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Psicologia Escolar e Educacional

versão impressa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.9 n.1 Campinas jun. 2005

 

ARTIGOS

 

O professor e o aluno em liberdade assistida: um estudo exploratório

 

Teacher and the student in assisted freedom: ans exploratory study

 

 

Jeyse Martins1; Caroline Catozzi1; Flávia Sayegh1; Isabel Cristina Dib Bariani2

PUC-Campinas

Endereço para correspondência


RESUMO

Liberdade Assistida é uma medida sócio-educativa que visa reintegrar na sociedade o adolescente que cometeu ato infracional e, como critério para essa condição, é necessário que esse adolescente esteja freqüentando regularmente uma instituição escolar. Diante disso, esse trabalho investigou as possíveis dificuldades identificadas por professores na relação com esse aluno em situação especial. Participaram dessa pesquisa oito informantes, todos professores de alunos em Liberdade Assistida (LA), de ambos os gêneros e com consciência prévia da condição legal do aluno, aos quais foi solicitado que respondessem individualmente a um questionário com 12 perguntas. As informações obtidas foram analisadas quantitativa e qualitativamente. Os resultados indicam que os professores encontram dificuldades na relação com o adolescente em LA, explicitando, nesse sentido, a necessidade de cursos de orientação para esses professores, além de um investimento maior de pesquisas relacionadas a essa problemática.

Palavras-chave: Medidas Sócio-educativas, Relação Professor-aluno, Adolescentes


ABSTRACT

Assisted freedom is a social-educational measure that has the purpose of reintegrating the violator teenager in the society and, as a criterion for this condition, this teenager must be attending in a regular school. Therefore, this work investigated the possible difficulties which were identified by the teachers in the relationship with these students in Assisted Freedom condition. The eight teachers of both genders who participated in this research, working with students in Assisted Freedom, who were previously aware of the student’s legal condition, were asked to answer a questionnaire with 12 questions individually. The information obtained was analized quantitative and qualitatively. The results indicate that the teachers have difficulties in the relationship with the violator teenager, which emphasize the necessity of guidance to these teachers, in adition more investment in researches related to this problem.

Keywords: Social-educational Measure, Student-teacher Relationship, Teenagers


 

 

INTRODUÇÃO

De acordo com Sêda (1998) o adolescente que transgredir a lei deverá ser julgado de acordo com a gravidade de seu ato, podendo ser designado a cumprir uma das seis medidas sócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), das quais duas são ministradas em meio fechado (internação em unidades de semiliberdade e reclusão em casa deinternação) e quatro em meio aberto (advertência, obrigação de reparação ao dano, prestação de serviço à comunidade e Liberdade Assistida).

O ECA foi implantado em 1990, incorporando novos princípios, tais como a desestatização -atribuindo a responsabilidade por seu cumprimento ao governo e comunidade-; desjudicialização -criando conselhos de direito da criança e do adolescente, os quais devem controlar como as políticas públicas cumprem ou não aquilo que foi convencionado- e descentralização - municipalizando e favorecendo que possíveis questões sejam resolvidas ao nível mais próximo da comunidade (Cecom, 2000).

Além disso, ele propicia aos jovens que infringiram a lei a possibilidade de readaptação social, ao afastar o adolescente do Código Penal e adotar uma liberdade vigiada, longe das prisões de adultos e criminosos comuns (Moreira, 1997). Assim, a Liberdade Assistida é uma medida sócio-educativa, prevista nos ARTIGOSs 112, 118 e 119 do ECA, que tem como objetivo reintegrar à sociedade os adolescentes que transgrediram a lei. Segundo esse mesmo estatuto, verificada a prática do ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente a medida de Liberdade Assistida, que será adotada sempre que se afigurar como a mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente. Ao definir a medida que deverá ser aplicada, a autoridade levará em conta a capacidade do adolescente em cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração (CMDCA, 2000).

Caso se decida pela Liberdade Assistida, será designada uma pessoa, o orientador, capacitada para acompanhar o caso, a qual poderá ser recomendada por entidade ou programa de atendimento. O orientador, com o apoio e supervisão da autoridade, deve promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendolhes orientação e inserindo-os, se preciso, em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social; deve promover sua matrícula escolar, supervisionar a freqüência e o aproveitamento acadêmico do adolescente; além disso, deve, também, incentivar a profissionalização e a sua inserção no mercado de trabalho. Por fim, o orientador tem o encargo de apresentar o relatório do caso às autoridades competentes (CMDCA, 2000).

Segundo dados da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM), há apenas 200 técnicos para trabalhar com cerca de 15 mil adolescentes em Liberdade Assistida no Estado de São Paulo; assim, em tese, cada profissional precisaria orientar 75 jovens; no entanto, na cidade de São Paulo esse número sobe para 133, pois mais da metade dos infratores em Liberdade Assistida estão nessa cidade (Squeff, 2000).

O programa de Liberdade Assistida é uma alternativa considerada progressista para ressocializar o jovem que cometeu ato infracional dentro da sua comunidade. O programa cresceu muito no Estado de São Paulo, porém, enfrenta um sério problema, pois para funcionar é necessário uma estrutura de atendimento personalizado e constante: acesso à escola, trabalho e apoio familiar.

De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), não há, no Brasil, alguma instituição que possa ser apontada como modelo ideal para a recuperação de jovens. Isso ocorre, pois a prática é diferente do que está definido no arcabouço teórico e na proposta de funcionamento dessas instituições, como por exemplo, a FEBEM. Essa instituição foi denunciada pela Anistia Internacional como centro de tortura sistemática; ainda, outras entidades afirmam que os jovens são tratados como presos adultos, amontoados e sem acompanhamento especializado (Squeff, 2000).

Dados da FEBEM indicam que, entre 1997 e 1999, o número de mortes de adolescentes no seu programa de Liberdade Assistida cresceu 68%; em 1997 81 jovens morreram, contra 136 em 1999. A instituição justifica o aumento do número de mortes e reincidentes pelo crescimento do número de jovens no programa. Em 1997, eram 12.145 adolescentes atendidos e em 1999 eram 16.665. Dezenas de jovens em Liberdade Assistida estão sendo assassinados a cada mês. De maio de 1999 a maio de 2000 foram 184 mortes, sendo que desses, 67 teriam sido mortos por envolvimento com drogas e 13 pela polícia. Segundo Conceição Paganele, presidente da Associação de mães da FEBEM, essas mortes são reflexo da dificuldade dos adolescentes em arrumar um emprego devido ao preconceito que sofrem (Squeff, 2000).

A Fundação Telefônica, desde janeiro de 2005, desenvolve um projeto com cerca de 50 adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas, com idade entre 12 e 18 anos, na cidade do Guarujá/SP. Esses adolescentes contam com o apoio do projeto “Medida Legal – Inclusão Digital”, cujo objetivo é promover a inclusão digital favorecendo a inclusão social, para isso oferece acompanhamento individual, apoio sóciofamiliar, encaminhamento escolar, matricula em cursos de iniciação profissional, além de disponibilizar um laboratório de informática, com 12 computadores, ligados em rede e com acesso à internet (Fundação Telefônica, 2004).

Em Londrina/PR, tem sido implementado o projeto “Murialdo”, o qual tem por objetivo integrar jovens que cumprem medidas sócio-educativas à escola. A iniciativa desenvolvida com professores da rede pública atende adolescentes em conflito com a lei na prestação de serviços à comunidade, na inserção em cursos profissionalizantes e na reintegração desses ao ensino regular. Desde sua implementação em março de 2005, o projeto acompanhou 90 casos, sendo que desses houve apenas três reincidências (Avancini, 2005).

Sabe-se que a Liberdade Assistida pode ser uma medida válida para reintegrar o adolescente que transgrediu a lei. No entanto, de um modo geral, vê-se a necessidade de uma melhor reorganização e empenho para que a medida traga ainda mais benefícios, tanto ao adolescente quanto à sociedade.

O adolescente que cometeu ato infracional

Sabe-se que o indivíduo não se torna infrator aleatoriamente, ele é impulsionado ao mundo do crime por diversos fatores, dentre eles: êxodo rural, migração interna, crescimento demográfico, desagregação familiar, pobreza e os meios de comunicação de massa. Esse conjunto de situações acaba contribuindo para que, determinados adolescentes, tenham uma percepção falha da realidade, dessa forma, eles são expostos constantemente aos perigos da sociedade que os incorpora no mundo do crime (Queiroz, 1984).

A maioria dos adolescentes que cometem ato contrário à lei provém de famílias paupérrimas e desorganizadas. O pai é, em geral, uma figura ausente, principalmente devido ao alcoolismo, abandono, prisão, uso de tóxicos e falecimento. Já a mãe é uma figura mais presente, no entanto, os casos de ausência dessa decorrem de abandono, falecimento, prostituição, psicose e prisão (Violante, 1984).

Diante dessa estrutura familiar, o adolescente vivencia agressões e pressões para trabalhar e ajudar a família, o que o leva a buscar na rua a complementação das carências sofridas dentro de casa (Edmundo, 1987). É nesse momento que convive e incorpora valores ilegitimados socialmente e inicia-se em pequenos crimes. Ainda, há adolescentes que são apresentados ao mundo do crime por seus próprios familiares (Queiroz, 1984).

O adolescente que cometeu ato infracional, além de ser um retrato da sociedade marginalizada do sistema capitalista, representa também uma resposta à esse sistema, agindo muitas vezes por meio de condutas antisociais (Violante, 1984). Sabe-se que é característica do sistema capitalista o acúmulo de riquezas, assim, o adolescente influenciado pela mídia, tem a necessidade de fazer parte dessa sociedade de consumo que lhe “garante” a conquista de sua felicidade. Dessa forma, pertencendo a uma classe social marginalizada e sem recursos financeiros, a saída encontrada por esse adolescente, muitas vezes, é o ingresso na criminalidade (Queiroz, 1984).

Após essa explanação sobre o contexto em que se insere o adolescente transgressor da lei, é interessante destacar a sua vivência dentro de uma instituição como a FEBEM, cuja principal proposta é isolá-lo, recuperálo e reintegrá-lo a sociedade, colocando-o dentro dos considerados padrões normais de comportamento (Edmundo, 1987).

A vivência do adolescente na FEBEM é determinada por um processo de ressocialização que enfatiza a educação e a profissionalização por meio da disciplina e punição. É importante apontar que, nem sempre, a profissionalização garante ao adolescente sua reinserção, apesar dela ser uma alternativa individual e corresponder a uma oportunidade de trabalho. Ademais, a rapidez do avanço tecnológico contribui para a obsoletização dessa, visto que não existem programas de reciclagem profissional para os egressos da instituição (Queiroz, 1984).

Nessa instituição, o adolescente está sujeito constantemente à agressões físicas, morais e psicológicas por parte dos monitores. Surge, nesse contexto, a imposição da chamada lei do silêncio, ou seja, os adolescentes não delatam o monitor que cometeu maus tratos, pois esse e sua equipe são os responsáveis pela avaliação de sua conduta. Instala-se, assim, um processo educativo bastante diferente do divulgado na teoria. (Queiroz, 1984). Frente a essa realidade, não é surpreendente que o adolescente tenha uma visão negativa da instituição, conforme é explicitado nas suas próprias falas:

...A FEBEM não recupera ninguém, ao contrário, aqui se aprende coisas com os outros... e pelo tratamento que dão ao menor.... Não recupera porque não tem educação certa... ninguém se importa com o menor, não há compreensão, troca de idéias.... A gente sai com bronca, depois de levar uma vida de cachorro, preso, de apanhar, dá vontade de aprontar mais..... ...Isso não é jeito de tratar, a borrachada ...os caras saem pior, mais revoltados.... ...Se recupera, recupera lá fora.... A FEBEM não está com nada... é uma besteira! (falas de acordo com Violante, 1984, p. 166).

Por sua vez, a visão que os funcionários da instituição têm dos adolescentes é que eles são provenientes das dificuldades da vida, da situação financeira da família, do mundo das drogas e de problemas psicossocias genéricos (Queiroz, 1984). Além disso, os técnicos da instituição, em geral, apresentam um forte sentimento de estar lidando com pessoas de alta periculosidade, fato esse comprovado no momento da avaliação individual do adolescente, que, na maioria das vezes, é realizada com as portas abertas (Violante, 1984).

A egressão desses é marcada, principalmente, por um estigma permanente de criminoso. A representação sócio-cultural é caracterizada por órgãos de repressão e falta de assistência no processo de reintegração desse adolescente. A própria família e a vizinhança reforçam sentimentos de rejeição e conflitos psicológicos. Em consequência, ele interioriza uma visão negativa de si e desacredita que com o trabalho honesto conseguirá o sucesso sonhado, ou seja, a participação nos benefícios da sociedade (Cunha, 1999).

A polícia representa um importante papel no processo de marginalização do adolescente que cometeu ato infracional. Isso porque ela incentiva e é cúmplice na prática criminal, aceitando e, às vezes, solicitando suborno para ocultar crimes e soltá-los da delegacia (Edmundo, 1987). A polícia é vista, pelo adolescente que cometeu ato infracional, como aquela que o persegue e o ameaça com a lei e a força. Essa situação justifica sua forma de vida contraditória, isto é, ele acredita que se não fosse perseguido, estigmatizado, se tivesse uma família boa, se alguém o ajudasse, ele poderia estudar e trabalhar para vencer na vida. Essa explicação sempre vem acompanhada por outra: que ele não suporta a escola. Isso pode ser observado na fala de um adolescente: “... não se aprende nada, só leva bronca da professora...” (Queiroz, 1984, p. 112).

Esse autor aponta que, o que os jovens odeiam, fundamentalmente, é o não reconhecimento de sua humanidade, de sua potencialidade como ser humano. Tal rejeição se expressa por meio de suas carências mais variadas: afetivas (não conhecem a amizade desinteressada, o amor sem interesse), sociais (são vistos como marginais, bandidos ou pobres, desclassificados), psicológica (não impõem respeito, nem despertam simpatias, respeito “só de arma na mão”) e material (não têm acesso aos bens de consumo necessários à sua sobrevivência e à caracterização de um estilo de vida digno perante a sociedade).

Assim, uma breve discussão sobre a relação do professor-aluno e, em especial do adolescente em LA, é abordada a seguir com o intuito de compreender de forma mais abrangente essa visão do adolescente para com a escola e vice-versa.

A Relação Professor-Aluno

A sala de aula não se resume apenas a um espaço de transmissão de conhecimento, pois nela ocorrem interações de caráter social, político, econômico, filosófico, psíquico e teológico (Moraes, 1996). No entanto, nem sempre essas interações ocorrem de forma consciente, sendo que, o professor, às vezes, até rejeita a idéia de que exerce influência no seu fazer pedagógico (Cunha, 1989).

Existe, entre o aluno e o professor, um jogo de expectativas relacionadas aos respectivos desempenhos. Parte da relação professor-aluno já é pré-determinada socialmente e isso é explicado pela teoria da representação social,

...que são saberes populares do senso comum, elaboradas e partilhadas coletivamente, com a finalidade de construir e interpretar o real. Por serem dinâmicas, levam os indivíduos a produzir comportamentos e interações com o meio, ações que, sem dúvida modificam os dois... (segundo Oliveira e Werba, 1998, p. 105).

Nesse sentido, supõe-se uma expectativa negativa do professor em relação ao adolescente que cometeu ato infracional, podendo esse relacionar a figura do aluno com o atual quadro de violência no Brasil.

Além disso, sobre o professor e o aluno há todo o peso das relações institucionais (Cunha, 1989). Há, ainda, os estereótipos, que são idéias pré-concebidas com pouca ou nenhuma base real, sendo que ambos, estereótipos e expectativas, levam ao agir de forma a provocar nos outros reações que os confirmam e validam (Maia, 1995). Segundo Coll e Miras (1996), existe uma “profecia de autocumprimento”, ou seja, um conjunto de expectativas que o professor tem sobre o aluno ideal, a saber: atenção, participação, motivação, responsabilidade, interesse pelo trabalho, constância, respeito às normas de relação com os colegas e com o professor.

Outros fatores que interferem no comportamento do professor estão especialmente ligados ao contexto social e institucional. De acordo com Cunha (1989) as principais influências dos professores são: a vivência do professor enquanto ex-aluno, a sua experiência profissional, a sua formação pedagógica e a sua prática social mais ampla (sua história de vida, seus valores, sua atuação política - partidária ou engajamento associativo - e suas atitudes perante a atual realidade social).

O que produz uma diferença qualitativa de uma sala de aula para outra é o grau de consciência do professor acerca da realidade das relações (informais) das pessoas em grupo e a conseqüente utilização dela como instrumento de promoção do crescimento integrado dos alunos (Hernandez, 1997). Outras diferenças qualitativas no desempenho do docente são o domínio do conteúdo, a capacidade de interpretá-lo e localizá-lo histórica e socialmente, a preocupação que a instituição escolar tem com sua própria competência, o gosto pelo estudo e honestidade no trato do conhecimento e dos alunos (Cunha, 1989).

Em relação ao aspecto econômico, a variável que pode interferir na prática docente é a questão salarial. Segundo muitos professores a baixa remuneração é apontada como maior desestímulo para a constituição de um professorado competente e entusiasta, o que remete a uma desvalorização profissional. Segundo Cunha (1989) as condições de trabalho, tais como local inadequado para as atividades escolares, material disponível, principalmente bibliotecas, e imobilismo da própria escola enquanto instituição social, são apontadas como fatores de dificuldade na atuação do profissional.

Contudo, uma pedagogia baseada na relação entre as pessoas se apresenta como uma tentativa de síntese entre o trabalho de instrução e de socialização dos indivíduos, que utiliza o grupo como uma alavanca da formação e, ao mesmo tempo, como o objetivo dessa formação em si. Dessa maneira, o temor respeitoso do estudante pela autoridade, representada pelo professor, e/ou sua rebelião contra a mesma serão gradativamente substituidos pelo efetivo respeito e pela cooperação à medida que for desvelado que professores são, afinal de contas, igualmente humanos (Hernandez, 1997). Nesse sentido, as propostas em geral privilegiam a idéia de que é necessário um professor consciente das questões sociais e competente tecnicamente para engajar-se na luta em favor da melhoria das condições de vida da população (Cunha, 1989). Diante desse quadro teórico fica claro que a Liberdade Assistida é uma boa alternativa no processo de reintegração do adolescente que cometeu ato infracional, desde que coordenada e planejada por profissionais capacitados e sensíveis à realidade social do país.

No Brasil, onde existe uma grande discrepância entre as classes sociais, é comum que o índice de criminalidade seja alto. Dessa forma, também, não se torna incomum a presença de crianças e adolescentes envolvidos no mundo do crime. É nesse contexto que a Liberdade Assistida adquire um caráter alternativo, pois, estando sob esse regime, o adolescente, obrigatoriamente, terá que freqüentar a escola durante todo o processo.

Assim, sabendo-se que o professor representa um importante papel no desenvolvimento e formação sóciocognitivo- emocional do aluno, é evidente que será um grande precursor e motivador na regeneração do adolescente que cometeu ato infracional. O objetivo deste trabalho foi identificar e descrever as possíveis dificuldades que professores encontram na relação com alunos em Liberdade Assistida, considerando-se o autoconceito, as perspectivas de futuro e o conceito que o adolescente, que cometeu ato infracional, tem sobre as instituições sociais e vice-versa; e a importância da relação professor-aluno.

 

MÉTODO

Participantes

O critério adotado para a participação nesse estudo foi que os professores de alunos em regime de Liberdade Assistida (LA) tivessem conhecimento prévio da condição desses. Assim, contou-se com a colaboração de oito professores, com idade média de 34,8 anos, os quais tinham como alunos adolescentes que cometeram ato infracional, provenientes de diversas séries da escola regular e que estavam em regime de Liberdade Assistida. Todos trabalhavam em um externato, sem fins lucrativos, de uma cidade do interior paulista, que mantém um programa sócio educativo de LA, oferecendo cursos profissionalizantes a adolescentes, em horário oposto ao que freqüentam a escola regular. Desses professores, somente um era do gênero masculino, ou seja, 87,5% dos informantes eram do gênero feminino.

Material

O instrumento utilizado na presente pesquisa foi construído após a revisão da literatura, sendo que optouse pela elaboração de um questionário, com questões fechadas e abertas, devido à praticidade de utilização dessa técnica frente ao assunto tratado e a escassa disponibilidade de tempo dos profissionais. A fim de verificar a clareza do material, foi realizada uma testagem piloto com cinco professores da rede pública, os quais afirmaram ser o instrumento inteligível e coerente aos objetivos propostos.

O questionário contém um total de 17 questões, que buscam atender aos objetivos propostos nesse trabalho, sendo 12 são fechadas e cinco abertas. Essas questões permeiam assuntos como: dados pessoais; realização de curso (aperfeiçoamento, especialização ou pós-graduação); tempo de experiência como professor; tempo de experiência como professor de aluno em Liberdade Assistida; instituições que adquiriu experiência como professor de adolescentes em situação de Liberdade Assistida; participação de curso que visava ajudá-lo a lidar com alunos em Liberdade Assistida; aspectos positivos e negativos quanto à formação e preparo profissional para o trabalho com adolescentes em Liberdade Assistida; percepção de diferenças entre os alunos em Liberdade Assistida em relação aos demais; influências do professor na vida dos seus alunos; influência do professor na vida do adolescente em Liberdade Assistida, da mesma forma e sob os mesmos aspectos que na vida dos demais alunos; completar a frase: Para mim, o adolescente em regime de liberdade assistida é ...; dificuldades para lidar com o aluno em situação de Liberdade Assistida; ter informação sobre o crime cometido pelo adolescente infrator em Liberdade Assistida; inserção do aluno em situação de Liberdade Assistida na sociedade”.

Procedimento

A aplicação do questionário ocorreu individualmente, em lugar reservado e em horário previamente agendado com cada professor. Antes de responder ao questionário foi solicitado que cada informante assinasse um Termo de Consentimento para Participação da Pesquisa, conforme recomendação da Resolução nº 196/96 do Ministério da Saúde (Conselho Nacional de Saúde, 1996), a respeito de pesquisas envolvendo seres humanos.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Constatou-se que 87,5% dos participantes trabalharam em apenas uma instituição com alunos em Liberdade Assistida e, desses, 42,8% participaram de algum curso de orientação e aperfeiçoamento para lidar com esse adolescente, ou seja, apenas três professores realizaram esse tipo de preparação.

Nas questões relativas à experiência profissional, notou-se que o tempo médio de experiência como professor foi de 9,3 anos (vale ressaltar que apenas dois dos sujeitos tinham experiência superior a 15 anos) e o tempo médio de experiência como professor de adolescentes em Liberdade Assistida foi de 1,4 anos.

Embora os dados obtidos indiquem que 62,5% dos informantes afirmaram não encontrar dificuldades no trabalho com adolescente em Liberdade Assistida (LA), 75% apontaram que esses alunos são diferentes dos outros, caracterizando-os como inseguros, agressivos, revoltados, com grande necessidade de chamar atenção, além de pertencentes a um ambiente familiar problemático, no qual existe uma dificuldade de estabelecer e respeitar limites, conforme observa-se em suas afirmações:

“São mais revoltados”; “Eles querem sempre chamar a atenção”; “A dificuldade está no espaço em que os mesmos foram criados, onde eles fazem o que bem entendem, não havendo limites”

Os comportamentos acima apontados pelos professores como uma diferenciação entre o aluno em Liberdade Assistida e os demais, são indicados por Queiroz (1984) como atitudes que expressam as carências mais variadas desses adolescentes.

Os demais professores (37,5%), que afirmaram encontrar dificuldades no trabalho com alunos em LA, indicaram, no geral, a falta de motivação e o preconceito social sofrido pelos mesmos como fatores que dificultam seu trabalho. Isso pode ser observado na resposta de um dos informantes ao referir-se à participação desses estudantes às atividades escolares:

“Na maioria das vezes eles participam devido à situação com a justiça, não vestindo a camisa”

A partir das dificuldades indicadas pelo professor pode-se concordar com Coll e Miras (1996) quando esse afirma que a “profecia de autocumprimento” está presente na relação ensino-aprendizagem.

Segundo a maioria dos informantes, o adolescente em LA é uma pessoa que errou em algum momento, mas deve ter a chance de redimir-se de seu erro. Isso pôde ser identificado em frases, tais como:

“Para mim o adolescente em regime de liberdade assistida é igual a todos os outros, que um dia errou e tenta se reabilitar, contando com a ajuda de todos nós”; “O adolescente em regime de liberdade assistida é uma pessoa com o direito de reestruturarse socialmente e psicologicamente”

Pode-se notar que apesar das representações sociais descritas por Oliveira e Werba (1998) presentes na interação entre o professor-aluno em LA, esses educadores acreditam na possibilidade de reabilitação desses adolescentes, buscando, de alguma forma, auxiliar sua reinserção social; mesmo assim, é possível identificar no professor comportamentos e sentimentos que demonstrem expectativas negativas em relação ao adolescente que cometeu ato infracional conforme citado acima. Nesse sentido, é provável que esses professores relacionem a figura de seus alunos ao atual quadro de violência no Brasil.

Foi solicitado que os professores apontassem aspectos positivos de sua formação profissional, no entanto, apenas 25% responderam adequadamente à essa questão e, desses, todos indicaram a realização de curso de graduação como um aspecto positivo. Responderam sobre os aspectos negativos 62,5% dos informantes; todos citaram o pouco conhecimento sobre diversos aspectos que tangenciam as questões do adolescente em LA e problemas na graduação (falta de estudos sobre o tema especificamente, falta de preparo prático e insegurança).

Quando questionados sobre as principais influências do professor sobre a vida de seus alunos em geral, todos apontaram de que modo influenciam esses alunos. Assim, 37,5% dos informantes apontaram o amor, a paciência, o respeito e a confiança como formas de aproximar o aluno do professor e assim influenciá-lo positivamente. A maioria das respostas (62,5%) indicou que o professor é um modelo para o aluno, conforme explicitado nas seguintes frases dos informantes:

“O professor deve ser o segundo pai ou mãe; mostrando para o aluno a importância do estudo na vida” “O professor, muitas vezes, serve como exemplo (bom ou mal). Cabe a nós (professores) saber usar esses “benefícios” a favor da educação” “No caso do aluno em LA, eles procuram referência”

Também, foi questionado se eles acreditam influenciar o adolescente em Liberdade Assistida da mesma forma e sob os mesmos aspectos que os demais alunos. Nesse caso, 75% das respostas foram afirmativas e 25% disseram que esse aluno busca alguma referência, podendo ele, enquanto professor, contribuir ainda mais para sua formação. Vale ressaltar que a maioria dos informantes (75%) afirmou que não busca identificar qual o crime cometido pelo adolescente em LA.

Hernandez (1997) indicou que o que diferencia qualitativamente as produções na sala de aula é a existência das relações informais entre as pessoas do grupo, e os professores dessa pesquisa apontaram que a criação de vínculos afetivos favorece sua influência sobre os alunos. Conforme indicado acima, 62,5% dos informantes disseram que o professor é um modelo para os estudantes utilizando como justificativa, na maioria dos casos, que esses adolescentes provém de famílias desestruturadas, sem muita referência. Nesse sentido, esses docentes apresentaram uma visão bastante próxima à dos funcionários da FEBEM identificada por Queiroz (1984) e apontada no estudo de Violante (1984), ou seja, eles acreditam que esses adolescentes são usuários de substâncias psicoativas, e que provêm das dificuldades da vida e da situação financeira da família.

Todos responderam que o professor deve promover a inserção do adolescente em LA, sendo que 43% indicaram que isso deve ocorrer pela criação de novas oportunidades de estudo e trabalho; 28,6% sugeriram que essa inserção é favorecida na ausência de preconceitos e 28,6% mostraram que o bom desempenho de seu papel de professor (promoção de atividades extraclasse, orientação de trabalhos em grupos, reforçamento de comportamentos adequados) já é suficiente para promover a inserção do adolescente em LA.

Verificou-se que a totalidade dos informantes afirmou que promovem a inserção do adolescente em LA, sendo que 25% não explicaram como o fazem, outros 25% afirmaram levar para a sala de aula anúncios com propostas de emprego, 37,5% realizam atividades em grupo para promover a sociabilidade, e 12,5% oferecem atividades extra-classe (concursos, passeios, etc). Portanto, não foram observadas discrepâncias quando questionados sobre o que eles acreditam que possa ajudar na reintegração social do aluno e o que realmente é feito por eles.

Levando-se em consideração o objetivo desse trabalho, os resultados obtidos demonstram que os professores apresentam-se despreparados, de alguma forma, pela falta de orientação direcionada para o trabalho com Liberdade Assistida, sendo que todos apontaram a falta de conhecimento sobre o assunto como um aspecto negativo em seu trabalho. Esse fato pode estar relacionado tanto à recente criação dessa medida sócio-educativa, quanto, conforme apontado por Cunha (1999), à escassez de produção científica acerca do assunto, dificultando, assim, a criação de cursos e palestras eficazes sobre o tema especificamente.

Como consta na literatura, a sala de aula não é um espaço apenas para transmissão do conhecimento, é, também, um local onde ocorrem interações, trocas de conhecimento e vivências entre o professor e o aluno (Moraes, 1996). Observou-se que o professor tem esta consciência: de que deve influenciar e exercer um papel importante na reintegração social do adolescente em Liberdade Assistida. Ainda, Hernandez (1997) coloca a necessidade de se ter um professor consciente de seu papel e das questões sociais para uma melhoria de toda a população. Com base nesse trabalho pode-se afirmar que, conforme apontado por autores como Moreira (1997) e por instituições como CMDCA (2000) a Liberdade Assistida é uma forma bastante interessante e viável de reabilitação do jovem que cometeu ato infracional. No entanto, fica claro na presente pesquisa que todos os professores desses adolescentes encontram dificuldades nessa interação. Tratando-se de uma relação social é necessário a conscientização por parte do professor e do aluno para que exista um convívio mais produtivo e saudável, sem conflitos e estereotipias; ademais, é necessária uma maior preparação profissional e emocional do professor para lidar com esse tipo de situação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esse trabalho, um primeiro passo foi dado no sentido de sistematização de dados sobre uma importante realidade – a educação formal de adolescentes em Liberdade Assistida – constituindo-se na abertura de um campo promissor para pesquisas teóricas e aplicadas. Dentre as diferentes possibilidades e necessidades de investigações pode-se apontar a necessidade de pesquisas que analisem as expectativas de um número maior de professores nessa condição, de diferentes instituições, que adotem variadas propostas pedagógicas; pesquisas longitudinais, que descrevam a trajetória educativa desses alunos, seus anseios e realizações; e pesquisas aplicadas, que verifiquem o efeito nos adolescentes em LA de diferentes condições de ensino-aprendizagem.

Considerando que a Liberdade Assistida é uma medida sócio-educativa, é mister destacar a necessidade de se preparar adequadamente os profissionais responsáveis pelo processo de readaptação social dos adolescentes submetidos a essa medida. Em particular, destaca-se a importância de criação de cursos de reciclagem profissional, que propiciem o aperfeiçoamento de professores que recebem alunos em LA, que os auxiliem a compreender a condição do aluno e a possibilidade de sua reinserção social, o que, conseqüentemente, favorecerá a realização de um trabalho educativo de qualidade. No entanto, frente à situação salarial do professorado brasileiro, considerase que o ideal seria que tais cursos fossem viabilizados financeiramente por instituições governamentais e disponibilizados, especialmente, em áreas de maiores incidências de casos de Liberdade Assistida.

Em suma, o término do presente estudo evidenciou que, à despeito da relevância, o tema aqui abordado é carente de investimentos. Espera-se, portanto, que os resultados aqui apresentados sirvam para alertar profissionais da área e para encorajar outros pesquisadores a se aprofundar na problemática.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 11/01/05
Revisado em: 08/06/05
Aprovado em: 23/06/05

 

1 Graduandas do curso Psicologia da PUC-Campinas.
2 Doutora pela Faculdade de Educação da UNICAMP e docente da Faculdade de Psicologia da PUC-Campinas.