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Psicologia Escolar e Educacional
versão impressa ISSN 1413-8557
Psicol. esc. educ. v.3 n.1 Campinas 1999
HISTÓRIA
Entrevista com Raquel S. L. Guzzo
Entrevistadora: Geraldina Porto Witter
Witter - Que variáveis influíram na sua escolha da Psicologia como área de atuação
profissional?
Guzzo - Meu primeiro contato com a Psicologia se deu quando eu fazia a Escola Normal. Eu queria ser professora de criança. Cresci em uma família em que toda criança era muito respeitada, cuidada como uma preciosidade ao mesmo tempo grande em seu potencial de desenvolvimento e vulnerável aos riscos... Neste ambiente, em que muitos dos adultos, pais, avós, tios eram professores de diferentes áreas e níveis, não foi difícil entender a importância do acompanhamento cuidadoso de toda criança durante as primeiras fases de sua vida. Daí o interesse pela carreira de professora alfabetizadora. Durante o curso de formação para professores eu tomei contato pela primeira vez com a Psicologia do Desenvolvimento e me deparei com uma enorme vontade de conhecer mais profundamente esta ciência. Terminando o curso Normal, prestei vestibular para Psicologia. De lá para cá, nunca me saciei do que tenho pela frente de aprendizado. Estudar Psicologia é estar sempre se aprimorando e conhecendo o que vem vindo de novo no entendimento do ser humano, especialmente em desenvolvimento.
Witter - Como foi sua formação profissional?
Guzzo - Depois que me formei professora, cursei a Psicologia e fui fazer mestrado e doutorado em Psicologia Escolar. Era uma área que havia despertado meu interesse desde o terceiro ano da graduação e fui buscar uma forma de me aprofundar nela. Eu fiz minha graduação no Instituto de Psicologia da PUC-Campinas. Ingressei, em 1969, como a quinta turma do recém criado Instituto, fundado na Universidade, logo após o reconhecimento da profissão no país, em 1962. Como vivemos uma época de grandes problemas com o auge da ditadura militar, minha turma viveu uma situação especialmente desagradável com a demissão de todos os professores do quadro docente institucional por razões políticas. Este fato nos tornou vulneráveis em termos de nossa formação básica. Tivemos que procurar professores durante o semestre letivo para suprir as vagas abertas pela demissão coletiva. Aprendíamos com professores que vinham e iam em pouco tempo, até conseguirmos formar um corpo docente estável e comprometido com as diretrizes curriculares que anteriormente estavam sendo construídas. Nesta difícil trajetória, uma certeza estava cada vez mais presente: a pós-graduação era necessária. Construindo o caminho, aprendemos que mais importante do que o próprio caminho era o processo da caminhada. Fomos conhecendo e desvendando a Psicologia, como uma ciência difícil e em construção.
Witter - Porque optou pela área da Psicologia Escolar?
Guzzo - Minha opção pela área da Psicologia Escolar aconteceu no terceiro ano da faculdade,
quando comecei ao mesmo tempo estudar a Psicologia Escolar e Psicopatologia Geral e Especial. O contraste foi decisivo. Cuidar da criança, do seu desenvolvimento, prevenindo problemas
psicológicos foi o grande apelo da área. Embora não tivesse aprendido exatamente isto, pois o
modelo na época era voltado para o entendimento das dificuldades escolares e formas de
intervenção nesta área, sempre me chamou a atenção o imenso desafio de se trabalhar de forma proativa. Ao longo de meu aprimoramento profissional, fui descobrindo, notadamente no contato com a comunidade internacional de Psicologia Escolar, que temos muito a fazer para ajudar crianças, professores e pais no processo do desenvolvimento.
Witter - Conte seu envolvimento com a criação e o desenvolvimento da ABRAPEE.
Guzzo - Mesmo tendo optado pela Psicologia Escolar como área de atuação e pesquisa desde a
graduação, minha sensação era de que eu estava remando contra a maré. A maioria dos estudantes de quando eu me formei optava pela área clínica, abria consultórios e atendia em diferentes problemáticas. Na época, era comum medir-se a "competência" profissional que possuíamos em consultório... Sem consultório, era o mesmo que se denominar um subproduto da psicologia. O estudante de Psicologia na década de setenta era formado para atuar de forma elitista, em consultórios particulares e para população de alta renda. Poucas eram as oportunidades para aqueles que desejassem um outro modelo de atuação, especialmente em instituições escolares. Assim, fui conhecendo diferentes campos de atuação na área da Psicologia Escolar, desbravando caminhos, e procurando pessoas e programas espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Trabalhei com crianças portadoras de necessidades especiais deficiências sensoriais, cognitivas e neurológicas. Ensinar estas crianças era um desafio. Avaliar suas necessidades mais ainda. Eu me sentia um profissional solitário, sem possibilidades de troca ou aperfeiçoamento. Enquanto isto, o mestrado e o doutorado foram contribuindo para que eu pudesse encontrar meus pares, tanto na comunidade nacional quanto internacional. Ao mesmo tempo, possibilitou-me conhecer o esforço de alguns de meus professores, pesquisadores da área de Psicologia Escolar na USP, em disseminar a área entre nós. A história brasileira da Psicologia Escolar desvela importantes aspectos desta área entre nós, muito mais do que realmente podemos imaginar. A área da Psicologia Escolar estava presente entre nós muito antes do que a própria Psicologia. Estávamos junto com professores. Chegamos a nos reunir como uma área na década de 80, por iniciativa do sindicato dos Psicólogos. Foram três
encontros de psicólogos interessados na área da Educação. Os anais destes encontros demonstram que estávamos desarticulados e com muitas frentes de trabalho para responder. Saí destes encontros com a idéia de que precisávamos agregar os profissionais com os mesmos interesses e desafios. Depois destes momentos, comecei a chamar profissionais que atuavam na área na região de Campinas por meio da Comissão de Educação do Conselho Regional de Psicologia. Percebi que havia muito mais profissionais do que eu podia imaginar envolvidos com a atuação no sistema educacional. Todos responderam muito prontamente e fomos, a partir daí, nos descobrindo enquanto profissionais "diferentes", ao mesmo tempo em que construímos um rol de necessidades para a área. Em 1989, encontrei-me com a Dra. Solange Wechsler pela primeira vez em uma reunião da atual Sociedade Brasileira de Psicologia e isto foi suficiente para que pudéssemos articular a criação da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional. Juntando os interesses de psicólogos do Distrito Federal, com aqueles de São Paulo, colocamos em prática nossos ideais - um espaço para agregar profissionais interessados na área da Educação, gerar conhecimento nacional e influenciar as políticas públicas para as crianças brasileiras.
Witter - E com a ISPA?
Guzzo - Reconhecendo que nossos recursos eram poucos nesta área e de que precisaríamos da
experiência de associações mais fortes e antigas, ingressei como membro da Associação
Internacional de Psicologia Escolar - ISP A, em 1990. A experiência me permitiu, de imediato,
perceber que em muitos países o psicólogo escolar estava inserido no sistema educacional
amparado por leis e com uma formação profissional reconhecida e sólida. Aprendo muito desde
então com o contato com psicólogos escolares de todas as partes do mundo. Depois de
conseguirmos o nosso primeiro Congresso Nacional de Psicologia Escolar, a ISP A veio pela
primeira vez ao continente sulamericano conhecer de perto o que é o sistema educacional por aqui. Meu envolvimento com a ISP A passou a ser maior quando assumi a Tesouraria da Associação há quatro anos. Temos procurado desenvolver projetos interessantes na ISP A que possam auxiliar as Associações Nacionais de Psicologia Escolar a se desenvolverem e assim a tomarem mais fortes a profissão.
Witter - Hoje, como vê a Psicologia Escolar/Educacional no Brasil?
Guzzo - Ainda acredito que a Psicologia Escolar e Educacional no Brasil tem futuro, pois acredito
que a escola brasileira tem muito a melhorar e, sem dúvida, vai precisar do apoio do psicólogo junto ao professor. No entanto, sinto que ainda estamos muito longe daquilo que deveríamos chamar uma profissão forte. Ainda não formamos o profissional psicólogo para atuar no sistema educacional como deveria, ainda estamos muito longe uns dos outros. Na verdade, ainda nem sabemos exatamente quantos somos e quem somos neste país de dimensões continentais. A ABRAPEE tem feito um grande esforço em manter a área viva em meio às associações científicas e profissionais, divulgando aos seus membros assuntos de interesse. Mas mesmo assim, poucos são os que na realidade respondem a este esforço. Por esta razão sinto que a comunidade ainda não acordou para a importância da área. Temos que fazer muito.
Witter - Qual o Futuro da Psicologia Escolar/Educacional no Brasil?
Guzzo - O futuro é certo se a educação brasileira mudar seu perfil e procurar a eficiência em todos os níveis de escolaridade e no atendimento a crianças e jovens com necessidades especiais. Como educadora, além de psicóloga eu não perco as esperanças. Nosso futuro está cada vez mais se delineando na necessidade de formarmos psicólogos para trabalharem junto à secretarias municipais de Educação e Promoção Social, para assegurarem às crianças o direito de estudar e aprender nas escolas e verem atendidas as suas necessidades básicas. Nosso futuro está também no envolvimento cada vez maior dos pais com a escolarização de seus filhos. A importância de cada vez mais os pais estarem conscientes dos direitos que têm em relação à Educação e quanto mais se envolverem com o desenvolvimento de seus filhos, mais estaremos sendo importantes neste processo. Mas, para que isto aconteça, temos que sair para a sociedade, temos que trabalhar em programas de conscientização e informação sobre o desenvolvimento infantil. Temos que trabalhar para revet1ermos o quadro de que a criança é que tem problemas e precisa ser "tratada" fora da escola. A escola é que tem que se preparar para receber qualquer criança e proporcionar a ela oportunidades para que se desenvolva. Não adianta escolher o aluno que vai freqüentar a escola. Todos podem aprender, basta que para isto possam ser ensinados em acordo com suas necessidades. Esta é uma grande ameaça ao nosso futuro - a escola que exclui e, ao mesmo tempo, os profissionais de outras áreas, inclusive da mesma psicologia, que vivem atendendo aos problemas de aprendizagem sem
assumir que deveriam estar trabalhando para uma escola diferente, mais democrática e justa,
competente e criativa.
Witter - Se pudesse refazer sua trajetória profissional na Psicologia escolheria outra área? Por quê?
Guzzo - Não mudaria minha trajetória. Acho que seguiria os mesmos passos, no entanto teria me
preparado mais rápido para chegar até onde estou, isto porque sinto que perdemos muito tempo, o qual não poderíamos perder. Nosso país precisa mudar rápido, pois a cada ano é uma geração perdida. Isto me incomoda muito e eu acho que muitos colegas de profissão não têm este sentido de urgência que eu tenho. Eu gostaria de que pudéssemos possuir mais recursos financeiros para trabalhar com a mídia para termos um poder de influenciar a comunidade de forma mais incisiva. Acho que utilizamos muito pouco da mídia e com isso demoramos para mudar a atitude...
Witter - Há alguma informação ou mensagem que gostaria de acrescentar para nosso leitor?
Guzzo - Seria importante que todos aqueles psicólogos, realmente interessados no desenvolvimento de crianças e adolescentes, pudessem estar envolvidos na disseminação dos conceitos importantes para prevenção de problemas psicossociais neste estágio da vida. A busca de aprimoramento para a atuação dentro deste modelo é também imprescindível em nosso meio, já que ser psicólogo no Brasil é estar com uma postura diferente de atendimento à doença psicológica mais do que à construção da saúde. Esse apelo indica a importância na formação de profissionais voltados para a atuação nas escolas com outros referenciais e ferramentas de trabalho, mais apropriados para uma intervenção preventiva. Precisamos formar psicólogos para o Brasil - um país cheio de contrastes e problemas sociais, cheio de desafios para os quais nem toda literatura produzida oferece respostas.