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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.26 no.3 Natal jul./set. 2021

https://doi.org/10.22491/1678-4669.20210026 

10.22491/1678-4669.20210026

PSICOLOGIA SOCIAL DO TRABALHO

 

"Matar o velho homem, nascer de novo": Representações Sociais de homem e masculinidades na Igreja Universal do Reino de Deus

 

"Kill the old man, be born again": social representation of men and construction of masculinities in the Universal Church of the Kingdom of God

 

"Matar al viejo hombre, nacer de nuevo": representaciones sociales del hombre y construcción de masculinidades en la Iglesia Universal del Reino de Dios

 

 

Alberto Mesaque MartinsI; Adriano Roberto Afonso do NascimentoII

IUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul
IIUniversidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Considerando a centralidade da vida religiosa na cultura brasileira e as exigências de mudança impostas pela experiência de conversão, esse estudo tem como objetivo analisar as Representações Sociais de homem construídas e difundidas entre frequentadores da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Na perspectiva da Teoria das Representações Sociais, foram realizadas entrevistas com 12 homens, frequentadores da IURD, com idades entre 19 e 62 anos. As narrativas foram analisadas por meio da Análise Fenomenológica Interpretativa. Os resultados revelam que a experiência de conversão divide a biografia dos sujeitos e, a partir dela, os convertidos se envolvem num intenso processo de reorganização do modo como se percebem e percebem os outros, exigindo uma reconstrução de suas identidades pessoais e sociais, incluindo o modo como exercem suas masculinidades.

Palavras-chaves: masculinidade; religiosidade; psicologia social; representação social.


ABSTRACT

Considering the centrality of religious life in Brazilian culture and the changes demands imposed by the conversion experience, this study aims to analyse the social representations of men constructed and disseminated among members of the Universal Church of the Kingdom of God (UCKG). Based on the perspective of the Social Representations Theory, we interviewed 12 men, members of the UCKG with ages between 19 and 62 years old. The narratives were analysed through Interpretive Phenomenological Analysis. The results reveal that the conversion experience divides the subjects' biography and the converts engage in an intense process of reorganization of the way they perceive themselves and perceive others, demanding a reconstruction of their personal and social identities, including the way they exercise their masculinities.

Keywords: masculinity; religiosity; social psychology; social representation.


RESUMEN

Teniendo en cuenta la centralidad de la vida religiosa en la cultura brasileña y las exigencias de cambios impuestas por la experiencia de conversión, este estudio tiene como objetivo analizar las representaciones sociales del hombre construidas y repartidas entre los fieles de la Iglesia Universal del Reino de Dios (IURD). Desde la perspectiva de la Teoría de las Representaciones Sociales, se realizaron entrevistas con 12 hombres, quienes frecuentaban la IURD, con edades entre 19 y 62 años. Las narrativas fueron analizadas por medio del Análisis Fenomenológico Interpretativo. Los resultados revelan que la experiencia de conversión divide la biografía de los sujetos y, a partir de ella, los convertidos se involucran en un intenso proceso de reorganización del modo en que se perciben a sí mismos y perciben a los demás, exigiendo una reconstrucción de sus identidades personales y sociales, incluyendo el modo en que ejercen sus masculinidades.

Palabras-clave: masculinidad, religiosidad, psicología social, representación social.


 

 

Nas últimas décadas, o cenário religioso brasileiro vem sofrendo importantes transformações, em especial no que se refere ao processo de reconfiguração da sua composição religiosa (Teixeira & Menezes, 2013). Nesse sentido, chama a atenção a redução contínua do número de católicos apostólicos romanos e o crescimento dos evangélicos, principalmente os pertencentes aos movimentos neopentecostais, sendo a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) uma das principais denominações desse seguimento (Mariano, 2014).

Sem desconsiderar a sua potencialidade de conectar os fiéis com uma dimensão transcendente, as religiões também se configuram como espaços de interação e sociabilidade, nos quais circulam crenças, atitudes e valores relacionados a diferentes objetos da vida cotidiana (Collares-da-Rocha & Souza Filho, 2014; Jodelet, 2009; Jodelet, 2013; Martins, 2019; Moscovici, 2011). Por meio dos dogmas e rituais, as instituições religiosas (re)produzem conhecimentos e saberes, socialmente compartilhados, que orientam como os fiéis devem se portar, tanto no que tange à vida religiosa, como também no que se refere à vida secular e cotidiana (Jodelet, 2009; Jodelet, 2013; Martins & Nascimento, 2019; Moscovici, 2011). Segundo Jodelet (2009), "a fé não se faz na solidão" (p. 216), sendo uma ação íntima e singular e, ao mesmo tempo, uma prática social.

Tratando-se do contexto brasileiro, marcado por um grande mercado religioso que oferta aos fiéis uma vasta gama de possibilidades de práticas religiosas, faz-se necessário ampliar a discussão e a compreensão sobre os fenômenos da adesão e da conversão religiosa (Ciscon-Evangelistta & Menandro, 2011; D. Freitas & Holanda, 2014). No âmbito dos estudos sobre as religiões, o termo "conversão religiosa" tem sido utilizado tanto para designar o ingresso em uma nova religião, como também para compreender um processo de mudança que inclui transformações nas identidades e nos processos de subjetivação (D. Freitas & Holanda, 2014). Tal caracterização indica que ela pode ser um importante objeto para análise em Psicologia Social (Jodelet, 2009; Jodelet, 2013; Moscovici, 2011).

Para Jodelet (2013), a vida religiosa é "plena de crenças, regida por dogmas, estruturada por rituais, expressa em práticas privadas e coletivas" (p. 91), sendo considerada como um espaço profícuo para a produção e difusão de Representações Sociais, definidas pela autora como "uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social" (Jodelet, 2001, p. 22).

Segundo Moscovici (2003), as representações sociais são construídas por meio de dois processos. No primeiro, denominado ancoragem, os sujeitos buscam nos seus conhecimentos anteriores e experiências prévias subsídios que os auxiliam a compreender e a se posicionar frente ao fenômeno que causa estranhamento. No segundo, denominado objetivação, os sujeitos transformam seus modos de pensar em uma imagem, quase concreta, capaz de dar materialidade ao objeto das representações sociais.

De acordo com Jodelet (2013), a Teoria das Representações Sociais pode fornecer importantes subsídios para compreensão de fenômenos que compõem o campo religioso e a vida religiosa, uma vez que a religiosidade ocupa um lugar central na organização das práticas em sociedade, como também das concepções, valores e representações. Nesse sentido, a TRS oferece um arcabouço teórico e metodológico capaz de auxiliar os pesquisadores em campos ainda pouco explorados na Psicologia Social (Jodelet, 2013; Moscovici, 2011).

Nessa perspectiva, no campo religioso são construídas e difundidas teorias do senso comum que orientam os fiéis na busca por respostas que os auxiliem na compreensão de questões existenciais, como, por exemplo, a origem da vida e o significado da morte. Essas mesmas teorias auxiliam os sujeitos na interação com as outras pessoas e na busca por soluções para desafios cotidianos (Jodelet, 2009; Jodelet, 2013; Moscovici, 2011).

Nessa vertente, analisando as representações sociais de pecado para jovens católicos, evangélicos e sem religião, Collares-da-Rocha e Souza Filho (2014), por exemplo, identificaram a influência da afiliação religiosa na construção dos modos de pensar sobre esse tema. Segundo os autores, enquanto os jovens católicos e evangélicos representam o pecado por meio de aspectos mais prescritivos da moral, principalmente no que se refere às condutas interpessoais e com as entidades religiosas, aos valores éticos e aos juízos de valor, os jovens sem religião relacionam a ideia de pecado aos crimes comuns e ao desvio de normas e regras sociais gerais (Collares-da-Rocha & Souza Filho, 2014). Em outra pesquisa, analisando a experiência de brasileiros vinculados a igrejas pentecostais, Pacheco, Silva, e Ribeiro (2007) evidenciaram que a conversão produz a aquisição de novos grupos de referência, gerando mudanças no autoconceito e a necessidade de reconstrução das identidades pessoais e sociais. Segundo os autores, "o grande milagre pentecostal é propiciado pela introdução de vidas fragmentadas no interior de uma comunidade que recoloca as histórias pessoais na perspectiva de novas identidades" (p. 57). Desse modo, os fiéis passam a fazer parte de um novo grupo, considerado, frequentemente, como uma nova família que os auxilia nos aspectos da vida religiosa e atua como uma importante rede social e comunitária, dando suporte para a vida diária (Pacheco et al., 2007).

Ciscon-Evangelista e Menandro (2011) ressaltam que a experiência de conversão neopentecostal insere os sujeitos em novos grupos de referência, pressionando-os a transformar os seus modos de compreender a si mesmos, aos outros e ao contexto no qual se encontram inseridos. Ainda segundo os autores, a inserção dos fiéis no novo grupo religioso exige uma transformação das suas identidades pessoais e sociais, bem como uma adequação dos seus modos de pensar, sentir e agir às normas e aos valores grupais (Ciscon-Evangelista & Menandro, 2011).

Vale ressaltar que, além de orientarem os sujeitos frente às demandas do cotidiano, as Representações Sociais também os auxiliam nos processos de construção identitária, uma vez que a noção de identidade social abarca em si a ideia de representação, integrando elementos cognitivos, afetivos e sociais (Desschamps & Moliner, 2008; Jodelet, 2001; Martins & Nascimento, 2019). Nessa perspectiva, a identidade, enquanto fenômeno psicossocial, é composta pelos conhecimentos do indivíduo sobre si mesmo, bem como sobre os grupos com os quais o sujeito se reconhece, se identifica e se diferencia no processo de interação social (Desschamps & Moliner, 2008).

Assim, por meio de um processo de coerção social, e visando atender às prescrições impostas pelo novo grupo de referência, após a conversão, os fiéis são pressionados a construírem novos modos de pensar e agir sobre diferentes objetos do cotidiano, assim como, a produzirem novos modos de compreensão de si mesmos, inclusive no que se refere às questões de gênero (Dollinger, 2018; Jodelet, 2013; Martins, 2019). Essas últimas são aqui entendidas como parte de um complexo processo sócio-histórico e cultural onde as diferenças sexuais são transformadas em desigualdades sociais e legitimam, por exemplo, a violência dos homens sobre as mulheres e sobre outros homens (Martins, 2019).

Diferentes estudos apontam para a importância das crenças e práticas religiosas para a (re)produção de concepções sobre as masculinidades, revelando que essas instituições contribuem para a produção e difusão de representações e normas que orientam os fiéis no exercício de suas masculinidades (Agüero, 2007; Burchardt, 2017; Castro, 2018; Cavalcante & Pinezi, 2014; Dollinger, 2018; Eves, 2016; Machado, 2014; Martins, 2019; Martins & Nascimento, 2019; Masken, 2015; Mello, 2011). Analisando a construção identitária de rapazes evangélicos neopentecostais e espíritas kardecistas, Cavalcante e Pinezi (2014) destacam que o grupo religioso, em ambos os contextos, contribui para um novo modo de categorização de mundo, a partir das ideias de santo e profano, exigindo dos sujeitos uma nova maneira de pensar e agir, bem como uma negociação da sua masculinidade com sua identidade religiosa, buscando sustentar sua identidade social. Além disso, em ambos os grupos, foi possível perceber uma visão de gênero pautada na biologia, com a naturalização das diferenças entre os sexos e a superioridade dos homens sobre as mulheres, revelando marcas do processo de construção social das masculinidades (Castro, 2018; Cavalcante & Pinezi, 2014; Connel & Messerschmidt, 2013; Martins, 2019).

É preciso reconhecer que os modos de ser homem são múltiplos e sofrem variações relacionadas às épocas e ao contexto no qual esses sujeitos encontram-se inseridos (Connel & Messerschmidt, 2013). Apesar da diversidade de possibilidades de compreensão e exercício das masculinidades, Connel e Messerschimidt (2013) destacam a importância de se considerar a existência e predominância de um padrão, denominado modelo de masculinidade hegemônica. Trata-se de um padrão de práticas idealizadas e desenvolvidas por homens cotidianamente, bem como uma diversidade de expectativas sociais que determinam o que é esperado de um "homem de verdade", em detrimento de outros modos de vivenciar as masculinidades (Connel & Messerschmidt, 2013).

Assim, durante o processo de socialização e no âmbito das interações sociais, diferentes atores e instituições operam com o objetivo de levar os homens a incorporarem os padrões, ideais e expectativas acerca da virilidade. Nesse contexto, destacamos as instituições religiosas que também exercem influência nos modos de pensar, sentir e agir dos fiéis sobre diferentes aspectos de suas vidas (Costa, 2015; Eves, 2016; S. Freitas, 2017; Martins & Nascimento, 2019; Masken, 2015; Mello, 2011).

Nessa perspectiva, estudos apontam para a importância das igrejas neopentecostais, como a IURD, enquanto espaços de socialização que (re)produzem normas e concepções acerca de como esses sujeitos devem vivenciar suas masculinidades (Burchardt, 2017; Castro, 2018; Costa, 2015; S. Freitas, 2017; Martins & Nascimento, 2019; Mello, 2011). A partir de interpretações literais dos textos sagrados, os fiéis passam a conceber a masculinidade como natural, divina e superior à feminilidade (Costa, 2017; S. Freitas, 2017; Martins, 2019). Além disso, os homens são representados como chefes de suas famílias, provedores e naturalmente empreendedores, contribuindo para que as desigualdades de gênero sejam percebidas como naturalmente e divinamente determinadas (Burchardt, 2017; Castro, 2018; Dollinger, 2018; Eves, 2016; Martins, 2019; Mello, 2011).

Por outro lado, há estudos que destacam que a conversão religiosa também exige dos homens uma nova organização dos modos de pensar acerca das relações de gênero, em especial sobre os sentidos de ser homem e como exercer a sua masculinidade (Burchardt, 2017; Dollinger, 2018; Eves, 2016; Martins & Nascimento, 2019). Investigando a construção de masculinidades no pentecostalismo chileno, Agüero (2007) desataca que, após a conversão religiosa, os homens são pressionados a romper com o estilo de vida anterior e a construir um novo modo de perceber e exercitar suas masculinidades, abandonando o consumo de álcool e outras drogas, a violência física, as práticas sexuais fora do casamento e passando a dedicar maior tempo a sua família, especialmente a sua esposa e aos seus filhos. Ainda segundo o autor, a conversão não altera apenas as crenças religiosas dos homens, mas exige também a construção de uma nova identidade pessoal e social, produzindo uma redefinição das suas ideias sobre gêneros (Agüero, 2007).

Analisando as experiências de conversão masculina no contexto prisional e da criminalidade, autores como Agüero (2007), Machado (2014) e Costa (2017) também apontam para a importância desse evento para a transformação dos modos de pensar e exercer as masculinidades. Segundo os autores, após a conversão, os homens se veem às voltas com a necessidade de produzir transformações em suas subjetividades e de construir uma nova identidade masculina, em geral delineada em contraposição aos homens que eram antes de aderirem ao novo grupo religioso (Costa, 2017; Dollinger, 2018; S. Freitas, 2017; Machado, 2014).

Desse modo, considerando a centralidade da vida religiosa na cultura brasileira e as exigências de mudança impostas pela experiência de conversão religiosa, esse estudo tem como objetivo identificar e analisar as Representações Sociais de homem construídas e difundidas entre frequentadores da IURD.

 

Método

Foram realizadas entrevistas com 12 homens que frequentam a IURD, com idades entre 19 e 62 anos, selecionados por meio dos seguintes critérios de intencionalidade, também utilizados como critérios de inclusão dos participantes: ser homem maior de 18 anos, frequentar a IURD há, pelo menos, 06 meses e aceitar o convite de participação. A princípio, esperava-se utilizar a técnica de bola de neve, na qual o pesquisador indica o primeiro participante e, em seguida, os entrevistados indicam novos sujeitos. Entretanto, observou-se uma grande dificuldade de acessar o público da pesquisa, sobretudo no que se refere ao receio expresso por alguns entrevistados de que a pesquisa pudesse contribuir para a difamação da IURD. Dificuldades semelhantes também foram encontradas por outros pesquisadores de igrejas neo-pentecostais, que também tiveram que ser criativos para lidar com as inseguranças quando a presença de um pesquisador interessado nas suas experiências religiosas (Machado, 2013). Nesse sentido, foi necessário recorrer a outra estratégia e, a partir de mensagens postadas numa rede social do pesquisador principal, direcionadas às pessoas do seu círculo de interação social, foi solicitada a indicação de homens que atendessem aos critérios de inclusão. Vale ressaltar que, durante esse processo, foram contatados 32 homens com perfil de participação, mas apenas 12 aceitaram o convite para realização da entrevista, os quais compuseram o grupo de participantes do estudo.

Foram realizadas entrevistas narrativas episódicas que, segundo Flick (2009), concentram-se na compreensão dos relatos dos sujeitos acerca de fatos, episódios e acontecimentos que se mostram relevantes para a compreensão do fenômeno estudado, nesse caso a sua história de conversão religiosa. As entrevistas foram orientadas por um roteiro semiestruturado que procurou explorar as narrativas dos homens sobre a vida antes do ingresso na IURD, o processo de conversão religiosa, as mudanças percebidas após esse evento, bem como seus modos de pensar, sentir e agir em relação às suas masculinidades. Os locais e as datas das entrevistas foram indicados pelos próprios participantes. Cabe ressaltar que, dos 12 entrevistados, nove optaram por realizar as entrevistas nas dependências de um dos templos da IURD, após a reunião religiosa. As demais entrevistas foram realizadas nas residências dos homens participantes.

As entrevistas, que duraram em média 60 minutos, foram gravadas, transcritas e analisadas por meio da Abordagem Fenomenológica Interpretativa que, conforme destacam Smith e Eathough (2010), percebe os sujeitos como autointerpretantes que, a todo o momento, se encontram convocados a dar sentidos aos fenômenos. Em outras palavras, a AFI procura analisar "como os indivíduos dão sentido às suas experiências" e compreender "o significado particular que as experiências, os estados, os eventos e os objetos têm para os participantes" (Smith & Eathough, 2010, p. 324).

No presente estudo, foi utilizada a proposta de Trindade, Menandro, e Gianordoli-Nascimento (2007), que propuseram a adaptação da AFI para o estudo de Representações Sociais. Seguindo essa proposta, realizou-se uma leitura exaustiva das transcrições literais e, em seguida, cada entrevista foi transformada em uma narrativa individual, mantendo uma atitude de redução fenomenológica na qual pudessem ser apreendidos os sentidos atribuídos pelos participantes à sua masculinidade. Finalizada essa etapa, as entrevistas foram reorganizadas em narrativas individuais, por meio de uma linguagem parcialmente padronizada, mas que procurou preservar as unidades de significado e as vivências dos participantes. Por fim, as narrativas individuais foram reunidas em uma narrativa coletiva que integrou os diferentes sentidos e experiências dos entrevistados, possibilitando perceber os pontos de similaridade entre os participantes (Trindade, Menandro, & Gianordoli-Nascimento, 2007).

Os entrevistados foram informados sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto de pesquisa foi submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais, em cumprimento da resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e recebeu parecer favorável número 2.527.415.

 

Resultados1

A Vida antes da Conversão

A etapa da vida antes da conversão foi caracterizada pelos entrevistados como um momento de muitos problemas e sofrimento. Nesse sentido, Marcos2 afirma que, "antes da Universal", sua vida era "uma bagunça" e Mateus relata que a sua "vida era meio avacalhada, muito mais complicada". Para João, "a vida não tinha sentido". Guardadas as singularidades da história de vida de cada participante, é possível perceber a recorrência de alguns temas que apontam para um estilo de vida muito semelhante entre esses homens, marcado pela pobreza, pelo sofrimento e por um modo similar de experienciar suas masculinidades.

De modo geral, antes da conversão, todos os entrevistados conviviam com a escassez de recursos financeiros, revelando uma vida marcada pela pobreza e pela falta de bens materiais, em especial, a casa própria. Nesse sentido, Tomé afirma que a sua vida e a da sua esposa "era uma tragédia", pois "não tinham nem casa pra morar". Por sua vez, Pedro lembra que tinha "uma vida financeira fracassada", chegando a ser "despejado" de casa.

Além disso, todos os entrevistados relatam envolvimento prévio com álcool e outras drogas. Tiago lembra que, antes de se converter, "se envolveu muito com droga e, para se manter, começou a vender também". André afirma que "praticamente virou alcoólatra", assim como Lucas relata que "fumava maconha e cheirava cocaína".

Os participantes lembram que possuíam outro estilo de vida, marcado por festas noturnas, onde o álcool, as drogas e o sexo compunham a cena de sociabilidade. Desse modo, Judas lembra que, embora fosse casado, "praticava coisas erradas", como "beber e se prostituir3". Lucas conta que "se prostituía muito, com muitas mulheres" e também "traía muito a sua esposa". Simão recorda que "fazia tudo errado", pois "não tinha esse entendimento que o sexo fora do casamento é pecado" e, por isso, se "prostituía" com a sua namorada.

Vale ressaltar que, antes da conversão, quatro entrevistados se envolveram com atividades criminosas, em especial com o tráfico de drogas, gerando uma série de situações conflitivas com a polícia. Nessa direção, Tiago conta que "ficou preso por dois meses", pois ele e "dois amigos se envolveram em uma briga" em um bar. Já Pedro lembra que, "antes da conversão, infringiu todas as leis: estava no meio do tráfico de drogas e roubava, matava e fazia várias atrocidades nesse mundo", que o levaram a ser preso "várias vezes".

Os entrevistados também destacam a fragilidade das relações com seus familiares, em especial no que se refere aos seus pais, recorrentemente percebidos como homens violentos e agressivos, dos quais deveriam se esforçar para se diferenciarem. Nesse sentido, André conta que seu pai "era alcoólatra e agredia" sua mãe, chegando a tentar matá-la em sua frente. Ele lembra que "tinha na cabeça" que ser homem "era ser totalmente o contrário do seu pai". Bartolomeu destaca que seu pai era usuário de "maconha e sempre batia muito na sua mãe" e os "colocava pra fora de casa", o que, segundo ele, "foi gerando uma rebeldia muito grande".

Outro ponto que chama a atenção na fala dos entrevistados diz respeito ao que eles denominam como um "vazio" que sentiam antes de se converterem. Assim, João lembra que, antes de se converter, sentia que "tinha um vazio" dentro de si, um sentimento de que lhe "faltava alguma coisa", gerando o desejo de "querer saciar com alguma coisa: às vezes era festa, balada, mulheres". Em alguns casos, a experiência de vazio se estendia para outros contextos mais graves, culminando em situações de adoecimento psíquico e, até mesmo em tentativas de suicídio. Nesse sentido, André conta que "criou um complexo dentro de si", passando a se sentir "chutado e culpado de todo o sofrimento" de sua família. Também passou a ter "pensamentos negativos" que o levaram a tentar se matar três vezes. Judas, por sua vez, lembra que teve "depressão", que "ficava só num quarto escuro, chorando" e naquela época, "virou um zumbi". Ele também relata que sentia "um vazio, a falta de alguma coisa no interior", e lembra que "não tinha prazer pra fazer nada", culminando em uma "tentativa de suicídio".

As narrativas também revelam o modo como esses sujeitos viviam suas masculinidades no período que antecede a conversão. Nesse sentido, é possível constar a existência de um padrão de exercício das masculinidades pautado na agressividade, na indisciplina, na sedução de várias mulheres e no descontrole de suas emoções e comportamentos. Assim, Tomé lembra que "era um machão e tudo era querer brigar com os outros". Para Bartolomeu, "ser homem era você ter muitas mulheres, ser o pegador, o que pega muita mulher". Já Simão acreditava que ser homem "era assim: homem tem dinheiro, homem tem isso, tem aquilo, era pegar várias mulheres, sair, ser o machão, ser o cara que todo mundo aponta: 'aquele cara ali é perigoso, não mexe com ele não que ele é bravo'". Felipe afirma que "tinha aquela visão bem medieval de que o homem era pra ser pai de família e só, que era para trabalhar e sustentar a casa".

Ao olharem para o passado, alguns participantes afirmaram que, antes da conversão, não eram homens, pelo menos da forma como acreditavam ser no momento da entrevista. Nesse sentido, Pedro conta que "não poderia se descrever como homem, porque uma pessoa que é homem suficiente, ela não rouba, não mente, ela não pratica tais atrocidades que prejudicam o próximo". Segundo ele, essas "não são atitudes de um homem de verdade", mas coisas de "um moleque mesmo".

A Vida após a Conversão

Conforme já destacado anteriormente, a conversão aparece no discurso dos entrevistados como um evento central que divide a biografia dos participantes, revelando se configurar como um importante momento da vida desses sujeitos. Analisando o conjunto de narrativas, é possível perceber que a procura pela igreja e a experiência de conversão se dá num momento de grandes adversidades, onde os homens já não dispunham de condições individuais para lidarem com o sofrimento e os problemas do cotidiano. Nesse sentido, Bartolomeu conta que "foi detido e julgado de associação ao tráfico de drogas" e, naquele momento, "começou a ver o caminho que estava e se viu perdido, no fundo do poço". Judas conta que "foi para a igreja" quando sentiu que "já estava sem razão de viver mais". João procurou uma igreja "por causa da sua busca pelo sentido da vida" e André em um momento em que vivia muitos problemas financeiros e com a "bebida".

Considerando a experiência de conversão, os entrevistados passam a narrar uma série de transformações que observaram em diferentes áreas da sua vida, em especial a melhoria das condições financeiras e dos recursos materiais, o abandono do álcool e das drogas, o preenchimento do "vazio" e o reestabelecimento da saúde física e mental. Assim, Judas afirma que, "uma semana" após a experiência de conversão, "a depressão saiu, o desejo de suicídio acabou e já dormia automaticamente". Tiago afirma que, a partir do "momento" da conversão, "pegou firme e, com dois meses, conseguiu parar" de usar drogas. Bartolomeu lembra que "as pessoas e as viaturas paravam lá na porta da igreja, onde fazia o Ponto de Fé, para lhe dar os parabéns". Segundo ele, as pessoas "não acreditavam no que estavam vendo", pois viveu uma "mudança da água pro vinho".

Os entrevistados também apontam para uma série de transformações em seus casamentos e em suas relações com os seus familiares. Nesse sentido, Tomé relata que "Deus mudou a sua vida e da sua esposa" e afirma que agora tem "um outro comportamento" em seu casamento, passando a saber "tratar as pessoas e manter a calma". Lucas, por sua vez, conta que "seu casamento é outro e o relacionamento com seus filhos é outro" também, passando a ter "aquele diálogo" com sua esposa e filhos "que não tinha antigamente".

Outra mudança destacada pelos entrevistados diz respeito às suas condições financeiras e materiais que, segundo eles, melhoraram após a conversão. Nesse sentido, Judas afirma que "Deus está restaurando" tudo aquilo que "perdeu" antes da conversão. Já Mateus lembra que, "quando foi pra igreja, morava num barracãozinho de dois cômodos, lá nos fundos" e hoje está "numa casa melhor", pois "tem churrasqueira, tem mesa grande, tem sinuca, tem duas geladeiras na cozinha" e até uma "hidromassagem daquela de dose dupla".

Vale destacar que os participantes também fizeram modificações importantes em seus círculos de amizade e sociabilidade, rompendo com as amizades do período anterior à conversão e estabelecendo novos vínculos afetivos. Assim, Tiago lembra que "a primeira coisa que fez foi se separar dos que se diziam seus amigos", já que, "se você quer levar uma vida certa, não tem como ter as amizades que fazem tudo errado". Felipe conta que "começou a trabalhar na igreja e abandonou seus relacionamentos de fora e começou a viver de uma forma diferente".

Os entrevistados também relataram mudanças na forma que percebiam e exercitavam suas masculinidades, de maneira que muitos deles passaram a se perceber como "novos homens", pautados em outros valores distintos do período anterior à conversão. Nesse sentido, Simão afirma que "hoje é totalmente diferente, pois é um novo homem, uma nova pessoa que anda na contramão do mundo". André reconhece que, hoje, "ser homem é totalmente diferente" do que imaginava ser antes: "é ser respeitoso, ser responsável, ter responsabilidade, obedecer a Deus, ser fiel em tudo, nos seus compromissos e na palavra de Deus". Para Felipe, o homem "tem uma função de auxílio", devendo ser "mais auxiliar, mais participativo", em especial "dentro de casa". Já para Marcos a mudança no modo de viver a masculinidade inclui a necessidade de "você olhar pra uma mulher e não desejar aquela mulher, mas ver ela como uma pessoa de Deus, uma alma". Bartolomeu conta que é necessário "ser homem de uma só mulher". Ou seja, ao contrário do "homem do mundo", o homem cristão deve "ter os olhos da fé, capaz de olhar" uma mulher, mesmo contrariando o "instinto do homem", mas "sem cobiçar".

É preciso destacar que, para os entrevistados, trata-se de uma transformação interna que envolve o "novo nascimento" de "um novo homem" que substituiria uma suposta natureza masculina anterior ao processo de conversão. Nesse sentido, Simão afirma que, após "conhecer o Senhor Jesus, sua velha natureza", o seu "velho Adão carnal morreu e nasceu de novo". Já Felipe conta que, após a conversão, "realmente nasceu de novo". Segundo João, "quando a pessoa se converte, ela nasce de novo, de Deus, ela se torna um novo caráter", ou seja, ela passa a "ser uma pessoa honesta, íntegra, reta". Felipe conta que se batizou "para se arrepender dos pecados, para matar o velho homem e nascer de novo e se liberar dos seus pecados".

Ainda no que se refere a essa natureza masculina, descrita pelos entrevistados, Tiago explica que "os homens têm um instinto carnal, diferente do instinto carnal das mulheres" e precisam "dominar" isso, revelando a necessidade desse "velho homem" ser mantido sob controle do "novo homem", mesmo após a conversão. Já Bartolomeu destaca que "o homem que domina a si mesmo consegue dominar todas as áreas da sua vida".

Durante as narrativas, é possível perceber que os participantes fazem uma diferenciação entre o "mundo lá fora" e a "igreja". Nessa vertente, Felipe explica que o "mundo" se refere "ao mundo não-cristão", ou seja, "o mundo significa as práticas pecaminosas, as coisas que não te trazem pra Deus, porque fazem a separação celestial e as coisas terrenas, as coisas materiais". Ele também destaca que "todos nós somos do mundo", mas, ao mesmo tempo, o homem convertido "não vai aos mesmos lugares, com as mesmas pessoas", buscando "não se envolver, de certa forma, naquilo que você já se envolvia antes".

Outros entrevistados chamam a atenção para a necessidade de os homens convertidos renunciarem aos seus desejos e à vida anterior e buscarem viver de outro modo, o que exigiria alguns sacrifícios. Nesse sentido, Mateus afirma que, para que a mudança aconteça, é preciso "estar disposto a sacrificar, a largar sua vida para poder servir o altar". Já Felipe ressalta que é preciso "se arrepender dos seus pecados, das velhas práticas que não são cristãs e renunciar às suas vontades, renunciar àquilo que te dá prazer, te satisfaz na sua carne, para fazer a vontade de Deus".

Vale ressaltar que, para os entrevistados, a conversão não se configura como um processo acabado, mas necessita ser atualizada cotidianamente, podendo colocar em risco o processo de transformação. Nesse sentido, Simão destaca que, "todo dia, ele tem que se converter, tem que permanecer com o Senhor Jesus". Segundo João, "o processo de conversão é um pouco longo", de modo que "você vai passando, vai vendo, vai entendendo", mas ao final, faz com que a pessoa "mude de vida". Conforme destaca Bartolomeu, "todos os dias você tem que vencer o seu eu, pois acaba que você é homem e, por mais que você está na fé, o seu velho homem sempre tenta querer ressurgir", necessitando de cuidado e vigilância "constantes".

Os participantes também destacaram a importância das ações da igreja para a manutenção do novo modo de pensar e exercitar as masculinidades, em especial o Projeto IntelliMen, dedicado a discutir temáticas relacionadas ao universo masculino. Assim, para Tiago, "a igreja é o controlador social que faz um papel que, muitas das vezes, a sociedade não consegue fazer". Segundo ele, "o rito não te deixa desanimar, aquilo ali te motiva", sendo necessário manter a frequência nas reuniões iurdianas.

Por fim, cabe ressaltar que todos os participantes, após a conversão, passaram a desenvolver trabalhos religiosos e/ou assumir cargos na IURD, em especial o de obreiros e evangelistas. Mesmo aqueles que não exercem essas funções formais passaram a dedicar parte do seu tempo para o desenvolvimento de atividades sociais e religiosas, vinculadas à igreja. Nesse sentido, Tiago conta que hoje "dedica a sua vida e faz um trabalho evangelístico" na IURD, a partir de um "grupo de rap e faz visitas em presídios e comunidades", junto ao "Força Jovem, tentando ajudar as pessoas a encontrar o caminho". Já Felipe atua como "coordenador de um projeto chamado FJUni, que trabalha com universitários e faz parte do projeto do esporte" da sua igreja. Bartolomeu e a esposa desenvolvem "um projeto social em uma boca de fumo de um bairro muito necessitado, onde tem problemas de vícios".

 

Discussão

O conjunto de narrativas dos participantes desse estudo revela a importância da experiência de conversão religiosa enquanto um evento significativo, capaz de causar uma ruptura na biografia dos fiéis, contribuindo para que os homens organizem sua história de vida a partir de um antes e um depois da conversão (D. Freitas & Holanda, 2014). Entretanto, é preciso destacar que a conversão neopentecostal não se restringe à adoção de novas crenças e práticas religiosas, mas exige que os convertidos se envolvam num intenso processo de reorganização do modo como percebem a si mesmos e os outros, uma reelaboração do mundo no qual vivem e uma reconstrução de suas identidades pessoais e sociais, revelando um complexo processo psicossocial (Burchardt, 2017; Castro, 2018; S. Freitas, 2017; Hansen, 2012; Machado, 2014; Martins, 2019).

A experiência de conversão religiosa, ao cindir, drasticamente, a biografia desses homens, também parece exigir a transformação dos seus modos de ser e estar no mundo, pressionando os fiéis a construírem novas práticas sociais e a assumir um novo modo de viver a vida, alinhado aos discursos proferidos e disseminados no contexto religioso neopentecostal, inclusive no que se refere às suas masculinidades (Dollinger, 2018; Eves, 2016; S. Freitas, 2017; Hansen, 2012; Lindhardt, 2015; Machado, 2014; Martins & Nascimento, 2019; Mello, 2011; Pacheco et al., 2007).

É preciso destacar que tal processo não se dá alheio às normas de gênero, de maneira que, no processo de reconstrução e reelaboração das identidades, os fiéis também são pressionados a produzirem novos saberes em relação ao seu gênero, no caso deste estudo, ao modo como concebem e experienciam as suas masculinidades (Machado, 2014; Mello, 2011). Assim, é possível perceber mudanças significativas na maneira como os homens participantes desse estudo compreendiam e exerciam suas masculinidades, antes e após a conversão, revelando a importância do pensamento religioso para a construção dos modos de pensar e colocar em prática as masculinidades no contexto neopentecostal (Buchardt, 2017; Castro, 2018; Eves, 2016; Hansen, 2012; Machado, 2014; Martins & Nascimento, 2019).

Os dados dessa investigação também corroboram outros estudos que apontam que, em geral, a conversão religiosa masculina ao neopentecostalismo ocorre em um momento no qual os homens experienciavam situações de crise material e existencial, bem como momentos onde os homens já não conseguem mais sustentar os padrões impostos pelo modelo de masculinidade hegemônica, por exemplo, quando já se encontram sem trabalho, na criminalidade e na dependência química (D. Freitas & Holanda, 2014; Machado, 2014).

Nessa perspectiva, conforme pode ser observado na Figura I, as narrativas dos entrevistados permitem identificar um conjunto de atributos que compõem o sistema de representações sociais de homem, no período que antecede à conversão, revelando que o grupo de participantes compartilhava um modo específico de pensar e colocar em prática suas masculinidades. Esse modelo de masculinidade, experienciado por eles, antes da conversão, revela um homem machão, violento, agressivo, dependente químico, vazio, promíscuo, descontrolado, indisciplinado, desprovido de recursos financeiros e bens materiais, distante dos seus familiares, em especial da esposa e dos filhos, e incapaz de projetar o seu destino (Figura 1).

 

 

Analisando o conjunto de narrativas, percebe-se que as representações sociais de homem desses sujeitos encontram-se objetivadas na imagem do "velho homem", em uma referência ao texto bíblico que faz menção à vida que antecede a conversão religiosa ao cristianismo, a qual deve ser abandonada pelos fiéis após a conversão. Vale lembrar que a dicotomização entre sagrado e profano é um elemento estruturante das religiões (Moscovici, 2011) e ocupa um importante papel na orientação de como os fiéis deverão viver a sua vida, após a conversão. Desse modo, a organização de suas biografias em um antes e um depois, em um velho e um novo, parece indicar o esforço cognitivo e emocional dos entrevistados para construírem novas representações sociais que os auxiliem a atender os ideais do diferente contexto no qual se encontram inseridos.

Por outro lado, vale ressaltar que, no conjunto das narrativas, a imagem do "velho homem" também serve de referência ao processo no qual esses homens se engajam na reconstrução dos seus modos de pensar e colocar em prática as suas masculinidades, reforçando a busca, no novo grupo de referência, por elementos que subsidiem um novo exercício da sua virilidade, mais alinhado com os dogmas religiosos neopentecostais. Nessa perspectiva, é possível perceber que a imagem do "velho homem" surge como uma importante referência de masculinidade profana da qual, com esforço, os participantes devem se distanciar para que possa surgir outra, mais próxima do sagrado.

Nota-se, ainda, que os modos de conceber e experienciar a masculinidade do "velho homem" parecem estar ancorados em modelos de masculinidades semelhantes aos dos seus pais que, como já apontado, figuram nas narrativas como contra-modelos, ou seja, modelos de como não ser homem. Por outro lado, chama a atenção o fato de que os pais dos entrevistados parecem encarnar um modelo de masculinidade muito semelhante àquele que eles mesmos exerciam antes da conversão.

Conforme também pode ser observado na Figura I, após a conversão, os participantes desse estudo se viram às voltas com a necessidade de reorganizar suas concepções, percepções, valores e representações sobre si mesmos e acerca de diferentes aspectos do cotidiano, para que pudessem colocar em prática os dogmas e os ensinamentos religiosos do novo grupo ao qual passaram a pertencer. Nesse contexto, é necessário um esforço deliberado do homem recém-convertido para "matar o velho homem" e se envolver em um processo de transformação radical de sua identidade pessoal e coletiva. Tal situação é percebida como um "nascer de novo".

Por meio desse processo, os participantes passaram a representar o homem como um ser com caráter e responsabilidade, disciplinado, próspero, que valoriza a família e, principalmente, que possui domínio próprio e controle de si, o que inclui suas emoções, seus pensamentos e a sua sexualidade. Tal homem encontra-se objetivado na imagem do "novo homem", ou seja, o "homem cristão", construído, como já dito, em contraposição ao "velho homem". A reconstrução dessas representações parece ter possibilitado aos participantes aderirem a uma nova forma de colocar em prática suas masculinidades, a partir da construção de novos hábitos distintos daqueles do período anterior, como o abandono do álcool e de outras drogas.

Resultados semelhantes vêm sendo observados em outros estudos que revelam que a conversão masculina ao neopentecostalismo exige que os fiéis atribuam novos sentidos às relações de gênero, inclusive no que se refere aos modos como concebem e exercitam suas masculinidades (Agüero, 2007; Costa, 2017). Assim, como observado também no presente estudo, pesquisas apontam que, após a conversão, os homens são pressionados a redefinirem suas masculinidades, passando a reelaborar alguns atributos socialmente idealizados pelo modelo de masculinidade hegemônica (Buchardt, 2017; Dollinger, 2018; S. Freitas, 2017; Lindhardt, 2015; Martins, 2019; Mello, 2011).

Autores como Agüero (2007), Lindhardt (2015) e Mello (2011) apontam para a necessidade dos homens renegociarem suas identidades masculinas, após a conversão, passando por um processo de domesticação, o que também foi possível constatar no grupo investigado. Nessa vertente, se antes os participantes ocupavam as baladas, bailes e festas como locais de diversão e sociabilidade, após a conversão observou-se um redirecionamento desses sujeitos para o âmbito doméstico, com uma maior ênfase na dedicação de tempo e cuidados afetivos às famílias, em especial às esposas e aos filhos.

Entretanto, é preciso ressaltar que, apesar de os participantes construírem uma nova representação social de masculinidade que os direcionou, após a conversão, para um novo modo de ser homem, eles também reconhecem a continuidade da existência do "velho homem" ou do "velho Adão", ainda que numa dimensão mais profunda do seu ser. Tal fato parece denunciar que a conversão religiosa não transforma o homem, no sentido de modificação de uma suposta essência masculina. Entretanto, os rituais e a vida religiosa parecem fornecer aos fiéis subsídios que contribuem para o domínio e o controle daquilo que os participantes intitulam como sua velha natureza, exigindo uma vigilância e uma autoobservação contínuas (Machado, 2014). Nesse sentido, o rompimento com os amigos "do mundo" e a assiduidade às novas reuniões religiosas ocupam importantes funções na construção e na manutenção dessa nova identidade (Costa, 2017).

Nota-se, porém, que não se trata exatamente de um novo modo de ser homem ou, ainda, de um rompimento com o modelo de masculinidade hegemônica, mas sim da reafirmação de aspectos do modelo socialmente difundido sobre o que se espera de um "homem de verdade", em especial do homem cristão. Desse modo, é possível afirmar que as representações sociais de homem e de masculinidades presentes no contexto iurdiano se encontram associadas ao modelo de masculinidade hegemônica (Connel & Messerschmidt, 2013; Martins, 2019). Mesmo possuindo evidente caráter religioso, a representação de homem e de masculinidade no âmbito da IURD baseia-se nos mesmos atributos idealizados e exigidos dos homens, cotidianamente, no âmbito secular.

Conforme constaram Martins e Nascimento (2019), o modelo de homem difundido pela IURD reproduz características, atitudes e valores de expectativas socialmente difundidas e que relacionam a masculinidade ao sucesso profissional, à construção de um corpo forte e viril, à bravura, à coragem e ao controle das emoções. Além disso, assim como nos grupos seculares, o IntelliMan é heterossexual, não havendo espaço para exercer sua masculinidade de um modo que questione as normas sexuais impostas (Martins, 2019).

Por outro lado, também é preciso considerar que, ao mesmo tempo em que a IURD reforça o modelo de masculinidade hegemônica, ele também abre espaço, ainda que limitado, para variações no exercício das masculinidades. Assim, embora os líderes iurdianos reforcem uma representação de homens disciplinados, bem sucedidos, determinados, inteligentes, heterossexuais e provedores (Martins & Nascimento, 2019), as exigências do novo grupo colocam os homens diante de outras possibilidades de exercício das masculinidades, incentivando os fiéis a partilharem da construção de relações mais afetivas com os seus familiares, a serem mais gentis e generosos em suas interações sociais, a enfrentarem o orgulho e reconhecerem a necessidade de buscar ajuda em momentos de fragilidade, a assumir os erros e pedir desculpas, a se envolver em atividades religiosas, dentre outras, interferindo, portanto em seu processo de construção identitária masculina.

 

Considerações finais

No presente estudo, foi possível identificar as representações sociais de homem (re)produzidas no contexto neopentecostal, especificamente entre os frequentadores da IURD. Os resultados apontam para a experiência de conversão religiosa como um evento significativo que cinde a biografia dos sujeitos em dois momentos distintos: o antes e o após a conversão.

É preciso reconhecer que a experiência de conversão não se restringe às crenças e às práticas religiosas, mas pressiona os sujeitos a construírem novos modos de compreensão de si próprios, dos outros e do mundo no qual vivem. Em outras palavras, os fiéis se veem às voltas com a necessidade de (re)construir seus modos de pensar, sentir e agir sobre diferentes temas do cotidiano, inclusive no que se refere às normas de gênero, como, por exemplo, suas crenças e práticas associadas à masculinidade. De modo geral, os achados do presente estudo apontam para a importância da vida religiosa como contexto profícuo para a produção e circulação de representações sociais de homens, as quais orientam os fiéis sobre como deverão exercitar suas masculinidades após a conversão. Desse modo, a Teoria das Representações Sociais mostrou-se como um importante aporte teórico capaz de propiciar uma compreensão ampliada sobre o tema.

Também é preciso ressaltar que os dados desse estudo se restringem à experiência de homens da IURD. Outros estudos poderão ser desenvolvidos buscando incluir outros grupos de evangélicos ou denominações eclesiásticas, possibilitando evidenciar as especificidades de cada um desses contextos e suas influências sobre as crenças e as práticas da masculinidade.

 

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Endereço para correspondência:
Alberto Mesaque Martins
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Faculdade de Ciências Humanas
Av. Costa e Silva, s/n. Bairro Pioneiros
Campo Grande – Mato Grosso do Sul
CEP: 70.070-900
Telefone: (67)99325-1423 e/ou (31)98873-5553
E-mail: albertomesaque@yahoo.com.br

Recebido em 19.abr.19
Revisado em 15.set.20
Aceito em 23.nov.21

 

 

Alberto Mesaque Martins, Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Adriano Roberto Afonso do Nascimento, Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é Professor Associado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Email: nascimentopsi72@gmail.com
1. Considerando o formato do manuscrito, os resultados serão apresentados a partir do conjunto das narrativas, integrando os relatos, temas e unidades individuais, possibilitando uma maior compreensão das experiências do grupo de homens participantes. Todos os nomes dos entrevistados foram substituídos por nomes bíblicos, remetendo aos discípulos e apóstolos cristãos. Os trechos em itálico são as citações literais dos participantes. Termo utilizado no meio neopentecostal para se referir ao sexo antes do casamento
2. Todos os nomes dos entrevistados foram substituídos por nomes bíblicos, remetendo aos discípulos e apóstolos cristãos. Os trechos em itálico são as citações literais dos participantes.
3. Termo utilizado no meio neopentecostal para se referir ao sexo antes do casamento.

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