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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.39 no.36 Rio de Jeneiro jan./jun. 2017
ARTIGOS
Rupturas e continuidades na "costura enigmática": elucidações sobre a visão foucaultiana da discursividade psicanalítica
Breakdowns and continuities in "enigmatic sewing": elucidations about the Foucaultian view of psychoanalytic discursivity
Fábio Moreira VargasI*; Nelson Ernesto Coelho JuniorI**
IUniversidade de São Paulo - USP - Brasil
RESUMO
Em 1969, à ocasião de uma conferência que, posteriormente, se tornaria um texto, O que é um autor?, Michel Foucault exemplificaria as especificidades do discurso psicanalítico, situando Freud como um autor produtor de tradições. Diferentemente de um campo científico como a física, por exemplo, onde teríamos discursos homogêneos na continuidade desta disciplina, na psicanálise, por sua vez, encontraríamos um tipo discursivo marcado pela heterogeneidade das abordagens vindouras. Pretende-se, aqui, elucidar brevemente esses aspectos da análise foucaultiana sobre a psicanálise, exemplificando essa caracterização com a noção contemporânea da Terceiridade em Psicanálise e a necessidade do sempre retorno a origem, a saber, Freud.
Palavras-chave: Psicanálise contemporânea, Michel Foucault, Rupturas e continuidades, Terceiridade, Retorno a Freud.
ABSTRACT
In 1969, Michel Foucault held a conference that would be a text later "What is an Author?" in which he exemplifies the specificities of the psychoanalytic discursivity and places Freud as a producer of traditions. Differently from a scientific field, Physics for example, where there could be a homogeneous speeches in its future development, in psychoanalysis instead, we would find a kind of discursivity characterized by heterogenety of the approaches yet to come. In this paper we intent to briefly clarify these aspects of the foucaultian analysis of psychoanalysis. We will exemplify this matter using the notion of Thirdness in contemporary psychoanalysis and we will also show the necessity that we always have in psychoanalysis to return to its origin, namely, Freud.
Keywords: Contemporay Psychoanalysis, Michel Foucault, Breakdowns and continuities, Thirdness, Return to Freud.
Introdução
Freud é um fenômeno cultural. Se o passar do tempo assiste as mais agudas divergências epistêmicas - ou mesmo filosóficas - direcionadas a sua obra e se, sua fama e interesse não se mantém no nível mais alto do que já estiveram, é inequívoca tal caraterização: Freud é, ainda sim, um fenômeno da cultura. Por trás do jargão "Freud explica" pode haver, contudo, uma particularidade interessante. Adentrar à fundo essa manifestação popular sobre o alcance das explicações freudianas revelar-nos-á, não, simplesmente, um campo teórico vastíssimo, algo indubitável, mas uma maneira discursiva inerente à psicanálise caracterizada por regras e padrões, que possibilitam, não apenas, a proliferação desta disciplina discursiva em outras manifestações diversas, mas, inclusive e necessariamente, um retorno estratégico à fonte. De maneira um tanto enigmática, a obra freudiana instauraria mais que uma nova área de abordagem do homem, mas a possiblidade de um solo muito específico, onde os novos frutos daí nascidos retornem, necessariamente, à base.
Mantendo-se sempre a uma distância-próxima da obra freudiana, "as psicanálises" caracterizar-se-iam por uma diferença e herança irredutíveis em relação a sua origem. Isto quer dizer que ainda que nasçam de um solo muito bem específico tais psicanálises são, ao mesmo tempo, anômalas quando defrontadas com sua nascente. Dissemos que há uma discursividade em jogo na psicanálise, trata-se assim de compreender como se dá essa discursividade e como caracterizá-las. No limite, estamos frente a um empreendimento muito único: como é possível, poderíamos formular, que um mesmo homem, a saber Freud, e logo um único ramo do pensamento, a saber a psicanálise, possa produzir pluralidades de tamanha diferença? Mais interessante: quando pensamos no desenvolvimento de outras disciplinas estudadas em sua história, vemos com ainda mais clareza quão específico é o rumo tomado pelos textos psicanalíticos.
Para acompanhar esta caracterização, seguiremos, brevemente, as análises foucaultianas sobre as especificidades discursivas analisadas em um texto que fora, inicialmente, uma conferência em 1969, O que é um autor?, onde Foucault situa Freud - bem como Marx - como um fundador de discursividades, e apresentaremos brevemente as principais diferenças entre um campo discursivo dessa estrutura, a psicanálise, com às correspondentes estruturas em outro campo de cientificidade, a física, por exemplo. Para tal caracterização, servir-nos-emos dos conceitos de heterogeneidade e homogeneidade empregados por Foucault.
Por fim, a título de uma elucidação, será evidenciado como um conceito em psicanálise contemporânea, a saber a Terceiridade, pode nos mostrar essas especificidades do discurso psicanalítico em se tratando do movimento das categorias teóricas sempre de maneira ascendente e retrospectiva. Neste último ponto serão abordados alguns autores pós-freudianos que trabalham esta noção.
A especificidade do autor: a transdiscursividade
Michel Foucault nos diz que a "noção do autor constitui o momento crucial da individualização na história das ideais, dos conhecimentos, das literaturas, e também na história da filosofia e das ciências" (FOUCAULT, 2001, p. 297.), e desse modo, não sendo uma noção qualquer, (autor-obra) reveste-se de um campo de interesse teórico de vasto espectro. Não nos interessará, aqui, as especificidades mais amplas das análises foucaultianas sobre as relações históricas e sociológicas que adentram a problemática do que constituiria um autor, bem como o desenvolvimento de suas reflexões sobre o estatuto do que seja uma obra. Cabe-nos, então, acompanhar algumas caracterizações foucaultianas no que diz respeito ao surgimento da "função do autor", tendo sua expressão ocorrido, fundamentalmente, no século XVIII, onde a paternidade de uma obra passa a ser um elemento importante. Nesse sentido, aliado ao "nascimento" de tal preocupação, acompanharemos, brevemente, a discursividade própria a esse movimento de autor e obra.1
Interessa-nos aqui, precisamente, acompanhar duas maneiras de se compreender o discurso de certos autores e aprofundarmos a questão em relação à caracterização dada a Freud.
Gostaria, inicialmente, de evocar em poucas palavras os problemas suscitados pelo uso do nome do autor. O que é o nome do autor? E como ele funciona? Longe de dar a vocês uma solução, indicarei somente algumas das dificuldades que ele apresenta. O nome do autor é um nome próprio; apresenta os mesmos problemas que ele. Não é possível fazer do nome próprio, evidentemente, uma referência pura e simples. O nome próprio tem outras funções além de indicativas (FOUCAULT, 2001, p. 274).
Que seriam essas funções próprias, além da simples designação causal que une autor e obra? Para Foucault, é como uma descrição. Ao anunciar um nome da tradição filosófica, Platão, por exemplo, descreve-se uma série de coisas definidas que uma análise detida revela não ser tão simples. O autor da República, "o responsável por certa divulgação das ideias socráticas", "filósofo da idealidade transcendente". De saída, assim, a atribuição a um nome como Platão nos diz mais do que pareceria à primeira vista. Não podemos, contudo, permanecer neste ponto. Mais do que simples partículas descritoras, a nomeação também envolve outros aspectos. O nome do autor, diferente da função lógica da descrição é mais complexo.
Um nome próprio não tem pura e simplesmente uma significação; quando se descobre que Rimbaud não escreveu La chasse spirituelle, não se pode pretender que esse nome próprio tenha mudado de sentido. O nome próprio e o nome do autor estão situados entre esses dois polos da descrição e da designação; eles têm seguramente uma certa ligação com o que eles nomeiam, mas não inteiramente sob a forma de designação, nem inteiramente sob a forma de descrição: ligação específica (FOUCAULT, 2001, p. 274).
As complexificações não se detêm apenas aí. A designação de um nome próprio com o indivíduo nomeado e a ligação do nome do autor com a obra não funcionam da mesma maneira. Com isso, Foucault quer dizer que pertencem a registros diferentes a designação de um autor, responsável por uma obra e a designação de um nome próprio que nomeia um indivíduo. As implicações possíveis de cada tipo de ligação não produzem resultados iguais. E por quê? Porque a função desse nome, autor, na designação de algum conjunto temático, "textos platônicos", não deixa de significar coisas mais profundas do que uma ligação entre aquele que escreve e a coisa escrita.
O nome do autor não é um mero elemento do discurso, ele exerce uma função em relação àquele, pois assegura o exercício de uma prática classificatória que permite inserir, excluir, reagrupar certo número de textos e relacioná-los a outros tipos de texto. É por isso que o nome do autor não possui apenas um caráter indicativo ou de designação, ele funciona para evidenciar um modo de ser do discurso (BRAGA, 2015, p. 23).
Em linhas gerais, o nome de um autor significa algo em relação àquilo que é por ele gerado. Há um papel sendo exercido na obra pela simples razão de ser esta uma produção daquele autor. Fazer parte do corpus hipocrático é ter a dignidade de ser uma possível produção, direta ou não, de Hipócrates. E isso significa alguma coisa. Percebamos que Hipócrates, por questões de cunho histórico, não existe no mesmo sentido que Baudelaire, ainda assim, há uma dignidade própria desses textos por terem sido agrupados pela paternidade "corpus hipocrático".
O nome do autor cumpre uma espécie de classificação, delimitação, bem como a eventual exclusão daquilo que nomeia. O tipo de ligação estabelecida entre "este texto é tipicamente platônico", com "isso não pode ser de Platão!", enquadra-se na força identificatória que cumpre a função do nome de um autor. Isto significa que há uma coesão classificatória do discurso ligada diretamente à nomeação de um autor como doador de sentido. O nome Platão do indivíduo de ombros largos, não é o mesmo que referir-se à obra política do autor Platão. Há um modo de ser do discurso possibilitado pelo nome do autor e há assim, na intenção de agrupar textos a certos autores, uma relação de homogeneidade nesses escritos, um estilo, em amplo sentido, que coaduna à produção, uma discursividade própria.
Os problemas colocados pelo nome do autor são bem mais complexos: se descubro que Shakespeare não nasceu na casa que hoje se visita, eis uma modificação que, evidentemente, não vai alterar o funcionamento do nome do autor. E se ficasse provado que Shakespeare não escreveu os Sonnets que são tidos como dele, eis uma mudança de um outro tipo: ela não deixa de atingir o funcionamento do nome do autor. E se ficasse provado que Shakespeare escreveu o Organon de Bacon simplesmente porque o mesmo autor escreveu as obras de Bacon e as de Shakespeare, eis um terceiro tipo de mudança que modifica inteiramente o funcionamento do nome do autor. O nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio como os outros (FOUCAULT, 2001, p. 275).
Isso nos leva, inequivocamente, a compreender que mais do que nomeação ou paternidade de um conjunto teórico, o nome do autor figura-se como possiblidade social num contexto estabelecido. Isso equivale a ter claro que Foucault quer "desestabilizar uma certa concepção da autoria como algo desprovido de historicidade" (BRAGA, 2015, p. 26.). Desse modo "o nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser." (FOUCAULT, 2001, p. 276.). Há, assim, um corte produzido pela função autor, corte classificatório e excludente, possibilitador de um modo discursivo particular de ser. Há cartas que possuem destinatários; há contratos que possuem fiadores, mas nenhum deles tem um autor. Estabelecidas, brevemente, algumas especificidades complexas dessa noção, não nos cabe aqui adentrar nas quatro características que Foucault elucida para caracterizar mais precisamente a "função autor", interessa-nos, passando apenas por uma delas, encaminharmos essa noção de autor e sua diferença à noção de fundadores da discursividades.
A designação de um sujeito como um autor não se dá de forma espontânea. Não se verificam caraterísticas geniais que se desprenderiam de um sujeito e possibilitariam a fácil predicação. Não se atribui, com facilidade, um discurso a um indivíduo. Foucault dirá que "é o resultado de uma operação complexa que constrói um certo ser de razão que se chama de autor" (FOUCAULT, 2001, p. 279.). Haverá a tentativa de atribuir certo realismo a essa vinculação, tratar-se-á de dar um caráter profundo, uma possiblidade de criação magnífica que tal sujeito portaria, especificidades biográficas capazes de comportar tal nome. Mas, esclarece-nos o filósofo que na verdade "o que no indivíduo é designado como autor é apenas a projeção, em termos mais ou menos sempre psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos, das aproximações que se operam, dos traços que se estabelecem como pertinentes, das continuidades que se admitem ou das exclusões que se praticam" (FOUCAULT, 2001, p 280.). Além, portanto, das determinações que se podem desprender deste ou daquele texto de "Platão", a própria atribuição do autor Platão é organizada de modo complexo por uma rede de fatores que tornam a ligação obra-autor algo bastante interessante. Nesse sentido, há grandes conjuntos teóricos que possuem a função autor e há outros que não. Pontua Foucault:
Eu os resumirei assim: a função-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela nasce se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar (FOUCAULT,2001, p. 283).
A esse conjunto de características que podem ser encontrados em momentos da história para designar o autor, bem como o caráter institucional, por assim dizer, dirá Foucault que se trata de considerar esses autores numa posição "transdiscursiva". Isso quer dizer que possibilita, para além de todas essas complexas redes no interior do que significa ser um autor, a proliferação de outras produções como continuidades deste "modelo" gerado por um autor. O próprio Foucault nos exemplifica. Aristóteles e Homero, por exemplo, são autores capazes de produzir uma linhagem, um estilo próprio. Não é preciso aprofundar a continuidade dos discursos científicos até meados do século XVI que tem em Aristóteles um fundador guia para compreendermos bem essa classificação. A tradição oral homérica, do mesmo modo, produziu importante papel na Grécia arcaica como um modo específico de se transmitir a herança ancestral.
Mas, se por um lado esses autores transdiscursivos estão presentes dos tempos homéricos à contemporaneidade, Foucault vai identificar outra forma discursiva que, não sendo antiga, nascera no século XIX. Não podendo ser confundidos com os romancistas, poetas, ou a tradição científica na esteira de Aristóteles, esse tipo de discursividade inaugura uma nova maneira de compreensão do que seja a função autor, do que seja a possiblidade da continuidade das disciplinas das quais esses autores seriam os primeiros. Não será preciso uma lista exaustiva. Freud e Marx2 seriam os dois apontados por Foucault como, não autores transdiscursivos, mas como "fundadores de discursividades".
Quais são, afinal, as especificidades dessa nova caracterização? Dizem respeito a que esses autores não produziram, apenas, uma nova maneira de produção, com estilos e personalidades próprias, há algo a mais do que isso. Esses dois autores teriam sido capazes da produção de uma forma tão específica de discurso, que haveria "regras e maneiras" para produção de sua herança. Explicamo-nos. Um autor como Shakespeare será sempre o autor de suas obras, inigualável. Mas eis a questão, Shakespeare é o autor justamente de seu texto, de sua obra. Freud, em contrapartida, não seria apenas o autor de A interpretação dos sonhos, ele seria tanto autor de sua obra quanto possibilitador de uma infinidade de discursos. Todavia, uma objeção se imporia automaticamente: mas não é verdade que Skakespeare ou Ann Radcliffe não somente escreveram suas obras clássicas, mas tornaram igualmente possível uma nova maneira de se produzir? Como pontua Foucault, incorporando tal crítica, Ann Radcliffe "não somente escreveu As visões do Castelo dos Pirineus e certo número de outros romances, mas ela tornou possíveis os romances de terror do início do século XIX e, nesse caso, sua função de autor excede sua própria obra." (FOUCAULT, 2001, p. 284.). Sem dúvida, concordaria Foucault. Mas o que ele pretende mostrar, com os "fundadores da discursividades", é que o tipo de continuidade que se desdobra de Freud é completamente diferente da discursividade elaborada por um autor como Radcliffe:
Os textos de Ann Radcliffe abriram o campo a um certo número de semelhanças e de analogias que tem seu modelo ou princípio em sua própria obra. Esta contém signos característicos, figuras, relações, estruturas, que puderam ser reutilizados por outros. Dizer que Ann Radcliffe fundou o romance de terror quer dizer, enfim: no romance de terror do século XIX, encontrar-se-á, como em Ann Radcliffe, o tema da heroína presa na armadilha de sua própria inocência, a figura do castelo secreto que funciona como uma "contra-cidade", o personagem do herói negro, maldito, destinado a fazer o mundo expiar o mal que lhe fizeram, etc (FOUCAULT, 2001. p. 285).
Isso quer dizer que entre a obra do autor transdiscursivo e seu legado haverá uma linha de comunicação muito bem demarcada. Se certo autor instaura uma maneira de se produzir, nas obras posteriores elaboradas, veremos, inequivocamente, estruturas, analogias e temáticas presentes já no autor transdiscursivo originário. Nesse sentido, juntamente com a possiblidade da proliferação discursiva, esses autores produziram uma ambientação de analogias que, contudo, já existem em suas obras. Isto não acontecerá com Freud, e logo, com a psicanálise. Caracterizá-lo como "fundador de discursividades" é dizer não só da possiblidade de infinitos discursos que o tenham como base, mas também a diferença irredutível de cada um deles. Reproduzem, não filhos irreconhecíveis, mas sem dúvida, anômalos. O que fizeram, esses dois autores, "foi tornar possível um certo número de diferenças" (FOUCAULT, 2001, p. 285).
Da criação à rebeldia: fundação de discursividades
A psicanálise teria instaurado, assim, a possiblidade da continuidade de seu desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, um tipo de desenvolvimento que seria diferente daquilo mesmo que o fundara. É aqui que as categorias de homogeneidade e heterogeneidade podem nos ajudar. Sigamos o exemplo do próprio Foucault para melhor pontuarmos as diferenças abordadas:
Surge imediatamente, acredito, uma nova dificuldade, ou, pelo menos, um novo problema: não será o caso, afinal de contas, de todo fundador de ciência, ou de todo autor que, em uma ciência, introduziu uma transformação que se pode chamar de fecunda? Afinal, Galileu não tornou simplesmente possíveis aqueles que repetiram depois dele as leis que ele havia formulado, mas tornou possíveis enunciados bastante diferentes do que ele próprio havia dito (FOUCAULT, 2001, p. 258).
A resposta do filósofo apresentará uma especificidade mais precisa sobre a psicanálise e o marxismo. "Diferença notável", dirá ele. Quando uma disciplina como a ciência moderna, fundada por Galileu, transforma-se, num percalço complexo, na física newtoniana, esta última englobaria à primeira. Isso significa que as ciências originárias, no seu futuro desenvolvimento, tendem a se tornar um caso particular, dentro da amplitude daquilo mesmo que geraram. O conjunto teórico inicial pode ser considerado incompleto, no futuro, pela própria disciplina que gerou. Podendo parecer limitada ou ampla demais, a fonte originária costuma ser restringida e realocada pelo desenvolvimento futuro de sua disciplina. Esse englobamento das discursividades típicas, nas ciências físicas, é caraterizada por Foucault como desenvolvimentos homogêneos. Isso quer dizer que a disciplina fundadora está no mesmo nível de suas transformações. De dentro da física newtoniana somos capazes de perceber as teorizações galileanas como um caso particular do escopo desenvolvido por Newton. "Em outras palavras, o ato de fundação de uma cientificidade pode ser sempre reintroduzido no interior da maquinaria das transformações que dele derivam" (FOUCAULT, 2001, p. 285).
Isso nos mostra a diferença fundamental com as heteronomias que se seguirão de Freud e Marx. As criações que emergirão de campos do saber que tenham "fundadores de discursividades" serão sempre diferentes de sua origem. Assim, com a psicanálise, será absolutamente impossível que as formulações posteriores, ao olharem para dentro de seu escopo temático, enxerguem em Freud uma particularidade limitada. Ao instaurar uma nova maneira de compreensão, Freud teria produzido uma herança sempre próxima, afinal, movendo-se no solo de suas descobertas, mas, ao mesmo tempo, uma diferença, já que seriam sempre discursos heterogêneos a seu criador. Isso nos diz que é impossível à psicanálise contemporânea olhar para as formulações freudianas e as descartarem com a justificativa de que seriam "inválidas" ou "frágeis"; ao contrário, seria necessário sempre retornar à fonte discursiva criadora e estabelecer um diálogo, mesmo que rebelde, com o criador. Assim, quando as formulações Winnicottianas, para dar apenas um exemplo, abandonam as considerações à metapsicologia de Freud, no desenvolvimento da psicanálise de Winnicott é impossível enxergar as abordagens freudianas como um caso a ser encaixado, com sua metapsicologia, dentro da esfera mais ampla da teoria de Winnicott. Este último move-se no solo da psicanálise, mas com ela estabelece uma diferença substancial. O diálogo com esses instauradores seria, assim, sempre uma linha de continuidades e, ao mesmo tempo, de diferenças irredutíveis que impossibilitam a união definitiva do que poderia ser a psicanálise. O mesmo pode ser dito de Lacan e suas formulações linguísticas, de Klein e sua radicalidade da pulsão de morte, bem como do universo de pós-freudianos, que se situariam na psicanálise.
No início desse percurso fora dito que Freud era um fenômeno da cultura. Agora, essa caracterização pode ser melhor pontuada pelas consequências decorrentes da visão foucaultiana da discursividade psicanalítica.
Não é a ciência fundadora que deverá prestar contas a seus ulteriores filhotes, no caso da psicanálise, são os filhotes que deverão sempre voltar ao pai para um acerto impossível de contas. Discursos heterogêneos, sempre parcialmente irredutíveis, as várias maneiras de se compreender a psicanálise precisam dialogar com Freud. Foucault chamará isso de um "retorno à origem". E por que será preciso sempre essa recapitulação? Pela negatividade própria do movimento conceitual em psicanálise. Se todo fruto comportará uma diferença em relação à origem, é preciso que alguma coisa, evidentemente, mude, transgrida, transforme-se no desenvolvimento das sucessivas formulações pós-freudianos. Estamos falando de um esquecimento necessário que sobrevoa qualquer retorno a Freud, um esquecimento constitutivo que exige, no ato mesmo de retornar, transformação. Não se incorpora Freud simplesmente, simbioticamente no conjunto cada vez mais "universal", antes, separa-se, afasta-se, ao mesmo tempo, numa proximidade específica.
As instaurações de discursividades têm a especificidade de permitirem um movimento diferente, referido justamente como esse retorno a e que pressupõe dois aspectos fundamentais que configuram o jogo característico de movimentos como esse: um esquecimento essencial e constitutivo, bem como o vazio que esse esquecimento recobriu. Ora, o ato de instauração tem como característica essencial o esquecimento: ele não pode não ser esquecido. Aquilo que o manifesta é também o que o máscara. Logo, o próprio ato engendra seu esquecimento não acidental, que não foi acrescentado por algo externo, mas que constitui a própria discursividade, e que se configura como motivador para o retorno (BRAGA, 2015, p. 30).
Na ciência física, cada novo patamar alcançado legitima certa maneira de produção, a partir daquele momento. Einstein, que tornou Newton uma particularidade de seu sistema, é o homem a ser confrontado por aqueles que tiverem pesquisas diferentes ou apontamentos outros na física. Isso quer dizer que há uma coesão nas várias discursividades que se vão engolindo e ampliando, cada vez mais, o ponto inicial de origem. Ora, se Freud jamais será um caso particular de Klein, ou Férenczi, a própria coesão da disciplina por ele criada tem complexidades muito maiores. Se irredutíveis, cada nova abordagem em psicanálise, se Foucault estiver certo, será sempre uma herança da diferença, sempre buscando sua origem, mesmo para confrontá-la, para estabelecer uma possível legitimidade. Freud, nesse sentido, será sempre uma "costura enigmática" (FOUCAULT, 2001, p. 296), possibilitando uma coesão inexistente ao saber por ele inaugurado.
Um último aspecto merece nossa atenção. Não percamos de vista a particularidade desse retorno a, como negatividade constitutiva, não se trata de uma reanálise pura e simples. O reexame de uma obra clássica, dentro do panorama aqui estabelecido, por exemplo, um livro de Galileu, para Foucault, jamais modificará a estrutura mesma da física. Um texto que se descoberto de Cantor não poderá causar perturbações à teoria dos conjuntos. Estabelecido seus lugares dentro da disciplina, esses autores nela se camuflam. Todavia, uma descoberta de um novo texto de Freud, poderia gerar profundas transformações na psicanálise como um todo. O exame da literatura freudiana não seria apenas o campo da erudição histórica, mas se colocaria em causa, numa tal descoberta, o estatuto mesmo da teoria em psicanálise.3
Que é um autor? Sem dúvida um divisor sobre concepções de mundo, de homem. Mas um autor instaurador de discursividades mais do que isso, possibilita a infinita diferença, o herdeiro em constante diálogo com seu antecessor sempre vivo. Freud é um fenômeno da cultura na exata medida em que não poderia deixar de sê-lo. Provocador vivo, o discurso freudiano nos dá caminhos, mas nunca os mapas.
A noção de Terceiro na psicanálise contemporânea: a riqueza da diferença
Para uma possível elucidação do percurso até aqui desenhado, acompanharemos, brevemente, uma noção em psicanálise contemporânea, a fim de mostrar como, por mais distante de Freud que nos movamos, sempre haverá uma necessidade de enfrentá-lo.
Diferente de um discurso puramente filosófico, onde a conceituação e seu movimento articulam-se num nível essencialmente teórico, quanto à psicanálise, uma complexificação nos surge. Articulada com um discurso teórico, mas animada por uma prática clínica, a dialética entre teoria e prática, na psicanálise, parece ser uma questão central. Se Foucault tem razão, a própria dimensão clínica da psicanálise será também engendrada numa diferença com sua origem. As transformações heterogêneas, evidentemente, serão também de ordem "prática". Nesse sentido, a descoberta de um conceito, o aprofundamento de uma questão, implica-se, necessariamente, na conduta ativa de uma clínica que tenha por base tais fundamentos. Com a noção de Terceiro em psicanálise contemporânea, desse modo, não aconteceria diferente.
Quando Thomas Ogden (para ficarmos com apenas um exemplo) investiga a noção de Terceiro em psicanálise, "mais do que apenas contribuições teóricas criativas e potentes, as noções de terceiridade de Ogden possui grande pregnância clínica" (COELHO JUNIOR, 2015, p. 192.). Freud, evidentemente, estaria já plenamente ciente dessa mútua alimentação complexa entre ambos os polos. Basta que consultemos seus artigos sobre a técnica de 1911 a 1915. Mas será que as formulações freudianas sobre a construção do espaço interativo/intersubjetivo entre analisando e analista mantiveram-se intactos?
Thomas Ogden, na sua releitura ativa de alguns grandes nomes da psicanálise, coloca-nos a sua noção de Terceiro Analítico. Mergulhemos na discussão sobre Alteridade em psicanálise, para desenharmos o plano teórico onde a Terceiridade poderá ser melhor compreendida. O conceito fundamental de Identificação Projetiva, que se vai desenhando e ampliando ao longo dos autores, levar-nos-á ao alargamento da compreensão na noção do Terceiro.
Inicialmente formulado por Melanie Klein (1964/1991), o conceito fora ganhando dimensões mais amplas ao decorrer de suas apropriações. Mais uma vez, contudo, não podemos deixar de perceber que ambos os conceitos utilizados e ampliados por Klein já estavam em Freud e, inclusive, eram de grande importância teórica. Em Klein, as partes nocivas do próprio interior do sujeito podem ser repelidas para fora e encontrar outro sujeito como suporte dessas partes: "muito do ódio contra partes do self é agora dirigido contra a mãe. Isso leva a uma forma peculiar de identificação que estabelece o protótipo de uma relação de objeto agressiva" (KLEIN, 1946, p. 27). Em Freud, a análise da identificação é um momento fundamental para a vinculação de conceitos, até então um pouco confusos. O que leva Mezan (2013, p. 206) a dizer que: "a análise da identificação fornece a alavanca para deslocamento do complexo [de Édipo] da puberdade para a infância." A própria ideia de projeção também pode ser encontrada em Freud, mas como nos colocará Sandler (1997) Freud usou desse termo de maneiras diversas, sempre em amplo sentido, animado pela preocupação de buscar a tendência de atribuição de uma causa externa antes que interna.
Nesse sentido, Melanie Klein, ampliando a questão, estabelece a identificação projetiva como um mecanismo de defesa da posição esquizoparanoide, que possui um caráter essencialmente negativo, na medida em que as partes expelidas do self não respeitam as peculiaridades do outro no qual estavam sendo acopladas. As duas posições descritas por Klein, esquizoparanoide e depressiva, fases inescapáveis do desenvolvimento infantil, apontam já as diferenças irredutíveis quanto a Freud. Muito mais poderia ser dito para pontuar transformações heterogêneas: a violência pulsional dirigida à própria pessoa e o desenvolvimento de um Super-eu primitivo; o que desvincula o Super-eu do Complexo de Édipo; ou quando Klein pontua a capacidade de alucinar, já presente na criança antes de uma experiência de satisfação, algo diferente em Freud.
Wilfred Bion (1962) ampliará, consideravelmente, a noção kleiniana, identificação projetiva, ao dizer-nos que "a mãe... dá sustentação às identificações projetivas de seu bebê, por meio de sua própria identificação parcial com o sofrimento deste" (COELHO JUNIOR, 2012, p. 66). De pura passividade, como receptor dos fragmentos expelidos do self do bebê, agora, o outro passa a ter um papel de sustentação desse mecanismo. Não estamos mais no nível da pura fantasia, onde Klein nos havia colocado, estamos numa relação de alteridade muito mais ampla e complexa:
Não só a finalidade da utilização da identificação projetiva pelo bebê é aqui ampliada, como o nível em que ela ocorre já não é apenas o da fantasia: a mãe passa realmente a conter os sentimentos perturbadores do bebê e reage de forma apropriada à sua presença. Encontra-se envolvida nessa concepção uma forma especial de comunicação, por meio da qual a mãe pode compreender (e conter) os sentimentos do bebê, mesmo que não esteja consciente dessa comunicação (COELHO JUNIOR, 2012, p. 66).
Vemos, assim, que no cerne da questão sobre o Terceiro é a ampliação da experiência clínica que está em jogo. Com a nova ampliação do conceito, são as experiências ativas entre analista e analisando que passam e ser problematizas. Reencontramos Thomas Ogden e suas formulações nesse espaço novo aberto pela ampliação do conceito. Percebe-se que entre um sujeito que projeta e o outro que dá sustentáculo a essa projeção, parece desenhar-se um espaço de manejo intersubjetivo que merece atenção, clinicamente falando. Bion, desse modo, amplia o alcance da identificação projetiva, a ponto de chegarmos a formulações bastante novas da experiência clínica:
O paciente, tal como o bebê em relação à mãe (segundo Bion), procurará realmente provocar esses sentimentos no analista e induzi-los a agir de forma compatível com eles. Isso pode ocorrer de formas extremamente sutis, podendo o analista se deixar efetivamente manipular e, por meio dessa atuação inconsciente, manter inacessível à análise os aspectos do analisando aí envolvidos; ou caso resista a essa manipulação, manter seu paciente enredado no esforço para consegui-la (COELHO JUNIOR, 2012, p. 66).
Ogden, por sua vez, utiliza-se desta nova percepção analítica, mesmo que de outros ângulos, para construir seu conceito de Terceiro Analítico. Essa noção vem enriquecer a discussão quando pensamos a alteridade em psicanálise, e claro, a alteridade analista e analisando se torna discussão central.
O processo analítico reflete a inter-relação de três subjetividades: a subjetividade do analista, a do analisando e a do terceiro analítico. O terceiro analítico é uma criação do analista e do analisando, ao mesmo tempo em que ambos (na qualidade de analista e analisando) são criados pelo terceiro analítico. (Não há analista, analisando ou análise na ausência do terceiro) (OGDEN, 1994, p. 99).
Outras contribuições são essenciais para ampliarmos a compreensão do Terceiro a que Ogden se refere na construção do espaço clínico. Referimo-nos as influências de Theodor Reik (1888-1969) e Donald W. Winnicott (1896- 1971), respectivamente. Não é de surpreender que as formulações sobre a prática da psicanálise vissem, nesse solo intersubjetivo, um excelente espaço de problematização. Não surpreende, também, tamanha riqueza na diversidade uma vez a discursividade própria à psicanálise constitui-se exatamente nesse desenvolvimento sempre diferente. Retornando a Reik e Winnicott, como é possível um indivíduo subjetivo relacionar-se com outro indivíduo subjetivo? O espaço entre duas subjetividades constitui um terceiro núcleo? É possível entre analista e analisando, bem como as relações transferenciais como um todo, referir-se a este lócus de intersubjetividade como criação de um novo?
Neste suposto lugar onde projeções e identificações se mesclam, o inédito, a cada nova relação, se coloca entre dois sujeitos? Se sim, como compreendê-lo?
Reik, nas suas belas formulações sobre o entendimento entre analista e analisando, amplia o próprio estatuto da escuta. Utilizando-se duma locução, "o terceiro ouvido", extraída de uma obra de Friederich Nietzsche, o psicanalista propôs outra forma de atenção para o analista.
A ideia de Reik é que o terceiro ouvido, o modo de escuta analítica, tem como característica ouvir o que o analisando fala, o que ele não fala, mas sente e pensa, e também voltar-se pa-ra dentro, ouvindo as vozes interiores do próprio analista (COELHO JUNIOR, 2015, p. 182).
Poderíamos refletir sobre essa escuta colocada por Reik e talvez perceber consonâncias com, mesmo qualitativamente distantes, um artigo específico sobre a técnica de Freud: "ele [médico] deve voltar seu inconsciente como órgão receptor, para o inconsciente emissor do doente, colocar-se ante o analisando como receptor do telefone em relação ao microfone" (FREUD, 2010a, p. 156.).
Essa interlocução de inconscientes que Reik nos propõe parece ser uma ampliação do papel do analista. Não se trata mais de apenas captar os ditos, os gestos ou mesmo as recusas, mas, por outro lado, atento a si mesmo, ao que sente, o que compreende, o analista é modificado pela relação, pelo analisando. "Para compreender o inconsciente de outra pessoa, nós devemos, pelo menos por um momento, nos modificar e nos tornar aquela pessoa" (REIK, 1948, p. 361).
Assim como nas discussões precedentes à identificação projetiva "fisgava" o outro que, por sua vez, tinha um papel decisivo nessa situação, com Reik, podemos até pensar que é preciso que o analista introjete o analisando dentro de si, estabelecendo um novo estatuto intersubjetivo para a compreensão das questões do analisando. Com Reik, aproximando-nos das reflexões do Terceiro Analítico de Ogden, a ampliação conceitual mais uma vez é feita e a própria experiência analítica se repensa, no limite, repensa-se a psicanálise.
Parece ser, do vocabulário de Winnicott, que extrairemos excelentes e, aqui últimas, observações para as reflexões de Ogden.
Por meio de conceitos como objeto e fenômeno transicionais, espaço intermediário ou terceira área, Winnicott formulou uma nova concepção de realidade. A ideia de uma terceira área, de um espaço intermediário de um entre dois, parece-me especialmente fecunda e fez com que a psicanálise pudesse passar a trabalhar em três planos de experiência e não apenas com dois planos em permanente oposição (realidade material e realidade psíquica). Um terceiro plano, uma terceira área que, no entanto, não se configura com uma síntese ou como uma região segura, pré-formada e de fácil delimitação. O entre revela-se assim como a região psicanalítica por excelência, estruturando o espaço de ilusão e a condição para a criação (COELHO JUNIOR, 2015, p. 179).
Este lugar, que vai se desenhando que podemos nomear de "entre" parece fundamental para as criações de Ogden e não apenas dele, nas relações de alteridade em psicanálise contemporânea. Com suas reflexões sobre os fenômenos transicionais, Winnicott deixou aberto um vasto campo de reflexão. As experiências de separação gradual do bebê com sua mãe trazem grande sofrimento deste, uma vez que é a própria condição de continuidade que está se perdendo. Ao eleger outros objetos que possam substituir a mãe, Winnicott nos coloca que o bebê está lidando com objetos transicionais fundamentais, mas temporários. Estes objetos que se colocam no entre, (bebê e mãe) ainda que criados pelo bebê, podem nos lançar as reflexões desse espaço criado. Nas formulações dos espaços transicionais, o psicanalista está nos ajudando a pensar justamente este entre, este terceiro elemento e a nossa compreensão, bem como manejo, das relações entre mundo exterior e sujeito.4
Munidos das reflexões precedentes na construção desse entre sujeitos, da terceiridade em psicanálise contemporânea, podemos, finalmente, abordar a noção de Terceiro Analítico de Thomas Ogden, que será pensada teórico e clinicamente, através dessa nossa pequena genealogia sobre os tortuosos caminhos da discursividade psicanalítica. Depois, feita esta breve reconstrução da noção na contemporaneidade, caminharemos para o retorno a Freud, para pensarmos a gênese, ainda que ausente uma formulação precisa do conceito, da noção de Terceiro em Freud, finalizando, assim, a elucidação do que Foucault chamou de um sempre retorno à origem.
Na originalidade e escrita "viva" de Thomas Ogden esta noção nos salta aos olhos pela força que possui e pelo papel que temos de dar a esta relação complexa de analista e analisando, eu e o outro. Ogden nos é claro: "... é preciso estar disponível para ser inconscientemente objeto do experimento inconsciente do outro. Enquanto analistas, é preciso tentar nos mantermos inconscientemente receptivos para desempenhar diversos papéis na vida inconsciente do analisando" (OGDEN, 2013, p. 26). Essa forma de compreender-se como analista, na receptividade própria e necessária de uma análise, estado de "reverie" de Bion, relacionar-se-ia com uma mudança fundamental que significa "uma cessão (parcial) da individualidade a um terceiro sujeito, um sujeito que não é analista nem analisando, mas uma terceira subjetividade gerada pelo par analítico" (OGDEN, 2013, p. 26). Ora, é este lugar "gerado pelo par analítico", este lócus que repensa a ideia de subjetividades isoladas e ininfluenciáveis, que Ogden nos convida à reflexão.
A compreensão efetiva desse Terceiro, a criação original de cada analisando com seu analista, - talvez mesmo de cada sujeito com um outro - é fundamental para o próprio desenvolvimento da análise. Entregues a este outro, este Terceiro elemento novo e engendrado pelo par analítico, a intersubjetividade ganha maior dimensão e maior possibilidade. Ogden chega mesmo a dizer que há uma "perda" das mentes individuais na sessão e conclui que "analista e analisando somente "recuperam" a separação de suas mentes no processo de término da análise" (OGDEN, 2013, p. 26). Contudo, deixemos claro, já não se trata dos mesmos sujeitos que entraram pela porta da sessão, os mesmos sujeitos que interagiram na presença desse Terceiro, mas novas pessoas, um indivíduo modificado "por sua experiência no e com o terceiro sujeito analítico" (OGDEN, 2013, p. 26).
São justamente as reflexões desse lugar, deste espaço privilegiado nas questões da psicanálise contemporânea, o Terceiro elemento que parece indispensável à teoria e a clínica, que pode, de modo muito específico, ser investigado em Freud. Como o fundador da psicanálise deparou-se com este lugar, essa noção: talvez mais importante, em se tratando de Freud, um pensamento assumidamente dual, estruturalmente dividido em pares de opostos, concepção nunca abandonada por Freud, como pensar um Terceiro na obra freudiana? Em que medida é necessária a Terceiridade? Há elucidações para pensarmos que, apesar da dualidade estrutural na teoria freudiana, a consideração a um Terceiro é indispensável em momentos específicos do percurso de Freud. Vemos, assim, a hipótese foucaultiana de ver em Freud um autor sempre chamado à reflexão, irredutibilidade plena, engendrador de diferenças que, apesar disto, possibilita um solo comum. Uma costura enigmática.
Qualquer rápido debruçar-se sobre a história do movimento psicanalítico encontrará, sem dificuldades, o pensamento freudiano mover-se por oposições e dualidades que são indispensáveis para compreensão da teoria. Há inúmeras abordagens possíveis. Centrado primordialmente, na realidade psíquica, o nascimento da psicanálise, até seu futuro desenvolvimento, assiste a preocupações de ordem subjetiva. Se é necessário pensar a realidade exterior, como sem dúvida o é em momentos decisivos como na difícil relação entre realidade e fantasia, que ensejam a questão da teoria da sedução5, ou nos aspectos quantitativos do Projeto, o centro das construções freudiana reside no aparelho psíquico, na realidade subjetiva, nos mecanismos de funcionamento do psíquico. Quando Freud repensa a teoria psicanalítica, movido pela descoberta que são as fantasias os elementos indispensáveis para o estudo da fala das histerias, e para o desenvolvimento da psicanálise de um modo geral, quando a realidade psíquica, construída e movendo-se num solo diferente da materialidade do mundo externo, passa a ser central, já encontramos uma dicotomia clássica: sujeito - mundo exterior.6
Na caracterização do funcionamento psíquico, desde o Projeto de 1895; portanto, aurora das reflexões freudianas, encontramos também outra dualidade mantida até o final de suas formulações. Referimo-nos aos dois "princípios do funcionamento psíquico". Uma vez que a energia móvel, presente no sistema inconsciente, tenda a escoar-se livremente em busca de prazer, uma vez postulado desde o Projeto, que prazer é descarga de energia, Freud nomeará este princípio básico de princípio do prazer-desprazer. Contudo, frente a este soberano modo de funcionalização, o mais primitivo modo de operação mental, surge um novo princípio, capaz de introduzir mediações à imediatez do prazer. Trata-se do princípio de realidade. Surgido das necessidades subjetivas de se considerar a realidade exterior para a efetiva descarga de energia - conseguir prazer - este princípio opõe-se ao anterior, adiando a aquisição de prazer, estabelecendo limites razoáveis para o sujeito que se insere num mundo que difere dele. "Abandona-se um prazer momentâneo incerto quanto a seus resultados, para ganhar, no novo caminho um prazer seguro, que virá depois" (FREUD, 2010b, p. 117). Mais uma vez, vê-se estabelecido um par de opostos que, não só teoricamente, é responsável pela forma como certas enfermidades aparecerão, pois conflituoso desde o início, o psiquismo é um verdadeiro campo de atravessamentos duais.
Os exemplos poder-se-iam estender por muitas linhas. Masculino e feminino, ativo e passivo, pulsões de autoconservação e pulsões sexuais (e mesmo a transformação pulsional, ocorrida nos anos 20, não coloca em risco a dualidade da vida pulsional, uma vez que novamente temos pulsões de vidas e pulsões de morte). Notadamente dualista, Freud manteve-se fixo a esta percepção de que a vida mental necessitava de pelos menos dois representantes. A querela conceitual com Carl Gustav Jung e seu definitivo rompimento com o ex-pupilo demonstra, exatamente, a força freudiana em manter-se alinhado a sua concepção por pares de oposto.
No entanto, a simplificação das colocações precedentes parece ser abalada quando investigamos alguns momentos do percurso de Freud com mais calma. Em 1924, o basilar Complexo de Édipo é integrado ao tecido do Eu e receberá, definitivamente, toda a amplitude que já vinha sendo desenhada nos anos precedentes. O "tournant" que caracteriza este momento dos anos 20, na obra de Freud, modificará profundamente o percurso seguido por Freud. Se a segunda tópica de 1923 instaurar-se-á definitivamente, com ela, é definitivo também a reestruturação de temas centrais para a Psicanálise. Aqui, ao que nos cabe, além do Édipo, a segunda tópica amplia, consideravelmente, a estrutura do aparelho psíquico. Se a divisão proposta pelo capítulo final de A interpretação dos sonhos nos coloca uma cartografia própria ao mental como uma divisão clara entre Consciente/Pré-consciente e Inconsciente, a partir da segunda tópica são as próprias fronteiras dos sistemas psíquicos que parecem se flexibilizar, e a análise profunda da gênese, funcionamento e importância do Eu, ampliará, definitivamente, as terras dessa geografia. Os laços mais profundos da relação do Eu com o Id começam a ser problematizados.7 Se o fundamento subjacente à primeira tópica é justamente a divisão estrita entre consciente e inconsciente, onde aquilo que é capaz de ascender à consciência, mesmo estando ausente dela num certo momento, é incluído sob a rubrica pré-consciente, logo, aquilo que é radicalmente impedido de ter acesso à consciência é inconsciente. Se são dois sistemas rigorosamente divididos, também serão em sua forma de funcionamento, a separação entre eles é profunda. Contudo:
Duas ordens de consideração sugerirão a Freud uma revisão na estrutura do aparelho mental. A primeira é de ordem clínica: as resistências à terapia são inconscientes, o sentimento de culpa exacerbado na melancolia também o é; a outra, de ordem teórica, consiste na redução do valor heurístico do conceito de pulsões do ego, absorvida pelas pulsões de vida no quadro do remanejamento da teoria que se inicia em 1920 (MEZAN, 2013, p. 269).
Dessa forma, a percepção de que algo no Eu possa ser também inconsciente, aliado aos estudos que serão feitos especificamente sobre o Eu, levam Freud a ampliar as fronteiras do aparelho mental e a radicalidade dessa mudança reestrutura as terras psíquicas. E é justamente aqui que reencontramos a discussão anterior: tanto o complexo de Édipo, quanto a reestruturação psíquica, que nos legará a divisão tal qual ficou estabelecida pela segunda tópica - Eu, Super-Eu e Id, colocam-nos, frontalmente, diante a um Terceiro elemento na obra de Freud.
Se a própria estrutura mental fora modificada, a separação entre os sistemas não é mais tão radical; se o Super-Eu, a instância crítica, é parte do Eu, mas, fundamentalmente, inconsciente e herdeiro do complexo de Édipo, que por sua vez, é considerado um triângulo pela relação tripartida de filho, mãe e pai; podemos já nos aperceber que o terceiro elemento entrou definitivamente para a obra freudiana. Sem negar, evidentemente, as antigas concepções duais, é a Terceiridade que precisa ser pensada nas novas conclusões de Freud. Ao que parece, a força da obra do fundador da psicanálise, bem como a possiblidade de pensarmos a discursividade inerente à psicanálise reside, justamente, na reinvenção que se faz de si própria pelos olhos dos outros colaboradores. Reinvenção necessariamente devedora e contra Freud.
Fica claro, desse modo, que buscar alguma noção em algum desses "fundadores de discursividades" não é tarefa simples. Já não é simples o desenvolvimento próprio desta tradição. O que podemos perceber aqui, nessa rápida incursão, é que a discussão tão profícua e interessantíssima ensejada nos textos de psicanalistas contemporâneos reflete de maneira pouco límpida a tela originária de onde brotariam todos esses quadros teórico-clínicos posteriores. O rumo próprio do desenvolvimento de uma disciplina como a psicanálise nos convida, entre outras coisas, a um duplo problema. Compreensão das noções no interior da discursividade da qual elas são próprias, e ao mesmo tempo, confronto irredutível com essa mesma tradição. Confrontar a diferença, enquanto filho anômalo da tradição psicanalítica, parece ser este um caminho necessário, denso, tanto quanto próspero e rico de cada novo pesquisador.
Um regresso ao pai da psicanálise não parece ser interessante apenas para nos reencontrarmos com a atualidade. Está em pauta, também, refletir sobre a origem na exata medida da diferença constitutiva que, quanto mais se distancia, mais complexa se torna sua relação com aquilo que a engendrou. Possibilitador de infinitos discursos, mantendo-se a uma misteriosa distância de tudo aquilo que dele se produz, Freud é um horizonte perpétuo a ser enfrentado.
Referências
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Artigo recebido em: 12/01/2017
Aprovado para publicação em: 17/04/2017
Endereço para correspondência
Fábio Moreira Vargas
E-mail: Fábio Moreira Vargas
Nelson Ernesto Coelho Junior
E-mail: patnelco@uol.com.br
*Graduando Filosofia/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
**Psicanalista, prof. e pesquisador/Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), doutorado Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
1Cabe também esclarecer que não será tema deste texto a relação crítica que Foucault estabelece com a psicanálise. Não entraremos nos meandros teóricos da filosofia foucaultiana em se tratando de suas formulações sobre a psicanálise como um dispositivo específico de controle dentro do panorama geral do pensamento de Foucault. Manteremos a atenção na especificidade da discursividade da psicanálise utilizada por Foucault.
2Claro que as análises aqui serão centradas apenas em Freud.
3Basta lembrarmos o texto Projeto, de Freud, que permaneceu desconhecido até a década de 60 do século XX e reproblematizou diversos pontos na teoria psicanalítica.
4É interessante colocarmos uma observação feita por Coelho Júnior a esse respeito: "Sem entrar nas querelas hermenêuticas, nem no destino que teve o "reino intermediário" no restante da obra freudiana, o que quero registrar é que até no aspecto que sempre foi considerado o da mais genuína originalidade de Winnicott pode encontrar, através de Pontalis, um grão de areia freudiano" (p. 180, 2015).
5Para uma bela análise dessa querela entre abandono ou não da teoria da sedução, Cf. MONZANI, Luiz Roberto. Freud: O movimento de um pensamento. Campinas, SP, Editora Unicamp, 2014.
6Não entro aqui na discussão mais aprofundada sobre a realidade psíquica, realidade exterior e o próprio real, um registro pré-subjetivo. Cf. GARCIA-ROZA, L. A. O mal radical em Freud. Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1990.
7Bastaria citar alguns trabalhos de Freud onde o polo pulsional do Eu é devidamente explicitado, tornando as distinções de "território" muito mais complexas que a primeira tópica de 1900: Cf., A negação; Eu e o id, Novas conferências Introdutórias à psicanálise, etc.