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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.20 no.20 São Paulo  2012

 

ENTREVISTA

 

 

A equipe editorial da revista Construção Psicopedagógica apresenta a entrevista realizada com a Dra. Ana Rosa Sancovski, em relação às questões associadas à Neuropsicologia, psicossomática e aprendizagem.

A entrevistada é doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP, Psicóloga Hospitalar pelo Conselho Federal de Psicologia, especialista em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae, Coordenadora Geral dos Cursos de Especialização em Psicologia Hospitalar, Transtornos Alimentares e Teoria e Clínica Psicanalítica da Faculdade de Medicina do ABC e do curso de Neuropsicologia e Reabilitação Cognitiva do Centro Nacional de Cursos de Especialização - CENACES.

1- Equipe editorial: Que associações a senhora pode fazer entre as questões psicossomáticas e neuropsicológicas?

Dra Ana S: As afecções psicossomáticas, segundo Joyce McDougall, Winnicott, Pierre Marty, Christopher Dejours e outros autores contemporâneos, decorrem de problemas no bom desempenho da função materna. Diz-se de uma mãe que não consegue conter suas próprias excitações físicas e psíquicas, muitas vezes por ser imatura para a função, outras vezes por sentir-se desamparada pelo companheiro ou mesmo por outros adultos, como sua mãe e seus familiares, para ajudá-la nas tarefas. Isso tudo poderia desfavorecer sua vinculação por meio dos cuidados iniciais, do aleitamento e do desejo de ter esse bebê, assumindo-o como algo bom em sua vida e aceitando renunciar a outras situações prazerosas da juventude e da vida de "solteira", para dedicar-se aos cuidados desse pequeno ser que ela escolheu permitir que viesse ao mundo para ser cuidado por ela.

 Além disso, mães que já sofrem de afecções psicossomáticas, sendo portadoras de doenças crônicas como diabetes, hipertensão, doenças autoimunes em geral, oscilações de humor, depressão, pânico, doenças inflamatórias, seja do colágeno ou intestinais, também apresentam dificuldades em dar maternagem e ser continentes das excitações e desamparos de um bebê. Da mesma forma, a partir desse início conturbado, a criança pode apresentar, já em idade muito precoce, transtornos neuropsicológicos como: TDAH, afasias, gagueira, quadros epileptóides, dislexias, dificuldades de aprendizagem e, a posteriori, bulimias, anorexias, vigorexias, quadros compulsivos e drogadições.

2- Equipe Editorial: O que é significativo considerar sobre as disfunções neuropsicológicas tendo em vista o desenvolvimento da criança?

Dra. Ana S. Não temos como precisar que áreas ficam mais hiperexcitadas e causarão as disfunções ou alterações neuropsicológicas. Cada um acionará uma ou várias circuitarias cerebrais que não seguem necessariamente uma regra. O que sabemos é que mães com precariedade simbólica ou com mentalizações incertas ou repressões maciças, não cumprirão a função necessária que permita a internalização de bons objetos, que impeçam os bloqueios ou atrasos no desenvolvimento da maturação emocional, equilibrada com a maturação cognitiva. É interessante ressaltar que muitas vezes, a precocidade na apresentação do discurso em um bebê, ou mesmo o fato de soltar-se rapidamente e passar a caminhar precocemente, não necessariamente denota saúde e desenvolvimento, mas pode ser mera defesa frente a uma função materna insuficiente, que "obriga" o bebê a lançar mão desses recursos tentando defender-se da maneira que consegue. Recentemente atendi um bebê de um ano e dois meses cuja mãe se orgulhava pelo fato dele ser conhecido na escola como o bebê que "fala tudo", mas cuja mãe refere não suportar seu apego a ela, relatando sentir-se sufocada e queixando-se do medo excessivo que o bebê apresenta de tudo e de todos. Ou seja, podemos dizer que seu neocortex está significativamente desenvolvido e que o mesmo, ao lançar mão da linguagem, já deve ter símbolos suficientes que permitem as descargas das excitações pela representação das palavras proferidas; porém afirmo: não necessariamente; inúmeros pacientes psicossomáticos são verborrágicos, porém se trata de um discurso sem palavra afetada, encadeada com seus significantes e símbolos, mas sim de palavra com função de descarga.

3-Equipe editorial: A senhora poderia falar um pouco mais sobre essas inter-relações  aprendizagem, desenvolvimento  e questões neuropsicológicas?

Dra Ana S: A aprendizagem está diretamente relacionada ao equilíbrio emocional da criança. Se o ambiente em que ela vive for calmo, estável, com rotinas, disciplina moderada, harmonia familiar, haverá um substrato suficiententemente bom e saudável para favorecer o desenvolvimento afetivo-emocional dessa criança, com poucos ou nenhum adoecimento. Há algum tempo, sabe-se que não é suficiente considerar apenas o potencial intelectual da criança, mas também aspectos de ordem emocional que possibilitam ou não que a criança se utilize do potencial que possui, como é citado por vários autores clássicos e atuais, como, Arzeno (1995), Benczik (2005), Fernandez (1991), Pain (1985), Tarnopolsky (1995), Verthelyi (1993).

Winnicott  sempre enfatizou a importância do sujeito desenvolver capacidades para tolerar a angústia, sendo esse um fator essencial no processo de conhecimento da realidade interna e externa, tendo o aspecto emocional como algo muito importante que favorece o desenvolvimento da criança e sua capacidade de pensar. O autor afirmou ainda que nas situações em que a angústia é intolerável, a criança tende a atacar uma ou mais funções mentais que permitiriam o contato com esses sentimentos penosos. As mesmas funções mentais alteradas pelos mecanismos emocionais prejudicam a capacidade de aprender, tornando-a inibida ou bloqueada. A clínica da atualidade evidencia crianças que são trazidas para atendimento psicológico porque sentem uma sobrecarga de exigência quanto à eficiência, rapidez, produtividade e bom desempenho escolar, à custa de muito desgaste de energia. Algumas vezes, a suspeita é de deficiência do desenvolvimento intelectual. Em consequência, dificuldades naturais se avolumam, e, nessas circunstâncias, o sofrimento da subjetividade mostra-se acentuado e agravado.

Essas consequências são facilmente observadas nos relatos de pais que procuram atendimento psicológico para o filho em virtude de problemas na aprendizagem. Winnicott (1984, 1990) reitera que a extrema exigência permite identificar incapacidades nas crianças por terem sofrido privações no desenvolvimento emocional precoce. Para o autor, saúde mental e desempenho cognitivo comportamental estão diretamente relacionados com a maturidade emocional construída nos mais precoces anos da vida dessa pessoa. Nesse sentido, a capacidade da mãe (ou quem desempenha essa função) para compreender e atender (ressalto aqui o ATENDER e não verbalizar a compreensão do desconforto, que funciona como uma interpretação psicanalítica precoce, gerando resistência na criança) as necessidades do bebê tem importância fundamental como prevenção dos principais transtornos posteriores.

A contribuição inovadora de Winnicott (1984) leva em conta o desenvolvimento emocional infantil e as possíveis consequências da falha ambiental precoce como uma quebra na continuidade natural do curso da vida mental. Porém, algumas crianças tentam superar tal carência mantendo a estrutura de vida apoiadas no que ele chama de falso self que encobre um temor de voltar às experiências frustrantes iniciais, encobre a angústia e, algumas vezes, um terror sem nome produzindo crianças com dificuldade em tolerar frustrações, fragilidade das funções egóicas, organização defensiva imatura, impossibilidade de solucionar conflitos, tendência à introversão, sentimentos de insatisfação, insegurança e inadequação. Os psicodinamismos emocionais ligados à dificuldade em lidar com a agressividade geram ansiedade e tensões internas, levando, por sua vez, a uma ineficiência temporária das funções mentais desenvolvidas, empobrecendo a produção e criatividade dessas crianças. Dessa forma, se forem buscados diagnósticos de disfunções neurológicas e o desejo de corrigi-las, principalmente, com o uso de medicações, esse desejo parental será satisfeito, a criança receberá um rótulo e serão tratados sintomas que denunciam questões bem maiores e profundas das dinâmicas familiares e das expectativas criadas em relação àquela criança.

4-Equipe editorial: O que a senhora pode sugerir ou orientar educadores especialistas, psicopedagogos e arteterapeutas para maior consciência destas interconexões, caso elas ocorram?

Dra Ana S.: Proponho que haja uma tentativa de obter o mais profundo conhecimento possível a respeito da história de vida do casal parental associada a uma anamnese sobre o desejo de ter aquela criança, o planejamento da gestação, as condições emocionais, profissionais, familiares e socioeconômicas do casal na época, se essa criança foi aleitada, se a mãe recebeu ajuda, apoio nesse processo, se o relacionamento do casal era bom, se houve alguma separação ou conflito importante em algum período da vida dessa criança, se o casal tem o hábito de dialogar sobre as suas dificuldades, conflitos e dúvidas, se há um relacionamento sexual satisfatório para ambos, como foi o desenvolvimento psicomotor da criança, a relação da mesma com os pais, avós, tios, irmãos. Como foi a escolha da escola, por que, em que idade, como é o acompanhamento escolar da criança, quem a orienta, tem rotinas? Quais? Tem atividades lúdicas e de lazer com os pais? Em que horários? Quais? Com que frequência? Tem alguma prática espiritual? (Não falo de religiões e dogmas, mas de valores humanísticos mais elevados). Recebe sanções ou castigos? Quando, como, por quê? Participa, dentro de suas possibilidades, das tarefas domésticas? Como? Que modalidade de brinquedos e brincadeiras prefere? Pratica esportes? Quais? Quem a leva e busca? Há algum tipo de estimulação com música ou instrumento musical? Qual? E com arte? Qual? Há comemorações de aniversários? Como? Quem participa? Pais brigam ou discutem na frente da criança? Se sim, por quê? Os contratos e combinações com a mesma são respeitados? Até que ponto suas singularidades e desejos são respeitados? Como é a alimentação da mesma? Usa algum tipo de medicação? Pais fazem uso de algum tipo de drogas lícitas ou ilícitas? Com que frequência? Há coerência entre o discurso e as atitudes? Tem seu espaço próprio como cama, quarto, etc... Dorme em sua cama/quarto sozinha? Se não aonde e com quem. Somente depois dessas questões respondidas, abordo os problemas escolares ou a queixa propriamente dita.

5- Equipe editorial: Que outras observações a senhora julga necessário fazer e o que propõe a esses educadores para a sua formação continuada, tendo em vista este foco: interconexões possíveis de fatores da psicossomática, da neurologia e da aprendizagem?

Dra Ana S.: Proponho que os mesmos façam uma formação em Teoria e Clínica Psicanalítica, bem como uma análise pessoal para poder compreender melhor a si próprios e posteriormente a seus pacientes. Na sequencia, podem estudar tudo o mais que desejarem, como neuropsicologia, psicossomática, história da arte, artes plásticas, jardinagem, ikebana, dança, música, teatro, dobraduras, etc...

6- Equipe editorial : Há algum texto ou referência bibliográfica de fácil acesso e mais compreensível para educadores que a senhora possa nos indicar?

Dra Ana S.: Tudo começa em casa, Donald Winnicott.