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Nova Perspectiva Sistêmica
versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.30 no.69 São Paulo jan./abr. 2021
FAMÍLIA E COMUNIDADE EM FOCO
A única constante é a mudança
IInstituto Sistemas Humanos, São Paulo/SP, Brasil.
Na seção Família e Comunidade em Foco desta edição, trazemos o depoimento de uma terapeuta de família sobre os impactos da pandemia em suas vivências familiares e comunitárias. Apesar de ser um relato pessoal, a autora nos traz perguntas reflexivas que podem nos auxiliar e nos provocar a pensar nossas relações com o contexto atual e nas transformações vividas no último ano. Considerando nossos posicionamentos e privilégios, nossas diferenças e os sentidos e significados diversos que temos produzido com tudo que foi vivido em um ano marcado pela pandemia, que desafios e que aprendizados marcam nossas trajetórias e passos para o futuro? Como incorporar estas reflexões em nosso trabalho clínico, sem deslegitimar a vivência dos outros, a diferença e a diversidade, diante tanta desigualdade e privilégios diferenciados? Que estratégias ou que ganhos temos dito, além de tantas perdas? Vivenciamos um momento único que exige novos paradigmas, atentos à complexidade e às interconexões das vivências humanas, agora tão marcadas pelas tecnologias e virtualidade. Sigamos então com o convite de Denise à reflexividade nas próximas linhas desta Seção.
Equipe Editorial NPS
Privilégios
Do alto do meu lugar de privilégios, observo a pandemia. O que pode me acontecer de pior? Ser infectada, ser acompanhada pelos melhores médicos, se necessário, ser internada no melhor hospital da América Latina e, se morrer, ter uma morte sedada e assistida, sem dor e sem sentir o incômodo da falta de ar? Morreria sozinha, mas isso é um pleonasmo. Não é assim que todos vamos para o céu?
A essa altura, já tomei a primeira dose da vacina e vejo o número de mortos por covid aumentar a cada dia.
Não perdi meu emprego, não perdi poder aquisitivo, me adaptei rapidamente às novas exigências do mercado e às novas tecnologias que se apresentaram como recursos novos para uma situação nova.
Meu maior privilégio é poder contar com uma rede formada por uma família extensa, unida e próspera, com amigos de longa data bastante solidários e próximos a mim, com colegas também solidários e colaborativos. Da minha rede fazem parte, ainda, meus pacientes e alunos, que sempre se mostraram solidários e receptivos às mudanças necessárias, e que aceitaram em unanimidade passar a receber seus atendimentos e aulas via internet.
Assim, diferente da maior parte da população do Brasil e do mundo, caso uma situação de emergência me deixe em situação vulnerável, como aconteceu durante a pandemia em alguns episódios pessoais, tenho esse grande amortecedor, formado por tantos braços acolhedores!
Quem não tem com quem contar conta com a ajuda de quem?
A pandemia nos conduziu para dentro de nós. Quanta coisa descobrimos dentro! Como estávamos vivendo? Como desejamos viver daqui para frente? O que já não nos serve mais e vínhamos carregando, sem pensar? O que escolhemos levar conosco daqui para frente?
Na minha vida, tudo mudou. Fechei minha clínica em março de 2020, logo no início da pandemia, e passei a trabalhar em casa. Com isso, incrementei a convivência com meus filhos, passei a ter mais tempo disponível e com mais qualidade. Passei a atender e a dar aulas on-line, fiz cursos que jamais imaginara para me adaptar às novas exigências tecnológicas que passaram a envolver o meu trabalho. Algumas pessoas ficaram para trás, algumas pessoas entraram na minha vida para ficar. Insolitamente, entraram pelos caminhos da rede internáutica que eu construí para que nos encontrássemos.
Tenho participado desde menina de trabalhos voluntários de assistência. Ainda no ginásio, participei de atividades de ensino e recreação junto a crianças de um orfanato próximo à praça Roosevelt. Meu primeiro trabalho de escuta aconteceu no primeiro colegial, atual primeiro ano do ensino médio. Eu fazia a escuta das mães de uma creche no bairro do Bexiga, acompanhando a diretora da creche. Lá eu comecei a fazer um giro no meu olhar de menina cercada de privilégios ao conhecer mães responsáveis, cuja profissão era a prostituição, preocupadas com a qualidade dos cuidados com seus filhos, e que sofriam por ter que trabalhar muito e ter pouco tempo para estar com eles. Foi ali que reconheci pela primeira vez meus preconceitos e pude conversar com eles.
Muitas foram as ocasiões para estar em contato com o sofrimento humano ao longo da minha vida de aprendizados e trabalho. Tive experiências arrebatadoras ao participar de missões humanitárias em situações tais como enchentes avassaladoras (Rio Casca), queda de barragem (Brumadinho), pessoas refugiadas em decorrência de séria crise política em seu país (refugiados venezuelanos em Roraima).
Estive perto de pessoas que perderam tudo, que perderam seus amados, que não tinham para onde ir e sequer para onde voltar, que estavam doentes, famintas e sem trabalho, estando eu no papel de acolher suas dores e buscar dar apoio às suas necessidades atuais, muitas vezes sem ter recursos para isso.
Essas situações se assemelham à forma como muitas pessoas estão enfrentando a pandemia. Estamos isolados, sem ter para onde ir, sem ter como voltar ao modo de vida que tínhamos antes. É preciso ressaltar que as soluções precisam ser buscadas nas políticas públicas e nas ações governamentais. Ainda assim, cada um de nós pode fazer parte das soluções.
O insperado revelou o que se ocultava
O que se passou em 2020 foi mais uma grande calamidade, desta vez atingindo de um golpe todas as nações, sem excluir ninguém, clamando por solidariedade, lembrando que somos uma unidade.
Recordo as primeiras visões da pandemia, mostrando chineses que caíam mortos de uma hora para outra. Logo soubemos que o vírus não agia desse modo, mas as imagens eram assustadoras. Revelavam que algo desconhecido, ameaçador, invisível e letal logo, logo, estaria espalhado pelos quatro cantos da Terra.
A chegada da Covid 19 superou qualquer possibilidade de previsão e cada país se organizou como pôde, segundo a capacidade de gestão da pandemia pelos dirigentes, estando nosso país entre os que pior administraram a crise, com consequências irreparáveis para centenas de milhares de famílias.
Para que serve seguirmos acreditando que temos como prever o que vai nos acontecer, diante de tantas evidências do contrário? Que variáveis precisamos incluir em nossas previsões de futuro que até agora ficaram excluídas?
O que ganhamos e o que perdemos ao desprezarmos nossa capacidade de perceber e pressentir o que se passa com nossos irmãos a cada momento?
Há um número cada vez maior de pessoas vivendo na escassez de alimentos e produtos de primeira necessidade, o que é revelador de uma situação que já estava aí, mas que se mantinha camuflada pela aparente normalidade do cotidiano.
Devemos começar a construir no aqui e no agora as soluções que almejamos para o coletivo. O lamento ‘o que eu deveria ter feito’ ou ‘o que eu faria se as condições fossem outras’ não serve de consolo.
O que nos falta para que possamos assumir a responsabilidade pelas escolhas que fazemos a cada instante, como se a cada escolha déssemos um passo em direção ao futuro com que sonhamos?
Como nos preparamos para enfrentar 2020?
Muitas foram as crises que vivi nesses 55 anos de vida. Cada uma delas me levou a reinventar-me. Tudo isso me faz perceber o mundo com uma certeza paradoxal: a única constante é a mudança!
Em 2002 vivi a maior crise da minha vida. Vi desmoronar o castelo que construí com amor, sonhos, trabalho, perseverança, cuidado e respeito. O amor entre mim e meu então esposo escorria pelos dedos e já não éramos capazes de desejar dividir os dias na convivência. Tivemos que aprender novos jeitos de viver. Viver separados. Vivemos a dor dessa separação como um mundo que se acabou.
Encontrei pessoas, familiares, amigos e colegas que legitimaram minha dor, que acreditaram em mim, que suportaram me escutar sem zombar ou desqualificar meu sofrimento. Penso que foi possível me fortalecer com esses acontecimentos porque foram seguidos por processos de acolhimento que permitiram a ressignificação, a apropriação e a reconstrução da memória.
Você passou por alguma experiência de acolhimento que sente que te fortaleceu?
2020 talvez fique na memória da história da humanidade como o ano mais surpreendente do século (não sabemos o que há por vir...), pois um vírus de natureza complexa, instável e subjetiva (cada pessoa reage ao vírus de forma única e imprevisível) desafiou de um modo novo o já conhecido, exigindo ampliarmos nossa consciência para alcançar a solução. O ano que parou o mundo em uníssono. O ano que uniu o mundo todo sob o perigo iminente da morte, que anda solta pelas ruas, invisível, impalpável, desconhecido ainda.
O século passado viveu anos de maior obscuridade, com milhões de mortes provocadas, seres humanos sendo mortos por seres humanos. Dessa vez é um vírus que ameaça a todos. Não é primeira vez que a humanidade enfrenta uma pandemia, mas o avanço da medicina nos iludiu no sentido de que tivéssemos uma estrutura assistencial de saúde para todos. Além da crise de saúde, a pandemia se converteu em uma grande crise social e política. O descaso de governantes determinou o alastramento do vírus de forma desordenada e, com isso, um aumento exponencial do número de mortes e de leitos ocupados.
Como nos unir contra o inimigo comum não de forma competitiva, mas de forma solidária, comprometida e responsável é o grande desafio e a única possibilidade de que, o quanto antes, todos estejamos livres desse mal. Ações isoladas e localizadas já se mostraram insuficientes e ineficazes.
Cada um de nós reage a seu modo, a partir de sua própria percepção e condição emocional, psíquica, social e circunstancial. Sabemos que a solidariedade é ficar em casa e tomar cuidado. Manter a higiene, esperar para obter o prazer dos encontros, postergar planos e projetos, usar as reservas de emergência que servem para momentos como esse, evitar transportes públicos, lugares públicos, aglomerações e transitar pelas ruas.
Mas nem todos temos condição financeira e emocional para o trabalho extenuante de higienizar tudo. Nem todos estamos prontos para postergar um prazer, para aguardar um momento mais propício. Poucos de nós conseguem fazer uma reserva de emergência. A maior parte da população vive em aglomerados urbanos, sem condição de higiene e de isolamento social. A violência doméstica faz da rua um lugar seguro de se estar, apesar do risco de contaminação. Grande parte da população tem que se locomover para seu posto de trabalho, sob o risco de perder o emprego. Com o aumento do desemprego, aumentam também as atividades comerciais como de camelôs e mercadores.
Cada um de nós já havia sido surpreendido pela vida. Cada um de nós, sobreviventes dessa grande tragédia mundial, já havia enfrentado suas próprias grandes dores e perdas, acumulado aprendizados que nos ensinaram sobre viver.
Qual foi ou quais foram as grandes dores ou mesmo tragédias pessoais que você atravessou e que contribuíram para você chegar até 2021 como um sobrevivente?
Com que lições o ano que não acabou te prepara para os anos que virão?
Isolamentos sociais e depois
O isolamento social me trouxe de volta para casa. Me trouxe para perto dos meus filhos. Tenho estado muito envolvida com o trabalho, há muitos anos. Há quanto tempo eu não assistia a um filme junto com eles durante a semana, ou jogava baralho! Quantas e quantas conversas tivemos e quanto nos aproximamos! Reaprendi o valor de permanecer em casa e a importância da convivência diária, mesmo com filhos já adultos. Percebi também que posso viver com menos. Me tornei mais consciente dos meus padrões de consumo e decidi transformá-los.
O isolamento social me afastou dos meus pais, irmãos e sobrinhos. De forma radical. Levou muito tempo para aprendermos que podemos, sim, nos ver, com cautela e protegidos.
Nunca saberemos o quanto o isolamento social contribuiu para a piora da saúde do meu pai, que está a cada dia mais ausente, mais esquecido, mais dependente, mais afásico. Como eu queria que ele pudesse aproveitar cada minuto de sua vida minguante! Meu amado pai José. O que me conforta é sentir a unidade e a colaboração entre nós, filhos e netos dele, ao lado de minha mãe, tanto nos cuidados com ele como nos cuidados com cada membro da família. Descobri mais uma vez que grande parte de minha força vem dessa união.
O isolamento social tornou as telas mais importantes na minha vida do que em qualquer outro momento. Passei a falar com amigos, pacientes e alunos por meio das telas, descobrindo o poder das conexões que podem se estabelecer entre os seres humanos de qualquer forma. O poder transformador e acolhedor do amor mesmo a distância.
Em seu poema “José”, publicado pela primeira vez em 1942, durante a segunda guerra mundial, Carlos Drummond de Andrade nos fala sobre viver quando tudo parece já ter sido perdido. E ele faz uma pergunta que teremos que responder: “marchamos. José, para onde?”.
José Saramago responderia com seu conto da Ilha Desconhecida que marchamos para o desconhecido. Os desconhecidos anos após o ano que não chegou ao fim, o desconhecido de si mesmo que emergirá nesse percurso e o desconhecido dos outros, cada um com seu processo de tornar-se si mesmo nos encontros e desencontros que virão.
Seremos mais solidários? Já não somos um planeta com problema de produção de suprimentos. Estaremos dispostos a distribuir os bens de consumo com os que vivem a escassez?
Que mudanças escolheremos fazer em nossas vidas a partir de agora? Aumentaremos ainda mais nossas reservas pessoais para estarmos garantidos frente à grande crise mundial?
Estaremos interessados em fazer parte das soluções, da construção de novos coletivos viáveis, talvez inéditos, ou nos unindo a coletivos já existentes de ajuda solidária?
Essa ilha desconhecida chamada hoje de futuro terá o nome que dermos a ela quando lá estivermos. E daremos o nome que descreverá a maneira como iremos agir para alcançá-la.
Que possamos realizar essa travessia munidos de todos os aprendizados já realizados, abertos ao desconhecido que nos aguarda com uma postura menos individualista e mais fraterna, considerando a todos como irmãos de caminho, travessia, solidão e dor.
Que cada um de nós possa, em 2021, como fizeram o homem e a mulher no conto da ilha desconhecida, escolher navegar à procura de si mesmo. Sem esquecer, no entanto, que navegamos lado a lado, como uma aldeia global, a humanidade inteira.
DENISE MENDES GOMES
Psicóloga, psicoterapeuta, formadora de terapeutas de família e casal no Instituto Sistemas Humanos desde 2000; autora do livro Mitos Familiares: Memória e Ocultação (2000) e coorganizadora do livro Religiosidade e Psicoterapia (2008).
https://orcid.org/0000-0002-0694-4374
E-mail: demegomes@yahoo.com.br