhor o parentesco psicológico, Solis-Ponton (2004) recorre ao discurso da psicanálise e entende que foi Freud (1913/1996) quem abriu caminho para essa pesquisa, em Totem e Tabu. Nesse trabalho, Freud estuda a vida social dos povos primitivos, formulando o mito segundo o qual a horda primeva teria cometido o assassinato do pai primordial e depois, para se proteger e assegurar a vida social, seus membros teriam instituído a exogamia como horror ao incesto e o totemismo como testemunha dos sentimentos de ambivalência em relação ao pai. Freud (1913/1996) estudou o retorno do totemismo na vida psíquica da criança e nas neuroses.

Ao postular a existência da "família edípica" por meio de uma complexa relação entre pai e filho, a figura trágica de Édipo, Freud coloca como ponto central o assassinato do pai e o incesto com a mãe. As três tragédias de Sófocles em torno de Édipo - "Édipo Rei", "Édipo em Colona" e "Antígona" - são os momentos finais de uma história mítica maior, a da trágica e amaldiçoada família dos Labdácidas. O pai da psicanálise oferece, então, as pistas fundamentais do funcionamento inconsciente norteadoras da concepção de parentalidade como estrutura psíquica. Tanto o parentesco quanto a cultura revelam-se como organizadores fundamentais para a constituição psíquica do ser (Vidigal & Tafuri, 2010).

Dessa forma, Solis-Ponton (2004) parte da noção de parentesco e entende que a parentalidade é "o estudo dos vínculos de parentesco e dos processos psicológicos que se desenvolvem a partir daí" (p. 29). Ela acrescenta ao conceito de parentalidade elementos organizadores das relações pais-bebê, um modelo que aponta para a heterogeneidade, a assimetria e a complexidade do processo psicológico do "tornar-se pai e mãe". Compreende também que o parentesco é construído no seio do aparelho intrapsíquico como produto da intersubjetividade e da transmissão intergeracional.

O lugar da criança na família e o desejo de ter um filho são também questões fundamentais no estudo da parentalidade. Como indica Stern (1997), as representações parentais sobre o bebê se iniciam muito antes de seu nascimento. Assim, não podemos restringir a parentalidade à gestação e ao nascimento de um filho, já que as identificações feitas na infância influenciam e determinam a forma como cada um de nós poderá exercer a parentalidade.

Os estudos contemporâneos oriundos da clínica psicanalítica com crianças e com os pais e seus bebês vêm demonstrando a necessidade de se compreender o discurso consciente e inconsciente de cada família em particular. Cada criança é falada e desejada muito antes de ter sido gerada. A partir de uma organização cultural e social, as famílias mantêm dinâmicas relacionais que vão oferecer ao bebê um terreno propício ou interditado à constituição psíquica do ser (Vidigal & Tafuri, 2010).

Para Zornig (2010), a pré-história da criança se inicia na história individual de cada um dos pais. O desejo de ter um filho reatualiza as fantasias de sua própria infância e do tipo de cuidado parental que puderam ter. Portanto, o processo de filiação se inicia antes do nascimento do bebê, a partir da transmissão consciente e inconsciente da história infantil dos pais, de seus conflitos inconscientes, da relação com seus próprios pais que colorem sua própria representação sobre a parentalidade.

Sobre as representações mentais dos pais em relação ao seu bebê, Lebovici (1998, citado por Solis-Ponton, 2004) e Golse (2002) destacam a existência de pelo menos quatro formas de representação: o bebê fantasmático, aquele que os pais concebem a partir de sua própria história, fruto das fantasias inconscientes, herdeiro de seu complexo de Édipo; o bebê imaginário, como uma representação menos inconsciente que pertence ao casal, como traços imaginados, sexo etc.; o bebê narcísico ligado à representação de seus ideais, de como o filho irá sucedê-los; e o bebê mítico ou cultural, que se refere a um grupo de representações coletivas de uma determinada sociedade, em um determinado momento.

Essas múltiplas representações se misturam e se alternam nas trocas com o bebê real, dando lugar à dimensão imaginária e fantasmática dos vínculos. Podem comportar a expressão dos conflitos inconscientes dos pais e, algumas vezes, são objetos de mal-entendidos e desarmonias no vínculo com o bebê, que se torna receptáculo das projeções desses conflitos. Assim, a construção do mundo representacional do bebê depende, em grande parte, das representações que os pais forjam em relação a ele (Solis-Ponton, 2004; Zornig, 2010).

No entanto, Bleichmar (1994) concebe a "realidade fundante do inconsciente infantil como aquela que, estando em relação com o inconsciente parental, não é, no entanto, o simples reflexo deste" (p. 126). A trama psíquica singular da criança se dá a partir das correlações entre as determinações parentais e os modos mediante os quais estas se significam para o sujeito, inscrevendo-se e produzindo efeitos em seu corpo e psique.

Nessa direção, Zornig (2010) destaca que o nascimento de um filho implica uma dupla dimensão. Para que um bebê sobreviva física e psiquicamente, é necessário inscrevê-lo em uma história familiar e transgeracional. No entanto, somente o reconhecimento do filho em sua diferença permite aos pais construir uma relação com a marca do novo e da criatividade, indo além de uma repetição do passado e permitindo que o bebê se aproprie das marcas e inscrições de sua história relacional inicial.

A noção implícita nessa ideia é a de uma mutualidade nas trocas entre pais e bebê que possibilita ao infante iniciar o processo de subjetivação e permite aos pais se apropriarem de seu lugar parental. O bebê não é um receptáculo passivo dos cuidados maternos, mas constrói e parentaliza os pais ao mesmo tempo em que ele mesmo se constrói (Solis-Ponton, 2004).

Estes autores enfatizam a participação da criança na parentalização de seus pais e na construção de sua própria subjetividade, reiterando o espaço reservado à alteridade, à singularidade e àquilo que cabe a cada criança nesse processo. Com isso, embora a criança traga a marca da função simbólica dos pais, não é redutível a ela. O inconsciente infantil não é um simples reflexo do inconsciente parental e o sintoma infantil desenrola-se nos interstícios do discurso parental (Zornig, 2001).

Em suma, o estudo da parentalidade ampliou as formas de se conceber a família na perspectiva psicanalítica, colocando em evidência os processos de constituição parental em sua dimensão intersubjetiva, vincular e transgeracional. É também nessa trama intersubjetiva e geracional que o sujeito encontrará seu lugar e sua herança.

 

A transmissão psíquica entre gerações

Em seu livro Transmissão da vida psíquica entre gerações, Kaës (2001) amplia a noção de sujeito freudiano para sujeito da herança, ressaltando o aspecto intersubjetivo e geracional na constituição do sujeito. A transgeracionalidade configura-se, portanto, em um importante campo de prática e pesquisa psicanalíticas.

O tema da herança e da transmissão psíquica tem seus fundamentos já em Freud (1913/1996, p. 187), quando supõe a continuidade dos processos psíquicos de uma geração a outra e faz alguns questionamentos: "(...) quanto podemos atribuir à continuidade psíquica na sequência das gerações? Quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte?"

Freud (1913/1996, p. 188) procura responder, em parte, a essas questões remetendo à noção de herança de disposições psíquicas. Ele faz menção a um resto que permanece dos processos de repressão, relacionando esse resto à herança e afirma:

(...) nenhuma geração pode ocultar, à geração que a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a psicanálise nos mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um apparatus que os capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos.

Freud está se referindo às deformações resultantes dos processos de repressão e às reações decorrentes desses processos. Ele entende que dessas reações e desses processos permanecem restos, que são transmitidos pela via do inconsciente para as próximas gerações.

Em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1914/1996) assinala uma continuidade na vida psíquica entre gerações, reforçando questões já esboçadas em Totem e tabu, quando considera que o sentimento de culpa se constitui em organizador da cultura e aponta a dimensão do assujeitamento a uma corrente geracional como elo da transmissão, evidenciando uma preocupação com o contexto da intersubjetividade na vida psíquica individual (Correa, 2003).

Freud (1914/1996, p. 98) desenvolve a atribuição de lugares e os significantes presentes no processo de transmissão em que "Sua Majestade o Bebê" é o herdeiro dos sonhos e desejos não realizados pelos seus pais, ponto crucial a partir do qual o sujeito deve, em seu processo de subjetivação, assumir seu lugar e apropriar-se do sentido de seu próprio desejo, em relação ao desejo de seus predecessores (Correa, 2003).

Eiguer (1998) e Kaës (1998), autores de referência para o estudo do tema, descrevem duas formas de transmissão psíquica entre gerações: a transmissão psíquica intergeracional e a transmissão psíquica transgeracional. A primeira ocorre "entre" os sujeitos, configurando-se em um trabalho de ligações e transformações entre gerações adjacentes que inclui um espaço de metabolização do material psíquico herdado, de forma transformadora, com sentido para aquela geração.

Nesse tipo de transmissão, o herdeiro é beneficiário dessas mudanças, que conduzem a uma diferenciação e a uma evolução entre o que é transmitido, herdado e depois adquirido. Permite que cada sujeito da geração seguinte se situe em relação à geração anterior, encontre seu lugar e a ele dê um sentido fundando sua própria subjetividade, constituindo sua história e tornando-se proprietário de sua herança (Paiva, Pennacchi & Thorstensen, 2012).

Por outro lado, a transmissão psíquica transgeracional ocorre "através" dos sujeitos. Trata-se de uma transmissão forçada de conteúdos em direção ao sujeito. Transmite-se o conjunto do "não-significável", as zonas de negação e silêncio. Este tipo de transmissão é considerado não estruturante ou alienante, pois não há singularização do herdado, que se impõe em estado bruto aos descendentes, tirando deles o direito ao seu lugar (Paiva et al., 2012).

Silva (2003) diferencia esses dois tipos de transmissão dizendo que os conteúdos intergeracionais são compostos de vivências psíquicas elaboradas como fantasias, identificações que fundam a história familiar do sujeito de onde é extraída a essência das condições narcísicas e para a constituição de um lugar. Os conteúdos transgeracionais, por sua vez, podem se manifestar como sintoma nos sujeitos da família e referem-se a um material psíquico inconsciente que atravessa diversas gerações sem ter podido ser transformado e simbolizado, promovendo lacunas e vazios na transmissão, impedindo uma integração psíquica. Portanto, uma herança transgeracional é constituída de elementos brutos, transmitidos tal qual, marcados por vivências traumáticas, não-ditos, lutos não elaborados.

Para Garcia e Penna (2010), o objeto da transmissão transgeracional manifesta-se como permanentemente intrusivo, o que faz com que o sujeito fique impossibilitado de representar, elaborar, permanecendo alienado no que diz respeito àquilo que seu psiquismo herdou, onde a vivência traumática se encripta. Esse processo conduz o sujeito à denegação, à clivagem, à repetição, "ou seja, a inscrição de uma presença ausente não se deu, (...) impedindo a criação de estruturas necessárias para o estabelecimento de distâncias e de diferenças entre gerações" (Garcia & Penna, 2010, p. 77).

A história transgeracional inclui os elementos da história dos pais, dos avós, frequentemente dos conflitos, mas também inclui a criança mítica que se relaciona à cultura na qual se insere. Todos esses elementos vão se concentrar em um mandato transgeracional transmitido à criança (Lebovici, 2000).

Rosa (2001), em seu artigo O não dito familiar e a transmissão da história, faz menção às famílias em que os sujeitos, em decorrência de situações traumáticas, pensam na possibilidade de construir um futuro independente do passado. Esse aspecto provoca falhas nos processos identificatórios relativos à transmissão psíquica. Além de a família não enfrentar situações de sofrimento, não significar e elaborar as vivências traumáticas, ela também não revela as experiências dolorosas aos seus descendentes, negando aspectos de sua vivência e de sua história, transmitindo o não-dito, o negado.

Sobre isso, Mazzarella (2006) explicita a relevância do aspecto da negatividade da transmissão e diz: "Não é só da positividade que se faz uma pessoa; há sempre uma porção da negatividade, algo que não foi dito, representado ou constituído" (p. 15). A autora destaca o segredo como uma forma privilegiada de transmissão psíquica geracional, diferenciando duas categorias de segredo que atravessam gerações: o não dito - do proibido de se dizer - e o inominável, o indizível - do sem palavras para se dizer, da insuficiência das palavras.

Correa (2003) também descreve a polaridade negativa da transmissão como aquilo que fica oculto, não dito ou "mal dito", atravessando as gerações na dimensão do transgeracional. Quando marcado pelo negativo, observamos que o que se transmite é aquilo que não pode ser contido. "O que não encontra inscrição no psiquismo dos pais é depositado no psiquismo da criança: os lutos não realizados, os objetos desaparecidos sem traço nem memória, a vergonha, as doenças e a falta" (p. 36).

A questão mais significativa em todos esses processos é que se transmite o sentido das situações, podendo ser o negativo ou o não revelado, traduzido como falta de sentido. Neste caso, o que fica enigmático são os objetos perdidos, recalcados ou não integrados pelo sujeito, envolvendo, assim, as falhas nos processos de simbolização (Correa, 2003).

Nesse aspecto, um conceito extremamente relevante é o de alianças inconscientes. De acordo com Kaës (2011), essas alianças se estabelecem de tal maneira que certos conteúdos e certos objetos, certos fins e certas questões nos vínculos sejam inconscientes aos sujeitos desses vínculos. Entre essas alianças, algumas são estruturantes, outras possuem uma funcionalidade essencialmente defensiva, patogênica ou alienante.

Kaës (2011) ressalta que as alianças inconscientes produzem seus efeitos para além dos sujeitos, das circunstâncias e do momento que as tornaram necessárias e as moldaram. Elas constituem o agente e a matéria de transmissão da vida psíquica entre gerações e entre contemporâneos, participando nos processos de formação do inconsciente e da subjetividade dos sujeitos:

Cada um de nós vem ao mundo da vida psíquica na trama das alianças que foram estabelecidas antes de nós e na qual nosso lugar está marcado de antemão. Esse lugar que o constitui em sua subjetividade só poderá ser mantido na medida em que ele subscrever os termos da aliança prescrita para ele, mas também para o conjunto. A história de sua formação como Eu é ao mesmo tempo a de sua sujeição a esse lugar e a das distâncias que o sujeito terá de experimentar e sustentar em relação a esse lugar prescrito. (p. 226)

Nesse sentido, Kaës (2011) retoma a noção de contrato narcísico introduzida por Castoriadis-Aulagnier (1977) para sustentar que cada sujeito chega, simultaneamente, ao mundo da vida psíquica, da sociedade e da sucessão das gerações sendo portador de uma missão: assegurar a continuidade do conjunto ao qual pertence. Em troca, o conjunto deve investir, narcisicamente, o novo indivíduo. Esse contrato atribui um lugar determinado no grupo a cada um, lugar que lhe é indicado pelo conjunto das vozes que, antes de cada sujeito, sustentou certo discurso conforme o mito fundador do grupo. Esse discurso inclui os ideais e os valores. Ele transmite a cultura e as palavras de certeza do conjunto social. Cada sujeito, de certa maneira, deve retomar esse discurso por sua própria conta. É por meio dele que ele se liga ao ancestral fundador.

Assim, o investimento narcísico que, em cada indivíduo, torna possível a realização de seu próprio fim só pode ser verdadeiramente sustentado na medida em que a cadeia da qual o sujeito é parte integrante investe narcisicamente esse sujeito como portador de uma continuidade do todo. É assim que os pais fazem da criança, de início, a portadora de seus sonhos, de desejos não realizados, e asseguram por aí mesmo sua base narcísica, assim como é por meio deles que o desejo das gerações precedentes sustentou, positiva ou negativamente, sua vinda ao mundo e seu próprio enraizamento narcísico.

É por isso que Correa (2003, p. 41) declara:

A criança, desde sua vinda ao mundo, é requerida a compartilhar os enunciados dos ancestrais, assegurando a continuidade geracional e a identidade familiar, às vezes, ao custo de sua integridade psíquica e até mesmo somática, já que estes enunciados poderão contradizer suas próprias percepções internas e externas.

Dessa forma, as alianças inconscientes podem também servir à produção e à manutenção de sintomas, sob o efeito dos interesses de cada um, sustentando a função de desconhecimento que se liga a esse sintoma. A produção de sintomas partilhados realiza a finalidade de submeter cada sujeito a seu sintoma em relação à função que ele realiza para o outro, ou para mais de um outro, no vínculo e pelo vínculo (Kaës, 2011).

De acordo com Zanetti e Gomes (2012), uma parte do que é singular no sujeito sempre se origina naquilo que ele herdou, adquiriu e transformou, ou no que permaneceu sem transformação. Dessa forma, as alianças inconscientes proporcionam o processo de subjetivação, uma vez que ao procurar se diferenciar dessas influências, o sujeito poderá transformá-las em algo que realmente lhe seja próprio.

No contexto das alianças inconscientes, Kaës (1989, citado por Kaës, 2011) formulou o conceito de pacto denegativo, definindo-o como um acordo inconsciente sobre o inconsciente, imposto ou concluído mutuamente para que o vínculo se organize e se mantenha na complementariedade dos interesses de cada sujeito e de seu vínculo. O preço do vínculo é precisamente algo que seja inconcebível àqueles que ele liga, devido à dupla economia cruzada que rege as relações entre os sujeitos singulares e a cadeia da qual são membros.

De acordo com o autor, o pacto denegativo é uma metadefesa baseada em diversas operações defensivas: de recalque e denegação, de desautorização, de rejeição ou enquistamento. Ao mesmo tempo em que é necessário à formação do vínculo, ele cria neste o não significável, o não transformável, zonas de silêncio, bolsas de intoxicação que mantêm os sujeitos de um vínculo estranhos à sua própria história e à história dos outros (Kaës, 2011).

Garcia e Penna (2010) destacam que o conceito de pacto denegativo em Kaës é a expressão do negativo no âmbito da intersubjetividade e se caracteriza por oferecer a cada um dos membros envolvidos aquilo que no psiquismo tem como destino o recalque, a denegação, a recusa e a rejeição. Para Correa (2003), estes contratos intersubjetivos são organizadores do vínculo, tendo uma função defensiva, ao mesmo tempo em que são a garantia de um espaço que possibilita o desenvolvimento da subjetividade.

A partir dos conceitos de herança psíquica e alianças inconscientes, foi delineada a relação da transgeracionalidade com a constituição do sujeito no grupo familiar. Esse conjunto de determinantes do sujeito conduz à reflexão sobre os aspectos de separação e diferenciação, como um intrincado processo de dessujeição e liberação das alianças inconscientes alienantes, quando o Eu, tendo se constituído no interior de um "Nós", pode então advir.

 

O processo de diferenciação do sujeito

É na atenção dirigida ao processo de subjetivação, ao tornar-se Eu num conjunto intersubjetivo, que a obra de Kaës (2011) Um Singular Plural encontra seu fio condutor. Segundo o autor, o grupo primário é o espaço e o processo em que o Eu pode advir, sob a condição de que o sujeito, tendo efetuado e contratado nesse grupo as alianças estruturantes necessárias à formação de sua vida psíquica, deixe-o e, no movimento de uma nova afiliação, ponha em jogo, para se apropriar deles, os conteúdos de sua filiação.

Nesta concepção, o aparelho psíquico individual se forma, por um lado, nessa aparelhagem grupal, procede dela e nela se transforma, dela se diferencia e, em certas condições, adquire autonomia. A conflitualidade central situa-se entre a necessidade de ser o fim para si mesmo e a de ser um sujeito no grupo e para o grupo (Kaës, 2011).

O que é abordado por Kaës (2011) é que, de certa maneira, não temos a escolha de nos subtrair às exigências que nos são colocadas nesse conjunto intersubjetivo; devemos nos submeter a elas para estabelecer um vínculo e para existir como sujeitos. Mas também temos de nos desligar cada vez dessas exigências e das alianças que elas selam e que servem à nossa alienação e à alienação que impomos aos outros, geralmente sem que o saibamos. A ideia proposta é que o Eu - termo do processo de subjetivação - só pode advir em sua organização reflexiva e na apropriação de sua própria subjetividade num conjunto intersubjetivo do qual ele é inicialmente tributário e do qual terá de se soltar, sem, todavia, libertar-se radicalmente.

Nesse sentido, a subjetivação é entendida não somente como o processo de formação do sujeito mas, mais precisamente, sua transformação em um Eu capaz de pensar seu lugar e sua condição de sujeito do inconsciente. Refere-se a um processo de transformação do sujeito assumido pelo Eu, e esse processo está sob o efeito da intersubjetividade, isto é, da situação dos sujeitos do inconsciente no vínculo.

Essa ideia é assim explicitada por Kaës (2011, p. 224):

Poderíamos dizer, então, com apoio na palavra de Freud, que ali onde se localizavam as alianças inconscientes e onde elas continuam, o Eu pode advir, na medida em que se liberta do sujeito alienado nas identificações e nas alianças inconscientes que o mantêm na sujeição.

E diz que seria ilusório pensar, portanto, que a subjetivação se faz de uma vez por todas, e que a superação não deixe vestígio algum. A vida psíquica oscila entre movimentos contrários no processo do tornar-se Eu.

Dessa forma, em Kaës os processos de subjetivação relacionam-se diretamente e são determinados pela possibilidade de separação e desligamento em relação às exigências e alianças alienantes. Isso remete ao que é colocado por Kancyper (1999) no livro Confrontação de gerações, ao retomar as construções de Freud sobre a diferenciação do sujeito.

De acordo com Freud (1915/1996), essa diferenciação só é possível mediante a operação do ódio pelo reconhecimento da alteridade e a elaboração do luto pela ressignificação do objeto. O ódio induz o sujeito a confrontar-se com o objeto e depois desligar-se dele, o que promove a gênese e a manutenção da diferenciação nas relações de objeto.

Estabelecendo uma diferença entre o ódio e o remorso, Kancyper (1999) diz que o ódio intervém como um componente essencial no processo de separação-individuação iniciado durante a confrontação entre o filho e seus pais. O ressentimento, por sua vez, promove um desafio tanático mútuo entre os sistemas narcisistas parentais e filiais ao interceptar o enfrentamento esperável na luta de gerações.

Outra diferença destacada pelo autor é que o ódio opera como um fator fundamental nos processos do luto normal, enquanto o ressentimento os paralisa. A importância do luto nos processos de diferenciação do sujeito reside no fato de que se faz necessário um reconhecimento da perda do objeto, ou seja, uma desidentificação (ou desinvestimento) e uma separação em relação ao objeto. No remorso isto não ocorre, visto que os sujeitos desse vínculo permanecem investidos narcisicamente, em um círculo tanático de repetição e não diferenciação.

Assim, de acordo com Kancyper (1999), o processo de separação e de luto em relação às identificações narcísicas alienantes opera no sujeito como um ponto de inflexão, a partir do qual pode depor seu papel de vítima e tomar uma posição ativa: a de agente responsável que enfrenta a construção complexa e jamais concluída de sua própria identidade.

Evidencia-se que a constituição do sujeito e da família ocorre mediante complexas relações de amor e ódio que propiciam a aproximação e o afastamento necessários nesse processo. O sujeito, anteriormente submetido a uma relação narcísica, pode, a partir da constatação da alteridade e da diferença, odiar o objeto, separando-se e individuando-se, em um processo de (re)significação e apropriação de sua própria história.

Nesse contínuo e complexo processo, tanto Kaës (2011) quanto Kancyper (1999) evidenciam o princípio do a posteriori como aquilo que reabre a possibilidade, sempre renascente, de desafiar um destino que parece imutável.

Segundo o conceito freudiano do a posteriori, as impressões ou traços mnésicos só podem adquirir todo sentido e toda a eficácia em um tempo posterior ao de sua primeira inscrição (Paiva et al., 2012, p. 208). Assim, o a posteriori implementa um tempo de contínua reelaboração, em que o sujeito continuamente se define conforme se ressignifica segundo a reestruturação de sua biografia para transformá-la em sua própria história. É nisto que o trabalho de historização é algo que se efetua na sequência dos a posteriori (Kancyper, 1999).

Nesse processo, o sujeito é solicitado a realizar um trabalho de metabolização que possibilite a criatividade e a transformação, quando esse sujeito pode se apropriar de sua herança e de sua história como um Eu singular dentro da trama intersubjetiva da história familiar (Correa, 2003). Longe de ser uma vítima ressentida possuída pela história, o sujeito converte-se no agente ativo que organiza e confere significado aos fatos, configurando ele mesmo sua própria história, retrospectivamente (Paiva et al., 2012).

A concomitante constituição do sujeito e da família é marcada por intrincados processos de alienação e separação. Constituir-se pai, mãe, filho e irmão significa antes, ou melhor, ao mesmo tempo, constituir-se sujeito. O sujeito do inconsciente é o sujeito de um grupo. É por meio das tramas inconscientes estabelecidas antes mesmo de sua vinda ao mundo que este sujeito poderá encontrar seu lugar e apropriar-se dele.

 

Considerações finais

O presente estudo buscou articular os processos de constituição psíquica do sujeito sob a concepção da psicanálise de família e casal. Apreender a subjetivação para além dos aspectos intrapsíquicos tem significativa importância, uma vez que descortina os determinantes psíquicos relacionados aos vínculos estabelecidos entre o sujeito e seus outros, bem como aos lugares atribuídos a ele antes mesmo de sua vinda ao mundo.

A implicação do sujeito naquilo que é herdado fala da apropriação de sua própria história e dos processos de transformação, diferenciação e individuação. Nisso se opõem a repetição patológica de lugares preestabelecidos de forma passiva e a possibilidade de atribuir ativamente significados a essa herança, tornando-a efetivamente sua.

A complexa tarefa de subjetivar exige do sujeito um movimento constante de distanciamento e aproximação narcísica, no qual ele deverá assumir seu lugar no grupo, ao mesmo tempo em que (re)significa e singulariza seu lugar e sua herança.

 

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Recebido em 04 de novembro de 2017
Aceito para publicação em 14 de janeiro de 2018

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