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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro jul.dez. 2021
ARTIGOS
A cultura da melancolia de gênero ante o tabu da homossexualidade: o Édipo e suas identificações, 100 anos depois1
The culture of gender melancholy as Oedipus' blind spot: the imperative of heterosexualityand sexual binarism in psychoanalysis
Natasha Mello Helsinger*
RESUMO
Tendo em vista os 100 anos da publicação de A psicologia das massas e a análise do eu, onde Freud se debruça sobre a problemática da identificação, nos parece fundamental repensar tal conceito à luz da normatividade de gênero, até mesmo para acolhermos a diversidade sexual e de gênero de maneira não normativa. Partindo da premissa de que a psicologia social e a psicologia individual são indissociáveis, discutiremos como a constituição da identidade de gênero é marcada pelo imperativo da heterossexualidade e do binarismo sexual. Para tanto, trabalharemos a hipótese da melancolia de gênero, de Judith Butler, na qual o tabu da homossexualidade condiciona o tabu do incesto, o que perpassa uma heterossexualização do desejo.
Palavras-chave: Melancolia de gênero, Tabu da homossexualidade, Heterossexualidade compulsória, Normatividade de gênero, Identificação, Édipo.
ABSTRACT
Considering the 100 years since the publication of the text Group Psychology and the Analysis of the Ego, in which Freud focuses the problem of identification, it seems essential to rethink this concept in the light of gender normativity, even so that we can embrace sexual diversity and gender in a non-normative way. Starting from the premise that social psychology and individual psychology are inseparable, we will discuss how the constitution of gender identity is marked by the imperative of heterosexuality and sexual binarism. Therefore, we will work on Butler's hypothesis about gender melancholy, in which she argues that the taboo of homosexuality precedes and conditions the incest taboo, which involves a heterosexualization of desire.
Keywords: Gendermelancholy, Taboo of homosexuality, Compulsory heterosexuality, Gender normativity, Identification, Oedipus.
1 - Gênero e sexualidade: entre a psicologia social e a psicologia individual
Nunca é demais lembrar que Freud (1921/2011) inaugura Psicologia das massas e análise do eu com uma formulação crucial: "a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado" (p. 10). Com isso, o autor evidencia que a psicanálise precisa estar sempre atenta às coordenadas sociais, políticas e culturais, uma vez que essas incidem nos processos de subjetivação. Por outro lado, o autor reconhece que a "psicologia de massas, embora se ache apenas no início, compreende uma vasta gama de problemas e coloca para o pesquisador incontáveis tarefas, que ainda não foram sequer diferenciadas." (FREUD, 1921/2011, p. 11).
Parece-nos que uma dessas tarefas é pensar de que maneira a norma heterossexual - como marca da psicologia social - afeta a psicologia individual, no que tange ao campo das identificações, da formação de gênero e da sexualidade, o que é vetor central para pensarmos as dissidências sexuais e de gênero de maneira não normativa. Essas dissidências têm desafiado a psicanálise, tanto na experiência clínica como no campo teórico, questionando uma série de formulações, como a diferença sexual, a experiência edípica e as identificações.
Não obstante, diversos trabalhos psicanalíticos insistem em compreender as polimorfias sexuais e de gênero a partir da trama intrapsíquica e familiar, fazendo uma utilização acrítica do arcabouço teórico desenvolvido por Freud nos séculos XIX-XX. Ignora-se, assim, as coordenadas normativas que marcam o campo social (e suas transformações), por isso afirmamos que "nunca é demais lembrar" que é impensável supor o sujeito na exterioridade do social.
O suposto desenrolar "normal" do Édipo é utilizado, por exemplo, para sustentar formulações normativas sobre a homossexualidade e a experiência trans. Isto supõe uma leitura que entende tais experiências como sintomas, suscitando uma busca etiológica (AYOUCH, 2015a, 2015b) que, de partida, é bastante problemática, pois a causalidade revela um olhar patologizante que as associa à enfermidade ou ao desvio. Tais desvios são, comumente, atrelados à fixação em relação à figura materna (por vezes, vista como narcísica) somada à ausência da mediação paterna que deveria separar essa unidade dual2.
Entender tais experiências como algo narcísico - ou como efeito da ausência da intervenção paterna - não seria uma leitura preconceituosa? A própria noção de "fixação" não subentende que algo "ficou parado" ou se desviou de seu desenrolar "normal"? Parece-nos bastante problemático pensar qualquer expressão sexual e de gênero por essa via.
Robert Stoller (1975/1982), precursor da discussão sobre gênero na psicanálise, entende a dita experiência transexual a partir do vínculo fusional do menino com a mãe3 e a fragilização da mediação paterna. Isto o leva a defender que na transexualidade não se estabelece o conflito edipiano, apenas uma situação edipiana. Afinal, a dimensão conflituosa do Édipo suporia uma separação entre o filho e a mãe (que permitiria elegê-la como objeto de amor), bem como, que a figura paterna aparecesse como um "rival" (ameaça de castração). Nesta linha, a negação do conflito se desdobraria em uma negação da masculinidade.
O desenrolar do Édipo "fora do esperado" acarretaria, ainda, uma qualidade psicopática, marcada pela irresponsabilidade, mentiras, aproveitamento do outro e impossibilidade de estabelecer relacionamentos. Essa característica se apresentaria, em última instância, como impossibilidade de se engajar no vínculo transferencial, o que o leva a defender que nenhuma pessoa trans teria sido analisada de fato. A gravidade de suas formulações é tão evidente que nem precisamos nomeá-la, mas gostaríamos de destacar que o autor parte do modelo do Édipo para sustentar uma leitura normativa da experiência trans.
Devemos reconhecer, inclusive, que a base hipotética de Stoller - centrada na etiologia transgeracional, na fusão mãe-criança e ausência da intermediação paterna - se aproxima da fundamentação de Lacan (1955-1956/1985) a respeito da estrutura psicótica. Ao incluir o Édipo no campo da estrutura - e não mais do complexo -, este autor sustentou que a figura paterna funcionaria como um representante da Lei que, ao operar a "interdição do incesto", introduziria o sujeito no campo da linguagem, o que não aconteceria na psicose, onde o "Nome-do-Pai" estaria "forcluído".
Inclusive Lacan (1971/2009), ao comentar o trabalho de Stoller, afirmou que se este tivesse conhecido seu conceito de foraclusão, não teria dificuldade para entender os casos4. Isto fez com que muitos/as psicanalistas lacanianos - como Millot (1992), Czermak (2012), Melman (1996) - aproximassem a transexualidade da psicose5, o que inaugurou uma das vias mais preconceituosas da psicanálise em relação à experiência trans, mas não a única.
Poderíamos listar uma série de exemplos que demonstram como o apego irrefutável ao Édipo está na base de muitas leituras normativas sobre as dissidências sexuais e de gênero. Além disso, poderíamos evidenciar referenciais teóricos, não ligados ao Édipo, que realizam a mesma função normativa, como aqueles que se pautam na categoria lacaniana de real para afirmar que as pessoas trans querem desvendar o enigma do real do sexo, da diferença sexual e da relação sexual, como sustentam Ansermet (2018), Coutinho e Travassos (2017).
Mas não seguiremos essa via, pois nos "desviaríamos" de nosso objetivo. O que almejamos sublinhar é que (i) o suposto "trilhar normal do Édipo" é utilizado para patologizar experiências que escapam ao modelo binário heterocisnormativo; o que evidencia que (ii) algumas leituras psicanalíticas do Édipo o reproduzem como norma; (iii) por isso mesmo, não questionam como a normatividade de gênero incide nos processos de subjetivação, estabelecendo uma leitura intrapsíquica da sexualidade e do gênero.
Além de esse tipo de premissa caucionar uma postura preconceituosa, parece-nos que evidencia uma dificuldade de abdicar do modelo do Édipo, o que é um contrassenso ético, político, teórico e metodológico. Até porque foi a partir do contexto sociohistórico da modernidade que a figura do Édipo foi erigida como balizador para pensar as formas de subjetivação e erotização, o que retira dela qualquer pretensão de universalidade (BIRMAN, 2008). Não podemos desconsiderar, então, que as transformações sociais, sobretudo dos últimos 60-70 anos - decorrentes dos movimentos feminista, gay e trans - incidiram não só naquilo que se entendia como família, reprodução e filiação, como também, nas configurações de gênero e nas expressões da sexualidade, de modo que não podem ser reduzidas ao modelo edípico do século passado (HELSINGER, 2019).
O próprio trabalho de 1921 é crucial para isso, uma vez que, ao defender a relação indissociável entre psicologia social e psicologia individual, Freud nos indica que as transformações socioculturais produzem efeitos nos processos de subjetivação; afinal o sujeito é permeável por aquilo que lhe circunda: "Quando se fala de psicologia social ou de massas existe o hábito de abstrair dessas relações, e isolar como objeto de investigação a influência que um grande número de pessoas exerce simultaneamente sobre o indivíduo" (p. 11). Tal premissa teórico-metodológica nos convoca a refutar qualquer leitura que entenda a construção do gênero e da sexualidade por um viés intrapsíquico ou pelo mito familiarista do Édipo (HELSINGER, 2019).
Esse tipo de abordagem nega as condições normativas que regulam a sociedade, o que dá lugar a uma leitura universal do sujeito que contradiz a imbricação recíproca entre psicologia social e individual. Além disso, nesse texto, Freud aborda, fundamentalmente, a temática da identificação. Para este estudo, nos deteremos particularmente no Capítulo VII - Identificações, onde esse conceito é explorado a partir da experiência edípica. Não temos o intuito de realizar uma análise minuciosa de suas formulações, mas de destacar os pontos que consideramos importantes de serem repensados à luz de nossa atualidade sociohistórica.
Inclusive, Freud (1921/2011) sublinha que "estamos muito longe de haver esgotado o problema da identificação" (p. 50), o que nos parece uma abertura para repensar esse conceito por outras vias teóricas. Daremos ênfase àquelas que o problematizam a partir da crítica ao modelo binário cisheteronomativo. Mais precisamente, nos debruçaremos na seguinte indagação de Butler (1997/2017): "É possível que as identificações de gênero, ou melhor, as identificações que se tornam fundamentais para a formação do gênero, sejam produzidas através da identificação melancólica?" (p. 143). Esta questão cauciona sua hipótese da melancolia de gênero, o que pressupõe uma crítica à concepção psicanalítica do Édipo6, na medida em que o tabu da homossexualidade é entendido como algo que condiciona o tabu do incesto, denunciando o quanto o imperativo da heterossexualização está em sua base.
Além disso, essa discussão evidencia como a formação de gênero é fruto do mecanismo melancólico da incorporação, por conta da norma heterossexual, o que nos convoca a repensar a identificação a partir da normatividade de gênero. É a partir da formulação freudiana de que as identificações são resultantes da perda de um objeto que Butler (1990/2015) defende que a identificação de gênero "é uma espécie de melancolia em que o sexo do objeto proibido é internalizado como proibição. Essa proibição sanciona e regula identidades de gênero distintas e a heterossexual" (p. 116).
Tal proibição se dá no plano da cultura, de modo que vivemos em uma cultura da melancolia de gênero. A forma pela qual a psicanálise e a cultura são articuladas em sua obra é totalmente coincidente com a premissa ético-metodológica que norteia nosso estudo, pois alerta para a importância de nos distanciarmos, radicalmente, de qualquer abordagem que reduza os processos subjetivos a uma esfera intrapsíquica, desconsiderando o social, a política e as normas, como entendemos que o discurso freudiano, também, sustentou, em sua obra.
Compreendemos, nesta linha, a pressuposição recíproca entre psicologia social e individual como ponto de continuidade entre o texto de 1921 e a reflexão sobre a melancolia de gênero. Por outro lado, evidenciaremos algumas linhas de descontinuidade entre a leitura freudiana da identificação - e que está implicada na concepção da trama edipiana - e abordagens que interrogam tais noções, a partir da interpelação da heterocisnormatividade.
Encaminharemos nossa argumentação, portanto, a partir do diálogo da psicanálise com os estudos de gênero e da constatação ético-política de que a homofobia e a transfobia estão entranhadas em nossa cultura. Em nossa perspectiva, essa é uma importante contribuição para avançarmos na hipótese de que a psicologia social e a psicologia individual são indissociáveis: "É certo que a psicologia individual se dirige ao ser humano particular, [...] mas ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os outros indivíduos." (FREUD, 1921/2011, p. 10). Do ponto de vista ético, é um caminho central para a psicanálise trilhar, sobretudo, se ela almeja colocar-se como alteridade para as minorias sexuais e de gênero.
Para sustentar esse ponto, apresentaremos cinco implicações que Butler extrai da melancolia de gênero. Primeiro, (i) a entrada no complexo de Édipo implica que o desejo tenha passado por uma heterossexualização: "a proibição do incesto pressupõe a proibição da homossexualidade, pois pressupõe a heterossexualização do desejo." (BUTLER, 1997/2017, p. 144). Para sustentá-la, Butler critica as noções de "predisposição sexual" e de "desejo original recalcado", defendendo que é a partir da produção do "desejo recalcado" que o texto freudiano supõe as predisposições libidinais masculinas e femininas. Isto não apenas significa que as "predisposições" estão no bojo da formação melancólica de gênero, bem como, que essa é marcada pelo imperativo heterossexual7.
Segundo ponto, (ii) a heterossexualidade é fundada por um luto renegado, isto é, de um amor homossexual que não pôde ser reconhecido e, portanto, enlutado. Isto significa, em última instância, que as ditas masculinidade e feminilidade são constituídas por um repúdio à homossexualidade. Por exemplo, o "homem" se constitui como tal por acreditar nunca ter desejado outro homem e, portanto, nunca ter perdido esse vínculo, o que é condensado na noção nunca-jamais. Desse modo, ele deseja a "mulher" que não pode ser: a figura da mulher seria sua identificação repudiada, o que gera uma necessidade de marcar uma diferença entre eles. Isto é, o homem que sublinha sua coerência heterossexual está afirmando que "nunca amou outro homem, por isso jamais perdeu outro homem" (BUTLER, 1997/2017, p. 148).
Afirmar que a cisheteronormatividade é fruto de um repúdio implica que (iii) a rigidez da formação de gênero é proporcional ao quanto o sujeito pôde ou não reconhecer seus apegos homossexuais. Isto é, quanto mais resolvida a perda original do investimento homossexual, menos rigorosa será sua formação de gênero. Esta poderá ser experimentada de maneira mais fluida, sem que seja necessário afirmá-la a todo tempo. Além disso, o encontro com as dissidências sexuais e de gênero não é vivido como tão ameaçador (BUTLER, 1990/2015). Uma consequência disso (iv) é que a identidade heterossexual está sempre sob ameaça, afinal sua base foi construída sobre uma linha tênue8: um imperativo normativo que gerou um luto renegado. Desse modo, toda vez que ela se vê colocada em questão, o sujeito pode ser tomado por aquilo que Butler (1990/2015) chama de pânico de gênero.
Um quinto ponto é que (v) o tabu da homossexualidade incide nas formas de prazer que são delineadas como legítimas ou não, o que implica uma distribuição normativa das zonas erógenas (BUTLER, 1990/2015). Isto é, as perdas não enlutadas produzem corporalidades e horizontes possíveis de prazer, o que é uma chave de leitura inédita para pensar a questão do corpo e da erogeneidade na psicanálise.
Em suma, as formulações de Butler contribuem bastante para repensarmos hoje a experiência da identificação e do Édipo, bem como as escolhas objetais, a corporalidade e o prazer. Afinal, elas evidenciam como as normas atravessam tais experiências, o que convoca a psicanálise a problematizar certas construções teóricas, até mesmo para não reproduzir a normatividade de gênero. Para isso, acreditamos que nós, psicanalistas, devemos estar atentos, permanentemente, para as transformações que se dão no campo sociopolítico, cultural e clínico, como também, dialogar com outros campos de saber. Isto supõe ouvir as críticas que nos são colocadas, sem que nos apressemos a defender "a psicanálise" com unhas e dentes.
Por isso, nos dedicamos a interrogar como a psicanálise se situa em relação à norma binária heterossexual. Parece-nos que a interpelação de que a concepção de Édipo implica a heterossexualização do desejo é central para isso, o que é uma crítica pouco trabalhada no interior do campo psicanalítico e, por isso, consideramos crucial abordá-la neste artigo. Até mesmo porque as leituras patologizantes a respeito da experiência trans - bem como, de outras dissidências sexuais e de gênero - são marcadas, em última instância, pelo imperativo da heterossexualidade e do binarismo sexual (HELSINGER, 2019).
Não podemos nos abster de pensar estas questões se quisermos acolher a pluralidade de corpos, gêneros e sexualidades não redutíveis à retórica binária heterossexual. Talvez essa seja uma premissa irrevogável para fazermos jus à pressuposição recíproca entre psicologia social e psicologia individual, 100 anos depois do célebre texto de Freud.
2 - O Édipo e suas identificações no texto de 1921
Freud (1921/2011) inicia o capítulo Identificações sublinhando que a identificação é a expressão mais fundamental de vínculo afetivo e que tem uma função central na pré-história edípica: "A psicanálise conhece a identificação como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa. Ela desempenha um determinado papel na pré-história do complexo de Édipo." (p. 46). Por exemplo, nesse momento, o menino coloca seu pai no lugar de ideal, no sentido de desejar ser "como ele" ou ocupar "seu lugar".
O autor salienta que essa não é uma postura feminina, mas tipicamente masculina e que está em consonância com a experiência do Édipo, na medida em que abre caminho para ela. Isso é acompanhado - ou mesmo precedido - por um investimento objetal em relação à figura materna, por apoio. Trata-se, portanto, de "duas ligações psicologicamente diferenciadas: com a mãe, um investimento objetal direto; com o pai, uma identificação que o toma por modelo. As duas coexistem por um tempo, sem influenciar ou perturbar uma à outra." (Ibidem, p. 47). Tais vinculações coabitam até confluírem para aquilo que o autor denomina de "Édipo normal" (Idem).
Desse modo, Freud (1921/2011) nos apresenta sua leitura clássica da trama edípica: o menino reconhece o pai como um empecilho para acessar a figura materna, o que instaura uma relação de rivalidade: "O menino percebe que o pai é um obstáculo entre ele e a mãe; sua identificação com o pai adquire então uma tonalidade hostil, e torna-se idêntica ao desejo de substituir o pai também junto à mãe." (p. 47). O autor relembra que, desde seus primórdios, a identificação guarda um caráter ambivalente, abarcando a ternura e o desejo de eliminação. Este, por sua vez, é análogo à fase oral, onde o objeto amado é devorado e incorporado: "É sabido que o canibal permanece nesse ponto; tem uma afeição devoradora por seus inimigos, e não devora aqueles de quem não pode gostar de algum modo." (p. 47).
A identificação com a figura paterna se perde "facilmente", nos diz o autor, de modo que o complexo de Édipo pode passar por uma inversão: o pai pode ser tomado como objeto, da mesma maneira que poderia acontecer com a menina em relação à mãe. O autor, a partir disso, diferencia a identificação com a figura paterna da operação que a torna uma escolha objetal: na primeira situação, trata-se do pai como modelo e, no segundo, daquilo que o menino desejaria ter. Ainda que Freud sustente que o Édipo possa passar por uma inversão, não nos parece que o autor explore, nas últimas consequências, de que maneira essas ligações se estabelecem, que destinos têm e quais são suas implicações em uma cultura marcada pelo imperativo da heterossexualidade. São esses questionamentos inéditos em que que Judith Butler (1990/2015) se debruça em sua discussão sobre a melancolia de gênero, como veremos.
Além disso, Freud se refere à "gênese da homossexualidade", afirmando que na homossexualidade masculina9, o menino se fixou, longamente, na figura materna e, na puberdade, em vez de abdicar a esse vínculo, ele se identifica com a figura materna e busca objetos de amor que o substituam: "ele não abandona sua mãe, mas se identifica com ela, transforma-se nela e procura objetos que possam substituir o seu Eu, que ele possa amar e cuidar assim como havia aprendido com a mãe." (p. 50). Como sublinhamos, é importante interrogar as leituras que buscam uma causalidade da homossexualidade e da transexualidade - como pela "fixação materna" - pois isso remete para uma patologização (AYOUCH, 2015a, 2015b).
É preciso salientar, ainda, que Freud (1921/2011) problematiza as interlocuções entre identificação e investimento objetal e, como discutiremos, Butler (1990/2015) fará uma espécie de torção nessa discussão, defendendo que a escolha objetal é marcada, em última instância, pela renúncia ao amor homossexual que, por ser culturalmente proibido, é incorporado no Eu. Por hora, nos interessa evidenciar como Freud (1921/2011) entende as relações entre desejo, investimento objetal, identificação e sintoma.
O autor apresenta três formas possíveis de identificação, para pensar a formação dos sintomas histéricos, lembrando que tais identificações são parciais. No primeiro caso, a identificação é impulsionada pela culpa ligada ao Complexo de Édipo. Por exemplo, o impulso hostil de tomar o lugar da mãe, pode fazer com que a menina se identifique com um traço da figura materna, como uma "tosse aterradora": "o sintoma expressa o amor objetal ao pai; ela realiza a substituição da mãe sob a influência da consciência da culpa: 'Você quis ser a mãe, e agora o é pelo menos no sofrimento'. (Ibidem, p. 48).
Uma segunda via é quando o sintoma mimetiza o mesmo do objeto amoroso, "a identificação tomou o lugar da escolha de objeto, e a escolha de objeto regrediu à identificação." (Idem). Isto é, o Eu se apropria de características do objeto, como é o caso da tosse de Dora (1905/1976) que foi uma incorporação da figura paterna. Uma terceira possibilidade é quando a identificação desconsidera o vínculo com a pessoa, pois o que está em jogo é se colocar na mesma situação de outra pessoa10.11
Para nossa reflexão, interessa-nos sublinhar a hipótese de que as identificações modificam o Eu, na medida em que este se apropria de características do objeto: "sucede com frequência que a escolha de objeto se torne novamente identificação, ou seja, que o Eu adote características do objeto" (FREUD, 1921/2011, p. 48). Esse é um elemento central, pois é a partir da relação entre perda e identificação - e as modificações que produzem no Eu - que Butler (1990/2015) discute como a melancolia está na base da formação de gênero.
Esse é aspecto comum, uma vez que Freud (1921/2011) também trabalha a identificação com o objeto perdido como uma maneira de substituí-lo: "A identificação com o objeto renunciado ou perdido, como substituição para o mesmo, a introjeção desse objeto no Eu, isto já não constitui de fato uma novidade para nós." (p. 51). Isto o leva a concluir o capítulo com uma menção à melancolia, que havia sido trabalhada quatro anos antes, em Luto e melancolia (1917), onde a introjeção do objeto se mostrou evidente nas autodepreciações do Eu e autocrítica: "esses reproches se aplicam ao objeto, no fundo, representando a vingança do Eu frente a ele. A sombra do objeto caiu sobre o Eu, afirmei em outro lugar. A introjeção do objeto, aqui, é inconfundivelmente clara" (FREUD, 1921/2011, p. 51).
É bastante significativo que o capítulo sobre identificação seja concluído com a discussão sobre a melancolia, pois é justamente a articulação entre essas duas experiências que está na base da hipótese de Butler sobre a melancolia de gênero. Para sustentá-la, a autora contrasta a relação entre perda e identificação, nos textos freudianos de 1917 e 1923, O eu e o id. Em 1917, a ideia em jogo era que diante de uma perda enlutada haveria uma ruptura com o objeto, o que seria prosseguido pela criação de novos vínculos.
Já em 1923, se delineia a hipótese de que a identificação com o objeto, no modelo melancólico, seria uma condição para poder perdê-lo: "Em o Eu e o isso, ele abre espaço para a ideia de que a identificação melancólica possa ser um pré-requisito para deixar o objeto ir" (BUTLER, 1997/2017, p. 143). Constatando que não se trata de uma ruptura definitiva, a filósofa defende que a recusa da perda é a base para se pensar como as identificações de gênero são marcadas pela experiência melancólica de incorporação.
Além disso, ao discutir a melancolia, Freud (1921/2011) retoma a divisão do Eu, para sublinhar o papel do Supereu na "auto-observação, consciência moral, censura do sonho e principal influência na repressão." (p. 52). Butler partirá dessa ideia para discutir como o Supereu se articula às identidades de gênero, uma vez que seria uma formação reativa que proíbe o apego homossexual: ao exercer a dupla missão de sanção e de tabu, o Supereu legisla a formação das identidades de gênero.
Em seguida, apresentaremos os desdobramentos teóricos que Butler extrai da teoria freudiana para pensar como o gênero se dá por uma melancolização de perdas que não foram passíveis de luto por conta do imperativo da heterossexualidade.
3 - O tabu da homossexualidade e a melancolia de gênero: uma introdução
A formação melancólica de gênero é pensada da seguinte maneira: o objeto de amor homossexual é perdido e, por ser proibido, essa perda não é vivida como tal, de modo que o objeto é internalizado como interditado. Para justificar essa proibição, Butler se apóia na hipótese de Rubin (1975), de que o tabu do incesto não pressupõe apenas o imperativo da exogamia, mas também, a heterossexualidade exogâmica. "Uma proibição contra algumas uniões heterossexuais supõe um tabu contra as uniões não heterossexuais" (RUBIN, 1975, p. 180 apud BUTLER, 1990/2015, p. 132).
Considerando que o tabu da homossexualidade tem uma função "mantenedora" da identidade, Butler defende que a formação do gênero se dá à custa da "síndrome da heterossexualidade melancólica" (Ibidem, p. 128). Esta discussão é retomada em A vida psíquica do poder (BUTLER, 1997/2017), onde se evidencia como a identificação melancólica é crucial para que o "eu" assuma uma morfologia de gênero. Esse processo é pensado como uma decorrência da normatividade cultural que "só consegue prantear a perda do apego homossexual com grande dificuldade" (BUTLER, 1997/2017, p. 142).
Se em Problemas de gênero, essa discussão é pautada na crítica da noção de "predisposição" (BUTLER, 1990/2015), em A vida psíquica do poder (BUTLER, 1997/2017), a ênfase recai nas perdas homossexuais não pranteadas, a partir da foraclusão. Esta remete para a dupla negação em relação ao objeto homossexual: se nunca foi amado, jamais foi perdido, o que é condensado na noção nunca-jamais. De todo modo, em ambos os trabalhos, a ideia em questão é que "tanto a 'masculinidade' quanto a 'feminilidade' se formam e se consolidam por meio de identificações constituídas em parte por um luto renegado" (BUTLER, 1997/2017, p. 148). Isto implica um diálogo crítico com a psicanálise, sobretudo em relação ao Édipo.
A própria autora se preocupa em delinear como tece essa interlocução, indicando que seu anseio é estabelecer um elo cultural com a teoria psicanalítica: "gostaria de instituir o tipo de ensaio que escrevo aqui como um certo engajamento cultural com a teoria psicanalítica que não pertence aos campos da psicologia nem à psicanálise, mas que [...] busca estabelecer uma relação intelectual com as duas" (Ibidem, p. 146). Seu interesse é articular o trabalho de luto com a dificuldade de se enlutar os vínculos homossexuais em uma cultura marcada pela norma heterossexual:
Quero apenas mostrar o que, para mim, são algumas convergências produtivas entre o pensamento de Freud sobre as perdas não pranteadas e não pranteáveis e a contrariedade de vivermos numa cultura que só consegue prantear a perda do apego homossexual com grande dificuldade. (Ibidem, p. 146-147).
A melancolia de gênero não é entendida, portanto, como experiência individual, pelo contrário: aceitar ou não os apegos homossexuais não são decisões que estão nas mãos do sujeito. Elas são atravessadas pelo plano normativo da cultura que incita a heterossexualidade compulsória. Uma ilustração é observada no contraste entre a melancolia heterossexual e a melancolia homossexual. Um sujeito homossexual pode recusar o amor heterossexual, a diferença é que, no primeiro caso, a recusa da homossexualidade é fruto do imperativo cultural: "A recusa heterossexual a reconhecer a atração homossexual primária é imposta culturalmente por uma proibição da homossexualidade que não tem paralelo no caso do homossexual melancólico" (BUTLER, 1990/2015, p. 126). Em nossa perspectiva, um dos maiores méritos dessa discussão é o fato de a cultura ser colocada no centro da melancolia de gênero - a partir de uma releitura de certas formulações psicanalíticas -, o que a leva a defender que vivemos uma cultura da melancolia de gênero:
Quando certos tipos de perda são impostos por um conjunto de proibições culturalmente predominantes, podemos esperar uma forma de melancolia culturalmente predominante que sinaliza a internalização do investimento homossexual não pranteado e não pranteável. (BUTLER, 1997/2017, p. 148).
É preciso sublinhar que a melancolia de gênero não é vista como universal, inclusive a autora reconhece sua dimensão hiperbólica e contingencial. Ou seja, não é sua intenção defender a generalização de sua aplicação, mas analisar o quanto as perdas dos investimentos homossexuais primários são ou não pranteáveis - levando em conta o imperativo da heterossexualidade - e como isso incide na formação do gênero.
Devemos lembrar que, em seu projeto teórico, o luto supõe uma alteridade social que não serve só de amparo mas, antes disso, legitima as perdas dignas de luto (BUTLER, 2009/2016). Na discussão sobre a melancolia de gênero, essa premissa se apresenta nos seguintes termos: "Quando não há reconhecimento ou discurso públicos que possam nomear e promover o luto dessa perda, a melancolia assume dimensões culturais de consequência imediata" (BUTLER, 1997/2017, p. 148).
Explicitadas tais coordenadas, evidenciaremos as formulações freudianas a partir das quais a autora se pauta para sustentar sua hipótese.
4 - Entre perdas, lutos e melancolias: identificando o gênero em Freud
A reflexão de Butler tem como ponto de partida a seguinte indagação: as identificações que estão na base da formação de gênero são constituídas por uma identificação melancólica? Respondendo afirmativamente, a autora resgata alguns conceitos freudianos - como luto, melancolia, identificação e Supereu - para fundamentar sua argumentação. Reconhecendo que o discurso freudiano sustenta que o mecanismo melancólico é crucial para a "constituição do eu", Butler (1990/2015) atenta para o fato de que o autor não trabalhou explicitamente a relação entre melancolia e gênero, apesar de ter oferecido pistas que permitem depreender essa articulação, sobretudo nos textos Luto e melancolia (FREUD, 1917/1974) e O eu e o id (FREUD, 1923/ 2011) e, mais precisamente, no contraste entre eles.
A primeira diferença diz respeito à relação entre identificação e perda de objeto e o segundo refere-se à relação entre a melancolia e o luto, pois a partir de 1923, eles deixam de ser vistos como antagônicos e passam a ser descritos como complementares. Em O eu e o id (1923/ 2011), Freud afirma que, já em Luto e melancolia (1917/1974), tinha a suposição de que o objeto, quando perdido, era restabelecido no eu, através da identificação. No entanto, admite que não tinha reconhecido a dimensão desse processo, nem o quanto era frequente. Posteriormente, o autor entendeu que a substituição do investimento objetal por uma identificação corroborava para a constituição do Eu, assim como para a formação do caráter. Isto abarca, nos termos de Butler (1990/2015), os remanescentes de objetos amados que foram perdidos, objetos que não foram enlutados.
Esta ideia fica mais evidente no decorrer do texto, quando Freud reitera que as alterações que ocorrem com o Eu por decorrência das perdas objetais se dão de forma equivalente ao que ocorre na melancolia: "Se um objeto sexual deve ou tem de ser abandonado, não é raro sobrevir uma alteração do Eu, que é preciso descrever como estabelecimento do objeto no Eu, como sucede na melancolia" (FREUD, 1923/2011, apud BUTLER, 1997/2017, p. 142, grifo nosso).
É a partir disso que Butler sublinha que, no texto de 1923, há uma mudança sobre a relação entre perda e identificação, pois esta passa a ser vista como condição da primeira, o que implica outra concepção de luto. Afinal, ao indicar que esse tipo de identificação talvez seja a única estratégia possível que permite ao Id abdicar de seus objetos amorosos, Freud estaria sugerindo que "a estratégia de internalização da melancolia não se opõe ao trabalho de luto, mas pode ser o único caminho em que o eu pode sobreviver à perda de seus laços afetivos" (BUTLER, 1990/2015, p. 108).
O que está em jogo é que a identificação melancólica passa a ser entendida como condição para "deixar o objeto ir", diferente de 1917, em que o luto seria resolvido mediante o desinvestimento objetal, seguido da criação de novos vínculos. Isto significa que não há uma ruptura com o objeto, pois ele continua subsistindo no Eu; para Butler (1997/2017), Freud "altera o significado de 'deixar o objeto ir', pois não há uma ruptura final do apego. Em vez disso, o apego é incorporado como identificação, aqui considerada uma forma mágica, psíquica, de preservar o objeto" (p. 143). Este é um ponto fundamental, pois evidencia como a incorporação melancólica está na base da própria recusa da perda.
A autora sublinha que o próprio Freud (1923/2011) reconheceu que a dinâmica melancólica é crucial para a formação das identificações que constituem o Eu:
Talvez essa identificação seja absolutamente a condição sob a qual o Eu abandona seus objetos [...] e pode possibilitar a concepção de que o caráter do Eu é um precipitado dos investimentos objetais abandonados, de que contém a história dessas escolhas de objeto. (FREUD, 1923/2011, apud BUTLER, 1997/2017, p. 142).
É a partir disso que ela discute como as identificações de gênero12 são forjadas pelo modelo melancólico, o que pressupõe a noção de caráter: "Deixar o objeto ir significa, paradoxalmente, não o abandonar por completo, mas transformar seu caráter externo em caráter interno" (BUTLER, 1997/2017, p. 143).
5 - A melancolia de gênero: entre proibições e perdas não enlutadas
Segundo Freud (1923/2011), os objetos perdidos e que são reinstalados no Eu estão na base da constituição do caráter e, para Butler (1990/2015), essa formulação transcende o caráter e abarca a construção da identidade de gênero, sobretudo se considerarmos que o tabu do incesto pressupõe a perda de um objeto. Uma das noções em que ela se pauta para sustentar sua ideia é o Supereu. Cumprindo a função de sanção e de tabu, o Supereu regula as identificações masculina e feminina: "Freud observa que o ideal do eu é uma solução do complexo de Édipo e, assim, é instrumental na consolidação bem-sucedida da masculinidade e da feminilidade." (BUTLER, 1990/2015, p. 114-115).
O ponto inédito, introduzido pela autora, é que a constituição superegoica não é apenas um remanescente do complexo do Édipo, mas uma formação reativa que impede o investimento libidinal homossexual. Este é incorporado de forma melancólica13, o que estaria na base das identidades de gênero: "A construção de um ideal do eu interior envolve igualmente a internalização de identidades de gênero." (BUTLER, 1990/2015, p. 114-115).
A formação da identidade de gênero é pensada, então, a partir de dois aspectos: o tabu da homossexualidade como diretriz moral e a internalização do objeto amoroso do mesmo sexo. O fato de a perda do objeto amoroso homossexual ser uma perda "não resolvida" é um ponto central em sua reflexão. Em A vida psíquica do poder (1997/2017), esta questão é trabalhada a partir da foraclusão que designa que a perda do desejo homossexual é uma perda preventiva, condensada na ideia do nunca-jamais: "'Eu nunca a amei, jamais a perdi' proferida pela mulher, e 'Eu nunca o amei, jamais o perdi' proferida pelo homem" (p. 147).
A lógica do nunca-jamais é pensada como a matriz constitutiva da heterossexualidade, o que é outra forma de dizer que a heterossexualidade é produzida por proibições que antecedem o interdito do incesto14. É neste sentido que a autora sublinha que uma das diferenças centrais entre a proibição do incesto heterossexual e do incesto homossexual é que o incesto heterossexual não implica a perda do objetivo sexual e o segundo, sim. Afinal, no primeiro caso, só haveria a perda do objeto de amor, de modo que o trabalho de luto poderia se desenrolar, permitindo o reinvestimento libidinal. Já no tabu da homossexualidade, a perda do objeto implica a perda do objetivo, pois o próprio desejo é anulado.
O que está em jogo é que o tipo de escolha objetal se delineia a partir da renúncia do amor homossexual, por exemplo: "A menina se torna menina por estar sujeita a uma proibição que barra a mãe como objeto de desejo e instala esse objeto barrado como parte do Eu - aliás, como uma identificação melancólica" (BUTLER, 1997/2017, p. 145). A formação do gênero "masculino", por sua vez, teria como base o repúdio à feminilidade que condicionaria a heterossexualização do desejo. Mas que destino tem esse repúdio? Butler dirá que ele subsiste justamente na identificação que é "negada" na sua vivência heterossexual: "Se um homem se torna heterossexual por repudiar o feminino, onde esse repúdio poderia existir senão na identificação que sua vida heterossexual procura negar?" (Ibidem, p. 146).
Este é um ponto crucial, pois evidencia três dimensões das construções de gênero: (i) o repúdio que está na sua base; o que propulsiona (ii) a rigidez de tais construções de gênero e (iii) evidencia a instabilidade que as caracteriza. A identificação repudiada consiste no fato de que o repúdio em relação à identidade de gênero oposta é preservado como identificação e o desejo heterossexual tenta superar essa identificação: "Ele quer a mulher que ele nunca seria. Nem morto ele seria ela: por isso ele a quer. Ela é sua identificação repudiada" (BUTLER, 1997/2017, p. 147).
Justamente por ser algo que repudia, o homem tenta provar que há uma diferença entre ele e a mulher. Afinal, o desejo heterossexual pela mulher é ameaçado pelo medo de "ser" aquilo que ele diz desejar, o que significa que "seu querer também sempre será uma espécie de medo" (Ibidem, p. 146). Neste sentido, a rigidez de gênero se configura assim: a forma pela qual a perda do investimento homossexual foi vivida cadencia o quão o sujeito viverá sua identidade de gênero como algo cristalizado ou fluido: "Quanto mais rigorosa e estável é a afinidade de gênero, menos resolvida é a perda original, de modo que as rígidas fronteiras de gênero agem inevitavelmente no sentido de ocultar a perda de um objeto amoroso original, o qual, não reconhecido, não pode se resolver" (BUTLER, 1990/2015, p. 116).
Desse modo, o homem que sublinha sua coerência heterossexual está afirmando que nunca amou e perdeu outro homem. Isto é, a negação heterossexual da homossexualidade conduz ao acirramento da "masculinidade": "A homossexualidade masculina renegada culmina numa masculinidade acentuada ou consolidada, que mantém o feminino como impensável e inominável" (BUTLER, 1990/2015, p. 126). Esta nos parece uma chave de leitura para pensarmos a homofobia e a violência contra a mulher, pois remetem para uma hostilidade em relação ao "feminino", como defende Berenice Bento (2014), em sua discussão sobre o transfeminícido no Brasil.
A afirmação da afinidade de gênero se dá justamente pela instabilidade que caracteriza sua formação. Por se assentar em um amor renegado, a identidade heterossexual é consolidada de forma frágil, vendo-se assombrada pelos espectros da homossexualidade. Desse modo, a heterossexualidade compulsória está na base daquilo que Butler (1997/2017) denomina "angústia de gênero" ou "pânico de gênero", pois qualquer ameaça à heterossexualidade se transmuta na ameaça contra o gênero: "Freud articula uma lógica cultural pela qual o gênero é alcançado e estabilizado mediante o posicionamento heterossexual, momento em que as ameaças à heterossexualidade se tornam ameaças ao próprio gênero" (Ibidem, p. 144).
A partir disso, percebemos que o cerne da reflexão sobre a formação do gênero está no momento anterior ao complexo de Édipo, onde se situa o tabu da homossexualidade. Este não apenas antecede o conflito edipiano, mas é sua condição de possibilidade. Neste ponto se condensa sua maior crítica à descrição do complexo de Édipo: ele pressupõe a heterossexualização do desejo. Para extrair as consequências que isso coloca para a psicanálise, é preciso revisitar sua crítica a respeito das noções de "predisposição" e de "desejo recalcado".
6 - Predisposições e desejo recalcado: uma norma heterrosexual?
O "desejo original", segundo Butler, pode se condensar no conceito de predisposição, pois esta indica para que objetos o desejo de um "homem" ou "mulher" deve se endereçar. Para sustentar esse ponto, a autora se apoia na tese de Foucault (1976/1984) de que a lei produz o desejo que alega reprimir, isto é, a lei "cava o espaço discursivo para a experiência constrangida e linguisticamente elaborada chamada 'desejo recalcado'" (BUTLER, 1990/2015, p. 119).
É a partir da produção do "desejo recalcado" que a narrativa psicanalítica sustenta a existência de predisposições libidinais masculinas e femininas. O tabu da homossexualidade, quando internalizado, é o que sustenta a ideia de predisposição masculina ou feminina, o que serve como força mantenedora da identidade de gênero: "as predisposições, que Freud supõe serem os fatos primários ou constitutivos da vida sexual, são efeitos de uma lei que, internalizada, produz e regula identidades de gênero distintas e a heterossexualidade" (BUTLER, 1990/2015, p. 117).
As predisposições libidinais primárias seriam a bissexualidade e a homossexualidade e elas seriam camufladas, aos poucos, pelas predisposições heterossexuais: "Na psicanálise, a bissexualidade e a homossexualidade são consideradas predisposições libidinais primárias, e a heterossexualidade é a construção laboriosa que se baseia em seu recalcamento gradual" (Ibidem, p. 138)15.
A reflexão da autora parte da premissa de que o conceito de predisposição passou por uma espécie de deslocamento no texto freudiano, pois deixou de ter conotação verbal ("estar disposto") para designar algo de ordem substantiva ("ter predisposições"), tornando-se algo cristalizado. É neste ponto que Butler localiza um falso fundacionismo, pois não se trata de elementos sexuais primários, mas, sim, de efeitos reiterados da proibição, ou melhor, da lei.
Considerando que há uma história anterior à entrada na trama edipiana, que não é contada nem dizível, a autora inverte a lógica causal do Édipo, defendendo que a proibição do incesto é secundária, pois, antes dela, o sujeito passa por uma proibição que o impede de desejar objetos sexuais do mesmo sexo. Isto é, o "desejo original recalcado" - e o tabu do incesto - só são possíveis porque o tabu contra a homossexualidade estabeleceu, anteriormente, as predisposições heterossexuais: "O menino e a menina que entram na trama edipiana com objetivos incestuosos heterossexuais já foram submetidos a proibições que os 'predispuseram' a direções sexuais distintas" (BUTLER, 1990/2015, p. 117).
Dito isso, discutiremos outro desdobramento crucial da hipótese de Butler a respeito da melancolia de gênero, qual seja, que esta permeia a própria maneira pela qual a corporalidade é constituída - incluindo as zonas erógenas - e, portanto, o prazer: "A superfície sexuada do corpo emerge assim como o signo necessário de uma identidade e de um desejo natural(izados)" (BUTLER, 1990/2015, p. 129).
7 - Das projeções de superfície às projeções de prazer
Como descreve Freud: "O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície" (FREUD, 1923/1976, p. 40). A contribuição de Butler reside no fato de que o "Eu corporal assume uma morfologia de gênero" (BUTLER, 1997/2017, p. 142), a partir da incorporação melancólica, o que incide nas zonas erógenas e no prazer: "A localização e/ou proibição de prazeres e desejos em zonas 'erógenas' dadas constitui precisamente o tipo de melancolia diferenciadora do gênero que cobre a superfície do corpo." (BUTLER, 1990/2015, p. 124).
Considerando que as identificações são "incorporadas", Butler (1990/2015) lança a hipótese de que essas incorporações se situam sobre o corpo, de modo que este deve ser entendido como um espaço incorporado: "Se não está literalmente dentro do corpo, talvez esteja sobre o corpo, como seu significado superficial, de tal modo que o próprio corpo tem de ser compreendido como um espaço incorporado" (p. 123).
Para desenvolver esse ponto, ela parte da discussão de Abraham e Torok sobre a introjeção e a incorporação, onde o primeiro processo está ligado ao luto, pois há o reconhecimento da perda do objeto, ausência que vai sendo representada metaforicamente pelas palavras. A incorporação16, por sua vez, está ligada à perda melancólica, na qual o objeto é "magicamente" preservado no interior do corpo. A perda não nomeada suscita uma operação antimetafórica17, de modo que se estabelece de forma "criptografada" no corpo, produzindo um conflito entre "corpo vivo versus o corpo morto" (BUTLER, 1990/2015, p. 123).
Primeiramente, ela afirma que a incorporação se dá no plano da fantasia, referindo-se a Roy Schafer, para quem a "'incorporação' é uma fantasia e não um processo" (BUTLER, 1990/2015, p. 122). Em seguida, defende que não se trata de uma fantasia em "estado puro", pois a incorporação como fantasia pressupõe uma materialidade que se revela na própria identidade de gênero: "A afirmação de que a incorporação é uma fantasia sugere que a incorporação de uma identidade é uma fantasia de literalização ou uma fantasia literalizante18" (BUTLER, 1990/2015, p. 127).
Isto inclui os órgãos que poderão ser reconhecidos como fonte de prazer, na medida em que este é incorporado como proibição: "Os prazeres são determinados pela estrutura melancólica do gênero pela qual alguns órgãos são amortecidos para o prazer e outros, vivificados" (BUTLER, 1990/2015, p. 127). Tudo se passa como se a suposta predisposição - decorrente do tabu da homossexualidade - produzisse uma distribuição normativa dos prazeres, definindo quais viverão e quais morrerão.
O que nos interessa sublinhar é que as normas de gênero não só incidem, mas produzem corpos e prazeres, ao mesmo tempo que encobrem essa genealogia, fazendo parecer que há alguma espécie de "naturalidade": "Como atividade antimetafórica, a incorporação literaliza a perda sobre ou no corpo, aparecendo assim como a facticidade do corpo, o meio pelo qual o corpo vem a suportar um 'sexo' como sua verdade literal" (Ibidem, p. 124).
Conclusão
Ainda que Freud e Butler partam de diferentes premissas, ambos se empenham em entender a identificação, a partir das implicações recíprocas entre campo social e individual. Considerando a premissa freudiana de que a internalização dos objetos perdidos é crucial para a constituição do Eu, a contribuição inédita de Butler é analisar como o imperativo da heterossexualidade incide nas identificações de gênero.
A entendemos como um ponto de continuidade com a premissa de que a psicologia individual é, antes tudo, uma psicologia social: "A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza se a examinamos mais detidamente" (FREUD, 1921/2011, p. 10). Ao mesmo tempo, localizamos um ponto de descontinuidade em relação a certas formulações psicanalíticas que leem as experiências sexuais e de gênero a partir de uma dimensão intrapsíquica, muitas vezes ancorada na maneira em que o sujeito vivenciou (ou desviou) a experiência pré-edípica e edípica, como discutimos na introdução.
A reflexão de Butler convida a comunidade psicanalítica a repensar a identificação, a experiência edípica, as escolhas objetais, a corporalidade e o prazer, à luz do imperativo da heterrosexualidade e do binarismo de gênero. Esta nos parece uma tarefa crucial para desconstruirmos as balizas normativas que se apresentam em certos enunciados psicanalíticos, sobretudo se quisermos nos oferecer como alteridade para os sujeitos que não se enquadram na heterocisnormatividade.
É preciso reconhecer que a hipótese de o tabu da homossexualidade anteceder o tabu do incesto é bastante instigante, por operar uma torção na teoria psicanalítica. Ao destacar o caráter produtivo do tabu do incesto, a partir da genealogia foucaultiana, evidencia-se que essa proibição (em vez de proibir) é pressuposta pelo imperativo heterossexual, ou ainda, pela produção da homossexualidade como algo inviável. Além disso, a autora lança outra hipótese corajosa: o imperativo da heterossexualidade norteia quais zonas erógenas serão passíveis de prazer, na medida em que as perdas melancolizadas incorporadas forjam corporalidades.
As interpelações de Butler suscitam consequências importantes para a psicanálise, por questionar algumas de suas premissas, como o desejo incestuoso recalcado. Esse deixa de ser visto como apriorístico, mas como uma produção da engrenagem cisbinária e heterossexual que regula quais escolhas objetais e identificações são legítimas. É a partir dessa premissa que a autora sustenta a hipótese de que a interdição do incesto é uma injunção normativa que produz configurações culturais de gênero.
Por isso, a melancolia de gênero não é entendida como intrapsíquica, mas algo que se expande pelo tecido social: "O resultado é uma cultura da melancolia de gênero [...] em que a masculinidade e a feminilidade, dentro da matriz heterossexual, são fortalecidas pelos repúdios que elas performam". (BUTLER, 1997/2017, p. 148-149). Nesse sentido, seu trabalho nos ajuda a problematizar, também, a discriminação contra as pessoas que não se adequam à normatividade de gênero, o que nos parece mais um ponto de interface entre a psicologia social e a psicologia individual.
Como sublinhamos, Freud afirmou que a psicologia de massas abarcava uma gama de problemáticas ainda não delineadas, o que nos leva a perguntar: se a norma heterossexual está na base de nossa cultura, não seria a LGBTfobia uma marca da psicologia das massas? Esta se revela na discriminação, violência e assassinatos contra a população LGBTQI+, mas também, de forma cotidiana e capilar, nos discursos e práticas que pregam a heterossexualidade e o binarismo como modelo compulsório. Assim, se por um lado não adentramos na discussão da psicologia das massas - bem como, do narcisismo das pequenas diferenças -, por outro, essa discussão está implicada no presente estudo.
Dito de outro modo, indagamos se o imperativo heterocisnormativo não pode ser entendido a partir da chave de leitura oferecida por Freud (1921/2011) sobre os fenômenos de massa, no qual certos ideais são elencados - servindo de matéria-prima para determinados laços identificatórios -, enquanto outros são vistos como ilegítimos e, portanto, inimigos a serem exterminados. Até porque, para a heterossexualidade se manter como norma, é preciso que a homossexualidade seja produzida como algo ininteligível (BUTLER, 1990/2015). O "pânico de gênero" nos parece uma pista para debatermos a homofobia e a transfobia, pois a discriminação em relação ao outro, muitas vezes, é justificada (inclusive, juridicamente) como uma tentativa de se preservar a própria identidade sexual e de gênero, como fica evidente com o gay panic (SALAMON, 2018).
Enfim, é possível extrair da hipótese da melancolia de gênero, uma série de consequências éticas, sociais e políticas a respeito da imbricação entre norma, gênero e sexualidade. Mesmo que possamos discordar de alguns pontos e fazer certas objeções19, não devemos deixar de reconhecer que a maioria deles é pertinente. Mais do que isso: é preciso estarmos abertas/os para ouvir críticas, sobretudo, a respeito da presença do imperativo da cisheteronormatividade na psicanálise.
Acolher esse tipo de crítica implica não perder de vista a contingência histórica da obra freudiana que pensou as experiências psíquicas na modernidade, o que pressupunha determinado modelo de família, de casamento, de parentalidade e de gênero. Não podemos presumir, então, que os conceitos freudianos guardam qualquer universalidade. Por isso, partimos da premissa de que a eternização de instrumentos teórico-conceituais suscita uma leitura a-histórica e universalista do sujeito, o que leva a abordagens normativas marcadas, muitas vezes, por um ideal de sexualidade.
Nós, psicanalistas, devemos pensar as subjetividades sem nos ancorarmos em verdades dos séculos XIX-XX, berço de Édipo. Talvez essa seja a postura mais freudiana que podemos adotar hoje. É possível que uma das maiores contribuições da psicanálise hoje seja fazer frente à melancolização de gênero, sobretudo se quisermos relançar a peste como interpelação da moral civilizada (FREUD, 1908/1976). Isso implica se descolar do paradigma da heterossexualidade e, como afirma a própria Butler (2002/2003), a psicanálise tem condições para isso: "A psicanálise não precisa ser associada exclusivamente ao momento reacionário no qual a cultura é compreendida como tendo por base numa heterossexualidade irrefutável" (p. 257).
Por isso mesmo, nos dedicamos a repensar, no artigo, a categoria de identificação e a experiência edípica na psicanálise, a partir do tabu da homossexualidade. Isso não apenas nos leva a pensar como a norma binária heterossexual incide na sexualidade e no gênero, mas também, como permeia o campo psicanalítico. Debruçarmo-nos sobre esse entrelaçamento da psicologia social com a psicologia individual nos parece crucial 100 anos depois do brilhante trabalho de Freud sobre a Psicologia das massas e análise do eu.
Só assim acreditamos que a psicanálise possa se colocar como alteridade para as polimorfias sexuais e de gênero no século XXI.
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Artigo recebido em: 30/07/2021
Aprovado para publicação em: 24/10/2021
Endereço para correspondência
Natasha Mello Helsinger
E-mail: nathelsinger@gmail.com
*Mestre e Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP-Rio) e do Instituto de Estudos da Complexidade (IEC). Participante do Coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1Este artigo é fruto da minha tese de doutorado Os riscos do "segundo nascimento": o que nasce e o que morre? Autoengendramento, desamparo e alteridade na transexualidade, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (PPGTP/UFRJ) e orientada pelo Prof. Joel Birman. A pesquisa contou com o apoio da CAPES.
2Este tipo de reflexão aparece em apresentações de casos clínicos, onde elementos contingentes são utilizados para se formular uma hipótese teórica (AYOUCH, 2015a). Por exemplo, Gérard (2003) defende que Cécile buscava mulheres onipotentes, através de sua homossexualidade (AYOUCH, 2015a). Isto estaria ligado ao fato de que o casal narcí sico m ãe-filha, quando não intercedido pela figura paterna, favoreceria angústias narcísicas.
3O autor elenca uma série de características que marcariam a "mãe de um transexual", sendo uma das mais centrais, a suposta inveja do pênis, o que lhe faz defender que a mãe faz com seu filho o que gostaria de fazer com todos os homens, isto é, destitui sua virilidade.
4"Estou recomendando [...], Sex and gender, de um certo Stoller. [...] Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica com muita facilidade a forma desses casos. (LACAN, 1971/2009, p. 30 apud KOSOVSKI, 2016, p. 139).
5Inclusive, esse é o ponto de partida da crítica de Judith Butler (1990/2015) a respeito da leitura lacaniana do Édipo como condição de entrada na cultura.
6Tal interpelação se inscreve no interior de um campo mais amplo de seu projeto ético-político, a saber, a crítica sobre a universalidade do Édipo, bem como a pressuposição de que este seja a condição de entrada na cultura.
7Essa hipótese pressupõe a premissa de Foucault (1976/1977) de que a lei é inventiva e não proibitiva, isto é, que produz o desejo que alega reprimir.
8Esta é uma outra forma de descrever o caráter ficcional e performativo da coerência de gênero - o que também atesta sua instabilidade -, o que foi desenvolvido na discussão de Butler (1990/2015) a respeito das performatividades de gênero.
9Em suas palavras: "A gênese da homossexualidade masculina é, em grande parte dos casos, a seguinte. O jovem esteve fixado de modo excepcionalmente longo e intenso em sua mãe, no sentido do complexo de Édipo. Mas por fim, após a puberdade, chega o tempo de trocar a mãe por um outro objeto sexual." (FREUD, 1921/2011, p. 49).
10O exemplo paradigmático que Freud apresenta é o caso de uma moça que vive em um pensionato e que recebe uma carta de um amor secreto, carta que lhe desperta ciúmes e, em seguida, um ataque histérico. Este, por sua vez, é reencenado pelas suas amigas, por conta da dita "infecção psíquica": "O mecanismo é aquele da identificação baseada em querer ou poder colocar-se na mesma situação. As outras também gostariam de ter um amor secreto, e sob o influxo da consciência de culpa também aceitam o sofrimento que ele envolve." (FREUD, 1905/1976, p. 49). O autor nos dirá que não é uma questão de compaixão, afinal esta já é uma decorrência da identificação.
11A partir disso, Freud (1921/2011) extrai três consequências sobre a noção de identificação: "primeiro, a identificação é a mais primordial forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substituto para uma ligação objetal libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais." (p. 49-50).
12Essas identificações não são pontuais, produzindo reformulações no eu: "Essa identificação não é meramente momentânea ou ocasional, mas se torna uma nova estrutura da identidade" (BUTLER, 1990/2015, p. 107).
13"A perda do objeto do mesmo sexo é seguida pela resposta melancólica, pautada na incorporação, na qual o sujeito torna-se esse objeto, por via da construção do ideal do eu" (BUTLER, 1990/2015, p. 116).
14Em sua perspectiva, isso fica claro no trabalho Três ensaios (FREUD, 1905/1989), onde os termos "feminino" e "masculino" (como posições) são descritos como decorrências de "proibições que exigem a perda de certos apegos sexuais, e exigem também que essas perdas não sejam admitidas e não sejam pranteadas" (BUTLER, 1997/2017, p. 144).
15Em nossa perspectiva, essa interpretação é discutível, pois depende da leitura que fazemos da hipótese freudiana a respeito da sexualidade perverso-polimorfa. Essa suposição teria sentido se lêssemos a hipótese da sexualidade perverso-polimorfa a partir do modelo do desenvolvimento, ou seja, se fizéssemos equivaler o termo "infantil" à ideia de infância. Neste sentido, estaríamos totalmente de acordo com a autora, pois esse tipo de leitura é absolutamente moral e normativo e, infelizmente, atravessa certas leituras psicanalíticas que sustentam, em maior ou menor medida, que a sexualidade infantil é "ultrapassada" por uma sexualidade, supostamente adulta, isto é, genital. Enquanto, em nossa perspectiva, a sexualidade perverso-polimorfa continua operando, não obstante a organização genital.
16Os autores pensam a questão da significação metafórica a partir da perda do corpo materno como objeto de amor. Esta perda deixa um espaço vazio a partir do qual a fala se origina. No entanto, quando a perda é recusada, o corpo materno é melancolicamente situado no corpo do sujeito, "ganhando ali residência permanente como uma parte morta e embotadeira do corpo" (BUTLER, 1990/2015, p. 124).
17"A incorporação é não somente uma impossibilidade de nomear ou admitir a perda, mas corrói as condições da própria significação metafórica" (BUTLER, 1990/2015, p. 123).
18Seria interessante pensar como se situa a "fantasia literalizante" na experiência trans. Se considerarmos que a literalização do corpo se apresenta como algo natural, talvez pudéssemos dizer que essa literalização é justamente questionada pelo movimento trans. Afinal, a rejeição da atribuição inicial do gênero perpassa, muitas vezes, pela condição corporal, de modo que poderíamos pensar que a "recusa da naturalidade do corpo" seria uma forma de sair da dimensão antimetafórica suscitada pela normatividade de gênero. Por questões metodológicas, não poderemos aprofundar essa discussão e a retomaremos em outra oportunidade.
19Por exemplo, a autora não parece trabalhar o Édipo invertido. Além disso, a forma pela qual ela se refere ao desejo homossexual da menina pela mãe difere daquilo que Freud mostra, por exemplo, no caso da jovem homossexual.