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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.36 no.31 Rio de Jeneiro dez. 2014
ARTIGOS
A função terapêutica do traumático
The therapeutic function of the traumatique
Perla KlautauI*; Sara KislanovII, III**; Monah WinogradII***
ICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUCRio - Brasil
IIISPRJ - Brasil
RESUMO
A partir do atendimento psicanalítico a pacientes que sofreram desfiguramento súbito da face e a sujeitos portadores de sequelas cognitivas em função de acidente vascular encefálico (AVE) ou traumatismo crânio encefálico (TCE) sofridos, foi possível investigar diferentes formas de (re)organização psíquica. Tanto a experiência de esfacelamento da face quanto o aparecimento de sequelas cognitivas, conduzem a modos primários de defesa. Nestes casos, a função terapêutica do traumático possibilita a atualização de traumas infantis, propiciando uma abertura para a realização de um trabalho de elaboração e, consequentemente, o surgimento de novas questões a serem investigadas.
Palavras-chave: Trauma, desamparo, pulsão de morte, compulsão à repetição, pulsão anarquista.
ABSTRACT
Upon considering the psychoanalytic treatment of patients affected by sudden facial disfigurement as well as patients with cognitive sequelae due to stroke or traumatic brain injury (TBI), it was possible to investigate different forms of psychic (re) organization. Both the experience of facial shattering and the manifestation of cognitive sequelae lead to primary defensive modes. In such cases, the therapeutic function of the traumatic allows the updating of primitive traumas, providing an opening for an elaboration work and, consequently, the emergence of new questions to be investigated.
Keywords: Trauma, helplessness, death instinct, repetition compulsion, psyche anarchiste.
Introdução
Certos acontecimentos traumáticos causam impacto na organização psíquica, de tal modo que produzem diversos efeitos patológicos. A partir do atendimento psicanalítico a pacientes que sofreram desfiguramento súbito da face e a sujeitos portadores de sequelas cognitivas em função de AVE ou TCE sofridos, foi possível investigar diferentes formas de (re)organização psíquica. Tanto o desfiguramento do rosto quanto a percepção das sequelas cognitivas são eventos traumáticos impactantes e esfaceladores das coordenadas subjetivas identitárias que trazem consigo, como consequência, a dificuldade de reconhecimento de si no plano imaginário e especular. Entre um passado, no qual o corpo e as funções cognitivas estavam em perfeito funcionamento e um futuro inaceitável, porque limitado e empobrecido relativamente à vida anterior, os sujeitos traumatizados encontram diferentes saídas para elaborar o sentimento de perda de uma parte de si. Para fundamentar, apoiar e ilustrar o desenvolvimento teórico, apresentaremos algumas vinhetas clínicas provenientes das pesquisas Aspectos subjetivos do adoecimento neurológico e Uma clínica psicanalítica com pacientes submetidos a cirurgias reconstrutoras da face.
A primeira pesquisa, ainda em curso, vem sendo realizada na PUC-Rio com o apoio da FAPERJ e do CNPq. A etapa inicial consiste no acolhimento dos pacientes adultos portadores de doenças neurológicas e na realização da primeira entrevista, na qual são contemplados: a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, a identificação da queixa e da demanda de tratamento psicoterapêutico e o encaminhamento para avaliação neuropsicológica. A segunda etapa comporta a realização de sessões regulares de psicoterapia psicanalítica durante 18 a 24 meses, nas quais são abordados aspectos psicodinâmicos dos sujeitos e testadas variações no enquadre. A terceira etapa consiste na análise dos dados coletados, enriquecidos com elementos fornecidos pelas avaliações neuropsicológicas. Com base nesta metodologia, foi possível tecer considerações sobre as particularidades técnicas dos atendimentos realizados, já que as exigências deste tipo de clínica diferem em pontos consideravelmente importantes das encontradas na clínica psicanalítica clássica.
O mesmo pode ser dito no que diz respeito ao acompanhamento de pacientes que tiveram seus rostos desfigurados: tais pacientes estão sujeitos à rotina hospitalar, sob a perspectiva de inúmeras e dolorosas cirurgias reconstrutoras da face. Neste contexto, apesar de o atendimento psicanalítico não conservar o enquadre clássico, conserva a especificidade de exercer uma função terapêutica de continente facilitador para a elaboração do traumático. De acordo com a especificidade ressaltada, a segunda pesquisa, intitulada Uma clínica psicanalítica com pacientes submetidos a cirurgias reconstrutoras da face e desenvolvida durante os anos de 1998 à 2002, realizou o acompanhamento psicológico de pacientes submetidos a cirurgias reconstrutoras da face junto à equipe de Cirurgia Maxilo-Facial do Hospital de Ipanema, situado na cidade do Rio de Janeiro. A partir da função de psicóloga-pesquisadora e utilizando escuta e intervenção de orientação psicanalítica, foi possível acompanhar e participar das rotinas do serviço, nas quais se deram as interações com a equipe, com os pacientes e seus familiares, tanto através de relacionamentos formais quanto informais. O objetivo era a investigação e o entendimento do universo psíquico de pacientes adultos de 18 a 25 anos que, por apresentarem graves deformidades, foram submetidos a cirurgias reconstrutoras da face. Foram apenas considerados para a pesquisa aqueles cujas deformidades originaram-se a partir de acidentes ou qualquer outro evento súbito, excetuando-se tumores e/ou patologias congênitas. Realizou-se acompanhamento psicológico em diferentes etapas cirúrgicas de suas reconstruções tanto no período preparatório quanto no pós-operatório.
Nas duas pesquisas, os sujeitos encontravam-se desprovidos da possibilidade de apoiarem-se sobre suas coordenadas subjetivas, as quais estruturavam a coesão do Eu. Tais referenciais são fornecidos tanto pela aparência física da face quanto pelas funções cognitivas que, quando perdidas, abalam o conjunto da organização psíquica e desestabilizam a sensação de identidade e de continuidade na existência. Deste modo, tanto o desfiguramento súbito da face quanto a percepção das sequelas cognitivas são vividos como golpes que dividem a sensação de existência subjetiva entre antes e depois do evento traumático. Como consequência, o início do atendimento dos pacientes das duas pesquisas foi marcado por um pedido de restituição, de recuperação do que foi perdido. Talvez a sensação de não ser mais como era antes seja a tradução, em palavras, dos efeitos psicopatogênicos da dificuldade de encontrar apoio nas próprias percepções e representações sobre si e sobre o mundo. Com a sensação de um eu em ruínas, a coesão seria buscada na crença de que seja possível recuperar o que foi perdido, voltando a ser como era antes. Percebemos que, por um lado, esta sensação de falta de uma parte de si atualizava o repertório de defesas contra desamparos diante de traumas anteriores e, por outro lado, o projeto de voltar a ser como antes era uma medida protetiva diante das angústias suscitadas pelo golpe atual. Na contramão da demanda inicial, isto é, ao invés de voltar a ser como antes, era preciso possibilitar meios de elaborar a experiência e seu caráter traumático.
O golpe traumático: atualização e atualidade do infantil
Na obra de Freud, o conceito geral de trauma, em suas diversas faces, foi montado em momentos distintos, mas, profundamente interligados. Primeiro, nos Estudos sobre histeria (1895), o conceito derivava e ocupava lugar fundamental na teoria da sedução; mas, logo em seguida, sua importância na etiologia das neuroses foi relativizada a partir da consideração do lugar da fantasia (FREUD, 1897) - em todo caso, sua tradução clínica eram as psiconeuroses de defesa. Anos depois, novas reformulações metapsicológicas revelavam outros aspectos, dando ao conceito o estatuto de uma problemática. Tanto em Além do princípio do prazer (1920) - com a ideia do rompimento do para-excitação e a introdução da pulsão de morte - quanto em 1926, em Inibições, sintomas e ansiedade, se pode notar a ênfase recair sobre as situações de desamparo numa dinâmica na qual interagem forças intrapsíquicas (intersistêmicas) e fatores ambientais. Por fim, e como desdobramento dos movimentos conceituais efetuados, nos últimos anos de sua vida, Freud (1939) se aproximou da questão da influência dos traumas precoces na etiologia e no desenvolvimento das neuroses, deixando aos pós-freudianos a tarefa de aprofundá-la e de investigar as patologias narcísicas.
Em Além do princípio do prazer (1920), o trauma foi descrito como uma experiência não pode ser totalmente assimilada no instante de sua ocorrência, pois sua intensidade relativa romperia o para-excitação, rasgando uma tessitura psíquica despreparada para recebê-la. Freud (1920) apresentou a ideia de que a rememoração e a narração, por exemplo, de batalhas e acidentes nos quais a visão e o testemunho seriam não tanto a descrição desses fatos violentos, mas, principalmente, a impossibilidade de inscrevê-los psiquicamente e, consequentemente, de atribuir-lhes algum sentido. Com bastante frequência, foi possível observar o mesmo nos relatos dos pacientes de ambas as pesquisas: "não me lembro de nada da hora do acidente", "não sei como isso aconteceu" ou "não entendi nada do que tinha acontecido" são falas pregnantes a respeito do período imediatamente posterior ao traumatismo sofrido. Geralmente, esta reação deriva de um atordoamento acompanhado de diminuição do campo da consciência, desorientação e dificuldades na atenção e compreensão de estímulos e inclui, algumas vezes, quadros de agitação e hiperatividade. Por volta de horas ou dias, esse quadro regride, na maioria das vezes, espontaneamente. De acordo com Arant, Spitz e Zaidthaft (2001), esta reação é, possivelmente, uma defesa que, ao permitir enfrentar a situação através da diminuição da ocorrência de pensamentos e de recordações muito dolorosos a respeito do traumatismo, faria com que o sujeito continuasse minimamente a funcionar psiquicamente, ou seja, evitaria o esfacelamento ou o colapso psíquicos.
Como ponto de partida para as formulações subsequentes descritas brevemente acima, neste mesmo texto, Freud (1920) destacou certos fenômenos de repetição constantes e compulsivos, tais como os sonhos traumáticos repetitivos. Mas, se esta sideração pelo trauma expressa a impossibilidade de simbolizar, ela também revela uma tentativa de subjetivação. Neste sentido, a intensificação da pulsão de morte pode ser entendida, ao mesmo tempo, como o que mantém o sujeito em um movimento narcísico mortífero e como um esforço de reunir as forças necessárias para o funcionamento egóico. Daí o trauma poder ser entendido como um encontro com o que (ainda) não pode ser posto em palavras e que se expressa como algo que lateja constantemente, uma ferida aberta que, durante os atendimentos psicoterapêuticos, a voz e o gesto, isto é, a presença mesma do analista, pretendem conter e dar limites. Durante uma sessão, uma jovem que teve seu rosto desfigurado, conseguiu dizer: "falar com você é muito bom: ajuda a acalmar e compreender o que aconteceu comigo no momento do acidente, ajuda a organizar meus pensamentos". As feridas psíquicas que advêm tanto do desfiguramento do rosto quanto do surgimento de sequelas cognitivas são enormes e, certamente, inimagináveis para quem não as experimentou. "Saí do Copacabana Palace e parei no Irajá", foi a expressão usada por uma paciente para descrever a sensação de constatar suas perdas cognitivas e motoras decorrentes das sequelas deixadas por um aneurisma cerebral. Ela dizia não saber como foi parar no Irajá e nem o que fazer para sair de lá. A fala de outra paciente, após a reconstrução de seu nariz, também ilustra a tentativa de colocar em palavras o golpe traumático: "impossível imaginar hoje o que é ter um nariz!".
Por conta da incapacidade de simbolizar o choque e a perda real de uma parte do corpo ou de uma função cognitiva, o movimento de constante repetição e retorno do sentimento originário pode ser convocado com a finalidade de trazer o sujeito de volta à cena traumática. A propósito dos movimentos constantes de repetição, vale a pena resgatar as ideias que giram em torno do termo freudiano nachträglich , também denominado de après-coup, em francês, a posteriori , em latim, e só depois, em português. Estas expressões devem ser entendidas como uma ressignificação retroativa de um dos componentes fundamentais da constituição do trauma psíquico em dois tempos, do qual o caso Emma (FREUD, 1950 [1895]) é paradigmático. Com o intuito de explicar a compulsão fóbica de sua paciente, Freud remontou a temporalidade do traumatismo, recorrendo a duas cenas: a primeira (cena I) ocorreu na puberdade e a segunda (cena II), por volta dos oito anos de idade. Na primeira cena, Emma entrou em uma loja e viu dois vendedores rindo juntos. Tomada por uma espécie de afeto de susto, saiu correndo da loja, pois julgou que os dois estavam rindo de suas roupas. A Freud confessou que um deles a havia agradado sexualmente. A segunda cena recordada remontou à ocasião em que esteve desacompanhada em uma confeitaria e o proprietário agarrou-lhe as partes genitais por cima da roupa. Apesar disto, relatou que voltou na confeitaria mais uma vez. Entre as duas cenas, Emma estabeleceu um vínculo associativo: o riso.
(...) o riso dos vendedores a fez lembrar-se do sorriso com que o proprietário da confeitaria acompanhou sua investida. A marcha dos acontecimentos agora pode ser reconstituída. Na loja, os dois vendedores estavam rindo; esse riso evocou (inconscientemente) a lembrança do proprietário. De fato, a segunda situação tinha ainda outra semelhança [com a primeira]: ela mais uma vez estava sozinha em uma loja. Juntamente com o dono da confeitaria, lembrou-se de que ele a agarrara por cima da roupa; de que desde então ela alcançara a puberdade. A lembrança despertou o que ela certamente não era capaz na ocasião, uma liberação sexual, que se transformou em angústia. Devido a essa angústia, ela temeu que os vendedores da loja pudessem repetir o atentado e saiu correndo (FREUD, 1950 [1895], p. 476).
Esta passagem ilustra a lógica da expressão trauma em dois tempos: as consequências do acontecimento traumático só se estabelecem a posteriori. Ou seja, o traumatismo não se instala logo após o acontecimento primevo supostamente traumático, mas, somente num segundo tempo, ou seja, só depois, quando a lembrança da cena for ressignificada. Contudo, se a lógica do trauma em dois tempos permaneceu válida até o final da obra freudiana, o mesmo não pode ser dito sobre sua teoria da sedução: a realidade dos fatos deu lugar às fantasias como fator princeps na etiologia das neuroses e, com isso, as situações traumáticas paradigmáticas passaram a ser relativas às fantasias originárias de sedução, castração, cena primitiva, complexo de Édipo, etc. e às suas angústias aferentes. Agora, o traumatismo era concebido como sendo expressão direta da força das pulsões sexuais em sua luta com o Eu e vice-versa.
O que foi exposto no parágrafo anterior consiste no que ficou conhecido como a primeira teoria do trauma elaborada por Freud ao longo de sua obra. Bokanowisky (2002, 2005) examinou o conceito de trauma na obra freudiana e dividiu sua formulação em três momentos, propondo um sentido diferente para cada. A primeira acepção assumida pela palavra trauma foi a de traumatismo - termo utilizado pelo autor para nomear o período da elaboração freudiana de 1895 à 1920 - concebido como sendo expressão direta da força das pulsões sexuais em sua luta com o Eu e vice-versa. Traumático foi o termo empregado para definir o segundo período, compreendendo os anos de 1920 a 1939. Nesta acepção, o trauma era pensado como resultante da incapacidade de reação psíquica ao impacto de uma intensidade excessiva e seu modelo teórico era composto pelas ideias de rompimento do para-excitação e de desamparo (FREUD, 1920; 1926[1925]). Em ambas, o fator econômico era destaque: um afluxo de excitações excessivo relativamente à tolerância do sujeito e à sua possibilidade de dominá-lo e elaborá-lo provocaria a efração ou ruptura do para-excitação. Definido pelos efeitos psíquicos decorrentes do atravessamento de situações nas quais existiu um perigo real, tendo levado o Eu a temer a morte, este quadro foi traduzido clinicamente pela neurose traumática. Definido pelo termo trauma, o último momento das elaborações de Freud, datado de 1939, enfatizaria os traumas precoces da primeira infância. Nesta acepção, o trauma estaria relacionado ao que, por sua intensidade, foi vivido sem a possibilidade de ser digerido psiquicamente, ou seja, foi experimentado corporal ou sensorialmente e resultou em marcas, vestígios ou impressões que, por sua inscrição anterior à aquisição da linguagem, só puderam ser minimamente processados por operação de processos de defesas primários e ainda rudimentares.
Durante o acompanhamento dos sujeitos de ambas as pesquisas, foi possível escutar referências aos traumas infantis. Uma paciente contou que era gêmea de um irmão que morreu aos quatro meses. O irmão nasceu primeiro e ninguém sabia que havia outra criança para nascer. De repente, "quando tudo já tinha terminado, minha mãe chamou meu pai e disse que estava saindo uma coisa, um negócio. Era eu, pequenininha e roxinha. Aí disseram: "essa não vévi", disse, imitando a fala dos familiares que trabalhavam no interior do Brasil, na lavoura do algodão. Conta ainda que a avó, que era índia, colocou-a numa cumbuca com folhas e cuidou dela: "viví". Outro paciente contou que eram só dois filhos, ele e uma irmã mais velha: "minha mãe sempre deu mais atenção e gostou mais de minha irmã". Estas pequenas falas, dentre tantas outras semelhantes, revelam situações vividas, ao que parece, como traumáticas na infância de alguns pacientes. Sendo assim, nos casos atendidos, foi possível observar que tanto o desfiguramento do rosto quanto a instalação de lesões cerebrais atualizavam o vivido nos momentos iniciais da vida psíquica e abriam as portas para a elaboração de traumas precoces.
A função terapêutica do traumático
Em linhas gerais, é possível afirmar que golpe traumático divide a vida entre um antes e um depois e rouba recursos para a elaboração psíquica. A consequência disso é a criação ou intensificação de zonas psíquicas não-integradas que atualizam angústias e fantasias originárias da situação de dependência infantil. Em diferentes momentos de sua obra (1950 [1895], 1926), Freud ressaltou o contexto de extrema fragilidade e desproteção em que nasce o bebê humano. Imaturo, neurologicamente enxergando só de muito perto, incapaz de locomover-se ou alimentar-se por si só, o recém-nascido encontra-se totalmente dependente de alguém que o auxilie a viver, alimentando-o, cuidando dele e sobretudo, de preferência, amando-o no sentido do investimento libidinal. É do termo desamparo (hilflosigkeit), que Freud se utiliza para designar o estado em que se nasce e também no qual se vive em alguns momentos.
Um bebê solitário, que sente a falta da mãe ou de pessoa que desempenhe a função materna, vive, o que pode ser considerado, uma situação traumática de ameaça à vida. A ideia de desproteção e de extrema dependência a um outro, em função da turbulência pulsional que ocorre por ocasião do nascimento e para a qual a única saída será através de um auxílio externo, é, basicamente, o que Freud apresenta inicialmente a respeito do estado de desamparo. Presente desde o Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]), a noção de desamparo acompanha praticamente toda sua obra, tendo obtido grande destaque no artigo Inibições, sintomas e ansiedade (1926 [1925]) e sendo o pilar sustentador da metapsicologia da angústia.
Em o Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]), ao falar sobre como se dá a experiência de satisfação, em função da grande tensão provocada por estímulos endógenos que exigem descarga, Freud ressaltou que esta somente poderá acontecer por uma intervenção ou uma alteração do mundo externo, ou seja, através do que ele chamou de ação específica. Sendo o organismo humano inicialmente impotente e incapaz de desempenhar esta ação específica, o auxílio externo é necessário para que a vida persevere. Por isso é que o modo de descarga, expresso, nesse momento, por via motora constituir-se-á como uma "importantíssima função secundária da comunicação e o desamparo inicial dos seres humanos é afonte primordial de todos os motivos morais" (FREUD, 1950 [1895], p. 431, grifos nossos). Já se evidenciava, aqui, o quanto a constituição de nossas singularidades e subjetividades reside também na dependência daqueles que nos cercam e, por extensão, na sociedade e na cultura à qual se pertence.
Porém, foi realmente em Inibições, sintomas e ansiedade (1926 [1925]) que a noção de desamparo recebeu maior atenção. Nesse momento de sua obra, Freud já havia realizado a reformulação do aparelho psíquico configurando-o em termos de ego, id e superego. Modificara também sua teoria das pulsões, colocando como oponentes pulsão de vida e pulsão de morte. Mas não parecia convencido sobre a origem da angústia tal como a supunha até aquele momento. E foi, justamente, ao investigar a origem da angústia que Freud utilizou-se com frequência do termo desamparo.
(...) a ansiedade surge diretamente da libido, em outras palavras, que o ego fica reduzido a um estado de desamparo em face de uma tensão excessiva devido à necessidade, como ocorreu na situação de nascimento e que a ansiedade é então gerada (FREUD, (1926 [1925], p. 165).
Ao falar sobre a importância do fator biológico na etiologia das neuroses, Freud propôs que se considerasse serem as primeiras situações de perigo relativas, em muito, ao biológico (grande período de tempo em que a criança permanece em condições de desamparo e dependência), criando a necessidade de ser amado que nos acompanha durante o resto de sua vida. Continuando a tecer considerações sobre a origem da angústia, Freud sugeriu que o verdadeiro perigo fosse aquele que se conhece e que a angústia realística fosse, então, a angústia por um perigo assim. Adiante, inquirindo-se sobre o que seria o essencial numa situação de perigo, ele escreveu:
Claramente, ela consiste na estimativa do paciente quanto à sua própria força em comparação com a magnitude do perigo e no seu reconhecimento de desamparo em face desse perigo - desamparo físico se o perigo for real e desamparo psíquico se for instintual. Ao proceder assim o indivíduo será orientado pelas experiências reais que ele tiver tido. (Quer ele esteja certo ou errado em sua estimativa não importa quanto ao resultado). Denominemos uma situação de desamparo dessa espécie, que ele realmente tenha experimentado, de situação traumática. Teremos então bons motivos para distinguir uma situação traumática de uma situação de perigo (FREUD, 1926[1925], p. 191).
Diante disto, parece não fazer tanta diferença se o perigo é considerado físico ou psíquico, pulsional e, portanto, interno. O que realmente importa é que este perigo possa ser traduzido no sujeito como desamparo, constituindo-se numa situação traumática. De acordo com a descrição econômica, traumático deve ser entendido como uma falha na função de para-excitação do aparelho psíquico que resulta em uma efração quantitativa, isto é, em um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à capacidade de denominar e elaborar psiquicamente estas excitações. Nas palavras de Freud:
Descrevemos como 'traumáticas' quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica necessariamente numa conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficaz contra os estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis. Ao mesmo tempo o princípio do prazer é posto momentaneamente fora de ação. Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulos que irromperam, e de vinculá-las, no sentido psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar (FREUD, 1920, p. 45).
Quando o aumento de excitação não pode ser contido, o princípio do prazer fracassa e produzem-se experiências traumáticas, promovendo um acúmulo de energias. Sem a lógica do princípio do prazer operante, a compulsão à repetição pode entrar em cena com sua marca patente: a repetição. A função deste tipo de defesa é a de dominar o excesso de excitação provocado pelo acontecimento traumático. Ao guiar o sujeito de volta ao acontecimento traumático, a repetição busca dominar o excesso de estímulos e processar a ligação da energia livre. Porque a excitação não pode ser tramitada psiquicamente, dissolvendo a lógica de funcionamento segundo o Princípio do Prazer, o dispositivo de compulsão à repetição tornou-se ativo em um esforço simultâneo de descarga e de domínio da excitação não metabolizada. Nesse caso, vê-se como as marcas do trauma congelam-se, impedindo suas retranscrições e sua articulação em uma rede representacional. Mas, esta fixação no acontecimento traumático difere em essência da fixação libidinal, pois, se a última expressa classicamente uma ligação forte da libido a determinados modos de obtenção de satisfação e sua permanência em organizações características de suas fases de desenvolvimento, a primeira revela um movimento desorganizador como consequência da operação intensificada da pulsão de morte.
Ao examinar o conceito de pulsão de morte, Green (1988) propõe o termo "função desobjetalizante" (GREEN, 1988, p. 65) para caracterizar o movimento cuja meta consiste em promover um desligamento dos objetos por intermédio de um processo de desinvestimento que, em última instância, afeta os processos de ligação. Sob esta ótica, a compulsão à repetição pode ser entendida como uma compulsão para desfazer que, em termos econômicos, consiste em uma tentativa de produzir o vazio no seio do aparelho psíquico. A consequência disto é um congelamento, uma paralisação do tempo cujo estabelecimento subverte o domínio do princípio do prazer, revelando o fracasso das condições de sua instauração que, consequentemente, conduzem às falhas da função de contenção do objeto primário.
O caso de Pedro, um homem de meia idade, que sofreu dois AVEs isquêmicos, com um intervalo de aproximadamente 15 meses entre cada um, fornece uma ilustração para o que foi descrito acima. A constatação dos limites impostos pelas lesões cerebrais era experimentada pelo paciente como um sentimento de menos valia. Quando questionado se não poderia desempenhar outras tarefas, a resposta era sempre negativa e acompanhada da seguinte justificativa: "se não dá para ser como antes, é melhor não fazer mais nada. Prefiro não trabalhar. Mas, eu sou teimoso, vou voltar a fazer tudo que fazia. Sempre aguentei tudo, não é agora que vou desistir. Você vai ver" - fala repetida sempre que se deparava com situações que expunham as sequelas graves dos AVEs sofridos. Quando menino, ele não podia falhar. Além de si, precisava cuidar dos irmãos mais novos e ajudar o pai a garantir o sustento da casa: "morei na roça até uns 10 anos, antes disso não estudei. Ia cedo com meu pai para lavoura e quando chegava tinha que ajudar a minha mãe. Só soube o que era brincar quando mudamos para o Rio e fui para a escola". Durante seus relatos, demonstra tristeza ao acessar lembranças que o fazem acreditar ter cometido um grande erro:
Nós éramos muito simples, tudo que a gente tinha para comer era o que a gente plantava, as galinhas e o leite que as duas vacas davam. Meu pai comprou um cavalo que servia para ele ir mais longe, vender o que sobrava. Lembro que ele me deixou tomando conta do cavalo e eu me distraí vendo uns meninos jogarem bola de gude e perdi o cavalo. Corri, mas não consegui alcançar. Nunca vou me esquecer disso. Por minha causa, o cavalo fugiu. Nunca mais meu pai conseguiu comprar outro.
Neste momento, a analista interveio: "Trabalhar, cuidar dos seus irmãos e se responsabilizar pelo bem mais valioso da família eram tarefas muito grandes para um menino tão pequeno, assim como é, hoje em dia, ajudar os pedreiros na reforma de sua casa". Parecia que o desamparo experimentado na infância se atualizava como traumático a partir dos limites impostos pelas perdas derivadas dos AVEs sofridos: em ambos, apresentava-se a ideia defensiva de ser preciso aguentar, de não poder falhar, ser forte e não desistir nunca - ideia que, atualizada, instaurava um estado permanente de traumatismo.
Como vimos, foi dada a missão ao paciente de se responsabilizar, quando pequeno, por algo além de sua capacidade: o bem mais valioso da família. A partir de sonhos relatados por seus pacientes, Ferenczi (1923) cunhou o termo "bebê sábio" para denominar a criança que assume a posição de cuidador, invertendo o papel do ambiente no desenvolvimento infantil:
Não é raro ouvir pacientes contarem sonhos em que recém-nascidos, bebês de cueiros ou crianças muito pequenas, são capazes de falar ou escrever com perfeita desenvoltura, brindar seu meio com falas profundas ou sustentar conversas de erudito, proferir discursos, dar explicações científicas e assim por diante (FERENCZI, 1923, p. 223).
Seguindo as pistas fornecidas pelos sonhos de seus pacientes, Ferenczi (1923) propôs que se pensasse o trauma como uma falha ambiental que resultaria no abandono da criança durante o processo de elaboração e produção de sentido - processo que não pode ser realizado sem a sustentação de um adulto. Trilhando este caminho, Khan (1963) formulou o conceito de trauma cumulativo para designar os efeitos de falhas repetidas da mãe em sua função de atender às necessidades egóicas do bebê. Para sustentar sua argumentação, Khan (1963) propôs uma aproximação com a famosa metáfora freudiana do escudo protetor:
Proponho-me aqui a examinar a função da mãe no seu papel de escudo protetor. Esse papel de escudo protetor constitui 'o ambiente normal que se pode esperar' (HARTMANN, 1939) para as necessidades anaclíticas do bebê. Meu argumento é que o trauma cumulativo resulta das fendas observadas no papel da mãe como escudo protetor durante todo o curso do desenvolvimento da criança, desde a infância até a adolescência - isto é, em todas as áreas de experiência onde a criança precisa da mãe como Eu auxiliar para sustentar suas funções de Eu, ainda imaturas e instáveis (KAHN, 1963, p. 62).
De acordo com o autor, estas fendas não seriam traumáticas no momento em que se instalam, só adquirem valor de trauma cumulativa e retrospectivamente, ou seja, o caráter traumático não derivaria dos acontecimentos no momento de sua ocorrência, no instante de abertura das fissuras, mas se instalaria pela repetição e pelo acumulo de pequenos sulcos, silenciosa e invisivelmente. Noutras palavras, constituído pelo somatório das fendas acumuladas no Eu ao longo do tempo, o fator traumático só seria percebido como tal após a instalação dos efeitos patogênicos das rachaduras acumuladas. Não é difícil perceber a articulação deste conceito com a falta de sustentação que o paciente em questão obteve do ambiente durante os primeiros anos de sua vida. Até os dez anos de idade, o paciente se adaptou ao ambiente da mesma forma que os bebês sábios de Ferenczi: provendo, quando deveria estar sendo provido. Mas, foi somente a partir da experiência de adoecimento neurológico que seu desamparo se atualizou, o que ficou ainda mais evidente quando as sequelas deixadas pelos AVEs o colocaram diante da impossibilidade de, durante a reforma de sua casa, trabalhar junto com os pedreiros e realizar tarefas antes consideradas simples e rotineiras.
No caso relatado, dentre os efeitos psíquicos (para além das sequelas cognitivas) das lesões cerebrais, em consequência dos AVEs sofridos, se observa ao mesmo tempo traços de uma neurose traumática e a atualização de traumas infantis. A o se deparar com as limitações derivadas das sequelas dos AVEs, o paciente se agarrou à ideia de que "se não dá para ser como antes, é melhor ficar quieto, não fazer mais nada", numa experiência de congelamento temporal derivada da impossibilidade de atravessar a ruptura operada pelo adoecimento.
Durante o atendimento de uma paciente que sofreu desfiguramento súbito da face, foi observado um movimento distinto da imobilidade e da fixidez expressa pela compulsão à repetição que atualizava incessantemente o desamparo infantil descrita na análise do caso anterior. Ana, uma jovem, com cerca de dezoito anos de idade, sofreu um grave acidente automobilístico que praticamente destruiu seu rosto: apresentava-se com olhos assimétricos, sem nariz, sem dentes, lábios deformados, várias cicatrizes espalhadas pelo rosto e em nada se parecia com a foto anterior ao acidente que carregava consigo. Nesta, aparecia linda, loura, com um olhar muito vivo e sorridente. Para a entrevista, veio usando uma máscara azul das que se usam nos centros cirúrgicos e que cobria seu rosto deixando de fora apenas seus olhos disformes e assimétricos, rodeados por cicatrizes. Relatou, nesta oportunidade, que já havia tido várias propostas cirúrgicas em diferentes estados de nosso país. No serviço em questão, era necessário um acompanhamento psicoterapêutico para que as intervenções cirúrgicas pudessem ser efetuadas. Disse, dentre outras observações, ter gostado da proposta apresentada, pois esta deveria ser iniciada de "dentro para fora". A afirmação sensível e sutil foi dita com as sérias dificuldades de quem não possuía mais nariz, nem dentes, enfim, não tinha as condições físicas minimamente necessárias para se expor oralmente. A gravidade da situação em questão é de tal ordem, que o próprio acontecimento traumático, em si, já é considerado ofundo do poço posto que diante do acontecido, não há mais nada a perder. Assim, o que se colocou para esta paciente era salvar o que permanecia e ainda possuía: a vida.
Numa relação de forças sem saída, só uma resistência nascida das próprias fontes pulsionais de morte pode afrontar a ameaça de perigo mortal. Chamo este fluxo da pulsão de morte mais individualista, mais libertário, de pulsão anarquista (ZALTZMAN, 1994, p. 64).
Diferentemente do movimento de compulsão à repetição, observado no caso anteriormente descrito, Zaltzman (1994) destaca a possibilidade de a pulsão de morte se expressar com o objetivo de abrir uma saída vital quando uma situação extrema se apresenta. Nas situações de experiências limite, a vontade de viver e a eliminação de possibilidades destrutivas, encontrarão suas forças justamente na ameaça de morte. Deste modo, a "pulsão anarquista guarda uma condição fundamental da manutenção em vida do ser humano: a manutenção para ele da possibilidade de uma escolha, mesmo quando a experiência-limite anula ou parece anular toda escolha possível" (ZALTZMAN, 1994, p. 64). Neste sentido, alguns pacientes utilizam-se de uma situação crítica que encerra-se sobre o sujeito, destinando-o à morte, como alternativa para a possibilidade de manutenção da vida, para uma possibilidade de escolha, mesmo nas situações onde os limites fingem anular qualquer escolha possível. Ou, melhor traduzido por outra paciente:
Depois do carinho, do amor de pessoas que são indispensáveis, vêm fazer parte de uma nova etapa que é a de não desistir jamais. CAMINHO SEM VOLTA/ESCOLHA SEM DESISTÊNCIA (grifado pela própria). Estava folheando a revista e me chamou atenção a frase, que dizia: 'guerreiro é aquele que luta até o fim da vida e não só um dia'. Acho que hoje tenho experiência suficiente para falar sobre o assunto e ainda complemento dizendo: que o verdadeiro guerreiro, mesmo no fim, continua lutando.
Sobre o tema, é possível encontrar eco em relatos de outros pacientes: "no princípio há um deslumbre de estar viva, (respirando)" (grifado pela própria paciente, escrito num caderno pelo qual se comunicava com uma amiga e que entregou à psicóloga). Outra paciente conta que, em certa ocasião, após o acidente, estava no carro ao lado do marido que se encontrava alcoolizado. Insistiu para que ele a deixasse conduzir o carro, o que foi negado. Diz, então, que, a partir desse momento, teve certeza que iria se separar. Pensou: "Deus já me deu uma chance, não sei se me dará outra".
Para Zaltzman (1994), só a pulsão de morte, com sua energia desagregadora, pode trabalhar contra as formas de vida estabelecidas, contribuindo para renová-las: "o movimento anarquista surge quando toda forma possível de vida desmorona, ele extrai sua força da pulsão de morte e a remete contra ela e sua destruição" (ZALTZMAN, 1994, p. 66). Como vimos nos exemplos acima, esta reviravolta faz com que o sujeito se ligue aos objetos por intermédio de um investimento maciço na vida. Se, de acordo com Green (1988), a meta essencial das pulsões de morte pode ser traduzia em termos de função desobjetalizante, o objetivo das pulsões de vida é garantir uma função objetalizante, ou seja, criar uma ligação com o objeto.
Neste ponto, torna-se oportuno retornar ao caso de Ana. Numa determinada ocasião, durante seu pós-operatório, ela solicita a analista que puxe seu o cobertor para que este cubra seus pés que se encontravam gelados e descobertos. Depois de ter sua demanda atendida, a paciente disse: "Nossa a senhora fez igualzinho à minha mãe, só que as mãos dela eram geladas, e as da senhora são quentinhas, esquentam antes mesmo do cobertor". Apesar da aparente trivialidade contida na solicitação de Ana, é possível detectar um sentido para a demanda da paciente já que esta sempre relatava, com preocupação, que sua mãe era muito "desligada": quando a paciente era muito pequena, sua mãe deixou, certa vez, o fogo aceso, causando um incêndio que quase a teria matado se alguém não tivesse visto a tempo e a retirado da casa. De acordo com a comunicação de Ana durante seu pós-operatório, é possível conceber que o desligamento se representava na paciente por intermédio de uma mãe fria, incapaz de esquentar. Devido a relação transferencial estabelecida com um objeto que esquenta mesmo antes do cobertor, Ana passa a ter possibilidades de encontrar um continente para seu desconforto expresso pelo frio. Também está implícito, na demanda de Ana, um pedido de que a analista se ligue nela, contribuindo para que, nas situações como as de internação - em que vida e morte se tangenciam -, encontre um outro na temperatura solicitada, permitindo o estabelecimento de uma ligação ou, em última instância, um predomínio de experiências de vida. O acolhimento e a contenção proporcionado pelas mãos quentinhas da analista, que esquentam antes mesmo do cobertor, podem ser entendido como a instauração de um setting capaz de possibilitar meios para construir uma narratividade capaz de elaborar a experiência traumática.
Construção da narratividade: uma via para a inscrição do traumático
Em casos como os que foram brevemente apresentados, o grande desafio é construir uma narratividade a partir da qual seja possível estabelecer uma via de elaboração para o golpe traumático, permitindo uma historização capaz de inaugurar um outro passado e um futuro novo. Nas situações clínicas apresentadas, tanto a experiência do rosto desfigurado quanto o aparecimento de sequelas cognitivas, conduziram à atualização de traumas precoces e, portanto, de modos primários de defesa. O manejo da dinâmica transfero-contratransferencial permite o acesso a impressões precoces que, por não terem sido simbolizadas, são reexperimentadas durante o contato com o analista. Ao evocar o passado, sem conseguir transformá-lo em lembrança dizíveis, estes pacientes experimentam sentimentos intensos e expressivos de uma memória afetiva. Acreditando ser somente através dos afetos que uma via de (re)construção e de elaboração subjetiva podem ser instauradas, torna-se oportuno retornar ao caso de Pedro e expor uma particularidade do manejo de seus atendimentos.
Uma das sequelas deixadas pelos AVEs sofridos por Pedro foi a síndrome pseudobulbar que consiste na paralisia dos músculos de inervação bulbar causada por um comprometimento supra-nuclear. O quadro clínico é dominado por perturbações da fonação e da deglutição, relacionadas com um déficit do comando da língua, do véu palatino, da faringe e da laringe. Aos déficits associam-se a espasticidade e os fenômenos de liberação da mímica automática: risos e choros espasmódicos. Desde o começo dos atendimentos, esta síndrome marcava presença nas sessões, sobretudo, quando tocávamos em algo que mobilizava os afetos de Pedro. Durante a manifestação da síndrome, o paciente apresentava um misto de engasgo, choro engolido e risada que passamos a chamar de "risada frouxa". Esta passou a funcionar como uma espécie de bússola, fornecendo, para a analista, um indicativo da gradação das emoções e das angústias de Pedro e, para ele, possíveis sinais de melhora ou de piora. Sua lógica era a seguinte: quanto menor o número de risadas frouxas, maior a sua capacidade de aguentar, de se controlar: sinal de melhora. O inverso era sinal de que ele precisava aguentar mais, "estar pronto para o que desse e viesse".
Os afetos despertados pela manifestação desta espécie de ato expressivo e comunicativo deixavam-no mobilizado. Se as palavras escapavam-lhe nos momentos em que tentava exprimir seus pensamentos, a função do analista era construir, junto com ele, um sentido para o afeto despertado. Quando a risada frouxa foi articulada aos afetos manifestados, o processo comunicativo e, sobretudo, expressivo ampliou-se, comportando e destacando a presença sensível do analista na sessão. Em 1928, Ferenczi propôs a noção de tato psicológico como norteadora da ação do analista. Tratava-se da capacidade do analista estabelecer um contato empático com o paciente, cuja função seria possibilitar a compreensão emocional de "quando e como se comunica alguma coisa ao analisando" (FERENCZI, 1928, p. 27). Definido como a faculdade de "sentir com", o tato supõe uma postura flexível - "como uma tira elástica" que cede "às tendências do paciente, mas sem abandonar a tração" (FERENCZI, 19281, p. 31-2) - que permita ao analista participar da sessão com seus próprios processos psíquicos em sintonia com seu paciente, ou seja, tornando-se parte do processo de simbolização com sua presença sensível. Nos casos em que o golpe traumático subtrai os recursos para a elaboração psíquica, somente o oferecimento de um espaço analítico sensível e flexível pode ser capaz de possibilitar a construção narrativa da experiência traumática, inserindo-a em uma rede de sentidos e significações.
No caso de Pedro, os processos perceptuais e cognitivos do analista foram usados como suporte para facilitar a compreensão dos afetos expressos de forma não-verbal pelo paciente: diante do engasgo provocado pela risada, o trabalho era nomear e criar legendas para os sentimentos que brotavam. Em um dos atendimentos, a analista disse: "Pedro, sinto que quando sua risada afrouxa e você se engasga, tem alguma coisa que está difícil de sair, de dizer, de colocar em palavras". Ao que Pedro respondia, com muita dificuldade: "é vergonha do fracasso". Se as primeiras sessões duravam não mais que 30 minutos, sendo metade ocupada pela risada, aos poucos ela foi se retirando e Pedro conseguia permanecer mais tempo no atendimento. Assim, sua "risada frouxa" tinha aberto a possibilidade de estabelecer um canal narrativo.
A partir desta abertura, o esforço de falar sobre si e situar a experiência dolorosa no tempo pode ser entendido como um meio de elaboração de traumas precoces, como se o atual fosse uma espécie de fio que costurasse o tecido da existência e fizesse surgir, aos poucos, um desenho que integrasse o infantil e o sofrimento suscitado pelo acontecimento traumático. Ao longo do tempo, quando possível, este trabalho favorece certo tipo de manejo psíquico das rupturas vividas e a atualização de questões anteriores ao traumatismo, permitindo assim que sejam elaboradas e que, consequentemente, tragam consigo novas outras a serem investigadas.
Referências
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ZALTZMAN, N. A pulsão anarquista. São Paulo: Escuta, 1994. [ Links ]
Artigo recebido em: 22/03/2014
Aprovado para publicação em: 01/05/2014
Endereço para correspondência
Perla Klautau
E-mail: pklautau@uol.com.br
Sara Kislanov
E-mail: sarakislov@hotmail.com
Monah Winograd
E-mail: winograd@uol.com.br
*Psicanalista, membro efetivo/CPRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), pós-doutoranda em Psicologia Clínica/PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), bolsista FAPERJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
**Psicanalista, membro efetivo/SPRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), profa. do Departamento de Psicologia/PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
***Psicanalista, profa. do Programa de pós-graduação/Psicologia Clínica/ PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).