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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.39 no.36 Rio de Jeneiro jan./jun. 2017
ARTIGOS
Fantasia e angústia na obra de Hayao Miyasaki
Fantasy and Anguish in Hayao Miyazaki's Work
Paula Rocha HayashidaI*; Marcela Toledo França de AlmeidaI**
IUniversidade Federal de Goiás - UFG - Brasil
RESUMO
Apesar de os fundamentos do pensamento psicanalítico emergirem da clínica, Freud nunca se furtou a recorrer aos artistas para o aprofundamento da construção teórica, acerca das experiências retomadas no trabalho de psicanálise. Tendo isso como premissa, este artigo buscou entender os conceitos psicanalíticos de angústia e fantasia à luz das animações japonesas de Hayao Miyasaki (1941). O estranhamento provocado pela obra de Hayao Miyasaki proporciona uma experiência que, em muito, se assemelha à fantasia e sua aproximação do afeto de angústia no trabalho de psicanálise. A partir disso, o presente trabalho se propõe pensar em que medida não se trataria a análise de um atravessamento da angústia e a importância da ética para que esta condição se sustente.
ABSTRACT
Although the foundations of psychoanalytical thought emerge from the clinic, Freud never hesitated recurring to artists as to deepen the theoretical construction of the experiences taken up in the exercise of psychoanalysis. Having this as a premise, this article sought to understand the psychoanalytic concepts of anguish and fantasy in the light of Hayao Miyasaki's Japanese animations (1941). The strangeness provoked by Miyazaki's work provides an experience that very much resembles fantasy and its closeness to the affection of anguish in the practice of psychoanalysis. From this, the present work intends to think to what extent the analysis would be a crossing through the anguish, and the importance of ethics so that this condition can be sustained.
Keywords: Fantasy, Anguish, Antithetic, Miyasaki.
Introdução
Em todo o percurso das primeiras experiências até a constituição de um sujeito simbólico, o ser humano é marcado pela lógica antitética, a aproximação de ideias opostas. Na teoria psicanalítica, isto faz notação na própria construção de conceitos que tentam se aproximar da tensão da vida. Ela está presente na pedra angular que sustenta a psicanálise, como dirá Freud, ou seja, no próprio conceito de recalque, pois este contém ao mesmo tempo a ideia de esquecimento e de memória. Está também presente nos efeitos do recalque, como na ideia de estranho, que contém, ao mesmo tempo, a ideia de estranho e familiar. Por fim, essa tensão também se apresenta em dualidades, pares de oposições que não existem fora dessa relação de par, como é o caso do consciente/inconsciente, prazer/desprazer, princípio de prazer/princípio de realidade, falo/castração ou pulsão de vida/pulsão de morte. Esses pares, Freud denominou pares antitéticos.
Carregando em sua constituição lógica, um movimento antitético, também se encontram os conceitos de fantasia e angústia. Ambos os conceitos partilham a mesma estrutura, duas faces de uma mesma moeda, posto que sejam construções defensivas do eu, frente a sua condição originária de desamparo. No entanto, essas duas formas de defesa são tomadas, de imediato, como experiências absolutamente distintas e, até mesmo, opostas para o sujeito. Afinal, a angústia defende o sujeito, fazendo-o vivenciar apenas um sinal daquilo que, para Freud, só pode ser pensado miticamente, o desamparo. Enquanto a fantasia defende o sujeito, afastando-o da realidade insatisfatória e insuportável e, portanto, afastando-o da angústia, através da criação de outra realidade ficcional. São esses dois conceitos, simultaneamente próximos e opostos, que serão desdobrados neste artigo.
Não muito distante da lógica antitética pensada pela psicanálise, encontra-se um artista cujo estilo também envolve a tensão antitética presente na fantasia e na angústia. Trata-se da arte de animação estranha de Hayao Miyasaki (1941) (usando aqui o conceito freudiano de estranho - aquilo que é estranho e familiar, assombroso e encantador - ou seja, experiência antitética).
Hayao Miyasaki é um diretor, roteirista e desenhista japonês consagrado como um dos principais nomes da animação mundial, mais conhecido pelo filme ganhador do Oscar A viagem de Chihiro. O artista cresceu durante o período japonês de miséria e horror no pós-Segunda Guerra Mundial, período esse que ecoa em suas obras, através da tentativa de editar a crueza Real vivenciada por ele, a partir do Simbólico e do Imaginário, num deslizamento fantástico. Assim, em todas as suas animações, somos jogados junto aos seus protagonistas em situações comparáveis ao desamparo originário - "solidão, escuridão, silêncio" (1919/1996, p. 156), como articula Freud ao apresentar estas como as faces da angústia infantil. Ou seja, crianças vivenciando, de alguma forma, a ausência dos pais, personagens presos a situações irrepresentáveis, que lhe escapam aos sentidos, e isto seja no fato de serem arremessados a um mundo fantástico desconhecido e assustador, seja indo ao encontro de criaturas monstruosas, que sofreram modificações corporais bruscas, como por exemplo, uma jovem se tornando idosa e um rapaz se tornando um porco.
Em contrapartida, na obra de Miyasaki somos capazes de ver esses mesmos protagonistas passando por situações angustiantes, contudo, sem serem paralisados pelo trauma. Em momento algum, as personagens reconhecem a sua própria situação de horror, pois estão sustentadas por uma fantasia, uma tela que recobre a realidade com outros sentidos e mantém o desejo em movimento. Tanto é que, em suas histórias, sempre resta a dúvida se o que foi vivenciado pelos protagonistas foi verdade ou foi uma fuga, uma escapatória da realidade insuportável. Mas, ao final, não resta dúvidas ao espectador que todo o enredo e percurso dos protagonistas são direcionados por algum determinado desejo deles. Para quem assiste aos filmes de Miyasaki a impressão é de que a angústia é necessária para desejar e construir a fantasia.
Desse modo, o presente artigo buscou encontrar, na obra de Hayao Miyasaki, elementos que dessem movimento à relação antitética entre os conceitos psicanalíticos de fantasia e angústia. A contribuição da arte para a apreensão dos conceitos psicanalíticos e os seus sentidos antitéticos já é clara desde Freud, quando o autor utiliza, por exemplo, Goethe, Shakespeare, Schelling, Hoffmann ou Cervantes, em seus textos teóricos. Tal relação é possível uma vez que a arte traz à tona um saber inconsciente, distinto do saber da razão consciente. Em suas Conferências norte-americanas, Lacan (1975/1976) exemplifica bem a sua concepção da possível relação entre a psicanálise e a arte: a psicanálise não deve analisar o artista através de sua obra, mas sim analisar o inconsciente dela, pois toda obra de arte é "um testemunho, por assim dizer, do inconsciente" (JORGE, 2010, p. 180).
Desenvolvimento
Tanto a angústia quanto a fantasia foram temas presentes, desde o princípio do percurso teórico e clínico de Freud acerca das neuroses, sendo também, portanto, considerados dentre os conceitos que mais sofreram modificações no decorrer de sua obra. A fantasia surge ligada à investigação com as histéricas, nos trilhos da teoria da sedução de Freud (1933/1976), onde ele passa a entender que o que antes achava ser memória de traumas sexuais, ocorridos na infância (relatado pelas histéricas), na verdade não correspondia ao que, realmente, havia acontecido: tratava-se de fantasias de sedução, originadas por satisfações não obtidas na infância. Já, a angústia, surge ligada às neuroses de angústia, onde, ainda preocupado em enquadrar a psicanálise em termos fisiológicos, Freud acredita ser a angústia uma quantidade de libido não descarregada, que se tornaria excitação acumulada, escapando, na forma de sensações desprazerosas, em órgãos ligados à motilidade (coração, pulmão) (LEITE, 2011, p. 40).
Com o desenvolvimento freudiano, tanto da fantasia quanto da angústia, e com os acréscimos feitos por Lacan em sua releitura da obra de Freud, os dois conceitos acabam por se entrelaçar, até não ser possível conceber um sem o outro. O percurso desse artigo será o de aprofundamento no conceito de fantasia e, posteriormente, no conceito de angústia, para, por fim, alcançar a tensão antitética em um e em outro conceito - sem que seja preciso que ambos se exibam para que estejam presentes na lógica inconsciente e também na obra de Miyasaki. Ou seja, basta que um se exponha para que o outro esteja presente como uma oposição interna ao conceito citado.
Ainda nos primórdios de suas formulações sobre a fantasia, ainda quando a diferenciação entre ela e a alucinação não estava instaurada, Freud (1907/1997, p. 53) já anunciava a base para o entendimento da estrutura fantasística: as fantasias "[...] na verdade são produtos de uma conciliação entre as duas correntes mentais". Essas "duas correntes mentais" dizem respeito à cisão constituinte do sujeito. Essa cisão o separa em dois sistemas, que são regidos por dois princípios distintos: de um lado, o inconsciente regido pelo princípio de prazer, do outro o consciente, orientado pelo princípio de realidade. Dessa forma, a fantasia teria sua formação a partir de tal cisão, surgindo como um modo de conciliar consciente, inconsciente e seus respectivos princípios de funcionamento.
Essa concepção da fantasia, como conciliação entre duas forças psíquicas distintas, é desenvolvida, estruturalmente, no artigo freudiano Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico (1911/2004). Em uma revisão das obras freudianas, o psicanalista Coutinho Jorge (2010) destaca um período de 1906 a 1911 das obras de Freud, onde o tema da fantasia foi amplamente abordado e desenvolvido, denominando-o "ciclo da fantasia" na obra freudiana.
Para o autor, esse ciclo finaliza, justamente, com o artigo sobre os dois princípios, considerado o texto metapsicológico da fantasia. Em tal artigo, Freud parte da relação entre o neurótico e a realidade, no sentido de que o sintoma do neurótico vem para afastá-lo de uma realidade não satisfatória.
Assim, através da escuta clínica dos processos inconscientes de seus pacientes, Freud delineia que estes são processos remanescentes de uma fase do desenvolvimento, na qual eram os únicos existentes. São os processos mais antigos, primitivos, aqueles presentes no infante. Freud os chama de princípio de prazer, pois o que eles aspiram é a obtenção do prazer e o desvencilhamento do desprazer. No primeiro tempo, quando o princípio de prazer era o único a reger o psiquismo, a forma de obtenção de prazer do indivíduo, quando a satisfação almejada de sua pulsão não ocorre, é a alucinação. Um exemplo desse mecanismo trabalhado por Freud (FREUD, 1995/1996) em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, é o chuchar do bebê, alucinando ser o seu dedo o seio materno, uma das suas maiores fontes de prazer. Vale lembrar aqui a concepção de desprazer e prazer para a psicanálise: enquanto o primeiro consiste no aumento excessivo de excitação vinda dos órgãos, o segundo consiste na diminuição dessa excitação.
Porém, tanto a alucinação quanto a primazia do princípio de prazer sobre o psiquismo, após várias frustrações do infante, mostram-se insuficientes para apaziguar, tanto as excitações decorridas por fontes externas (percepto-sensoriais), quanto por fontes internas (pulsão), já que a realidade externa não é considerada como tal. Por não considerar essa realidade na qualidade de externa, o infante busca sua modificação e esses processos primários se mostram insuficientes para obter o que o próprio princípio de prazer almeja: o prazer.
É por isso que, ao longo de um processo lento e gradual, o aparelho psíquico se adapta a fim de considerar a realidade e conseguir se satisfizer de maneira mais eficaz. Seus órgãos sensoriais, voltados à captação do mundo externo, passam a exercer papel mais relevante no psiquismo, assim como a consciência a eles ligada, que passa a se interessar não só pelo quantitativo do prazer-desprazer como antes, mas também pelas qualidades sensoriais (variação de excitação em um determinado período de tempo). A via motora, antes utilizada para descarregamento de energia, agora passa a ter a função de modificar a realidade de modo eficaz, através da ação. Mas, como nem toda ação pode ser imediata, surge a necessidade de postergar algumas, o que é viabilizado pelo processo de pensar. Essas adaptações, entre outras, são consequências da instauração de um novo princípio no psiquismo: o princípio de realidade, que não vem substituir o antigo, mas sim, sustentá-lo.
É nessa passagem entre a primazia do princípio do prazer para o surgimento do princípio de realidade que a fantasia se instaura: um determinado tipo do processo de pensar se desprende do princípio de realidade, ao qual ele serve para ficar submetido apenas ao princípio do prazer, o que a aproxima, tanto da própria pulsão, quanto do inconsciente, que também não se submetem ao princípio de realidade. Um exemplo de fantasia que Freud oferece nesse texto, seria o brincar da criança ou o devanear do adulto.
Assim como a alucinação, a fantasia surge para a obtenção da satisfação imediata que foi negada pela realidade, mas continua sendo demandada pela pulsão. Basicamente, o princípio de realidade é acompanhado de renúncias que o sujeito deve fazer devido às exigências da realidade, mas, na atividade do fantasiar, esse sujeito se livra de tais renúncias. No entanto, ao contrário da alucinação, o recalque permanece onipotente na atividade do fantasiar, fazendo o sujeito conseguir diferenciá-la da realidade externa e continuar inibindo representações recalcadas.
Chega-se, então, a um tema sem o qual seria impossível avançar em fantasia, a saber, o recalque. É também por causa da relação com o recalque que apenas a estrutura neurótica dentre as três estruturas (neurose, perversão, psicose) é capaz de fantasiar:
Esse esquema pode ser complexificado para permitir visualizar ainda o lugar matricial da fantasia no psiquismo, a qual, na psicose - não se instaurando como fantasia fundamental que mediatiza o encontro com o real e constitui a realidade psíquica-, dá lugar ao delírio, que vem precisamente tentar preencher a falha deixada pela ausência da fantasia (JORGE, 2010, p. 70).
Na perversão, o não recalque da fantasia é o responsável por essa estrutura ser, para Freud, o "positivo" da neurose. A fantasia constitui a matriz perversa da neurose, ela ocupa na perversão o mesmo lugar que o sintoma ocupa na neurose, e o delírio, na psicose (JORGE, 2010, p. 71).
Ou seja, na psicose não há fantasia, pois não há o recalque do real, o recalque originário. Já, na perversão, não há o recalque da fantasia primordial, o recalque secundário, fazendo com que o perverso realize a fantasia em ato. Mas, o conceito de recalque, fases do recalque e fantasia serão mais discutidos adiante.
O recalque é um conceito central na psicanálise, pois, à risca, é ele o responsável por constituir o ser humano tal como conhecemos, um ser faltoso e de linguagem. Podemos entendê-lo como um processo estruturante, que consiste em manter longe do consciente do sujeito (no inconsciente) algum conteúdo. Deve-se notar que o recalque não se confunde, totalmente, com o esquecer, pois é um processo constante e penoso, uma vez que o conteúdo recalcado sempre insistirá em retornar ao consciente. A função do recalque é possibilitar a vida do sujeito frente à realidade externa, que impede a sua satisfação.
Anteriormente à formulação de Freud sobre as três fases do recalque, presente nas cartas de Freud (1986/1990) à Fliess e estruturada em seu texto Mal estar na cultura (1930/2010), está o que ele nomeou de recalque orgânico - o recalque que antecede e permite a existência de todas as três fases. O recalque orgânico diz respeito a um recalque ocorrido na espécie humana, onde o conteúdo recalcado foi o instinto, ou melhor, o saber instintual que orienta o animal na busca pelo objeto de sua satisfação orgânica:
Àquelas três fases do recalcamento apresentadas por Freud em "O caso Schreber", pode-se acrescentar uma quarta fase, que funciona como um verdadeiro ponto zero. Essa fase, filogenética, portanto pré-histórica, corresponde ao momento em que na evolução da espécie humana deu-se algo inteiramente novo e pleno de consequências, o advento da postura ereta. Ressalta-se que, embora haja autores que tendem a não considerar o recalque orgânico enquanto conceito específico e diferente do recalque originário, acreditamos que tal distinção é não só necessária, como também bastante frutífera para se explicitar o advento surpreendente do funcionamento pulsional na sexualidade da espécie humana. Se o recalque propriamente dito (ou secundário) é efeito do recalque originário, esse é, por sua vez, o efeito do recalque orgânico que teria originado a espécie humana (JORGE, 2008, p. 71).
É, então, devido ao recalque orgânico que natural e instintual são categorias que não contemplam o destino humano. Distinção que diferencia os animais, como aqueles que possuem instintos, dos humanos, que, para Freud, são regidos pela pulsão. Ambas são energias vindas dos órgãos, buscando por satisfação; porém, o instinto já possui um objeto predefinido para tal satisfação, um saber filogenético sobre o objeto de satisfação. Para a pulsão, que não possui tal saber, resta a pressão constante em direção a uma satisfação, que almeja a completude, por nunca encontrar o seu objeto absoluto perdido. Em seu Seminário 7 (1997), Lacan se refere a esse objeto absoluto como a Coisa (das Ding ), resgatando o termo do Projeto para uma psicologia científica (1895/1996), de Freud.
O recalque do instinto inaugura no ser humano a vivência de um completo não-saber imediatamente ao seu nascimento. A essa experiência de total não-senso, logo no primeiro tempo de vida, Lacan denominou de vivência do Real. É sobre essa vivência do Real que o primeiro recalque ontogenético - o recalque originário ou primário - incide, inaugurando a cisão primordial do humano em inconsciente e consciente, permitindo, assim, a estruturação simbólica do psiquismo (duplo sentido) e a emergência da fantasia. É aqui que se encontra, portanto, a passagem do princípio do prazer para o princípio de realidade, explicitado há alguns parágrafos.
O segundo recalque - recalque secundário - é o herdeiro do Complexo de Édipo e entra incidindo sobre a fantasia emergida no recalque primário, pois essa fantasia primordial é de conteúdo incestuoso e parricida (fantasia de se satisfazer sem limites com uma das figuras parentais e fantasia de assassinar a outra figura por ser o objeto de desejo da primeira) e, portanto, não tolerados pela cultura. É daí que emerge a terceira fase do recalque, o retorno do recalcado, quando o recalque falha devido à força exercida pela pressão da pulsão ligada à fantasia primordial, deixando-a retornar em forma de sintoma.
A fantasia tem as suas primeiras estruturações no processo de recalque originário para se proteger frente à situação angustiante de total imersão no Real. Mas, o que seria essa situação e porque haveria a necessidade de proteger-se dela? Freud (1914/1990, p. 24) irá nomeá-la "desamparo originário". É a condição primária de todo ser humano e, portanto, mítica, já que ela seria anterior à constituição da memória: após ser violentamente arrancado de um aparente conforto, devido à passividade motora, passando do meio líquido ao ar, do acolhimento seguro para a força da gravidade e sendo obrigado a usar os pulmões, o recém-nascido é bombardeado por excitações em quantidades tão excessivas (vindas do percepto-sensorial e das pulsões) que ele ainda é incapaz de processá-las, representá-las - o que é sentido como um enorme desprazer. Pelo não-saber estrutural que carrega e pela falta de maturação fisiológica, o infante ainda possui a sensação de um corpo despedaçado, desunificado, indiferenciado do mundo e não é capaz de agir para obter qualquer tipo de satisfação. Encontra-se assim, totalmente à mercê de um Outro.
O "Outro", grafado com "o" maiúsculo, é referente à conceituação lacaniana e implica um campo simbólico que antecede a existência do sujeito, não se limitando à ideia de outro enquanto semelhante, uma vez que inclui a diferença e a alteridade (LEITE, 2011, p. 59). Esse Outro, inicialmente representado pela figura materna (por ser erogenizado pela linguagem dela), é visto como a única via de satisfação das pulsões constantes, a única via de prazer. No entanto, a pulsão nunca é satisfeita totalmente, permanecendo sempre um resto. O infante possui essa percepção no jogo de presença e ausência da mãe, antecipando um prazer no desprazer da ausência. Esse resto remete o infante à sua falta constituinte; mas, o mais doloroso nesse momento é o fato de remeter à falta no outro que compõe o Outro para ele - esse que, supostamente, seria capaz de lhe prover a satisfação absoluta.
Aqui, o caminho teórico da fantasia se entrelaça ao caminho da angústia, pois a angústia se apresenta quando falta o desejo sustentado pela fluidez da fantasia. Em Conferência XXXII: Ansiedade e vida instintual Freud (1993/1976) desenvolve o conceito de angústia estruturado em Inibições, sintomas e ansiedade (1925/1980) como uma sensação desprazerosa com teor de descarga (por se manifestar nos órgãos de inervações motoras, como coração e pulmão), dividindo-a em dois tipos: angústia real e angústia sinal. A angústia real aconteceria durante o recalque originário, quando não haveria simbolização o suficiente para colocar em palavras um evento traumático vivido no corpo. Já, a angústia sinal é o que daria ao sujeito o sinal do Real por meio do signo (para o neurótico) e, portanto, só poderia ser vivida após o recalque secundário. Ou seja, após o recalque secundário a angústia não é vivida na crueza do Real do corpo, consistindo em uma reprodução enfraquecida da angústia real. Ela é reproduzida como um estado afetivo ligado a uma imagem mnêmica preexistente (referência aos traços e marcas que se inscrevem no psiquismo constituindo a memória) e anterior à representação, restando apenas o afeto. Sua função é de ordem protetora: prepara o eu para o traumático já vivido uma vez, reproduzindo-o num nível mais reduzido para, com isto, realizar um trabalho de representação mental, agora possível. O eu que experimentou o trauma passivamente, agora o repete ativamente, no intuito de ter algum domínio sobre a situação.
Seguindo esta linha de concepção de angústia, a psicanalista Sônia Leite aponta para a angústia em Lacan, em seu teor de desmoronamento da imagem corporal, ou seja, ela se manifesta quando o Real se apresenta no Imaginário (2010, p. 61). O Imaginário, para Lacan, está, intrinsecamente, relacionado ao momento de desamparo originário. Sem um saber natural e sem o saber da linguagem, por ainda não estar inserido no Simbólico, são às imagens que o infante recorrerá para uma mínima organização psíquica. Não é para menos que Freud em Pulsões e destinos da pulsão (1915/2004) nos fala de uma pulsão escópica, de um prazer no olhar que revela a ambivalência da atividade e da passividade, que depois Lacan (1966/1998) retomará, destacando a sua importância para a constituição do sujeito.
É a essa constituição de uma imagem corporal, um eu, que Lacan (1966/1998) irá nos falar quando apresenta o estádio do espelho. Retornando ao texto Narcisismo: uma introdução, de Freud (1914/1990), Lacan retira dele a ideia de que o eu é um objeto, ou seja, para ser constituído, precisa de investimento da libido (pulsão). Utilizando o experimento de 1932 do psicólogo Henri Wallon onde, diante de um espelho, macacos e bebês humanos obtinham reações diferentes: ao contrário do macaco, os bebês respondiam com júbilo à sua imagem refletida. Lacan propõe que a criança, quando vê sua imagem em um espelho, entra em júbilo por antecipar, através da imagem, a sensação de corpo unificado (antecipação do psíquico ao fisiológico). Essa imagem é denominada eu ideal e é ilusória. No entanto, produz uma sensação de domínio oposta àquela que, inicialmente, experimenta, de um corpo despedaçado, que foge de seu controle.
Porém, não é preciso, literalmente, uma experiência de ver sua imagem refletida em um espelho para que o eu ideal seja constituído. O estádio do espelho diz respeito ao momento em que o infante constitui uma identificação com o seu semelhante (figura materna), identificação essa que permite um investimento do eu, sua unificação, que resulta em um apaziguamento do sofrimento e um prazer. Essa identificação consiste em introjetar na imagem do eu o que é prazeroso e projetar o que é desprazeroso, sendo capaz, pela primeira vez, de diferenciar mundo: o interno e o externo. Coincide, assim, com a relação dual de que nos fala Freud, em que o bebê possui a ilusão de completude, pois, na formação de seu eu ideal, considera a imagem do outro (que, originalmente, se sustenta na figura materna) como uma continuação de si mesmo.
Entretanto, paralelo ao que Freud fala sobre o jogo da presença e da ausência do objeto - por haver momentos de ausência dessa continuidade e momentos de não imediaticidade da satisfação de suas pulsões -, o infante passa a perceber que também há falta no Outro, mas que ela é tamponada por um terceiro elemento, o falo. Este elemento está entre a figura materna e o bebê e é para onde o desejo da primeira está direcionado, justificando as suas ausências e a incapacidade de oferecer satisfação absoluta. Vale lembrar que para a psicanálise, desejo não se confunde com "querer", pois ele implica, em sua estrutura, a falta do objeto absoluto que é, em última instância, a sua causa. Aqui, almejando manter a completude, o infante passa a desejar o desejo do Outro: o falo. Um mais além para a criança que, para ser atingido, precisa da figura paterna na chamada ordem Simbólica, que só ocorrerá após o recalque originário. O mundo se torna não apenas um lugar para saciar as pulsões, mas um lugar onde impera a fala, que submete o desejo de cada um à lei do desejo do Outro.
É no momento em que o enigmático desejo materno é, parcialmente, decifrado para a criança, ou seja, quando esse desejo ganha um sentido, a partir do significante Nome-do-Pai (apresentado pela fala da figura materna), que indica que o desejo da mãe está submetido a uma lei que se encontre além da criança. Agora, a infante percebe-se não mais como o objeto absoluto de desejo da mãe e pode se tornar um sujeito desejante. A impossibilidade do gozo absoluto traz à tona a sua marca pela interdição, pois essa passa a ser a única forma pela qual o sujeito tem acesso a algum tipo de gozo. Esse é o momento onde ocorre o recalque secundário - originário do sujeito de desejo - agora ele passa de objeto a sujeito, ele se apropria da linguagem a qual estava inserido, passando a desejar e ter uma organização psíquica. Porém, a constituição do infante como sujeito possui um preço: a castração. A completude, antes tida com a figura materna, o gozo absoluto, é interditada pelo Nome-do-Pai. É, nesse momento, segundo Leite (2010), que Lacan diz surgir a angústia. Por isso, a angústia é sempre uma angústia de castração, de desmoronamento do eu (eu ideal) e de vulnerabilidade frente à imposição do Outro.
É para se proteger dessa angústia que, para Lacan, surge a fantasia. Uma matriz psíquica simbólico-imaginária, que mediará o sujeito e a realidade. A fantasia apresenta objetos da realidade velados, para que a falta não se apresente neles e o sujeito seja capaz de se ligar, libidinalmente, a eles, dando movimento ao seu desejo. A fantasia é uma ficção construída em cima do recalque, uma ficção onde há a promessa de que a completude é possível. No entanto, ao mesmo tempo em que a matriz fantasística do sujeito o possibilita continuar vivendo (no sentido de se ligar aos objetos), ela também o limita, pois o deixa preso a uma determinada parcela da realidade, a determinados objetos familiares e fixados: o sujeito se encontra limitado àquilo que lhe foi marcado como prazeroso. A fixação da fantasia, a fixação em um só sentido, como vimos, é prejudicial ao sujeito, pois é da ordem da ilusão, da alienação, esconde a falta que não pode ser excluída de sua experiência e, portanto, impossibilita o desejo (onde a falta deve ser considerada).
Dessa forma, podemos chegar à conclusão de que, para manter em movimento os sentidos da fantasia, é necessária a angústia. Para que não ocorra uma imaginarização da fantasia, uma paralisia, que leva o sujeito ao adoecimento e à alienação do desejo, a falta precisa ser reconhecida, desvelada: por isso, a importância da angústia que vem estremecer o eu, incitando a fantasia a se reajustar e a se recriar com novas possibilidades. Daí, o destaque dado por Freud ao jogo da presença e da ausência do objeto: é preciso elaborar o luto pela ausência do objeto, através da fantasia, pois em toda presença tem-se a ausência.
Aprofundando em fantasia e angústia chega-se então à tensão antitética que as envolve. A fantasia presentifica aquilo que negamos por meio dela, a angústia. Recorrendo à metáfora pensada por Freud, a partir do mito do deus Janus (JORGE, 2008, p. 103), cuja representação possui duas faces ligadas a um mesmo busto, uma jovial, olhando para frente e a outra envelhecida, voltada para trás, podemos pensar na relação entre a angústia e a fantasia. Como o busto de Janus, fantasia e angústia são tributárias da mesma estrutura, mesmo que uma aponte para verdade, o Real, o objeto sem o véu simbólico-imaginário e a outra dissimule uma montagem criada por uma linha de ficção, mostre o objeto de forma velada. Essa estrutura é a falta do objeto ou como Lacan denominou: objeto a. Assim, fantasia e angústia articulam-se como duas faces da moeda do desejo (LEITE, 2010).
Fazendo conexão com a estética, essa tensão antitética, na fantasia e na angústia, fica clara no conceito freudiano de estranho familiar. O estranho (1919/1996) é o primeiro texto em que Freud irá se debruçar sobre o tema da estética, definindo-a como a teoria das qualidades do sentir e focando em uma dessas qualidades, a saber, o estranho. Intrigado com a pluralidade de sentidos que o estranho possui, Freud realiza uma breve revisão linguística, acerca da etiologia de tal palavra, em outras línguas e em sua língua nativa (alemão). Nessa revisão, o conceito de estranho se desenvolve sempre em direção à ambiguidade até, finalmente, coincidir com o seu próprio oposto em uma das definições do alemão: unheimlich (estranho) é definido como heimlich (familiar). A ambiguidade do termo heimlich, tal como nos apresenta Freud, reflete o próprio fenômeno do estranho - é exatamente o desvelamento dessa ambiguidade que nos faz assustar, esse ponto de encontro quando, então, não sabemos mais distinguir familiar e estrangeiro. Nem tudo que é assustador e sinistro evoca o sentimento de estranheza. É preciso, além disso, que se dê o retorno do recalcado no sujeito, ou seja, que seja evocado algo que lhe é familiar, mas deveria ter permanecido oculto, inconsciente. O estranho familiar diz respeito à nossa fantasia inconsciente, mas também diz respeito às angústias que essa fantasia presentifica e, por isso, ele é sentido como ambiguidade pelo sujeito, atraindo e repelindo simultaneamente.
Estranho familiar é como podemos considerar a estética das obras de Hayao Miyasaki. Retomando a ideia de que a fantasia é um véu que vela com o imaginário e o simbólico, o objeto e a angústia é aquilo que o desvela, apontando para verdade, o Real da falta de objeto, podemos pensar na estética de Miyasaki como um véu, que hora oculta, ora revela o objeto a. A estética de seus filmes carrega os elementos típicos dos desenhos japoneses como o contraste entre os traços infantilizados, simples e vulneráveis dos personagens e os traços realistas dos cenários. No entanto, apesar do realismo de seus cenários, a estética de Miyasaki é fantasiosa, pois cria em seus filmes uma realidade alternativa, editada com traços belos - no sentido do simples prazer da contemplação - tais como a exaltação da natureza, enfatizando a arborização, flores, montanhas, céus ou o uso de tons pastéis que apazígua o olhar.
No entanto, nessa tela protetora, criada por Miyasaki, algo que deveria ter ficado oculto escapa e daí o efeito de estranheza que a sua obra traz. "Solidão, escuridão e silêncio", segundo Freud (1919/1996, p. 314), são estas as faces do medo, da angústia infantil, que permanece no sujeito por toda a sua vida e são elas que os espectadores, junto aos personagens de Miyasaki, vivenciam em suas histórias o que remete à experiência de desamparo originário de cada um.
Assim, em Meu Vizinho Totoro tem-se, apesar de ser a animação de Miyasaki mais lúdica e voltada para o público infantil, a história de duas irmãs (Mei e Satsuki com, respectivamente, seis e dez anos) mudando-se da cidade para um ambiente rural, isolado e silencioso para ficarem mais próximas do hospital, onde sua mãe se encontra internada, vítima de um tumor no pulmão. Além da ausência repentina da mãe, as duas irmãs também vivenciam a ausência do pai que precisa trabalhar o dia inteiro, deixando-as sozinhas em casa. Também, no já mencionado A viagem de Chihiro, temos uma criança, a protagonista Chihiro de dez anos, inesperadamente se vendo em um mundo des-conhecido e temeroso, contendo toda a variedade de seres monstruosos e regido por regras e leis distintas do mundo dela. Além de tudo isso, Chihiro ainda se encontra completamente sozinha, após presenciar seus pais se transformarem em porcos. Outro exemplo é o filme Serviços de Entrega da Kiki, onde a narrativa é desencadeada quando uma criança bruxa chamada Kiki, parte da sua cidade natal e interiorana, onde só viviam bruxos, para uma cidade grande e urbanizada, onde ela é discriminada por ser a única bruxa e não possui nem um lugar para morar.
Além das experiências de desamparo, da perda e do sentimento de exclusão, outro elemento muito recorrente, na obra de Miyasaki e que gera estranheza no espectador, é o uso de imagens monstruosas decorrentes de características do corpo humano deformado, pela fusão com partes de animais ou máquinas. Freud já havia destacado esse elemento em O estranho (1996) como algo causador de estranheza no sujeito, ao usar como exemplo a história do Homem da Areia de Hoffmann. E, a partir do estágio do espelho de Lacan, pode-se pensar em um desmoronamento da imagem corporal, já que esse corpo é desprovido de seu sentido. Ao aparecer fora de contexto, o uso dessas características aponta para Real do corpo no Imaginário e remetem à fase anterior ao estágio do espelho, na angustiante sensação de despedaçamento e crueza do corpo. O filme com o maior número de imagens desse elemento é A viagem de Chihiro, onde por se encontrar em outro mundo, Chihiro é a única humana e se depara com uma série de seres monstruosos que, porém carregam traços humanos, como cabeças, bigodes, mãos, bocas como é o caso do Sem Face, um monstro sem rosto que possui apenas uma boca gigante muito semelhante à boca humana. Ou, então, possuem a aparência humana, porém deformada e desproporcional como é o caso da bruxa Yubaba, cuja cabeça possui o mesmo tamanho do corpo do seu filho que, apesar de possuir a forma de um bebê, é três vezes maior que Chihiro. Outra personagem que carrega esta estranheza é um empregado da bruxa Yubaba, Kamaji que é muito semelhante a um homem, porém, possui seis braços.
Fazendo referência a outro trabalho do diretor, em O castelo animado, encontramos um castelo com a aparência caótica, pois ele é composto, visivelmente, por junções de várias peças soltas sem associação entre si como telhados, chaminés, máquinas, torres, aviões, madeira, mas o mais desconcertante do castelo é o fato de ele se mover por possuir pernas e o fato de possuir um rosto, com olhos, nariz, boca e língua. Já, em Porco Rosso, a figura estranha é o próprio protagonista, por ser um homem com aparência de porco, fato que, apesar de ser ignorado por todos, durante o filme (que é o mais realista de Miyasaki e voltado ao público adulto) é o único elemento fantástico a aparecer nele. Essa ambiguidade gerada entre fantasia e realidade, assim como em outros filmes dele, também causam o estranhamento de que algo de familiar escapa e aproxima o espectador de um certo horror, uma experiência desconcertante entre o normal e o terrífico.
Em contrapartida, não é apenas na estética que a fantasia se apresenta nas obras do Miyasaki. Nos enredos do autor, a fantasia também está presente junto ao horror pelo qual os seus personagens passam. Em momento algum os seus personagens reconhecem a sua própria situação de horror, pois estão sustentados por uma fantasia, uma tela que recobre a realidade com outros sentidos e mantém o desejo em movimento. Assim, somos capazes de ver seus protagonistas atravessando pelas situações descritas de desamparo, de angústia, sem se paralisarem em um trauma. Tanto é que, como já foi dito, em suas histórias sempre resta a dúvida se o que foi vivenciado pelos protagonistas foi verdade ou foi uma fuga, uma escapatória da realidade, criando uma atmosfera onírica. Para quem assiste aos filmes de Miyasaki, a impressão é de que a angústia é necessária para desejar e construir a fantasia.
Em Meu vizinho Totoro, por exemplo, no ápice do desamparo dessas duas meninas (como quando Mei se perde dentro da floresta ou quando as duas irmãs ficam esperando o pai chegar do trabalho por horas, em um ponto de ônibus à noite e debaixo de chuva), que elas se encontram com uma figura totalmente ambígua: um espírito da floresta com a aparência de um monstro gigante e assustador, mas que representa e traz para as irmãs o ideal de vida da cultura zen-budista - tranquilidade, paz, contato com a natureza. As irmãs apelidam a criatura como "Totoro" por entenderem essa sonoridade em seus rugidos e, sustentadas pela realidade à parte que vivem com Totoro, onde encontram acolhimento e serenidade, as irmãs conseguem passar pelo momento de angústia de suas vidas.
Assim como em A viagem de Chihiro, onde o horror vivenciado por Chihiro é semelhante à vivência do irrepresentável, do Real no desamparo originário e assim como no desamparo, para conseguir suportar a travessia, Chihiro precisa se submeter às orientações de um Outro. Um Outro que já se apropriou daquela linguagem, daquele mundo desconhecido por ela e que traz a promessa de um acolhimento e apaziguamento da angústia. No filme, esse Outro é representado por um garoto chamado Haku, que vive naquele mundo estranho (no qual ela entra à procura de seus pais), mas é o único ser a não abominar seres humanos e a se mostrar interessado em ajudar Chihiro a recuperar seus pais e a voltar para o seu mundo. Inicialmente, Chihiro é totalmente obediente às ordens de Haku, mas, aos poucos, ela vai se apropriando das vicissitudes daquele mundo e se tornando ativa, sai da posição subjetiva de objeto para sujeito de desejo, ao provocar mudanças significativas nesse mundo de horrores. Dessa forma, a personagem é capaz de salvar seus pais e retomar sua vida no mundo que lhe pertence. Assim, o horror é mediado pela gradual elaboração de Chihiro acerca dele, assim como a fantasia o faz no sujeito e só assim a menina é capaz de realizar uma verdadeira travessia angustiante.
Considerações finais
Por mais que tenha surgido de uma prática clínica, o arcabouço teórico da psicanálise pode se estender aos elementos da cultura - como a arte - sempre no intuito de retornar a essa mesma prática clínica. Os conceitos psicanalíticos aqui trabalhados, de forma a serem mantidos em seu tensionamento originário, angústia e fantasia, são estruturados por um pensamento, essencialmente, clínico e se desdobram nas experiências culturais, desde a própria escuta do sujeito de desejo em seu percurso de análise, até as produções culturais que não se prestam à análise selvagem, mas auxiliam o pensamento psicanalítico, provocando seus conceitos para além das palavras, ecoando na clínica em sua amplitude. Do caminho teórico traçado e da estética a cerca da tensão antitética na angústia e na fantasia, chega-se à ética da psicanálise: na importância da postura do analista em sustentar a angústia do analisando no processo de análise. Lacan pensa a análise como um processo de travessia da fantasia: entendê-la para superá-la (mantendo-a). Desta feita, questão central à travessia da fantasia, pode-se dizer que a análise também deve conter uma travessia da angústia, onde é preciso que o sujeito seja capaz de atravessar, não a angústia sintomática, defensiva, mas sim a angústia incurável, existencial: aquela referente à falta que nos constitui e que nunca será totalmente tamponada (LEITE, 2010, p.83). Paradoxalmente, a travessia da angústia só é suportável para o sujeito se este estiver ancorado em sua base fantasística, pois, como vimos, o encontro com o Real sem a mediação simbólica-imaginária é traumático.
Referências
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Artigo recebido em: 14/11/2016
Aprovado para publicação em: 09/02/2017
Endereço para correspondência
Paula Rocha Hayashida
E-mail: paula_hayashida@hotmail.com
Marcela Toledo França de Almeida
E-mail: marcelapsiufg@gmail.com
*Graduanda Psicologia Faculdade de Educação/Universidade Federal de Goiás (UFG).
**Profa. adjunta processos clínicos curso de Psicologia/Universidade Federal de Goiás (UFG), doutorado Psicologia Clínica e Cultura/ Universidade de Brasília (UNB), mestrado Educação Brasileira/Universidade Federal de Goiás (UFG).