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Psicologia Escolar e Educacional
versão impressa ISSN 1413-8557
Psicol. esc. educ. v.11 n.2 Campinas dez. 2007
ARTIGOS
Diferença: condição básica para a constituição do sujeito
Difference: basic condition of individual'st contitution
Diferencia: condición básica para la constitución del sujeto
Mercedes Villa Cupolillo I, *; Ana Beatriz Machado de Freitas II, **
I Faculdades Paraíso
II Associação de Pais e Amidos de Excepcionais de Goiânia
RESUMO
Este trabalho é um estudo de caso construído em co-autoria na tentativa de compreender os processos subjetivos para o aprendizado e buscar alternativas para a inclusão de crianças no processo educacional. As autoras acompanharam, em uma escola pública, alunos em processo de alfabetização que apresentavam, segundo o estabelecimento, problemas de aprendizagem. Os encontros foram semanais, por um período de sete meses, havendo apenas interrupções durante férias e festividades. A teoria da subjetividade baseada na Epistemologia Qualitativa foi adotada como eixo teórico-metodológico. Embora tenham ocorrido novas produções de sentido pelas crianças sobre o aprendizado, percebeu-se que o espaço social da escola, caracterizado pelo corpo de educadores, conservava a visão preconceituosa em relação à criança. A ênfase continuava a ser dada à dificuldade e à incapacidade, o que não favorecia a mudança nos processos de aprendizagem. Ao longo do texto, as autoras intercalam suas idéias e ações, em um trabalho conjunto.
Palavras-chave: Fracasso escolar, Subjetividade, Alfabetização.
ABSTRACT
This work is a case study of a child's inclusion in educational process during school first years. It aims to discuss alternative ways of psychological evaluation when children are sent from school to a psychology service for diagnosis. Evaluation process attempted to understand children's subjecvity, according to proposition of the subjectivity theory based on the Epistemology Qualitative. Children were seen at school once a week, during seven months, while teachers and parents have been paralelely seen. In the interviews, the focus was in the subjective sense production for learning. At the end of the evaluation process we had found that prejudice against the children was still present among teachers and coordinators. Otherwise, new senses were produced by the children promoting learning and different forms of dealing with writing and reading. The authors exchange their ideas and actions in research field throughout the study.
Keywords: Academic failure, Subjectivity, Literacy.
RESUMEN
Este trabajo es un estudio de caso construido en co-autoría como una forma de tratar de comprender los procesos subjetivos para el aprendizaje y buscar alternativas para la inclusión de niños en el proceso educacional. En una escuela pública, las autoras acompañaron alumnos en proceso de alfabetización que presentaban, según la escuela, problemas de aprendizaje. Los encuentros fueron semanales por un período de siete meses, con interrupciones apenas durante las vacaciones y feriados. La teoría de la subjetividad basada en la Epistemología Cualitativa fue adoptada como eje teórico-metodológico. Pese a haber ocurrido nuevas producciones de sentido por los niños sobre el aprendizaje, se percibió que el espacio social de la escuela, caracterizado por el grupo de educadores, conservaba la visión de preconcepto en relación al niño. El énfasis continuaba siendo dado a la dificultad y a la incapacidad, lo que no favorecía el cambio en los procesos de aprendizaje. A lo largo del texto las autoras intercalan sus ideas y acciones en un trabajo conjunto.
Palabras clave: Fracaso escolar, Subjetividad, Alfabetización.
Dundee-Escócia, 1992. Retorno para o término de meu doutorado com meus dois filhos. Entre as primeiras providências, a escola era fundamental. Meu filho tinha cinco anos e minha filha, nove. No bairro onde escolhemos para morar, ficava "Blackness School", escola que se destacava por receber crianças de treze nacionalidades diferentes. Ali conviviam diariamente crianças com valores, idiomas, tipos de alimentação, características físicas e psicológicas diversas. Para alguns, um local impróprio pela tamanha diversidade; para outros, um rico atelier para a criatividade e o desenvolvimento de subjetividades e gerações mais humanas e éticas. Não era meu campo de pesquisa, mas eu mal podia resistir à riqueza de sentidos de vida que se produziam entre tantas vozes e rostinhos luminosos.
Além da participação efetiva dos pais nos conselhos, havia a participação do psicólogo escolar, obrigatória na comissão de avaliação distrital. Os projetos de integração cultural e a forma como a escola lidava com a inclusão de crianças com necessidades especiais eram característicos daquele espaço. Havia cuidado para com elas, com as famílias, com as necessidades que as diferenças geravam, e disponibilidade dos profissionais para aprender com as diferenças.
A escola ficava localizada em uma rua movimentada, via de acesso para o centro da cidade. O policial que auxiliava na travessia das crianças era um senhor simpático, paciente e doce e as conhecia todas, pelo nome. Desarmado, usava apenas um sinalizador luminoso para chamar a atenção dos veículos, principalmente em dias escuros de inverno.
Meu filho era sempre o primeiro a levantar nos dias de aula. Ir para a escola tinha um sentido amplo e, além da responsabilidade, a companhia dos colegas era fundamental. A escola parecia um local privilegiado para aprender muitas coisas, além dos conteúdos específicos e os professores acompanhavam as turmas em todo o ciclo.
Eu procurava aprender lições de inclusão com a professora de minha filha. Sua sala tinha uma organização peculiar. As mesinhas com quatro cadeiras eram arrumadas ao redor do espaço onde se realizavam as atividades escolares, com grupos de crianças selecionadas por afinidades para trabalharem juntas, crianças de nacionalidades diferentes, sendo que uma delas era britânica, para garantir a comunicação e o aprendizado da língua inglesa. Uma amiguinha brasileira de minha filha sentava-se em outro grupo de crianças e elas se encontravam no recreio para falar português. Em sala, minha filha sentava-se ao lado de duas coleguinhas muçulmanas e de Edward, um menino escocês que apresentava necessidades especiais. Embora a orientação que minha filha recebesse da professora fosse de não realizar as tarefas por ele, outros tipos de suporte eram dados ao menino, que nunca dispensava sua companhia. Havia um profissional responsável por acompanhá-lo nas tarefas mais difíceis, mas ele ficava à vontade para conversar com minha filha, ensinando-lhe inglês e instigando sua curiosidade para a forma de aprendizado que apresentava para o cuidado e respeito a pessoas como ele, de tal forma que, em casa, Edward era sempre citado à mesa.
Minha filha aprendera a falar pausadamente e, ao fazê-lo, ela própria reorganizava suas idéias e seu pensamento. O trabalho na zona de desenvolvimento proximal, um dos meus eixos no doutorado, acontecia com muita fluidez naquele espaço. Paralelamente às atividades de sala de aula, todas as crianças estrangeiras recebiam um caderno de inglês que continha o vocabulário trabalhado em classe. Ali entravam em contato com a escrita, o significado das palavras e a construção de textos. Todos os dias escreviam estórias voltadas para as temáticas abordadas e, muitas vezes, para suas maneiras específicas de entender e viver a vida.
Meu filho, na primeira série, levava livros para casa diariamente, para que lêssemos juntos, cujos conteúdos eram muito presentes na cultura das crianças. Foi assim que os dinossauros e os sapos passaram a habitar nossa casa. As avaliações eram contínuas, ocorrendo no decorrer das atividades; por isso, não havia momento de prova.
Nós, pais, éramos convidados a participar nas atividades culturais e esportivas, como voluntários. Certamente tínhamos saudades do Brasil, mas as crianças, naquele momento, tinham construído um vínculo prazeroso com a escola.
Rio de Janeiro, 1994. De volta ao Brasil após o término de meus estudos. Eu não podia esperar para me integrar no espaço educacional brasileiro, cenário vivo de aprendizagens e desenvolvimento. O ano letivo se iniciava e as crianças ingressaram na escola. Imediatamente nos deparamos com uma dificuldade: a correspondência de séries. Minha filha tinha agora 10 anos e havia a exigência de que freqüentasse a quinta série. Meu filho não se conformava com a idéia de voltar para a primeira série, mas acabou sendo conquistado pelos colegas.
São Luís - maio, 1994. Em uma cidade menor, tivemos que conviver com uma diversidade de elementos e situações. Ao chegar, vivenciamos um grande contraste evidenciado pelas formas de ensinar e pelas próprias concepções sobre educação. Eu estava de volta a meu país e esperava poder contribuir com as escolas brasileiras. Já que convivemos com tanta diversidade, como poderíamos criar uma escola utilizando esses recursos? Com certeza, pensava, poderíamos otimizar o aprendizado em nossas salas de aula já que todo o cenário do país é constituído por tantas heterogenias, o que serve para o enriquecimento dos processos de educação quando bem conduzidos. Apesar de ter desenvolvido pesquisas em escolas de São Luís, foi somente anos mais tarde, em Goiânia, que a discussão sobre subjetividade e aprendizagem veio a se tornar mais presente, gerando o trabalho descrito a seguir.
Goiânia, 2004.
No início do ano letivo de 2004, uma escola conveniada procurou pela clínica de atendimento infantil solicitando avaliação de quatro crianças que apresentavam problemas de aprendizagem na leitura e na escrita, segundo relato da coordenadora. Surpresa com a forma preocupada como a coordenadora relatara, prontifiquei-me, a realizar uma avaliação assistida.
A escola em questão é conveniada com o Estado, sendo subsidiada por uma associação espírita. É pública e atende a uma clientela de classe média e classe média baixa. Por muito tempo foi considerada uma das escolas públicas de maior qualidade de ensino na capital. Naquele momento, uma das grandes preocupações da administração era exatamente a imagem da escola.
Ao chegar à instituição, fui apresentada à professora que, imediatamente, queixou-se de cinco alunos (todos do sexo masculino), atribuindo as dificuldades que apresentavam a problemas familiares e orgânicos. Disse que eram todos desatentos, deveriam ter déficits de atenção, hiperatividade e outros problemas que ela não sabia definir. Em vinte anos de profissão ela nunca havia lidado com crianças como aquelas.
O processo avaliativo ocorreu semanalmente, totalizando seis encontros, individuais e coletivos, que aconteceram na escola, em uma sala designada pelos coordenadores. A sala era utilizada pelos professores para organização e confecção de material escolar; possuía a aparência de um sótão, pois ficava localizada no andar inferior da escola e o acesso a ela era através de uma porta rebaixada. Ali ficavam guardados trabalhos de alunos, livros em geral e materiais a serem utilizados pelos professores.
Abordamos a queixa referente à hiperatividade com base nos trabalhos de Werner (2000). Segundo Werner, os transtornos de atenção e hiperatividade, conhecidos pela sigla, TDAH, surgem recentemente no discurso e diagnóstico neuropsiquiátrico, em substituição à disfunção cerebral mínima. O discurso tem invadido os espaços escolares, na maioria das vezes, como álibi para o pouco comprometimento dos atores da escola no processo de escolarização dos alunos.
Pedrinho foi a primeira criança a me ser apresentada. Segundo relatos da coordenadora e da diretora, o menino havia esquecido tudo que aprendera nas aulas de alfabetização, no ano anterior. Sua mãe era faxineira da escola e ele era o segundo filho de uma união da mãe com um namorado. Após ter conhecido Pedrinho, conversei com seus pais, coordenadores, diretora e professores.
As sessões de avaliação consistiam na identificação do potencial da criança para a aprendizagem em geral, da leitura e da escrita, a partir da produção de significados e sentidos que ocorriam na relação comigo, no meu papel de avaliadora. Denominamos essa avaliação de assistida, baseada nos pressupostos de Vygotsky (1993), processo avaliativo com ênfase no potencial para aprender a partir da relação que se estabelecia entre avaliador e criança e entre as crianças. Os focos de cristalização do processo de aprendizagem também eram pesquisados, podendo ser trabalhadas propostas de mudanças de significados e sentidos subjetivos (González Rey, 2003).
Nosso primeiro encontro:
Inicialmente solicitamos o protocolo de todas as crianças; nele constavam todas as avaliações do ano letivo anterior. Utilizamos esse material como ponto de partida para avaliar o quanto Pedrinho poderia reconhecer o que havia produzido. Ao entrar em contato com o protocolo, ele reconheceu imediatamente seu nome na primeira página. Logo após disse: "não dou conta de ler".
Respondi: mas o seu nome você consegue, não é? Então, você já sabe.
Percebi muito desânimo e tristeza no menino. Parecia angustiado por ter que passar por tudo aquilo. Eu lhe perguntei se estava ciente do porquê de estar ali comigo. Respondeu: "porque sou burro, sou maluco, não dou conta de ler".
Psicóloga: O que você gosta de fazer?
"Gosto de desenho, de gibi, de videogame. Minha mãe disse que um dia eu vou para os EEUU. Lá eu vou ter dinheiro. Eu queria ter dinheiro, ser rico pra comprar um carro".
Psicóloga: Olha, eu cuido de crianças que pensam que não conseguem fazer as coisas que elas não conhecem. Eu não acho você burro, nem maluco. Eu acho que você ainda não acredita muito que pode aprender muitas coisas legais. Quando a gente está aprendendo alguma coisa, qualquer coisa, é porque ainda não sabe. Então é sempre difícil. Depois que a gente aprende e consegue fazer, fica fácil. Vou te contar a estória de meu menino... .Ele mora longe daqui. Mora no Rio de Janeiro
-Onde tem praia? Psicóloga: - Sim, e ele está aprendendo a surfar. Nesse momento percebi que o semblante do menino havia se modificado e ele estava totalmente imerso no diálogo.
-Então, continuei, ele telefonou no outro dia e disse: "mãe, é muito difícil surfar, a gente tem que se equilibrar muito na prancha e eu caio à toa. Mas eu não vou desistir nunca, eu quero aprender...". Pedro, você sabia que ele tem o seu nome? Ele também se chama Pedro.
Pedrinho me interrompe e diz: "olha, eu sei como é... Vou desenhar pra você ver".
Desenha um menino na onda, surfando, como se tivesse ilustrando minha fala. Fiquei surpresa com o desenho de Pedrinho, com movimentos, coerência e precisão. Certamente ele não tinha dificuldade de estar atento àquilo tudo, de se projetar na estória e imaginar além dali, de criar... Mostrei que das letras de seu nome, que ele havia escrito inicialmente, poderíamos escrever muitas palavras interessantes que ele havia dito: onda, nado, pé. Escrevemos as palavras, juntos e, na terceira, Pedrinho já apresentava sinais de cansaço e desânimo. Perguntei se ele lembrava do que havia escrito e ele confirmou, lendo. Eu disse que nos encontraríamos outras vezes, que continuaríamos a conversar e que talvez ele pudesse lembrar a estória.
-"Não dô conta", disse ele.
Estive com Pedrinho mais duas vezes, utilizando nosso referencial do primeiro encontro. Sempre estava à minha espera na sala de aula e sinalizava o pouco tempo que ficávamos juntos e como eu demorava em procurá-lo. Expliquei a ele que eu estaria por perto por bastante tempo, mas que uma outra pessoa iria trabalhar junto com ele e os colegas, por um período mais prolongado.
Assisti Pedrinho, ainda na companhia de Vicente, outra criança que havia sido encaminhada, e mais dois meninos, João e Alex. Ele não se manifestava. Comprimia-se no canto da sala, na tentativa de se esconder. Os meninos o chamavam de maluco: "olha, tia, ele bate a cabeça na parede, fica falando sozinho na sala de aula e não sabe fazer nada".
Pedrinho não se manifestava.
Eu disse: ele sabe sim, mas ainda não aprendeu tudo. Tem muitas crianças assim. A gente nunca sabe tudo e às vezes fica com vergonha de dizer por que pensa que os outros sabem tudo, não é?
-É, acentua Vicente.
Durante a avaliação entendemos que Pedrinho não apresentava déficits de atenção, mas dificuldade para lidar com os estigmas a que vinha sendo submetido. Ele não acreditava na possibilidade de se ver como leitor. Sua condição socioeconômica e as dificuldades que havia encontrado na relação com os pais, colegas e professores na escola foram subjetivados como obstáculos para aprender, fazendo com que ele acreditasse que não era capaz.
A coordenadora solicita reforço através de uma estagiária. Sugeri um trabalho diferente, uma vez por semana, com ênfase no potencial das crianças para aprender. Após a avaliação assistida, encaminhei as crianças para nossa aluna de Mestrado, para que pudéssemos colaborar.
No relato da mestranda, pudemos acompanhar a difícil tarefa de ser sujeito quando não se chega à escola com os padrões hegemônicos de aprendizagem e comportamento e situação socioeconômica "favorável ao aprendizado". No Brasil, principalmente após a redemocratização nos anos 80, tem-se ampliado o debate sobre o acesso à educação de qualidade para todos. Por meio da escola, mais especificamente da escola pública, as classes populares poderiam ascender ao legado cultural dominante, o que virtualmente corresponderia à possibilidade de ascensão social. Era a perspectiva da escola redentora (Soares, 1987).
Com tão grandes esperanças depositadas, a escola pública passa a receber alto contingente de alunos e se depara com a questão da diferença: a clientela predominante não é mais a que dispunha de acesso e valorizava, por sua condição social de classe, aspectos do conhecimento formal e da cultura dominante, chegando à instituição parcialmente alfabetizada. Muitas crianças das classes populares, ao contrário, afluem à educação fundamental sem prévio acesso à pré-escola formal ou informal. Dessa diferença, emergem conflitos no ensino-aprendizagem originados pela discrepância no atendimento às expectativas da escola. Acostumada ao "aluno ideal", a instituição educativa se depara com alunos reais em suas diferenças, com suas marcas de identidade individuais e de classe social (Estebán, 2001; Soares, 1987). Constituem-se, nesse contexto, estigmatizações, ou seja, referências, significações ou marcas negativas (Goffman, 1975) em relação ao aluno que não aprende da maneira esperada.
Os relatos, a seguir, são de encontros entre a mestranda e as crianças. As construções e análise das informações foram realizadas ao longo dos encontros, conforme propõe a Epistemologia Qualitativa de González Rey (2002). Nessa perspectiva de investigação, cada encontro, da relação pesquisador-participantes-contexto, suscita reflexões e novos passos para a construção-interpretação frente à realidade pesquisada.
Apenas os momentos que produziram sentido, serão apresentados, a partir dos indicadores (produções de significados e sentidos) voltados para o processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Os nomes dos participantes, por compromisso ético, são fictícios.
7 de abril de 2004
Primeiro encontro com a mestranda
João, Alex e Pedrinho se apresentam alegres. Pedrinho parece um pouco desconfiado, mais sério, mas diz seu nome e o dos colegas. Os três trazem consigo lápis e caderno. A sala oferecida é normalmente usada para apresentações de filmes e aulas de reforço para alunos maiores. O mobiliário é composto por cadeiras do tipo universitário. As crianças sentam-se em círculos nas carteiras. A caixa de bolinhas de gude que eu deixara propositadamente no chão, no meio do círculo, de imediato chama atenção dos três.
-Que é isso, tia ?
- Vamos ver quem adivinha!
-Acho que é peteca, diz João.
-Já sei, é bolinha de gude, diz Alex.
Pedrinho toma a caixa para si e a abre afoito, antes de adivinhar. Os outros já abrem os cadernos e demonstram o que escreveram.
-Quem sabe ler?
-Eu sei, respondem os três ao mesmo tempo.
Pergunto individualmente. João e Alex dizem que não sabem ler e antes de Pedrinho responder, dizem:
- Ele não sabe ler, não, tia. É muito "baguncento"! Peço a João que leia o que escrevera.
-A letra dele é pequena, tia, diz Alex. Parece minhoca. Pedrinho aproxima-se e olha o caderno do colega.
-O que é isso? (Eu aponto os peixinhos desenhados no caderno)
-Isso é peixe. E mal feito, disse. E corre à caixa onde estavam guardadas roupas e acessórios usados, em um dos cantos da sala. Põe-se a vasculhá-la.
A atenção é desviada para o ruído da festa de aniversário de uma aluna da turma da ex-professora deles. As crianças chegam à janela e tentam desesperadamente chamar a atenção da professora.
-É aniversário do menino feio.
- Por que é feio?, pergunto.
-Ele é gordo. (adjetivo também conferido a Pedrinho)
Observo que no pátio, "palco da festa", está um desenho no quadro-negro alusivo à Páscoa. Alex e João começam a falar do Coelhinho da Páscoa. Um deles canta a música. Pedrinho volta à caixa de roupas. Peçolhe que não mexa no que não nos pertence e o chamo para conversar sobre a Páscoa. Proponho que façam um desenho na cartolina ou escrevam algo a respeito.
- Eu vou desenhar, não vou escrever, diz Alex.
- Eu sei escrever, afirma João.
Os três vibram com a proposta de desenhar e escrever no chão, com giz de cera, cada um em uma parte da cartolina. Pedrinho avança e inicia o desenho com um movimento brusco, traçados grandes, ocupando o espaço pretendido pelos colegas, o que os irritou. Alex tira a cartolina e delimita seu espaço com um traço. Pedrinho faz o mesmo, mas, provocando o colega, invade-lhe a área. Alex revida. João, na outra ponta, já está desenhando, mais tranqüilo, e se assusta quando Pedrinho também avança sua área. Intervenho dizendo que nem Alex nem Pedrinho haviam desenhado o coelho a que se propuseram. Será que sabiam...?
-Eu sei, dizem. E cada qual desenhou em seu espaço. Pedro termina primeiro, levanta-se e vai à caixa. Alex comenta:
-Coelho feio, não sabe desenhar.
-E os ovos de Páscoa?, pergunto.
-Ah, eu vou fazer.
Chamo Pedrinho e proponho o desenho dos ovos, ao que se mostra indiferente. Desenho, então, perto do coelho que ele fizera, um balão do tipo de história em quadrinhos, esperando que Pedrinho "falasse alguma coisa por seu coelho". Alex adianta-se:
-Eu sei o que é isso.
Pedrinho se aproxima e diz:
- Eu também sei, é uma sacola que ele está carregando.
-E o que ele carrega?, pergunto.
-Ovos!, respondem.
Pedrinho, num tom sério e crítico:
- O coelho agora virou Papai Noel.
-Meu coelho tem muitos ovos, diz Alex, continuando a desenhá-los. Pedrinho observa o colega e parece ter tomado a atividade como desafio. Abaixa-se, pega um giz de cera e põe-se a preencher a "sacola".
-Já fiz o meu, anuncia João. Eu quero escrever coelho (traça o "c" e hesita; olha para mim, meio envergonhado). "Eu não sei."
-Você começou certo coelhinho, co... (Ele completa "co")
-Co-e (Coe).
-Lhi (li).
-nho.
- O "n" e o "o" ?
-Da Páscoa.
-O da Pás - co-a', João completa, atento à sonoridade de cada sílaba, contente.
Alex escreve "Coelho", olhando, de vez em quando, a área de João. Pedrinho se recusa a escrever. Peço a João que lhe mostre como se escreve. Ele chega à área de Pedrinho e escreve "Co".
-Só que ficou de cabeça pra baixo para ele, ob-servo.
Todos riem, inclusive Pedrinho, que me observa a traçar a sílaba "de cabeça para cima". Espontaneamente escreveu copiando as demais letras de Alex.
O comentário de Alex sobre o coelho de Pedrinho parecer um cachorro foi motivo para que começassem a desenhar e falar sobre animais. Lembrei-me da história da lebre e da tartaruga e começo a contá-la, até para atrair novamente a atenção de Pedrinho, que voltara à caixa e, às vezes, reclamava que estava chato, que queria brincar com as bolinhas, desenhar no quadro, jogar quebracabeça. Faltavam cinco minutos para o horário do lanche. Informo o fato às crianças e proponho que finalizemos a história e, posteriormente, joguemos. Pedrinho se irrita e reclama. Alex adianta-se quanto à história e diz que o coelho ganhou a corrida por ser mais rápido. João, mais atento à história, propõe:
- Vai, conta uma história. Conta que eu vou escrever: "Era uma vez..." (Inicio um trecho. Ele transcreve, depois me pede para ler o que escrevera). Com a hora do lanche, interrompemos.
Na interação com os colegas, Pedrinho era visto como incapaz. O grupo, entre os meninos que foram selecionados como problemáticos, abria espaço para a produção de novos sentidos e significados à medida que, mesmo competitivamente, Pedrinho criava formas de enfrentamento por se sentir ancorado.
Pedrinho, o "disperso", o "baguncento", "o que não sabe nada" (e também meio gordinho, como o aniversariante "feio") manteve um comportamento mais distante. Sua motivação foi claramente "disparada" pela competição com os colegas, especialmente com Alex. Sua fala brusca, gestos impetuosos e momentos agressivos são produzidos na relação com os colegas, uma tentativa de conquista de espaço, como no desenho. Foi interessante o fato de Pedrinho, após tantas idas e vindas pela sala e dispersões, ter concluído a tarefa no seu espaço, dando sentido crítico a partir de uma ação iniciada pelo outro (cópia da escrita do colega; identificação do meu desenho à "sacola" de Papai Noel), expressando conhecimentos sociais subjetivados por ele.
À medida que a escola, na figura de suas subjetividades individuais (os colegas e as professoras e coordenadoras) e sociais (o grupo constituído por essas subjetividades) relaciona-se com Pedrinho a partir de sua dificuldade, ele precisa desenvolver formas para manter-se como sujeito, como alguém que é muito além da restrição e precisa ser aceito no que é, em suas condições de ser e não ser o que é desejado. A rejeição à leitura, naquele momento, tinha um sentido de poder manter-se com o mínimo de integridade (como sujeito) para que não pudesse ser visto nova-mente como incapaz pelos colegas. Assim, nega ou se dispersa mediante a proposta de realização de uma tarefa que irá expor sua desigualdade e dificuldade perante os colegas que não o aceitam. O desempenho na atividade sugere que, potencialmente, pode-se aprender em situações e na relação com o outro, respeitando espaços. O aluno "que não tem limite" já procura delimitar seu espaço.
No decorrer dos encontros, as predileções e potenciais de cada um foram se evidenciando bem como o movimento coletivo do quarteto. Os materiais da sala (a mesma na qual Pedrinho fora avaliado) despertavam a curiosidade, especialmente em Pedrinho, "aficcionado" por histórias de gibis e livros coloridos de histórias. Seus olhinhos, ao entrarem na sala, percorriam a prateleira repleta de livros e logo seu corpo acompanhava o movimento, distanciando-o (fisicamente) das atividades propostas.
Envergonhado de ler em público (Em um dos encontros dissera: "Eu sei ler, tia, mas eu to com vergonha".), mostrava-se visivelmente concentrado, absorvido pelo mundo dos livros e seus personagens quando dispunha da liberdade para conhecer e ler em silêncio, em paz, sem ser alvo de críticas ou chacotas. De vez em quando chamava a atenção do grupo para algo visto nos livros ou gibis - atitude que se intensificou no decorrer dos encontros - e encontrou interlocutor em Alex. No sexto encontro, eles leram um livro, juntos (Jogo do Pega-Pega, de Flávia Muniz, editora FTD). Pedrinho inicialmente esteve em silêncio, mas quando o colega vacilou em uma palavra, corrigiu-o, relendo corretamente.
Curiosamente, o ato de ler não era visto, naquela situação, como significativo, melhor dizendo, produtivo, pois aparecia como "desvio" de uma tarefa principal que requeria a participação de todos; no caso, a confecção de uma historinha em formatação de livro em que cada aluno ficara responsável por uma página.
Nono encontro - 09 de junho
-Só a gente trabalhou na aula, comenta Vicente.
-E quem não trabalhou?, pergunto.
- Pedrinho! Vicente e João falam ao mesmo tempo apontando para o colega, como se isso estivesse combinado (Isso seria freqüente em sala de aula?)
-Mas só ele?
-O Alex, lembram-se.
-Então vocês,Vicente e João, serão hoje os professores do dia.
-Oba!!!!! , exclamam.
- Vão ensinar quem não fez e ajudar. Um ajuda o Pedrinho, o outro o Alex.
- Eu não quero ficar com o Pedrinho, dispara Vicente. Vou com o Alex.
-Ah, não, reclama, eu também não quero ficar.
- Por que não?, pergunto.
-Ele não faz nada direito, tia, ele nunca faz.
-Par ou ímpar, sugere João. Aposta com o colega e ganha o direito a ajudar Alex. Vicente não gosta, mas reconhece que foi justo; chama Pedrinho. Este parece não prestar atenção à conversa. Já pegara um gibi e não se interessa em participar, mesmo com a minha insistência e a de Vicente. Fecha os olhos.
- Tá vendo, tia ? Por que eu não queria? Não vou ajudar mais, não. Ele não quer.
-Espera, mostra pra ele como você fez, começa a fazer.
Vicente pega a "página" (pedaço de cartolina em branco) e começa.
-Aqui, Pedrinho.Vou fazer pra você (e inicia).
-Eu sei, deixa eu fazer. (Pedrinho levanta-se da cadeira e se interessa).
-Deixa que eu faço, diz Vicente.
-Espera, Vicente, deixa ele, intervenho.
Pedrinho traça com a régua; é criticado pelo colega pelo fato das linhas ficarem (muito pouco) tortas.
- Não tem problema, digo. Podemos escrever. E aqui colamos.
-Cadê, Pedrinho?, pergunta Vicente, que procura entre os quadrinhos pintados o do colega. O autor reconhece seu nome em um deles:
-É meu, afirma Pedrinho.
Vicente sugere que se coloque o quadrinho pintado por Alex (o de Pedrinho está em branco; não fizera). Diante da sugestão, Pedrinho emburra e desvia a atenção.
Pedrinho é estigmatizado como o que não sabe escrever", "não sabe jogar", "nunca faz direito", "difícil de aprender". A dificuldade real não estava na escrita propriamente, mas no envolvimento da atividade. Pedrinho preferia ficar lendo, fazendo algo solitário, diferente (aparentemente sem fazer nada). A não-participação aprecia relacionada limite do enfrentamento que necessitava na relação com os demais visto que era exposto pré-suposto freqüentemente à condição de incapacidade dependência. Assim, quando chamado a participar, mostrava-se "indiferente" e "desatento", estados referidos pela mãe, coordenadora e professora: "olha para cima e para o lado, sem fazer nada", e sem obedecer.
Décimo encontro - 16/06/2004
Proponho a confecção de um segundo livro. Sugeri que cada um escrevesse e desenhasse a sua página, expressando o que quisessem, produção denominada pelo grupo "O Livro da Vida". Em todas as páginas apareceu o contexto da literatura infantil (livros gibis, historinha trabalhada em sala): Vicente desenhou o peixinho, numa referência à atividade trabalhada nas últimas semanas; Pedrinho, uma cena de Batman e Robin; Alex, a turma da Mônica; João, entre caracteres de tesouro, moto e cavalo, deixou fluir a imaginação no desenho de sua página. A unidade do livro (não prevista) esteve presente pelo contexto da literatura infantil. Foi um momento importante para avaliação do sentido de nossos encontros e de identificação de um caminho potencial para o aprendizado da leitura e escrita com prazer e produção de sentidos.
Décimo primeiro encontro - 23/06/2004
A coordenadora elogia Pedrinho:
- Eu não acreditava. Você viu o Pedrinho lendo?! Dizer que ele lê isso aqui... Ontem ele veio com a mãe dele e leu aquilo ali no quadro. Estava tentando ler. Ele está exibido. Na sala, no corredor, olha para o mural e quer mostra que sabe ler. Para quem não confiava nele mesmo!
O "problema" foi apresentado como uma questão de autoconfiança, de insegurança do aluno, explicável por si mesma, mas no primeiro momento, a coordenadora confessa que ela própria não acreditava ("ele olhava pra cima, para o outro lado, parecia no mundo da lua"). O fato é que não percebia o movimento diferenciado do aluno em direção ao aprendizado na escola, mas vai à procura da confirmação de sua "profecia negativa" sobre o menino, como citado por Barbosa e Cupolillo (2004). Pensar e refletir sobre a própria ação poderia gerar mudanças na postura educacional e na consideração do aluno e sua aprendizagem. Afinal, o rótulo imposto não seria também um constitutivo da insegurança?
04 e 05 de outubro de 2004
A psicóloga (orientadora do Mestrado) e eu propusemos uma atividade em que os meninos pudessem apresentar em classe como expressão do que haviam produzido, sentido e aprendido. Seria, em especial, uma oportunidade para que Pedrinho pudesse ser visto tanto pelos colegas quanto pela professora como um aluno atento e participativo.
Apresentaríamos uma história, a ser desenhada no quadro-negro, dividida em quatro quadrinhos (cada aluno ficaria responsável por uma parte), sendo o assunto: alguém que aprendesse a ler e que alguém o ajudasse.
O grupo sugeriu a Mônica como protagonista e o Cebolinha como "ajudante" e as partes foram assim definidas: "A Mônica sem saber ler" (parte 1), "começando a aprender" (parte 2), "recebendo ajuda" (parte 3) e "lendo" (parte 4).
A preparação requereu dois encontros. Pedrinho, como de costume, procurava concluir rapidamente para poder ler os gibis da sala. Na ocasião em que começou a ler em voz alta o gibi do Batman ,Vicente e Alex o criticaram:
"Devia ir para um hospício e lá darem um gibi pra ele". Uma censura, justamente no momento em que começa a expressar em voz alta o seu "saber ler".
A subjetividade social se expressa em sujeitos concretos, como explica González Rey (2004). A ação perversa com o colega decorre impossibilidade dos meninos de se perceberem como aprendizes e, portanto, passíveis de apresentarem dúvidas e erros. Além disso, a produção da emocionalidade que se dá na relação com a dificuldade faz com que as crianças no grupo eliminem o colega que poderia vir a caracterizá-las como grupo dos incapazes.
A produção de novos sentidos na sala de aula torna-se sine qua non para a mudança no grupo, inclusive e principalmente por parte da professora, agente organizador da produção das novas necessidades e desejos da turma. Poderia ocorrer, assim, como ex-plica González Rey (2004) "um movimento mais complexo de produção de sentidos e significados".
06 de Outubro de 2004 - A apresentação
A psicóloga e eu nos encontramos com as crianças. João faltara, por motivo de doença. Antecipadamente, eu havia dito à professora que faríamos uma apresentação para a turma.
Chamamos Vicente, Alex e Pedrinho e "recapitulamos" a história e a ordem de apresentação, observando a produção do dia anterior. Os meninos estavam eufóricos e, ao mesmo tempo, um pouco envergonhados, mas quando a psicóloga e eu entramos com eles na sala de aula, iniciamos as apresentações e introduzimos a atividade, dispuseram-se logo a desenhar no quadro-giz da sala, dividido por nós em quatro partes. A psicóloga escrevia na parte superior de cada "página" a história por extenso, tal qual eu escrevera no papel, no livro das crianças. Os meninos recorriam a ele para copiar seus desenhos e a fala dos personagens.
Vicente desenha rapidamente, compenetrado na responsabilidade de desenhar as duas páginas, observa se esquecera algum detalhe. Alex, tal qual ocorrera na véspera, demora mais e apaga com freqüência, nunca achando seu desenho suficientemente bom e depende de ajuda. Pedrinho é o mais envergonhado. Fico a seu lado e digo que o ajudaria. No início, hesita, diz que não vai desenhar. Inicio o desenho e ele concorda em completar, orientando-se pelo livro.
-Se você quiser escrever "Mônica" como fez aqui, sugiro, mostrando-lhe a palavra que escrevera no papel.
Alguém faz um comentário sobre Pedrinho: -Ele não sabe.
A psicóloga responde: se ele fez o livrinho é porque sabe. Só está um pouco envergonhado de mostrar para vocês. Vamos esperar que terminem e vocês poderão dizer o que acharam da surpresa.
-Não, não quero, não, tia, diz Pedrinho, sorrindo tímido. Olha para trás, depara-se com a turma e parece envergonhado.
A platéia fica atenta. Um dos colegas insiste que quer desenhar também. A professora, sentada no fun-do da sala, observa, sorrindo. Enquanto os meninos desenhavam, uma garota comenta: "Quem desenha melhor é o Pedrinho".
"Acho o outro mais bonito", ouve-se outra voz.
Por fim, Vicente lê a história. Alex também pede para ler e lê a sua página. Convidamos Pedrinho a ler a terceira página, mas ele novamente se encabula. Propusemos que lêssemos juntos e com a participação da turma. Entre Vicente e Alex, perto da psicóloga, Pedrinho acompanha as palavras no papel. Abre a boca e inicia o mover de lábios, mas quando parece ensaiar a leitura, o coro se sobrepõe e lê a frase.
A turma aplaude o grupo e os três autores. Eles me pedem o livro, num indício de que o trabalho fora significativo. E não só esta produção, mas o principal: todo o processo.
-E agora ?, pergunta Vicente, preocupado. E o nosso reforço? Acabou?
Pedrinho ouve o colega e se aproxima, olhando-me na mesma interrogação.
- Eu devo continuar com o Pedro e o João, que estão aprendendo. Você, Vicente, já aprendeu...
-Não, mas... (Vicente procura uma justificativa). Eu sei... Mas eu preciso porque senão minha letra vai ficar feia.
Ao término da apresentação, a turma aplaude e tece comentários sobre o grupo:
- Legal, eu também quero fazer.
-Tia, agora é minha vez. A psicóloga pergunta o que eles acharam da surpresa.
A professora se prontifica em dizer que tinha gostado de vê-los escrevendo um livro. A turma confirma a capacidade dos colegas e algumas meninas comentam "O Pedrinho sabe".
Apesar das reconhecidas melhoras, a coordenadora ainda retorna com as queixas: João, "regrediu; Pedrinho", estava melhorando, mas agora parece que não lê"; e Vicente, o "hiperativo" quanto ao comportamento está "terrível". Os problemas de João e Vicente continuavam atribuídos a questões familiares, especialmente à falta de acompanhamento e ao estado emocional da mães.
Novembro 2004
No processo final, Pedrinho é avaliado como apto para a segunda série. Nos comentários da coordenadora percebe-se que nossa presença foi essencial para que isso ocorresse, pois gerou credibilidade no processo de aprendizagem da criança, embora não tenhamos percebido mudanças na postura da escola. ("Ele não evoluiu muito", disse-nos, "mas está se esforçando").
Considerações Finais
Estrangeiro, lento, fora das normas, letra feia, , faxineira, hiperativo, incapaz, desatento, doente, burro, maluco etc. Desde o início do texto pretendemos destacar as diferentes formas de exclusão que se dão nos bastidores dos contextos de educação. O discurso explícito da inclusão esconde as formas sutis de diferenças: os caminhos da subjetividade de cada um que aparecem em suas histórias, construções e condições sócio-econômicas.
Inclusão implica diversidade, diferença, alteridade - condições para constituição subjetiva. Portanto, vem da percepção do outro a possibilidade de ser diferente, de se constituir como subjetividade e sujeito, já que o estado de igualdade do outro só levaria a uma condição de linearidade e submissão.
A diversidade na educação é admitir a idéia de que as pessoas não são apenas um bloco de indivíduos em série, mas somos e produzimos idéias e conhecimento a partir de uma relação de complexidade. Assim, a inclusão, ocorre em um processo dialético, em um espaço simbólico-emocional, relacional, que só produz significados e sentidos dentro de um marco cultural (González Rey, 2004), marco em que a inclusão/ exclusão se configuram constantemente.
A avaliação, no caso apresentado, deve ser um processo de descoberta de possibilidades para inserção da criança no contexto escolar. A construção do processo avaliativo deve ser dirigida pelos elementos que atuarão na otimização das capacidades e funções que se encontram em processo de desenvolvimento na criança: seus recursos subjetivos e os recursos subjetivos dos mediadores em questão. Os parceiros do processo de aprendizagem, colegas, professores e demais profissionais envolvidos na escola apresentada, não atuavam como promotores da inclusão dessas crianças; contrariamente, "protege-se" e exclui-se ao articular às suas atitudes e práticas conhecimentos e pressupostos que confirmam e justificam a não-aceitação das diferenças. As escolas parecem ter retomado (um nunca abandonado) antigo modelo médico na avaliação do desenvolvimento de suas crianças. Nesse sentido, como assinala Padilha (2001), desconhecem a forma com a qual os educandos lidam com suas dificuldades, como superam suas deficiências, como utilizam suas forças, como, portanto, organizam seus processos psicológicos na relação constitutiva, constante com os espaços sociais que elas próprias também constituem. E, ao distanciar-se dessa reflexão, a escola deixa de reconhecer seu papel na saúde psicológica da instituição. Trata-se, portanto, de um trabalho mais amplo: a inclusão das subjetividades dos espaços educativos, a inclusão dos educadores no processo de conhecimento de si mesmos, de reflexão e construção de políticas públicas em direção a uma sociedade "re-humanizada", em que a Educação seja um processo contínuo de desenvolvimento da autonomia, sim, mas a autonomia construída e constituída através e na possibilidade da "com-vivência".
Referências
Barbosa, S., & Cupolillo, M. V. (2004). A gênese e os significados dos processos de inclusão de crianças com necessidades educacionais especiais nas classes comuns da rede regular e ensino. Em M. V. Cupolillo & A. O. B. Costa (Eds.), A psicologia em Diálogo com a Educação (pp. 51-81). Goiânia: Alternativa. [ Links ]
Estebán, M. T. (2001). O Que Sabe Quem Erra? Reflexões Sobre Avaliação e Fracasso Escolar. Rio de Janeiro: DP& [ Links ]A.
Goffman, E. (1975). Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
González-Rey, F. L. (2002). Pesquisa Qualitativa: Caminhos e Desafios. São Paulo: Thomsom Pioneira. [ Links ]
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Padilha, A. M. L. (2001). Práticas Pedagógicas na Educação Especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados. [ Links ]
Soares, M. (1987). Linguagem e Escola: Uma Perspectiva Social. São Paulo: Ática. [ Links ]
Werner, J. (2000). Saúde e Educação. Rio de Janeiro: Graphus. [ Links ]
Vygotski, L. S. (1993). Obras Escorgidas II. Conferencias sobre Psicologia (incluye Pensamiento y Lenguaje). Madrid: Visor Distribuiciones S.A. [ Links ]
Recebido em: 25/04/2007
Revisado em: 30/10/2007
Aprovado em: 17/12/2007
Sobre as autoras:
* Mercedes Villa Cupolillo (mercedes.cupolillo@gmail.com) - Centro Universitário da Zona Oeste; Faculdades Paraíso - RJ Rua Miguel de Frias, 214 apto 303, Icaraí, Niterói - Rio de Janeiro - RJ Cep: 24220-004.
** Ana Beatriz Machado de Freitas (bianadefreitas@ig.com.br) - Associação de Pais e Amigos de Excepcionais - Goiânia. Avenida Tocantins, 251 apto 303, Setor Central, Goiânia - GO Cep: 74015-010.