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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.33 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2021
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n03A04
SEÇÃO TEMÁTICA - O FAZER DA PSICOLOGIA NO BRASIL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA: CLÍNICA, PESQUISAS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Fibromialgia: Impasses da demanda para a clínica psicanalítica
Fibromyalgia: Impasses of demand for the psychoanalytic clinic
Fibromialgia: Los impasses de la demanda para la clínica psicoanalítica
Tiago Humberto Rodrigues RochaI; Ludmila Madeira JesusII
IPsicólogo, Psicanalista, Doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Doutor em Psicologia pela Université de Rennes 2 (França). Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil. email: tiago.rocha@uftm.edu.br
IIPsicóloga, Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberaba, MG, Brasil. email: ludmilamadeiraj@gmail.com
RESUMO
Este estudo tem por objetivo investigar quais os desafios da elaboração de uma demanda subjetiva para a clínica de pacientes com diagnóstico de fibromialgia, e parte da observação de que esses sujeitos frequentemente chegam à clínica psicanalítica por encaminhamento, marcados pelo discurso hegemônico biomédico e por queixas somáticas. Para tanto, seis mulheres com diagnóstico de fibromialgia foram entrevistadas. Os dados foram analisados segundo as diretrizes da análise de conteúdo temática, a partir do referencial teórico da psicanálise. A discussão foi dividida em três eixos temáticos: (I) dor e demanda; (II) fibromialgia e fenômeno psicossomático; e (III) o sujeito entre o discurso científico e a dor. Como resultado, notou-se a existência de uma dificuldade na elaboração de uma demanda para o acompanhamento psicológico no caso da fibromialgia. Essa dificuldade pode ser abordada pelo rechaço simbólico apresentado nos casos de dor crônica, que parece não articular um sintoma analítico ou elaboração psíquica. Ademais, ficou evidente a alienação das participantes ao discurso científico, o que as priva de um saber acerca do próprio sofrimento.
Palavras-chave: psicanálise; fibromialgia; demanda; dor crônica; discurso.
ABSTRACT
This study aims to investigate the challenges of developing a subjective demand for the clinic of patients diagnosed with fibromyalgia, starting with the observation that these subjects frequently arrive at the psychoanalytic clinic by referral, marked by biomedical hegemonic discourse and somatic complaints. To do so, six women diagnosed fibromyalgia were interviewed. Data were analyzed according to thematic content analysis guidelines, based on the psychoanalysis theoretical framework. The discussion was divided into three thematic axes: (I) pain and demand; (II) fibromyalgia and psychosomatic phenomenon; and (III) the subject between scientific discourse and pain. As a result, it was noticed that there is a difficulty in elaborating a demand for psychological care in the case of fibromyalgia. This difficulty can be addressed by the symbolic rejection that is noted in cases of chronic pain, which does not seem to articulate an analytic symptom or psychic elaboration. In addition, the alienation of the participants from the scientific discourse became evident, which deprives them of knowledge about their own suffering.
Keywords: psychoanalysis; fibromyalgia; demand; chronic pain; discourse.
RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo investigar los desafíos del desarrollo de una demanda subjetiva para la clínica de pacientes diagnosticados de fibromialgia, y parte de la observación de que estos sujetos frecuentemente llegan a la clínica psicoanalítica por derivación, marcados pelo discurso hegemónico biomédico y quejas somáticas. Por lo tanto, se entrevistó a seis mujeres diagnosticadas con fibromialgia. Los datos se analizaron de acuerdo con las directrices de análisis del contenido temático, basadas en el referencial teórico del psicoanálisis. La discusión se dividió en tres ejes temáticos: (I) dolor y demanda; (II) fibromialgia y fenómeno psicosomático; y (III) el sujeto entre el discurso científico y el dolor. Como resultado, se notó que hay una dificultad en el desarrollo de una demanda de asistencia psicológica en el caso de la fibromialgia. Esta dificultad puede abordarse mediante el rechazo simbólico que aparece en los casos de dolor crónico, que no parece articular un síntoma analítico o elaboración psíquica. Además de eso, era evidente que los participantes estaban alienados del discurso científico, lo que les priva del conocimiento de su propio sufrimiento.
Palabras clave: psicoanálisis; fibromialgia; demanda; dolor crónico; discurso.
Introdução
Atualmente, é frequente surgirem na clínica pacientes que apresentam dificuldades em articular pela via da palavra o que lhes ocorre, o que indica a forma como o sujeito da contemporaneidade vivencia seu mal-estar (Fernandes et al., 2017). Ao que parece, a grande marca das patologias atuais relaciona-se a uma fragilidade dos recursos simbólicos. Como desdobramento, as perturbações psíquicas acabam se expressando no corpo, pela dor ou pelo ato (Santos & Rudge, 2014).
As patologias que até então foram afastadas da palavra - exceto a palavra de pesquisa do médico - são capturadas pela psicanálise (Miller, 1998), que tem seu saber teórico-clínico desafiado por esses pacientes que chegam apresentando diagnósticos aparentemente vazios de sentido e convidam os psicanalistas a um contínuo esforço de formalização (Besset, Zanotti et al., 2010). Dentre esses casos, pode-se localizar a dor crônica existente na fibromialgia.
Nosologicamente, a fibromialgia tem etiologia desconhecida, sendo caracterizada por dor musculoesquelética difusa e crônica. A síndrome acomete principalmente mulheres e tem como principais sintomas a fadiga, disfunções do sono, rigidez matinal e distúrbios psicológicos, como ansiedade e depressão (Britto et al., 2014). O diagnóstico surgiu no campo da reumatologia; entretanto, com a ausência de lesões orgânicas e o aumento das hipóteses de síndrome funcional, transtorno somatoforme ou "problema psicológico", a psiquiatria e os profissionais da área psi passaram a se interessar progressivamente por essa patologia.
Para a psicanálise, a dor crônica não é vista apenas como algo que remete aos mecanismos fisiológicos e anatômicos aos quais a medicina se volta. As manifestações corporais são lidas com base numa distinta noção de corpo. O corpo psicanalítico se coloca em um universo de representações, investido numa relação de significação e construído em seus fantasmas. É um corpo com valor simbólico (Avelino, 2014). É também corpo-imagem e corpo imaginário (Fernandes et al., 2015). Sobretudo, trata-se de um corpo afetado pelo gozo que, desde que se insere na linguagem, tem como causa o significante.
As pesquisas no campo psicanalítico trazem várias contribuições acerca da compreensão da fibromialgia, bem como a respeito da postura do analista nesses casos e a forma de condução da análise. Surgem várias formulações sobre a patologia, e os autores assumem posições teórico-clínicas diversas. Existe a aproximação da fibromialgia ao feminino e ao diagnóstico psicanalítico de histeria (Costa, 2013); a dor crônica como sinal de presença do corpo (Fortes 2013); como signo do excesso pulsional (Medeiros & Fortes, 2017); ou como estratégia de sobrevivência psíquica frente a um trauma (Santos & Rudge, 2014). Aparecem também hipóteses que se voltam para a psicossomática psicanalítica (Fernandes et al., 2015) e para a visão do corpo como destino privilegiado do que não pode ser representado (Santos & Rudge, 2014). Dupim (2014) discute ainda que a fibromialgia poderia ser uma tentativa de localizar no corpo os excessos do gozo feminino que se apresentam como devastação nas parcerias amorosas.
Dessa forma, é possível afirmar que a fibromialgia pode se circunscrever em uma variedade de situações clínicas: pode aparecer no sintoma, na neurose, ou como modo de gozo em qualquer estrutura clínica (Besset, Gaspard et al., 2010). Além disso, é notável que a patologia apresenta-se como um desafio tanto para a medicina quanto para a psicanálise. O limite demarcado pelo esgotamento de recursos médicos e farmacológicos interpela outras áreas do conhecimento, tanto para a investigação quanto para o tratamento da síndrome.
Apesar disso, os pacientes diagnosticados que chegam aos profissionais da área psi por encaminhamento médico parecem não possuir demanda própria, restando alojados no discurso científico que, por vezes, os culpabiliza pelo próprio adoecimento. Segundo Avelino (2014), usualmente esses sujeitos apresentam um discurso mecânico, voltado para a descrição da realidade externa, com ausência de conteúdo afetivo e com baixo investimento objetal. Quanto a isso, assemelham-se aos pacientes com fenômenos psicossomáticos, que frequentemente foram marcados como "não analisáveis". Atualmente, considera-se que se trata mais de compreender as dificuldades de acesso a esses pacientes, para assim nortear o trabalho analítico, do que de tachá-los como inacessíveis.
No caso da fibromialgia, sabe-se que a análise deve apoiar a enunciação do sujeito em sua tentativa de construir uma teoria pessoal, um saber para sua dor, bem como possibilitar que essas manifestações somáticas não elaboradas transformem-se em enigma para o sujeito. Essas manobras, apesar de profícuas, tornam-se um desafio na clínica com pacientes que têm diagnóstico de fibromialgia, devido às dificuldades iniciais em articular uma demanda que permita o desenvolvimento do trabalho. Torna-se complexo e necessário compreender a relação do sujeito com essa patologia (Fernandes et al., 2016).
Diante do exposto, este estudo teve por objetivo caracterizar a relação do sujeito com a fibromialgia, com o intuito de investigar os desafios da elaboração de uma demanda subjetiva por esses pacientes. Buscou-se ainda compreender a posição dos participantes em relação ao diagnóstico e ao tratamento médico/psicoterápico.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de natureza exploratória, qualitativa e de corte transversal. O instrumento utilizado foi uma entrevista semiestruturada, cujo roteiro foi elaborado a partir de uma adaptação do roteiro contido no estudo realizado por Dupim (2014). Este compreendeu cinco eixos temáticos: apresentação do sujeito; dor e corpo (relação da entrevistada com o corpo e as dores que manifesta); função da dor (relação do sujeito com o corpo voltado para o gozo relacionado à dor e sofrimento); diagnóstico e tratamento (posição sobre o tratamento médico e psicoterápico); e vida afetiva e sexual.
Os participantes foram recrutados na clínica-escola de psicologia de uma universidade federal. A seleção foi intencional (via prontuários e fichas de entrada) e compreendeu sujeitos diagnosticados com fibromialgia por médico especialista (reumatologista, neurologista ou ortopedista), independente do sexo/gênero. Os voluntários deveriam ter mais de dezoito anos e haver recebido o diagnóstico há mais de um ano. No total, foram entrevistadas seis mulheres com idades entre 34 e 72 anos. Ao longo do texto, as participantes serão identificadas por nomes fictícios: Regina (52 anos), Sandra (45 anos), Márcia (36 anos), Vera (46 anos), Lúcia (34 anos) e Simone (72 anos).
As entrevistas foram realizadas na clínica-escola, audiogravadas e transcritas na íntegra. Os dados foram analisados sob as diretrizes da análise de conteúdo (Turato, 2008) e a categorização executada segundo critérios semânticos. Os resultados obtidos foram discutidos com base no referencial teórico psicanalítico de orientação lacaniana. Foram acrescentados ainda fragmentos clínicos, fruto de um acompanhamento psicoterápico feito pela pesquisadora durante um ano e meio com Regina, que foi entrevistada na ocasião de sua entrada na clínica.
Quanto aos aspectos éticos, esta pesquisa está amparada na Resolução nº 466, de 12/12/2012, do Conselho Nacional de Saúde, e foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade de origem do trabalho. Todos os participantes formalizaram sua anuência mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados e discussão
Das seis mulheres entrevistadas, quatro chegaram ao serviço-escola a partir de encaminhamento médico. As outras duas, apesar da indicação médica, apontaram outros motivos para a procura do serviço. Uma delas buscou a continuação do processo psicoterápico que já havia feito anteriormente e a última procurou por recomendação de colegas de trabalho. Uma vez que a pesquisa foi realizada em contexto de um serviço-escola numa universidade, vale ressaltar que o acompanhamento das participantes estava sujeito às normas da instituição e às diferentes abordagens adotadas pelos estagiários. Em vista disso, duas das participantes haviam sido desligadas do serviço recentemente em decorrência de excesso de faltas, o que é contrário às normas da clínica-escola.
A partir da análise das entrevistas realizadas e de vinhetas clínicas do caso de Regina, buscou-se discutir o impasse clínico referente à elaboração da demanda nos casos de fibromialgia a partir de três eixos temáticos: (1) Dor e demanda; (2) Fibromialgia e fenômeno psicossomático: uma aproximação possível; e (3) O sujeito entre o discurso científico e a dor.
Dor e demanda
A verdadeira demanda de análise é o desejo
de desvencilhar-se de um sintoma.
(Lacan, 1975/2016)
Nasio (1999) coloca que é essencial saber o motivo que levou o paciente a buscar o analista, pois no início do tratamento deve-se observar a relação que o sujeito mantém com seus sintomas. Trata-se de uma relação de sentido, de forma que a primeira intervenção do analista é realizada no nível da relação do Eu do sujeito com o seu sofrimento. A relação do Eu com o sintoma começa nessa primeira iniciativa de recorrer a um outro. A retificação subjetiva se dá na medida em que se intervém com o intuito de restituir ao paciente alguma coisa da relação que ele tem com seu sofrimento, a teoria que ele apresenta sobre isso e sobre a possibilidade de reescrever formas distintas para seu mal-estar.
No caso da fibromialgia, como exposto, as participantes relataram procurar o psicoterapeuta por recomendação médica: "Porque… a médica, na época que eu descobri que tinha fibromialgia, me indicou" (Lúcia). De forma consonante, Regina coloca, no primeiro atendimento: "O doutor falou que é somatoforme o que eu tenho e que eu preciso de um acompanhamento com psicólogo". Ela é aposentada e foi diagnosticada com fibromialgia há mais de vinte anos. Nunca seguiu a recomendação médica de fazer psicoterapia; contudo, buscou o serviço ao ser encaminhada novamente por um psiquiatra. Traz consigo uma longa lista de remédios e diagnósticos. Não sabe dizer por que precisa ser atendida, tampouco apresenta alguma teoria voltada ao psíquico a respeito da etiologia de suas dores crônicas.
A respeito disso, observa-se que, apesar de as entrevistadas estabelecerem uma relação entre o aparecimento das dores e aspectos psicológicos e emocionais "Porque quando eu estou num nível muito alto de ansiedade eu sinto muita dor de cabeça, me dá muita dor" (Márcia), essa associação parece não ser de fato simbolizada. Isso porque, simultaneamente, o trabalho é frequentemente descrito como possível causador das dores: "Dor generalizada no corpo, devido a trabalhar demais, ficar fazendo muito movimento" (Vera) e "Se eu fiquei doente foi de trabalhar" (Sandra). Ademais, lesões ortopédicas que para a medicina apenas coexistem com os sintomas de fibromialgia também foram apontadas como explicação para o surgimento das dores: "Se melhorar essas dor reumática, (…) aí eu tenho impressão que a fibromialgia vai embora. Entendeu?" (Vera). Para as participantes, o sofrimento parece estar localizado apenas no corpo, visto que afirmam que não buscariam a psicoterapia caso não tivessem fibromialgia: "Eu acho que não procuraria (psicólogo) não" (Regina).
Quinet (1991), ao discutir sobre as funções das entrevistas preliminares no início do processo analítico, aponta a demanda como fator primordial para o trabalho. A demanda de análise se estabelece na medida em que um sintoma analítico é também elaborado. O sujeito pode se apresentar queixando-se de seu sintoma e desejando livrar-se dele, mas é preciso que essa queixa se transforme em demanda endereçada ao analista (como suposição de saber) e que o sintoma tenha um estatuto de questão para o sujeito, que passa a interessar-se em decifrá-lo. "O sintoma, aparecendo como um significado do Outro - s(A) -, é endereçado pela cadeia de significantes ao analista, que está no lugar do Outro - (A) -, cabendo-lhe transformar esse sintoma na questão que Lacan denomina 'Que queres?' (che vuoi?)" (Quinet, 1991, p. 13).
Partindo da relação estabelecida entre sintoma analítico e demanda, é imprescindível pensar a questão do sintoma nos casos de fibromialgia. Freud (1900/2019, 1926/2014) trouxe os sintomas como expressões particulares de conflitos psíquicos. Com estatuto de formação inconsciente, portam uma mensagem cifrada, endereçada ao Outro e passível de interpretação. Já na obra de Lacan, o sintoma é abordado de três maneiras: como mensagem endereçada ao Outro, como gozo, e como produção e invenção do sujeito (Maia et al., 2012). Para este trabalho, destaca-se o primeiro momento de seu ensino, no qual o sintoma é colocado como uma mensagem que pode ser interpretada na ordem do significante. Dessa forma, comporta um saber que o sujeito recusa reconhecer, saber esse que comporta a verdade do sujeito (Maia et al., 2012). Assim, é possível afirmar que na clínica o sintoma surge como aquilo que o sujeito sabe que lhe pertence, mas não sabe o que é, nem por que isso lhe concerne. Como aponta Quinet (1991), é transferindo isso que desconhece a um sujeito, colocado como aquele que comporta um saber, que o sintoma se sustenta como sintoma analítico. Mais que isso, para sustentar-se dessa maneira, é necessário um enlaçamento ao simbólico para que adquira função de significante, ganhe valor de enigma e seja passível de interpretação (Rinaldi et al., 2013).
Com base nessas conceptualizações, é possível apontar que a dor crônica implicada na fibromialgia não se coloca como um sintoma no sentido analítico, que é essencial para a instauração da demanda. A partir das entrevistas realizadas, percebe-se que as manifestações somáticas existentes na fibromialgia são endereçadas ao psicoterapeuta em forma de queixa física, estão suprimidas do registro simbólico e não servem como enigma. Assim, na dor crônica, não se trata de um funcionamento que põe em jogo o recalque, o sintoma ou a elaboração psíquica (Santos & Rudge, 2014). Diante da não existência de um sintoma analítico no caso da fibromialgia, deve-se discutir do que se trata essa dor que está fora da dimensão simbólica, e o que ocorre com a demanda nesses casos. Para tal, é possível tecer uma aproximação com os fenômenos psicossomáticos (FPS) sem, contudo, defini-la como tal.
Fibromialgia e fenômeno psicossomático: uma aproximação possível
De acordo com Drumond, "o fenômeno psicossomático é caracterizado por ser uma doença de cunho orgânico que atinge o real do órgão" (2016, p. 13). Porém, não existem dados anatomopatológicos que justifiquem o aparecimento, evolução ou extinção dos sintomas apresentados. Assim, estão postas semelhanças fundamentais com a fibromialgia, entre elas a questão do mistério etiológico existente nos dois casos e a abertura para classificações médicas de somatização, transtorno psicológico ou síndrome funcional. Além disso, ambas as manifestações se apresentam como fenômenos transestruturais, que podem se circunscrever em qualquer estrutura clínica (Besset, Gaspard et al., 2010, p. 1260).
Dentre as várias formas de localizar a dor crônica a partir da psicanálise, Fernandes et al. (2017) a situaram como gozo localizado no corpo. Isso a aproxima dos FPS, pois ambos os casos envolvem pacientes que se calam e ao mesmo tempo têm o corpo agitado por "um gozo maciço que não cede facilmente ao tratamento analítico" (Besset, Gaspard et al., 2010, p. 352).
A despeito das semelhanças, é importante evidenciar a principal diferença entre essas duas manifestações corporais: enquanto no fenômeno psicossomático existe uma lesão observável (tem-se como exemplo as lesões na pele causadas pela psoríase), na fibromialgia não existe uma lesão que explique os sintomas, ainda que esteja presente um afetamento das vias nervosas. Desse modo, apesar de todo gozo ser silencioso, no FPS "trata-se do gozo em seu silêncio pulsional mais radical, ao ponto de causar uma lesão no corpo" (Fernandes et al., 2017, p. 369).
Na psicossomática psicanalítica, a ausência da possibilidade de angústia ganha destaque como responsável pelas manifestações somáticas, uma vez que a angústia surge como defesa contra o real (Fernandes et al., 2015). De forma consonante, isso foi percebido na fibromialgia. Apesar das constantes queixas de dores, inicialmente não se nota angústia no que tange a outros aspectos da existência do sujeito, sendo essa a propulsora do trabalho analítico. Durante os atendimentos de Regina, isso ganha uma tonalidade muito especial - além da descrição das dores sentidas ao longo da semana e das idas e vindas às consultas médicas, é imperceptível a localização na angústia: "Tirando as dores, tá tudo bem, tudo normal." Mesmo os relatos que se aproximavam de alguma queixa logo eram contornados por ela: "Mas tá bom, não me importo não. Tá tudo bom."
Ademais, observa-se uma repressão dos afetos, que se liga à perceptível dificuldade de nomeá-los. Regina tenta transmitir o que lhe acontece usando gestos e expressões faciais. Segundo ela, não existem palavras adequadas: "Parece que eu… não sei. Não define, não consigo articular." Com a angústia fora de cena, o destino dos afetos parecem ganhar expressão por meio das formações somáticas. Essa aparente desafetação ficou evidente também nas entrevistas. Tem-se como exemplo Simone, que sinaliza e demonstra em sua fala reprimir seus sentimentos (que seriam as modulações sociais dos afetos): "Memória triste? (…) Não tenho, fui criada pra ser forte. Então tristeza, saudade, dor no peito eu não tenho." Assim, pode-se considerar que os casos de pacientes com dor crônica e fenômenos psicossomáticos dizem respeito a manifestações que se encontram aquém do sintoma e da angústia (Fernandes et al., 2017), estão elididas do simbólico e concernem ao real (Lacan, 1954-1955/2010).
No caso da fibromialgia, existe um rechaço simbólico como no FPS, porém ele aparece com um menor nível de intensidade. No início dos atendimentos, Regina apresentava um funcionamento muito próximo ao observado nos pacientes que apresentam fenômenos psicossomáticos, que indicava uma pobreza de associações subjetivas, limitações das capacidades simbólicas e carência de elaboração fantasística e produção onírica. Sua fala mostrava-se voltada aos acontecimentos diários, semelhante à aderência ao imaginário existente nos FPS. As tentativas de historicizar o discurso ou apontar para algum enigma que causasse um estranhamento e uma possível demanda recebiam como respostas: "não sei", "não lembro não", e "não consigo pensar em nada não".
Ainda que existisse uma dificuldade associativa presente, com o tempo percebeu-se que o maior desafio residia no fato de que ela resistia em saber de suas questões, existindo uma recusa ao tratamento, como colocado por ela: "Eu não quero pensar em nada disso, lembrar pra quê? Quero pensar que tenho uma vida normal." Sobre as faltas constantes1 aos atendimentos, ela diz: "Eu sei que preciso vir, mas quando falo eu volto lá atrás, e é difícil… eu não quero." Pode-se pensar que nesse período sua presença nos atendimentos visava a cumprir a recomendação do psiquiatra, como se comparecer à psicoterapia fosse submeter-se a mais um dos procedimentos ofertados pela medicina: "Eu disse para o psiquiatra que estava vindo na terapia sim, mas que não estava tendo resultado (…) daí ele perguntou se eu tava faltando muito (risada). Eu disse que não."
Em estudo sobre a condução clínica no caso do fenômeno psicossomático, Rinaldi et al. (2013) trazem experiências de análise e levantam vários aspectos sobre os pacientes com FPS no que diz respeito aos obstáculos ao trabalho analítico. Tais desafios também puderam ser observados nas mulheres com fibromialgia entrevistadas.
O primeiro deles seria a fixação do sujeito ao diagnóstico médico e a aposta de que a medicina pode fornecer uma resposta para o seu mal (ainda que as participantes tenham relatado por vezes a ineficácia dos tratamentos): "Preciso de um tratamento, de um acompanhamento, psicólogo, eu preciso do neuro, eu preciso do psiquiatra" e "Eu vou no médico buscando a cura, é tudo que eu quero" (Vera). Embora exista uma identificação com o diagnóstico como resposta aos sintomas antes não explicados pela medicina, percebe-se uma resistência em apreender a fibromialgia como doença ligada a aspectos psicológicos ou etiologicamente relacionada à própria história de vida: "Não sei se tem relação com o emocional igual dizem" (Vera). Assim como nos pacientes com FPS, na fibromialgia parece que "o sujeito não faz, de início, um estranhamento daquilo de que padece, e, por isso mesmo, não se indaga sobre algo que tocaria o inexplicável, de modo a endereçar uma demanda ao analista" (Rinaldi et al., 2013, p. 98).
As histórias trazidas pelas participantes são marcadas por eventos narrados como potencialmente traumáticos (abuso sexual, violência doméstica, internações hospitalares com procedimentos invasivos), e esses eventos frequentemente estão ligados cronologicamente ao surgimento das dores; todavia, nenhuma associação é feita por elas em relação a isso. Como exemplo, cabe citar Lúcia, que afirmou não ter passado por nenhuma dificuldade na época do aparecimento da fibromialgia, para somente depois recordar que no mesmo ano sofreu um aborto. A retirada do útero, logo em seguida, encerrou a possibilidade de gerar a tão sonhada "menina-mulher" que, para ela, seria sua fiel "companheira": "Meu sonho sempre foi ter uma menininha-mulher. Quando eu descobri que era menina-mulher eu fiquei toda eufórica. Então eu achei muito bom. Aí quando eu perdi, perdi ela… então eu senti muito assim… senti muita… senti… impotente, sabe assim?" Esses eventos não são apresentados inter-relacionados, e sim como contingências isoladas que, quando recordadas, surgem desprovidas de investimento afetivo.
Tal particularidade é frequentemente relatada nos casos de FPS, nos quais, ainda que a narrativa tenha todos os elementos necessários para constituir-se como um mito neurótico, não existem associações que confiram de fato essa construção: trata-se de uma amarração que parece fazer cadeia, entretanto não remete um significante ao outro (Rinaldi et al., 2013). Na entrevista de Lúcia, ela traz uma série de relatos referentes a adoecimento e dor sem estabelecer qualquer encadeamento entre eles: a queda de uma escada como primeira memória da infância, que culminou em vários ferimentos; internações hospitalares quando criança devido à hemofilia; sentir dores nas juntas e não poder brincar por ser considerada uma criança adoecida (hemofílica); o cuidado excessivo dos pais devido à doença; o aborto; a retirada do útero; o aparecimento da fibromialgia; o cuidado excessivo do marido.
Essa ausência da função significante como tal no caso dos FPS foi tematizada por Lacan (1964/2008), de maneira escassa, ao longo de seu ensino. O psicanalista francês realizou colocações pontuais a respeito de tais fenômenos e não dedicou qualquer trabalho exclusivamente a tal temática (Fernandes et al., 2015). É possível pensar as elaborações lacanianas para o campo da psicossomática em três direções: a dimensão narcísica, a dimensão do significante e a dimensão do gozo (Rinaldi et al., 2013). Interessa-nos aqui a dimensão do significante, a partir da qual podemos trabalhar por meio do conceito de holófrase, com a devida ressalva de que o termo se aplica ao campo da psicossomática, do qual, ainda que estabeleça semelhanças, a dor crônica não faz parte.
O termo holófrase indica os casos (autismo, psicose, debilidade e FPS) nos quais há uma gelificação dos significantes primordiais S1 e S2. Ou seja, o primeiro par de significantes se holofraseia e como resultado não há intervalo na cadeia significante (Vorcaro, 1999). Uma vez que o significante S2, que representaria o sujeito para o significante S1, aparece de forma singular, o mecanismo de holófrase implica um ataque à metáfora subjetiva, não ocorrendo a afânise, tampouco a queda do objeto a (Drumond, 2016). Como consequência, há uma falha na operação de separação e o sujeito fica à mercê do desejo inquestionável do Outro (Drumond, 2016).
Jean Guir (1988) expõe consequências clínicas implicadas nesse congelamento dos significantes primordiais ao discutir a holófrase no caso específico dos fenômenos psicossomáticos. Uma delas é o mencionado não estabelecimento da cadeia associativa. Além disso, devido à holófrase, a operação transferencial nos pacientes com FPS é particularmente difícil. A abertura para o desejo do Outro é precária. Dessa maneira, existe uma dificuldade de instauração da transferência, posto que o analista encarna o objeto a.
Essa mesma dificuldade no estabelecimento da transferência pôde ser observada nos relatos das participantes sobre a realização de psicoterapia: "Eu parei porque não quis vir mais, (…) mas as menina (estagiárias) foi muito boa pra mim, conversou comigo muito, uma educação. Essa última que me atendeu agora, nem lembro o nome dela…" (Vera). De maneira semelhante, Regina diz que no início dos atendimentos foi muito difícil falar: "Era muito ruim. Eu pensava: pra que eu vou falar das minhas coisas pra um estranho? Não tem porquê." Ao que parece, destituído de seu lugar, o analista acaba na posição de espectador da descrição dos tratamentos e do sofrimento corporal que constituem grande parte do que foi verbalizado nas entrevistas.
Rinaldi et al. (2013), por sua vez, apontam que, nos atendimentos de sujeitos com FPS, existe a dificuldade de abrir espaço para dialetizações no que diz respeito à doença. Ao que tudo indica, seus corpos estão à mercê da medicina e de seus procedimentos, e não há implicação do sujeito nas lesões que carrega. No caso da fibromialgia, as participantes relataram estarem "acostumadas" à dor crônica. A fibromialgia é retratada como algo "externo", que está forçosamente inserido em sua convivência diária. Duas das entrevistadas chegam a descrevê-la uma como amiga e outra como um monstro: "Não… hoje eu já falo que ela é minha amiga (…) Ela tá comigo né? Tá sempre comigo, nas horas boas, nas horas ruins, tá sempre comigo" (Lúcia) e "A gente sentir dores vinte e quatro horas por dia… então eu vejo mesmo a fibromialgia como se ela fosse um monstro" (Márcia).
No lugar de um enigma que possa dizer algo a respeito de alguma questão subjetiva, a fibromialgia é relatada pelas participantes como um outro, estabelecendo outra semelhança com os FPS: diferente do sintoma neurótico, que funciona como defesa frente ao desejo do Outro, as lesões que ocorrem nos FPS surgiriam diante de imperativos superegoicos do Outro em um corpo condicionado e sem defesa (Fernandes et al., 2015). Há no FPS um contorno do Outro do significante, e observa-se que o corpo é tomado como Outro.
Assim, observou-se neste estudo que as pacientes com fibromialgia por vezes apresentam um funcionamento semelhante ao que é visto nos sujeitos com fenômenos psicossomáticos. Os desafios no manejo evidenciados no caso dos FPS implicam diretamente a dificuldade de construção de uma demanda subjetiva e a necessidade de realização de manobras clínicas durante o período inicial de atendimento, numa tentativa de furar o discurso científico, fazer com que a angústia entre em cena e que alguma questão possa ser endereçada ao analista. Foram observadas dificuldades similares nas entrevistas. Ainda que as formulações teóricas desenvolvidas no campo da psicossomática psicanalítica não possam ser transpostas aos casos de fibromialgia com estatuto de equivalência, é possível observar que tal aproximação, embora complexa, é significativa no que se refere à questão da demanda.
O sujeito entre o discurso científico e a dor
A reprodução do discurso médico, aqui considerado como um dos efeitos do discurso científico, apresentou grande destaque na fala das participantes entrevistadas, o que anuncia o grande impacto que o saber da medicina e os profissionais que dele utilizam causam em suas rotinas e subjetividade. Assim, cabe discutir quais os efeitos da possível aderência a esse discurso, bem como sobre seus impactos na formulação da demanda e no trabalho analítico. Tais questões serão abordadas com base na teoria lacaniana dos discursos.
Lacan (1969-1970/1992) traz os discursos como formas de estruturação do laço social. Forjado na linguagem, o discurso garante um locus social ao sujeito a partir do qual ele pode se reconhecer como integrado ao liame social. Assim, o discurso serve ao impossível, a saber, balizar o mal-estar inerente à falta introduzida pela linguagem. Dessa forma, os discursos são modos pelos quais a linguagem ordena o gozo, e são inevitavelmente marcados por um ponto de fracasso: uma barreira de gozo, visto que este não pode ser dominado.
Destarte, no seminário O avesso da psicanálise (1969-1970/1992), Lacan formaliza os quatro discursos, qual sejam: mestre, universitário, histérica e analítico, sob a forma de matemas (Figura 1). Cada um deles é elaborado a partir de quatro elementos: o S1 (significante-mestre), o S2 (saber), o (sujeito dividido) e o objeto a (mais-de-gozar). Eles são dispostos em quatro lugares, respectivamente: agente, verdade, outro e produção. O aparelho discursivo é colocado em movimento no sentido horário, "por meio de um agente que se dirige a um outro para que o mesmo trabalhe tendo por finalidade a produção" (Castro, 2015).
Ramos e Nicolau (2013) sugerem que a medicina opera do lugar do discurso do mestre (Figura 2), no qual o significante mestre está no lugar de agente e assim acaba por submeter o outro a seu discurso. Isso porque, diferentemente da psicanálise, as políticas de saúde são regidas pela ética do cuidado e operam com um saber constituído, no qual a palavra categórica do médico que detém esse saber sobre o adoecimento coloca aquele que sofre como depositário das práticas e técnicas desenvolvidas. O sujeito acaba reduzido a uma doença e uma série de sintomas. Com isso, espera-se que o paciente siga as recomendações de tratamento apresentadas, para que o sintoma seja eliminado e a maquinaria biológica volte a funcionar apropriadamente. Ao operar, tal modalidade subtrai da escuta clínica a singularidade subjetiva.
Nesse caso, como trazido por Scheid (2016), trata-se de um discurso marcado pela mestria, autoridade, ordem e comandos verbalizados pelos médicos. Sob essa perspectiva, tem-se nas entrevistas uma longa série de ordens e comandos médicos destinados a fazer com que o outro produza/funcione, no caso as pacientes com fibromialgia: "É o que eles falam, eu tenho que fazer uma atividade física pra ajudar" (Sandra); "Ele disse: Não! Você precisa (de psicoterapia)" (Regina); e "Disse que eu teria que, primeira coisa, partir pra uma terapia" (Márcia).
Nesse contexto, a realização da psicoterapia coloca-se como uma das principais recomendações/ordens impostas, não só pelos médicos, mas pelos demais profissionais que atendem essas pacientes e que também se alocam em tal discurso: "O fisioterapeuta perguntou (…) tá fazendo tratamento com psicólogo?" (Sandra). No entanto, constatou-se que as entrevistadas não sabem por que esse acompanhamento é indicado para elas, tal como no relato de Vera: "Não sei o porquê. Isso eu não vou saber te falar." As tentativas de fazer com que algo surja além do "não sei" suscitaram falas que reproduziram as explicações médicas a respeito da correlação entre fatores psíquicos e o surgimento das dores. Tais esclarecimentos sobre a necessidade do atendimento psicológico ora são assimilados por elas superficialmente: "Ah! Pode ser por que… igual te falei pode estar ligado ao psicológico, né? Talvez…" (Sandra), ora são interpretados como se os médicos estivessem se isentando do tratamento: "Ele (o médico) disse que é impossível sentir dor com o tanto de remédio que eu tomo. Que vou acabar com meus rins desse jeito. O que tinha para me passar ele já me passou… Agora é psiquiatra e terapia" (Regina). Nota-se que, depois de prescrita a medicação, a psicoterapia entra em cena como forma de auxiliar na diminuição dos sintomas (ansiedade e depressão) e oferecer escuta às queixas frequentes.
Nesse contexto, é possível observar a mencionada dificuldade de apreensão da fibromialgia como algo concernente ao psíquico, como é evidenciado por Regina. Em uma sessão, conta estar com muita dor no rosto e nos dentes, devido ao bruxismo: "Aparece em pessoas tensas. Dizem que tem fundo emocional né?" Questionada sobre isso, afirma não acreditar de fato nessa relação: "Não acredito nisso não. Eu repito porque os médicos falam muito."
Dupim (2014) também relata que, em sua prática clínica com casos de dor crônica, notou que o médico frequentemente encarna o discurso do mestre, portando um saber autoritário, a priori, sobre o sujeito: "Me falou que é isso, vou estar sempre em tratamento" (Sandra). No caso de Regina, o psiquiatra chega a localizar e apresentar os eventos em sua vida que culminaram no surgimento das dores: "Ele foca muito no suicídio do meu pai né? No tumor que eu tive também."
Ao que parece, em vez de sensibilizar e instigar as pacientes a pensar sobre a etiologia da doença, tal postura discursiva acaba por ser determinista e não abre espaço para que o sujeito se interesse em descobrir por si próprio as causas de seu sofrimento. Essas explicações deterministas sobre uma possível causa psicológica para as dores não instigam as pacientes a pensar sobre a etiologia da doença. Ao que parece, atuam apenas oferecendo respaldo às ordens referentes ao tratamento psicológico (medicação e psicoterapia). No discurso da mestria, só há espaço para a ordem do comando. Assim, não se abrem possibilidades para que o sujeito produza nada a respeito de seu sofrimento. Além disso, frequentemente essas colocações são sentidas pelas pacientes com um caráter de culpabilização, como se as dores fossem algo "da sua cabeça", uma mera invenção, e que pudessem ser controladas com "força de vontade": "Eu tento controlar, mas eu não consigo" e "Ele falou como se eu tivesse inventando" (Vera). Isso foi observado principalmente nas entrevistas em que foram mencionados questionamentos dos médicos quanto à veracidade dos sintomas, e o psicólogo foi descrito como um "último recurso". É necessário colocar que o psicólogo (dependendo da orientação teórica e de sua prática) também pode utilizar tal discurso, como foi relatado por Sandra: "Ela (psicóloga) me explicou que são pós-traumas que fica com a gente, que pode vir de criança, que vão acumulando e se tornam dores que se espalham pelo corpo."
Para a medicina, alocada na posição de discurso de mestria, a dor como sintoma representa uma falha a ser reparada por meio do uso desse saber constituído sobre a doença, diferente da psicanálise que, com o discurso do analista (Figura 2), opera com um saber que inclui a falha e atribui ao sintoma a verdade do sujeito (Dupim, 2014). Nesse contexto, fica demarcado que, ao chegar à psicoterapia, essas pacientes estão habituadas a um discurso que se opõe ao discurso do analista, que por sua vez opera interpelando o sujeito a atingir o significante mestre como produção. Ao se depararem com o "convite" a produzir sua própria verdade, seus próprios S1, continuam esperando que essa seja entregue pelo psicoterapeuta: "O que que tem a ver com dor (psicoterapia)? Ah! Não sei, eu acho que você vai poder me explicar" (Regina).
Sob uma perspectiva distinta, Castro e Rinaldi (2017), ao discutirem o caso de um paciente psicossomático, trabalham com o discurso universitário para pensar a posição do sujeito nesses casos. No discurso universitário (Figura 2), o paciente estaria na posição de objeto a, que está no lugar do outro. Já o doutor estaria posicionado como saber (lugar de agente), e o significante mestre como verdade. A reabilitação está localizada no lugar da produção, onde se tem como resultado "não necessariamente o indivíduo recuperado" (Castro & Rinaldi, 2017, p. 270), mas o sujeito dividido em uma lógica que não mantém relação alguma com a verdade. É também o caso da fibromialgia, que se insere em uma lógica na qual se almeja o reestabelecimento da saúde física das pacientes, enquanto a psicoterapia fica destinada apenas a controlar os sintomas de ansiedade e depressão.
As participantes chegaram à clínica com uma grande dificuldade em formular alguma questão diferente do que foi previamente colocado pela medicina acerca de sua condição: "O médico falou disso (…) eles sabem o que eles falam pra gente" (Lúcia). Inseridas no discurso universitário, sua existência acaba reduzida e determinada pela ciência. Nesse discurso se instaura a tirania do "tudo" saber, que opera como um empuxo normatizador e tem como produto um sujeito objetificado e com sua verdade excluída.
As narrativas se referem a um corpo objeto da medicina, que é submetido a uma infinidade de procedimentos e tratamentos. Fisioterapia, psicoterapia, alongamentos, hidroginástica, acupuntura: "Tudo que eles pediram pra fazer eu fiz" (Lúcia). Observa-se então uma obediência às recomendações médicas e uma presença constante nas consultas. Os tratamentos que visam unicamente à remissão dos sintomas e à readaptação podem vir a tamponar o que é do inconsciente. Quando questionada: "O que você pensa disso que ele (reumatologista) fala?", Lúcia responde que: "Ah… tipo assim… eu acredito, né? Porque ele é médico, então ele sabe melhor do que eu." De maneira semelhante, Regina coloca que não sabe ou busca saber nada sobre medicação ou diagnósticos: "Nem tenho que saber… quem sabe disso é o médico. Eu só sigo."
Perante o exposto, pode-se concluir que, enquanto a psicanálise atribui o sintoma à verdade do sujeito, a noção de sintoma que opera pelo discurso médico faz silenciar a subjetividade. As participantes demonstram localizar-se no laço social a partir da posição do outro (objeto) no discurso do mestre, encarnado pela figura do médico e sua práxis. Dessa maneira, tem sua singularidade excluída e apresentam dificuldades em articular um saber acerca do próprio sofrimento. Quando pensado o laço do discurso universitário, sua existência é reduzida ao saber da ciência sobre a doença e sua verdade elidida. Os efeitos desses discursos presentes nos contextos de atendimento em saúde no caso da fibromialgia acabam por dificultar ao sujeito o acesso à sua verdade, o que pode aparecer na clínica como dificuldade na elaboração da demanda.
Considerações finais
Toda dor pode ser suportada, se você puder colocá-la
em uma história; ou contar uma história sobre ela.
(Blixen, 1957)
Apesar de todos os desafios etiológicos e clínicos impostos pela fibromialgia, os pesquisadores que trabalham com psicanálise não recuam diante desses pacientes e trazem várias contribuições no que concerne a essa forma de sofrimento, visto a grande variabilidade de articulações teórico-clínicas possíveis para sua investigação e tratamento. No entanto, o baixo engajamento no trabalho clínico e a dificuldade na formulação de uma demanda subjetiva colocam-se como entraves ao avanço das elaborações a respeito da fibromialgia. Além disso, fazem com que esses sujeitos distanciem-se dessa possibilidade de atendimento que propõe a escuta do que é singular em detrimento do olhar da medicina sobre um corpo objetificado.
A aposta na capacidade do sujeito em dizer de si mesmo e do que lhe acontece, e assim encontrar suas próprias soluções subjetivas, permite que a dor possa falar e assim deslocar-se da carne à palavra. Entretanto, a dificuldade dos pacientes em apreender a dor crônica como algo que diz de si mesmo, o rechaço simbólico e as dificuldades de dialetização da doença, bem como a adesão ao discurso científico observados nos casos de fibromialgia, atuam dificultando a elaboração da demanda e, por consequência, o trabalho analítico.
A interface entre psicanálise e dor crônica implica uma grande pluralidade e complexidade, que exige cuidado na atuação clínica. Dessa forma, cabe dizer que os eixos teóricos desenvolvidos a partir deste trabalho não conseguem abranger a totalidade da discussão acerca dos impasses da demanda nesses casos, nem tampouco se propõem a isso. Ainda assim, a apresentação e discussão de dificuldades de manejo comuns a esse sofrimento, que resiste em inscrever-se no campo da palavra, podem contribuir para esse terreno desafiador que é a dor crônica.
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Recebido em 20 de outubro de 2020
Aceito para publicação em 02 de junho de 2021
Não se declararam fontes de financiamento.
1 A paciente foi desligada da clínica-escola devido às faltas constantes aos atendimentos. Desde o início, demonstrava dificuldade em comparecer à clínica pelo menos uma vez na semana. Tal situação foi observada de forma frequente nas pacientes com fibromialgia que faziam acompanhamento no serviço.