SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número1A nova literácia promovendo cidadania global de alunos brasileiros e americanos New LiteraciesMetas acadêmicas e estratégias de aprendizagem em alunos universitários índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia Escolar e Educacional

versão impressa ISSN 1413-8557

Psicol. esc. educ. v.11 n.1 Campinas jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Consequências sociais e emocionais da dislexia de desenvolvimento: um estudo de caso

 

Social and Emotional Consequences of Dyslexia: a case study

 

Consecuencias sociales y emocionales de la Dislexia de desarrollo: un estudio de caso

 

 

Lénia Sofia de Almeida Carvalhais *; Carlos Silva **

Universidade de Aveiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A dislexia de desenvolvimento é uma dificuldade específica de aprendizagem da leitura e escrita que condiciona a forma como o indivíduo se percepciona e como se relaciona com os seus pares nos mais diversos contextos desde educacionais até familiares. No sentido de avaliar as consequências emocionais e sociais decorrentes de um diagnóstico de dislexia de desenvolvimento, foram efectuados duas entrevistas, orientadas por inquéritos construídos para o efeito, a uma criança portuguesa e ao seu Encarregado de Educação, resultante de um estudo de caso, de carácter longitudinal. Os resultados comprovaram a necessidade de uma avaliação da dislexia efectuada precocemente, o que permite, por sua vez, uma intervenção adequada, no sentido de combater o insucesso escolar. Verifica-se ainda ser fundamental alertar professores e profissionais da educação para esta dificuldade de aprendizagem no sentido de evitar situações de discriminação, como as que identificamos neste estudo.

Palavras-chave: Dislexia de desenvolvimento, Desenvolvimento infantil, Interação social.


ABSTRACT

Developmental dyslexia is a specific learning disability characterized by difficulty in learning how to read and write. This difficulty affects the auto-concept and the relationships that dyslexics establish with pairs, teachers and parents. To evaluate the social and emotional consequences of development dyslexia diagnosis we did two interviews, oriented by inquiries built for the effect, to a Portuguese pupil and to its Foreman of Education, as a result of a study case, of longitudinal character. The results showed us the necessity of a dyslexia evaluation which will allow us to detect it at an early age and will permit us to make a proper intervention in order to fight school failure. On the other hand, we came to the conclusion that it is fundamental to bring this learning disability to teachers' and other education professionals' attention, so as to avoid situations of discrimination, such as the ones we came across in the course of this study.

Keywords: Developmental dyslexia, Child development, Social Interaction.


RESUMEN

La dislexia de desarrollo es una dificultad específica de aprendizaje de la lectura y escrita que condiciona la forma como el individuo se percibe y como se relaciona con sus pares en los más diversos contextos, desde los educacionales hasta los familiares. En el sentido de evaluar las consecuencias emocionales y sociales decurrentes de un diagnóstico de dislexia de desarrollo, fueron efectuadas dos entrevistas orientadas por averiguaciones construidas para ese fin, a un niño portugués y a su encargado de educación, resultante de un estudio de caso de carácter longitudinal. Los resultados comprobaron la necesidad de una evaluación de la dislexia efectuada precozmente, lo que permite, a su vez, una intervención adecuada en el sentido de combatir el fracaso escolar. Se verifica todavía que es fundamental alertar a profesores y profesionales de la educación sobre esta dificultad de aprendizaje en el sentido de evitar situaciones de discriminación como las que identificamos en este estudio.

Palabras clave: Dislexia de desarrollo, Desarrollo infantil, Interacción social.


 

 

Introdução

A dislexia de desenvolvimento é uma dificuldade de aprendizagem da leitura e escrita que afecta a aquisição da literacia por um número significativo de crianças e adolescentes em idade escolar. No que concerne à definição do termo dislexia, não se trata de uma questão consensual suscitando opiniões contraditórias, e conduzindo a um quadro teórico confuso e diversificado. Um dos aspectos que parece ainda ser consensual é a distinção entre dislexia de desenvolvimento e dislexia adquirida ou alexia. A alexia resulta da perda da capacidade de descodificar e compreender a linguagem escrita, anteriormente adquirida, em consequência de uma lesão cerebral (Shaywitz e colaboradores, 1998). Segundo Shaywitz, pode-se distinguir alexia e dislexia de desenvolvimento pelo facto de que:

"In acquired alexia, a structural lesion resulting from an insult (e.g., stroke or tumour) disrupts a component of an already functioning neural system, and the lesion may extend to involve other brain regions and systems. In developmental dyslexia, as a result of a constitutionally based functional disruption, the system never develops normally so that "the symptoms reflect the emanative effects of early disruption to the phonological system (Shaywitz e cols., 1998, p. 2640)."

A dislexia de desenvolvimento resulta de uma perturbação na aprendizagem da capacidade de decodificação do código escrito e pode estar associada a disgrafias. A primeira definição do termo dislexia de desenvolvimento ocorreu em 1877 quando Kussmaul apresentou o caso de um paciente que perdeu a capacidade de ler, apesar de conservar a visão, a inteligência e a linguagem oral. A esta dificuldade foi dado o nome de cegueira verbal, correspondendo ao termo actual de alexia. Em 1896, Pringle Morgan apresentou o caso de Percy, um rapaz de 14 anos, que revelava dificuldades na leitura, tendo dado o nome de cegueira verbal congénita a esta patologia (Morgan, 1896). O caso reporta-se a um adolescente que tinha sérias dificuldades na leitura e escrita de palavras, apesar das capacidades demonstradas em outras áreas. Já no ano de 1928, Orton avançou com a designação de estrefossimbolia, que em 1937 alterou para alexia de desenvolvimento, ao referir-se a crianças que revelavam graves perturbações na leitura. Mais recentemente, a International Dyslexia Association (IDA), definiu dislexia de desenvolvimento como:

"...um distúrbio específico da linguagem de origem constitucional e caracterizada por dificuldades na descodificação de palavras isoladas, usualmente reflectindo insuficientes competências de processamento fonológico. Estas dificuldades são inesperadas em relação à idade e a outras capacidades cognitivas e académicas. A dislexia manifesta-se em múltiplas dificuldades em diferentes formas de linguagem, e inclui juntamente com os problemas de leitura, problemas na aquisição de proficiência na escrita e ortografia. (tradução a partir de Orton Dyslexia Society Research Committee, 1994)."

Assim como se pode encontrar inúmeras definições do termo dislexia, também os factores que estão na sua origem têm vindo a sofrer alterações, de acordo com as teorias que lhe estão subjacentes. Entre as várias teorias explicativas das causas da dislexia de desenvolvimento apontam-se teorias cognitivas, de base neurobiológica, teorias genéticas e hereditárias e teorias que se apoiam em factores ambientais. Inicialmente, a dislexia esteve relacionada com as dificuldades de processamento visual (Bronner, 1917; Orton, 1937). Neste sentido, as dificuldades de leitura e escrita seriam resultado de problemas ao nível da discriminação visual, dos movimentos oculares e da memória visual. Mais tarde, sobretudo a partir da década de 70, surgiram novos estudos no sentido de explicar as causas subjacentes à dislexia de desenvolvimento. Hoje se encontra bem estabelecida a noção de que a dislexia é uma desordem de base neurológica com origem genética, como comprovaram Fisher e DeFries (2002) nos seus estudos. Estes verificaram que a incidência da dislexia entre gémeos monozigóticos era de 68% e dizigóticos, cerca de 8%. Já Grigorenko e colaboradores (1997) procuraram identificar os genes implicados na dislexia. Neste sentido, os cromossomas 15 e 6 foram identificados. Ao cromossoma 15 estariam associadas dificuldades ao nível da leitura global, pictográfica da palavra e ao cromossoma 6 o défice fonológico.

Contudo, para além destas duas teorias explicativas da dislexia de desenvolvimento, pode-se encontrar a teoria do défice fonológico (Goswami, 2002; Snowling, 2000; Vellutino, Steger, Moyer, Harding & Niles, 1977). Segundo Vellutino e cols. (1977). O défice de consciência fonológica pode ser explicado como "...the inability to represent and access the sound of a word in order to help remember the word". (Vellutino e cols., 1977, pp. 20-27). Eles defenderam ainda que os disléxicos apresentam dificuldade em termos de segmentação fonológica, ou seja, a capacidade de divisão das palavras em unidades mínimas sem significação que são os fonemas. Os fonemas são as unidades mínimas de som, que agrupados formam sílabas e estas, por sua vez, quando agrupadas formam palavras. Contudo, para além da consciência silábica e fonémica, o leitor terá que desenvolver a consciência intrassilábica que consiste na capacidade de identificar as aliterações e as rimas em palavras.

Por fim, referimos as teorias biológicas magnocelulares e parvocelulares (Galaburda & Livingstone, 1993; Miles, 1993), em que os sujeitos disléxicos revelam grandes dificuldades no processamento visual dos grafemas. Assim, apesar desta teoria não excluir a Teoria do Défice Fonológico, ela coloca antes a ênfase nas dificuldades de leitura que os problemas visuais causam e a teoria do processamento rápido auditivo (Perfetti, 1992; Tallal, Miller & Fitch, 1993). Segundo investigadores como Tallal, a teoria do défice fonológico surge como secundária, relativamente a um défice auditivo mais elementar. Neste sentido, verificou-se na performance dos sujeitos disléxicos a dificuldade na percepção dos sons, nomeadamente na descriminação de frequências e de sequências temporais, sobretudo na percepção de sons curtos e de variação rápida.

Sendo a dislexia uma desordem de desenvolvimento, as suas manifestações têm se modificado com o decorrer do tempo, o que de certa forma justifica um estudo de carácter longitudinal e individualizado. Embora não se possam retirar conclusões generalizáveis à população portuguesa, por se tratar de um estudo de caso, considera-se que este pode ser um passo para análises posteriores bem como uma forma de tentar compreender comportamentos. Esta tipologia de estudo apresenta como vantagem a possibilidade de perceber as experiências específicas de um indivíduo e o nível da sua auto-estima, como refere Riddick (1996). Entende-se por auto-estima a medida que o indivíduo utiliza para se avaliar a si próprio de acordo com uma imagem ideal que construiu. Diversos estudos neste campo comprovam que as crianças com elevada auto-estima revelam maior confiança no que podem executar, respondem voluntariamente às questões em sala de aula e procuram novas situações de aprendizagem. Neste sentido, segundo Pumfrey e Reason (1991), a combinação entre o trabalho em termos de capacidades individuais e um apoio emocional poder-se-á representar como uma boa opção para auxiliar as crianças disléxicas.

Neste sentido, postulam-se como objectivos principais deste estudo perceber o processo que decorreu para a identificação da dislexia; observar a reacção da família e da própria criança face ao diagnóstico e avaliação da dislexia de desenvolvimento; entender como é viver com dislexia quer na perspectiva da criança quer dos familiares bem como explorar questões sociais e emocionais da dislexia.

 

Método

Participantes

Este trabalho tem como base duas entrevistas efectuadas no decorrer de um estudo de caso, de carácter longitudinal, a uma criança portuguesa do sexo feminino, com 9 anos de idade, designada de "Joana", e à sua Encarregada de Educação. A criança frequenta o quarto ano do primeiro ciclo de escolaridade obrigatória, sem ter passado por qualquer processo de reprovação.

Relativamente ao diagnóstico de dislexia, esta criança já havia sido avaliada como disléxica no segundo ano de escolaridade por uma psicóloga, enquadrada num centro de desenvolvimento infantil e foi indicada para avaliação pelas dificuldades na aquisição das competências de leitura e escrita.

No que concerne à selecção da amostra, esta se caracteriza por um processo de amostragem intencional (purposeful sampling), uma vez que esta criança faz parte de um estudo mais amplo que está a ser desenvolvido e cujo objectivo é a construção de um instrumento de avaliação da dislexia de desenvolvimento.

Para além da criança, foi efectuada também uma entrevista à Encarregado de Educação, através de um inquérito estruturado.

Instrumentos

Neste estudo, utilizaram-se dois questionários, sendo um destinado à Encarregada de Educação e outro à criança disléxica. O primeiro, destinado à Encarregada de Educação, encontra-se dividido em três partes, sendo que na primeira parte foram anotadas algumas informações biográficas da criança; na segunda parte, foram feitas questões sobre o diagnóstico das dificuldades de leitura e escrita e sobre alguns indicadores da dislexia de desenvolvimento; na terceira parte, aplicável apenas a crianças formalmente diagnosticadas como disléxicas, foram colocadas questões sobre a identificação dos problemas de leitura e escrita e as suas repercussões em termos emocionais e sociais.

No segundo instrumento, aplicado à criança disléxica, foram colocadas algumas questões sobre as actividades escolares da criança, a relação que esta estabelece com professores e colegas e a forma como lida com as suas dificuldades. Por fim, foram feitas algumas perguntas sobre o apoio familiar, percepcionado pela criança.

Procedimento

O primeiro encontro decorreu no dia 7 de Agosto de 2006, pelas 17.00, na presença da Encarregada de Educação e da "Joana", para estabelecer um primeiro contacto com a mesma.

No segundo encontro, dia 18 de Agosto de 2006, procedeu-se à entrevista à Encarregada de Educação (entrevista 1), através de um questionário feito oralmente pelo entrevistador, sendo registado simultaneamente em papel e formato digital, numa gravação de voz, sob a devida autorização do entrevistado.

Por fim, decorreu a entrevista à criança (entrevista 2), no dia 30 de Agosto de 2006, na presença apenas do entrevistador, tendo sido registrada quer em formato papel, quer em formato digital através da gravação.

As questões éticas foram respeitadas, sendo entregue um termo de consentimento à Encarregada de Educação, informando sobre o anonimato e sobre a confidencialidade dos resultados obtidos.

Resultados da Entrevista 1

No que respeita à primeira parte do questionário, foram observados os dados biográficos da criança, nomeadamente o nome, a idade, o ano de escolaridade, histórico de reprovações e problemas visuais ou auditivos diagnosticados, apresentados na descrição da amostra.

Na segunda parte do questionário, destinado ao levantamento de sintomas de dislexia, quando se colocou a possibilidade de existir algum familiar com problemas de leitura e escrita, a Encarregada de Educação afirmou que o pai de "Joana", embora não formalmente diagnosticado, revelava dificuldades de escrita. De seguida, quando questionada sobre as dificuldades da sua educanda, nomeadamente na distinção entre esquerda-direita ou nas sequências temporais, a Encarregada de Educação afirmou que nunca tinha detectado quaisquer problemas em termos de orientação espacial ou temporal. Relativamente à leitura e o gosto manifestado pela "Joana" nesta actividade, a Encarregada de Educação revelou que esta sempre demonstrou bastante prazer quando lhe liam histórias, mas que não gostava de ler, sobretudo quando a leitura era feita em voz alta. Procurando informações relativas ao desenvolvimento da criança, colocou-se uma questão direccionada para a aprendizagem tardia da fala, sendo que a Encarregada de Educação da "Joana" não salientou qualquer diferença no desenvolvimento, comparativamente a outras crianças da mesma idade. Neste sentido, quando questionada sobre problemas na dicção de sons ou palavras e na identificação das rimas, esta afirmou desconhecer quaisquer dificuldades manifestadas pela sua educanda. Tendo em conta o quotidiano da criança, salientou apenas a facilidade com que a "Joana" se distraía a executar determinadas tarefas e a sua timidez.

No que concerne à terceira parte do inquérito, começou-se por perguntar com que idade a criança começou a manifestar dificuldades de leitura e escrita. A Encarregada de Educação afirmou que o diagnóstico de dislexia foi feito no segundo ano de escolaridade, tendo sido a professora que inicialmente identificou este problema. De acordo com as informações veiculadas pela docente da "Joana" do segundo ano de escolaridade, esta revelava problemas em termos da escrita, com trocas de determinados fonemas/grafemas como [nh] e [lh], [f] e [t], bem como problemas de memorização da tabuada. A posterior avaliação da dislexia de desenvolvimento foi executada por um especialista da área de Psicologia. Tendo em conta o relatório entregue ao Encarregado de Educação, há a salientar que a avaliação incidiu sobre as capacidades intelectuais e de leitura da criança. Concluiu-se que, apesar da inteligência superior, a leitura não acompanhava as suas capacidades, bem como a escrita, revelando erros ortográficos. Foi recomendado apoio do ensino especial duas vezes por semana para reeducação dos erros. De acordo com as recomendações decorrentes da avaliação, o Encarregado de Educação recorreu a consultas particulares de acompanhamento psicológico, sem contudo ter apresentado formal esclarecimento à Escola que a "Joana" frequentava. Este facto condicionou a possibilidade de apoio especial escolar de acordo com o previsto pela legislação.

Apesar dos apoios, a "Joana", de acordo com a Encarregada de Educação, continua a ter algumas dificuldades, tendo total abertura familiar para falar sobre os problemas que vai enfrentando no seu dia-a-dia. Por fim, quando questionada sobre a ocorrência de alguma experiência negativa com um docente, a Encarregada de Educação salientou que no primeiro e segundo ano de escolaridade ocorreram situações de discriminação e até de alguma incompreensão face às dificuldades de "Joana". Assim, de acordo com a Encarregada de Educação a docente "colocava-a de parte", como se a "Joana" fosse "estranha" ou "humilhava-a". Apesar desta situação, a "Joana" nunca revelou receio em frequentar a escola.

Resultados da Entrevista 2

No que concerne à segunda entrevista, começou-se por questionar a criança sobre os exercícios escolares que gostava mais de executar e os que menos a entusiasmavam. Assim, a "Joana" seleccionou o desenho e a leitura de aventuras, contos ou Bandas Desenhadas, como as suas actividades preferidas, não tendo indicado nenhum exercício em particular que não fosse do seu agrado. Mesmo em relação à leitura em voz alta, a "Joana" diz não manifestar quaisquer dificuldades.

Já no que concerne à escrita, esta tem consciência de que se esquece, por vezes, de algumas palavras ou repete-as, bem como dos erros ortográficos. Verifica-se que a mesma revela consciência dos sons que mais dificuldade lhe colocam, nomeadamente a troca do [c] pelo [s] e pelo [ç], do [nh] e do [lh] e o [t] pelo [f], sobretudo na componente escrita. Revelou ainda que teve bastante dificuldade na memorização da tabuada, que confundia a esquerda e direita, bem como os meses do ano.

Quando questionada sobre o que sente em relação às suas dificuldades, a mesma diz reagir bem. Para tal, contribui o facto dos colegas não se aperceberem da dislexia e, consequentemente, não a questionarem e não a diferenciarem. Quanto à posição dos docentes, face à sua dificuldade, esta considerou que apesar dos professores entenderam o que é a dislexia, nunca procuraram ajudá-la e nunca lhe preparam actividades diferentes das outras crianças da turma.

Em relação às experiências que a "Joana" teve com os professores, esta apontou a professora do quarto ano de escolaridade como a melhor docente que teve, uma vez que preparava aulas com bastante material didáctico, o que entusiasmava os alunos. Quando questionada sobre a pior experiência que teve com um professor, a "Joana" relatou que o docente do primeiro e segundo ano de escolaridade insultava os alunos e, devido à dislexia, a nomeou de "estúpida" em voz alta, quando na execução de um exercício ela cometeu um erro.

Após o levantamento da posição da "Joana" face à Escola, procurou-se analisar a sua opinião face à dislexia. Esta começou por referir que a dislexia se trata de uma dificuldade na escrita, sobretudo de palavras novas, apesar de ser capaz de compreender bem os exercícios. Para a "Joana" o facto de ter sido diagnosticada como disléxica não constituiu qualquer problema, bem pelo contrário, até porque foi uma forma de compreender as dificuldades que tinha comparativamente aos colegas.

Quando questionada sobre o apoio parental relativamente às suas dificuldades escolares, esta salientou que não tem por hábito dialogar com os pais sobre as suas dificuldades. Neste sentido, considerou que foi importante o apoio da psicóloga uma vez que com ela pôde fazer diversos jogos, desenhos e trabalhar a escrita e a leitura.

Por fim, questionou-se a "Joana" sobre a possibilidade desta conhecer outras crianças com problemas idênticos aos dela, sendo que esta revelou não ter conhecimento de nenhuma outra criança disléxica.

 

Discussão

A "Joana" apresenta um padrão de dificuldades característico da dislexia de desenvolvimento. No que concerne à hereditariedade e aos factores genéticos (Fisher & DeFries, 2002; Grigorenko e colaboradores, 1997), estudos comprovam que há uma grande incidência de dislexia entre familiares. No caso de "Joana", o pai apresenta sintomas de dislexia, reflectindo-se na escrita e na ortografia em particular, embora nunca tenha sido formalmente diagnosticado como disléxico.

Por outro lado, a percepção das dificuldades da "Joana" parece estar mais centrada no papel do professor do que no Encarregado de Educação. É interessante verificar que nem sempre os pais se apercebem das dificuldades das crianças ou sentem algum receio em revelá-las. No que diz respeito aos docentes que acompanharam a "Joana", a mesma revelou que nem sempre teve o apoio esperado.

Numa perspectiva mais geral, o docente, pelo contacto directo que tem com a criança em tarefas de leitura e escrita, consegue de forma mais imediata encaminhar a criança para especialistas, no sentido de detectar as suas dificuldades e de fornecer o devido apoio. Neste sentido, a formação docente na área das dificuldades de leitura e escrita e da dislexia em particular parece ser determinante. A compreensão deste problema e dos padrões esperados para uma criança disléxica têm que ser levados em conta no sentido de evitar atitudes de discriminação e humilhação infligidas às crianças disléxicas. Na realidade, para os professores, a questão da dislexia, quando não há um conhecimento básico, surge como algo bizarro.

Visão da "Joana" face as Atividades Escolares e à Dislexia

Em relação às actividades escolares, a "Joana" não revela ter dificuldades na leitura desde que tenha já preparado o texto. Contudo, no que concerne à escrita, a mesma tem consciência das suas dificuldades e dos erros ortográficos mais frequentes. Assim, apresenta algumas das dificuldades em termos de escrita, nomeadamente a eliminação de algumas palavras nas frases e letras nas palavras, a repetição de palavras, os erros ortográficos marcados por confusões entre consoantes, como o [s], o [c] e o [ç] ou entre o som [nh] e [lh].

De acordo com Tim Miles (1993), é comum encontrarmos em crianças disléxicas uma escrita bizarra e pautada por inversões, omissões ou acréscimos de sílabas ou fonemas. Segundo o mesmo autor, outra dificuldade registada na produção escrita das crianças disléxicas prende-se com as fronteiras estabelecidas entre as palavras. Neste sentido, verificam-se quer erros de separação de palavras como "a manhecer" por "amanhecer" ou o erro inverso, que consiste em agrupar as palavras que se grafam separadamente. O estabelecimento de fronteiras parece ser um exercício de grande dificuldade para as crianças disléxicas. A escrita de palavras com um número errado de sílabas parece ser também um erro frequente na produção de um sujeito disléxico uma vez que a consciência da relação letra-som ainda não se encontra devidamente alicerçada. Outra característica é a escrita inconsistente, sendo que a mesma palavra pode aparecer grafada de diferentes formas ao longo do texto. A ordem trocada é apontada muitas vezes como uma característica da escrita de uma criança disléxica. Na realidade, as crianças sabem que algumas letras devem ser repetidas, embora não saibam quais, nem a ordem pela qual devem estar organizadas. As palavras surgem escritas com os adequados grafemas, mas estes se encontram organizados de forma inversa. A questão da ordem das letras numa palavra está relacionada com a capacidade de sequenciar, associada a problemas ao nível da memória de curto-prazo (Miles, 1993). As omissões e duplicações de um som, a escrita fonológica e a inclusão de vogais e a confusão B-D são outros dos tipos de erros ortográficos que podemos encontrar na escrita espontânea ou sob ditado.

No caso específico da "Joana", para além das dificuldades na escrita, esta revela ter tido dificuldade na tabuada. Trata-se também de uma característica presente em crianças disléxicas. A memorização de uma série de sequências como é exigida para a tabuada apresenta-se como uma tarefa em que os disléxicos revelam grandes problemas. Este facto deve-se, segundo Miles (1993), aos problemas de memória e de nomeação de sequências que caracterizam o padrão da dislexia. Os disléxicos revelam uma grande dificuldade em perceber a relação entre os números.

Para compensar estas dificuldades, a "Joana" utiliza estratégias, como a contagem pelos dedos, o uso do papel e da caneta ou então a realização de cálculos mentais através da separação dos números em partes menores.

A par destas dificuldades na tabuada, a "Joana" diz ter ainda alguns problemas na diferenciação entre esquerda e direita. Para superar as suas dificuldades assiste-se ao recurso a estratégias de compensação. Nas palavras de "Joana","Só consigo distinguir a esquerda da direita porque uso o relógio no pulso esquerdo e tenho o calo de usar a caneta na mão direita."

Citando Miles, ao contrário do que se pensou durante muito tempo, o problema dos disléxicos não se centra na lateralidade e na organização espacial, mas em termos de nomeação:

…but it this possible that when dyslexic subjects show uncertainty over direction, whether between left and right, between east and west, between 'b' and 'd', between the correct places on the table for the knife and fork, or in other ways, all these problems are the consequence of a weakness at naming. (Miles, pp. 95-96)

No que concerne à visão da "Joana" face à dislexia, esta demonstra ter conhecimento das dificuldades inerentes a esta perturbação. O facto de ter sido diagnosticada e de ter tido apoio psicológico, contribuiu para uma melhor percepção das suas dificuldades, ajudando-a a encará-las com naturalidade. Este facto reforça a necessidade de uma avaliação da dislexia e do desenvolvimento de estratégias de remediação aplicadas a crianças. Por outro lado, é de salientar a importância de um diagnóstico precoce, como aconteceu com a "Joana", no sentido de evitar o insucesso escolar, que conduz por seu lado, a sentimentos de inferioridade e fracasso por parte da criança, uma vez que não consegue perceber a causa das suas dificuldades, comparativamente aos colegas. Portanto, o apoio a dar as crianças disléxicas não deverá ser efectuado apenas em termos de estratégia de remediação em termos de leitura e escrita, mas também em termos de reforço da auto-estima.

Relação entre "Joana"/Professores, "Joana"/ Colegas e "Joana"/Familiares

Partindo dos resultados obtidos no segundo questionário, podemos verificar que, apesar da mesma ter reagido bem emocionalmente ao diagnóstico de dislexia e às dificuldades escolares inerentes, a relação da "Joana" com os professores foi pontuada por situações de discriminação, tratamento desadequado, negligência no apoio e humilhação. Na realidade, e referindo um estudo já efectuado por Carvalhais e Silva (2006) a 25 professores do Ensino Básico em Portugal, a posição dos docentes face à dislexia é de facto uma posição de resistência. Segundo o mesmo estudo, apesar dos docentes considerarem a dislexia de desenvolvimento um condicionador da progressão académica dos alunos, poucos tinham a devida formação para trabalhar com crianças disléxicas. De facto, apesar da questão ambiental não ser a causa da dislexia, pode influenciar no sucesso académico dos alunos e no seu desenvolvimento social e emocional, daí a necessidade de uma formação para a diferença, para a qual nem todos os docentes estão devidamente preparados.

Em relação aos colegas, "Joana" diz não sentir qualquer tipo de discriminação ou sentimento de inferioridade, até porque estes desconheciam as suas dificuldades. Este facto dá conta também da timidez de "Joana" e da sua incapacidade para falar acerca dos seus problemas. Esta situação é aplicável ainda à família. Neste sentido, apesar de reconhecer o apoio da sua Encarregada de Educação, "Joana" não dialoga com a mesma sobre os seus problemas, inerentes às dificuldades que tem na escrita.

 

Considerações Finais

Embora não se possam retirar conclusões generalizadas deste estudo de caso, foi possível uma análise mais individualizada dos comportamentos de uma criança disléxica e da estrutura familiar e escolar em que está inserida. Por outro lado, este estudo permitiu-nos comprovar que o diagnóstico e a avaliação da dislexia de desenvolvimento são fundamentais, mais do que para rotular uma criança, sobretudo para definir estratégias de intervenção, com vista ao seu sucesso escolar. Assim, as crianças e adolescentes disléxicos podem alcançar o sucesso e ter actividades profissionais altamente apoiadas na leitura e escrita, estando o seu sucesso académico relacionado com o apoio escolar, incluindo de profissionais especializados, e familiar recebido.

 

Referências

Bronner, A. (1917). The psychology of special abilities and disabilities. Boston: Little Brown.        [ Links ]

Carvalhais, L., & Silva, C. (2006). Avaliação da Dislexia em Contexto Educacional. Em Anais do XI Congresso Sul-Brasileiro da Qualidade na Educação, (pp. 127-134). Joinvile:         [ Links ] Centreventos Cau Hansen.

Carvalhais, L., & Silva, C. (2006). Avaliação Psicológica da Dislexia de Desenvolvimento: construção da Bateria de Avaliação da Dislexia de Desenvolvimento. Em N. Santos, M. L. Lima, M. M. Melo, A. A. Candeias, M. L. Grácio & A. A. Calado (Orgs.), Actas do VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia, vol. XI (pp. 42-56). Departamento de Psicologia da Universidade de Évora.        [ Links ]

Carvalhais, L., & Silva, C. (2006). Avaliação Diagnóstica da Dislexia. Em C. Machado, L. Almeida, M. Guisande, M. Gonçalves, & V. Ramalho (Eds.), Actas da XI Conferência Internacional: Avaliação Psicológica: Formas e Contextos (pp. 455-460). Braga: Universidade do Minho.        [ Links ]

Carvalhais, L., & Silva, C. (2006). Dislexia: modelos de leitura, tipologia, avaliação e intervenção. Em J. Tavares, A. Pereira, C. Fernandes & S. Monteiro (Org.), Actas do Simpósio Internacional de Activação e Desenvolvimento Psicológico (pp. 263-270). Aveiro: Universidade de Aveiro.        [ Links ]

Fisher, S., & DeFries, J. (2002). Developmental Dyslexia: Genetic Dissection of a Complex Cognitive Trait. Nature Reviews/Neuroscience, 3, 767-780.        [ Links ]

Galaburda, A., & Livingstone, M. (1993). Evidence for a Magnocellular Defect in Developmental Dyslexia. Annals of the New York Academy of Sciences, 682(1), 70-82.         [ Links ]

Goswami, U. (2002). Phonology, reading development, and dyslexia: A cross-linguistic perspective. Annals of Dyslexia, 52, 1-23.        [ Links ]

Grigorenko, E., Wood, F., Meyer, M., Hart, L. A., Speed, W. C., Shuster, A., & Pauls, D. L. (1997). Susceptibility loci for distinct components of developmental dyslexia on chromosomes 6 and 15. Am J. Hum Genet., 60, 27-39.        [ Links ]

Miles, T. (1993). Dyslexia, the Pattern of Difficulties (2nd ed.). London: Whurr Publishers.        [ Links ]

Morgan, W. (1896). A case of congenital word-blindness. Brain Medicine Journal, 2, 1378.        [ Links ]

Orton, S. (1937). Reading, writing and speech problems in children. London: Chapman and Hall.        [ Links ]

Orton Dyslexia Society Research Committee (1994). Operational definition of dyslexia. Perspectives, 20, 4.        [ Links ]

Perfetti, C. (1992). The representation problem in reading acquisition. Em P. B. Gough, L. Ehri & R. Treiman (Eds.), Reading Acquisition (pp. 145-174). Hillsdale: Lawrence Erlbaum.        [ Links ]

Pumfrey, P., & Reason, R. (1991). Specific Learning Difficulties (DYSLEXIA). NFER-Nelson Publishing: London.        [ Links ]

Riddick, B. (1996). Living with Dyslexia, the Social and Emotional Consequences of Learning Difficulties. Routledge: London.         [ Links ]

Shaywitz, S. E., Shaywitz, B. A., Pugh, K. R., Fulbright, R. K., Constable, R. T., Mencl, W. E., Shankweiler, D. P., Liberman, A. M., Skudlarski, P., Fletcher, J. M., Katz, L., Marchione, K. E., Lacadie, C., Gatenby, C., & Gore, J. C. (1998). Functional disruption in the organization of the brain for reading in dyslexia. National Academy of Sciences, 95, 2636-2641.         [ Links ]

Snowling, M. J. (2000). Dyslexia (2nd ed.). Oxford: Blackwell.        [ Links ]

Tallal, P., Miller, S., & Fitch, R. (1993). Neurobiological basis of speech: a case for the pre-eminence of temporal processing. Annals of the New York Academy of Sciences, 682, 27-47.        [ Links ]

Vellutino, F., Steger, J., Moyer, S., Harding, C., & Niles, J. (1977). Has the perceptual deficit hypothesis led us astray? Journal of Learning Disabilities, 10, 375-385.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Lénia Sofia de Almeida Carvalhais
Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro
Campus Universitário Santiago, Edifício 12
3810-193. Aveiro, Portugal

Recebido em: 15/03/2007
Revisado em: 11/06/2007
Aprovado em: 14/06/2007

 

 

Sobre os autores:

* Lénia Sofia de Almeida Carvalhais (leniacarvalhais@dce.ua.pt) é Doutoranda em Ciências da Educação na Universidade de Aveiro, financiada pela FCT, com a referência SFRH/BD/24860/2005.
** Carlos Silva (csilva@dce.ua.pt) é Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro.