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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.3 no.5 São Paulo 1998
ARTIGOS
Pais na escola - mais um fruto do encontro da psicanálise com a educação1
Parents at school: one more result from the function psychoanalysis and education
Ilana Katz Zagury Fragelli
Psicanalista, mestranda em psicologia escolar no IPUSP
RESUMO
Este artigo pretende discutir algumas possibilidades de intervenção no trabalho com pais em uma instituição escolar a partir de referenciais contruídos no encontro dos campos da psicanálise e da educação.
Escuta; Educação; Instituição; Psicanálise
ABSTRACT
This paper aims to discuss about the possibilities of intervention in the assistence to parents in an institution for education using references brought up through the confluence of psychoanalyses and education.
Education; Institution; Psychoanalyses
Há um impasse que se reedita em todas as instâncias da relação do psicanalista com a instituição escolar; é um impasse que extrapola os limites de uma relação singular e se coloca como representante de um sintoma social.
Em função disso é preciso pensar, a partir da posição de orientador educacional, o trabalho com pais dentro da escola2.
Os pais demandam da escola um tipo de resposta específica: querem saber - de modo exato - o que devem fazer para resolver o que de algum modo se apresentou para eles como um problema na vida de seus filhos. Querem a solução. É preciso guardar lugar para o fato nada problemático de um pai desejar ajudar seu filho naquilo que entende que de algum modo faz, ou fará, sua criança sofrer.
Porém, o que fica entendido como representante do sintoma social, neste caso, se refere ao modo como esse desejo é veiculado no discurso paterno3, que alude, na grande maioria das vezes, à impossibilidade de sustentar qualquer tipo de reflexão, de pensamento, acerca da questão que envolve seu filho. Não há a possibilidade de se produzir na singularidade de cada encontro, um entendimento sobre o que aflige o filho ou a família como um todo. Há apenas o imperativo absoluto da demanda: "Diga-me, você que estudou os problemas das crianças, o que eu tenho de fazer para que meu filho não sofra (jamais)."
Porque essa articulação é entendida como representante do sintoma social?
A modernidade tem imposto questões importantes para a infância. É preciso que as crianças sejam cada vez mais rápidas: saber inglês e computação cada vez mais cedo, ter um bom repertório de habilidades esportivas, compreender o mundo adulto e falar coisas que os adultos dizem, do modo que os adultos dizem, são eventos absolutamente valorizados que supostamente revelariam a maior competência da criança. Ser o melhor da classe, do bairro e da família; é preciso que as crianças, em suma, estejam o mais cedo possível preparadas para enfrentar, e vencer, o mercado de trabalho.
Por outro lado há uma profusão de manuais que proliferam e dão receitas de como operacionalizar as intenções que temos em relação ao futuro das crianças, de como ser um bom pai, de como educar de modo eficaz os filhos e lidar com questões mais ou menos específicas relativas à infância. Manuais que tentam nos proteger das possíveis falhas que teríamos na relação com nossos filhos.
Alfredo Jerusalinsky(1998) define sintoma como "o artifício que o sujeito constrói para lidar com aquilo que ele não pode resolver" e prossegue dizendo que os sintomas sociais propõem novas modalizações para o gozo, o que quer dizer que propõem um modo específico para se desfrutar da vida e um tipo de relação possível com o saber. Se o sintoma constitui-se na borda entre o que sabemos e o que não sabemos e, em sua vertente imaginária, trata de recobrir o vazio imposto pelo que não sabemos, podemos começar a entender o que há de sintomático no modo com que esses pais procuram ajudar seus filhos4.
A pedagogia parece vir responder à angústia dos pais quando se deparam com o que não conseguem saber. Traz uma resposta: "o melhor é deixar as crianças livres" ou "é recomendável que os pais controlem o acesso que as crianças tem à televisão"; "a partir dos três anos uma criança deve fazer os primeiros desenhos figurativos" e tantas outras pérolas que parecem responder exatamente à demanda que os pais fazem a respeito do que fazer com seus filhos. Ao responder de modo positivado à pergunta ("faça isso porque a verdade para todos é aquela X"), tampona qualquer possibilidade de deslocamento pois se coloca como alternativa para o vazio que o não saber produz, parece querer frear, vejam só que a tarefa não é pouco pretenciosa, as produções do inconsciente. É como se produzisse o seguinte fenômeno no entendimento dos pais: "eu não sei como educar meus filhos da melhor maneira possível, sinto-me razoavelmente culpado por isso, mas obtenho autorização para desresponsabilizar-me pois entreguei a educação de meu filho a um lugar onde tem quem saiba o que deve ser feito. Não preciso me afligir, é só perguntar, (ou consultar um livrinho) para obter a reposta." É a terceirização da educação dos filhos: os pais culpados por não saberem o suficiente ou por não terem tempo (artigo de puro luxo em nossos dias), delegam a responsabilidade da educação de seus filhos à escola.
É com absoluto rigor que a psicanálise vem tratar dessa questão. Como formula Lajonquiere(1997), a psicanálise, ao questionar as práticas que tentam homogeneizar as produções subjetivas cumpre a tarefa de recentrar eticamente a lógica educativa. Para começar elucida-nos: por características intrínsecas à sua própria construção, quando respondida, a demanda apenas muda de lugar, mas continuará a se colocar, do mesmo modo impositivo, em outras articulações. Talvez o pai não queira mais saber como deve fazer para que seu filho não se atrase no processo de alfabetização, mas se dirigirá à escola para perguntar se há algum problema no fato de seus filhos - um menino e uma menina - dormirem no mesmo quarto. Ele, o pai, não pode mais decidir.
Mas porque os pais precisam com tanta veemência ter essas perguntas respondidas? Porque não lhes parece possível sustentar qualquer dúvida a respeito dos procedimentos que devem tomar em suas relações com seus filhos? Ou, dito de outro modo: o que se põe em jogo para o pai quando ele se depara com uma dúvida ou com a possibilidade de fracasso do filho?
Calligaris(1994), analisa que as relações dos adultos com as crianças mudaram de modo em que não mais as amamos por razões simbólicas. O registro que regula esse amor, atualmente, é o imaginário, e isso traz consequências sérias para a forma com que as relações se organizam. "Esperamos que gozem como nunca gozamos", formula o autor. Para que possamos ser felizes no mundo atual é preciso que nossos filhos sejam muito felizes, que não encontrem dificuldades e que jamais fracassem. Há certo espelhamento que impede o pai de se deparar com alguma dificuldade do filho sem que isso signifique um fracasso pessoal que pode ser, como diziamos acima, a constatação de que foi roubada sua possibilidade de ser feliz.
No exercício da função de orientador educacional uma pergunta deve ser formulada: o que pode ser feito com os pais, na escola, já que em momento algum pleiteia-se sua expulsão ou pretende-se simplesmente dizer: "virem-se, pois se a pedagogia não pode responder, não é mais da nossa alçada."
Lajonquiere(1997) faz uma distinção importante: Há diferenças imperativas entre os campos da educação e da pedagogia, eles não se recobrem e tampouco compartilham objetos.
A educação é um processo subjetivo e como tal, apesar de ter como objetivo produzir semelhantes, engendra, inequivocamente, o lugar da diferença. É que a inscrição de marcas de semelhança depedem de um processo de reconhecimento através do qual se põe em jogo a diferença. A educação se apresenta como possível: em seu campo não há a pretenção de esgotamento do saber, de uma única verdade científica, que mantém a criança como objeto até o final do processo. Há constituição de sujeito no ato de educar. Não há, pela via educativa, a possibilidade de se produzir o idêntico. Vale lembrar, com Melman(1994) que, se uma educação articula sempre a transmissão de um saber, devemos deixar claro para as nossas crianças que, apesar de nos dirigirmos a elas a partir de uma posição de ideal, nós mesmos não alcançamos esse ideal, não há quem alcance. O bem maior que podemos oferecer a uma criança, prossegue o autor, é o acesso à falta inscrita nos representantes do saber, da lei e da cultura. Sem falta colocada em jogo, não há como o sujeito se constituir como desejante.
A pedagogia, salienta Lajonquiere, compartilha objetivos com a ciência no sentido de pretender uma explicação totalizante a respeito do homem. O homem, nesse campo, é entendido como indivíduo, e, com o auxílio todo poderoso da psicologia, e em especial da psicologia do desenvolvimento, constrói parâmetros adaptativos que se baseiam exclusivamente nas capacidades maturacionais humanas. É nesse sentido que se entende que a pedagogia tenta homogeneizar o campo subjetivo ao esforçar-se por apagar as diferenças impostas pela singularidade psíquica.
Apresentada essa distinção é possível traçar um caminho que, no andamento do trabalho dentro da escola, foi batizado de "educação de pais". Talvez essa nomenclatura não seja absolutamente feliz, porém serve para que lembremos que o que devemos fazer com os pais dentro da escola não se situa no campo pedagógico. Eticamente orientados pela psicanálise não podemos nos propor a responder a demanda dos pais com frases de manuais que os mantém absolutamente alheios à educação de seus filhos pois estão desresponsabiliza-dos, já que quem sabe sobre crianças, e mais especificamente, quem sabe sobre o filho dele é a ciência pedagógica encarnada na figura de um orientador.
O trabalho a ser feito com pais dentro da instituição escolar é educacional, e parece que ganha-se muito ao convidarmos a psicanálise para orientar os atos engendrados neste campo. Há dois níveis diferentes de intervenção: o trabalho com os pais em grupo e os encontros individuais destes com a orientação.
Os pais são periodicamente reunidos em grupos para discutir questões consideradas pela escola como relevantes: temas relativos aos processos educativo ou mesmo estritamente pedagógico. É preciso que haja lugar para discutir o papel das regras e do limite na relação do pai com o filho, bem como as etapas do processo de alfabetização. Reserva-se ainda um espaço para que os pais possam solicitar à escola reuniões grupais sobre temas que desejem discutir. Todas essas reuniões são coordenadas pela orientação educacional ou pedagógica e têm como objetivo comum envolver o pai no processo educacional de seu filho no sentido de devolver-lhe a responsabilidade (roubada pela modernidade) das escolhas que faz para a vida de seu filho. Neste ponto não importa exatamente o que estamos discutindo, falar sobre a função da regra não é menos importante do que explicitar as etapas do processo de alfabetização. O que realmente é diferente é o modo como se faz isso dentro da escola.
Ao discutir questões mais diretamente ligadas ao campo pedagógico o orientador fala para clarear e deixar o pai saber sobre o que acontece na escola, como é o dia-a-dia de seu filho, como a escola que ele escolheu pensa na relação da criança com o conhecimento e como oportuniza o encontro desta com os objetos do conhecimento. Nestes encontros devemos ter a intenção clara de discutir o valor e o tipo de marca que a intervenção pedagógica que propomos faz na vida das crianças que atendemos. É impossível acreditar que não há diferenças realmente importantes marcadas no que a pedagogia chamou de métodos de ensino e aprendizagem, pois sabemos que os objetos do conhecimento podem ser apresentados de diferentes formas e que isso faz diferença no processo de constituição dessa tão delicada relação do homem com o mundo do conhecimento.
Nas reuniões em que discutimos aspectos educacionais a posição do orientador muda. Ele não fala para informar ou clarear o modo como pensa sobre cada um dos temas propostos, ele não pode ficar parado no lugar de quem sabe tudo sobre o que será produzido. Nesta situação, o orientador abre a reunião apresentando novamente o tema da convocação, eventualmente usa um ou outro dísparador (figuras, textos, artigos de jornal) e deixa espaço para que os pais falem. Não há nesta ocasião alguém que já saiba qual é a resposta certa ou que tenha a solução mais adequada para o que está sendo discutido. O orientador, na posição de quem coordena a reunião, lança mão de um dispositivo construído pela psicanálise: a escuta analítica, que apesar de presente nos mais diferentes encontros do psicanalista com a instituição educativa, opera aqui de modo especial pois privilegia situações que põem em jogo o deslocamento de significantes na cadeia discursiva. Vive-se o que há de mais radicalmente oposto à construção de uma verdade imperativa, ou de uma receita. É preciso deixar que o pai saia desse encontro com certo nível de angústia, que ele pergunte-se a respeito de sua prática educativa. A diversidade veiculada pelo encontro de diferentes famílias coloca nas reuniões a impossibilidade de que se construa uma síntese como única alternativa para a resposta de uma ou outra pergunta que eles possam se fazer. E é isso que nos interessa: construir junto a esses pais a possibilidade de sustentarem as escolhas que fazem em suas relações com os filhos, é preciso que eles experimentem responsabilizar-se e para tal, não resta dúvida, o pai precisa acreditar que ele pode saber, que não é só o especialista que sabe sobre o filho dele, que ele pode e deve tomar algumas decisões e que tais decisões estarão ligadas a sua história, tão singular, que não há como tentar fazê-la regra e tampouco tentar uma regra já construída para ela.
A já citada "educação de pais" se faz por meio de um processo educativo sustentado pela psicanálise: a escuta opera procurando deslocamentos. Não há, no trabalho em grupo, interpretações ou pontuações relativas a produções individuais. Não estamos discutindo um filho ou uma família específica, encontamo-nos para fazer determinada questão circular, não ficar cristalizada e presa num saber todo poderoso que desarticula o discurso paterno na medida que o torna impotente.
As entrevistas individuais podem ser solicitadas pela família ou pela escola, e neste caso trata-se de uma questão particular que a criança apresenta. Não podemos nos esquecer que, como marcou Jerusalinsky(1998), o sintoma individual alimenta-se do discurso social para se montar, e isso quer dizer que tudo o que foi apresentando e discutindo a respeito do sintoma social reincide aqui, reinventado pelas histórias individuais e das mais diversas formas possíveis.
A pergunta crucial sobre essa modalidade de atendimento é: o que o analista faz com o que escuta sentado na cadeira de orientador dentro de uma instituição escolar?
Para começar a responder a questão retornemos às reflexões feitas acerca do trabalho em grupo para apontar um ponto comum entre os dois tipos de intervenção: ao psicanalista, assim como na prática clínica convencional, cabe escutar o que os pais das crianças dizem, mas a ele, na situação escolar, não está autorizada a interpretação direta do fantasma daquele que fala. O trabalho com pais na instituição, como claramente pontua Martins de Oliveira (1996)5, se dá exclusivamente no nível da cadeia significante, e não no intervalo entre estes. Isso quer dizer que, apesar da transferência com a instituição se apresentar a cada pedido de ajuda, os pais não fazem demandas para o saber inconsciente, e assim, não estamos autorizados a proferir interpretações que os remetam à sua fantasmática e que caracterizariam operações exclusivas da clínica psicanalítica convencional.
O profissional que escuta os pais dentro da escola pode, por meio da escuta analítica, sair da posição de quem orienta, de quem sabe o que o pai deve fazer para salvar o filho do drama ali localizado. Ele pode construir uma pergunta junto com esse pai, e procurar sua resposta na cadeia significante que se põe em jogo no ato em que o pai começa a falar sobre o que o tem afligido, ou sobre ao que atribui tal manifestação sintomática do filho.
A mãe de uma criança de 5 anos procurava a instituição, muito aflita, para dizer que seu filho estava com medo de entrar sozinho na escola e saber o que deveria fazer para que o garoto não ficasse angustiado. Perguntei a ela se teria alguma idéia do que se passava com a criança. Em sua interpretação, o comportamento do menino tinha começado a ocorrer desde o dia em que ela havia pego um trânsito muito intenso e atrasado cerca de uma hora para buscar o filho na escola. Vale dizer que ela chegou ainda dentro do horário de funcionamento da instituição, que tem um projeto específico que permite aos pais retirarem os filhos em até 2 horas após o encerramento das atividades letivas. Lembrei-lhe esse fato, e então a mãe pode falar sobre o quanto teve medo, em sua infância, de ser esquecida por sua mãe, de ficar sozinha. "Sozinha" passou a ser o significante que conduziu toda a nossa conversa. Ela falou do seu medo de ficar sozinha, do quanto efetivamente se considerava uma criança solitária, e enfim, da exigência impressa em sua relação com o filho: "Você jamais ficará sozinho". Evidentemente, qualquer tentativa de interpretação remeteria à fantasmática materna, e como já foi discutido, na posição de orientador educacional não há autorização ética para tal. Porém, nessas circunstâncias já havia sido escutado que este menino estava respondendo com o medo de entrar na escola à idéia dessa mãe de que ela não poderia jamais abandoná-lo e que, talvez, deixá-lo na escola, sem ela, pudesse assumir esse caráter. O que fazer?
A mãe, apesar de se disponibilizar a falar de si e de seu filho para o orientador da escola não estava fazendo demanda alguma de saber inconsciente.
Ela queria simplesmente saber como fazer para o seu filho não ter medo, não sofrer. Enfim, seria muito pouco interessante apenas olhar para essa mulher e dizer: "O que a senhora deve fazer é análise." Além disso, havia uma criança chorando todos os dias para entrar na escola.
Entendi que seria preciso fortalecer a relação de confiança dessa mulher com a escola para que deslocamentos fossem possíveis (vale dizer que ela pode ver o pátio da escola da janela de seu apartamento), o que de outro modo quer dizer que seria necessário que ela pudesse confiar na escolha que fez no ato da matrícula de seu filho na escola e que pudesse abrir um espaço para saber que, apesar de longe dela, ele não ficava sozinho. A professora passou a vir buscar o menino todos os dias, e como ele entrava sem chorar, foi possível falar com a mãe sobre os vínculos do garoto com a escola. Em menos de três semanas essa criança voltou a entrar na escola prescindindo da intervenção montada e a mãe pôde concluir: "Eu tenho que me sentir segura para que ele fique mais forte."
Este fragmento do trabalho institucional dá conta de ilustrar claramente a presença da escuta analítica e o limite ético que impede a interpretação do fantasma dos pais. Ao situar o trabalho na cadeia significante, a escuta permite que sejam localizados os significantes aos quais cada família é sensível para que a partir desses montemos nossas intervenções. Vale ainda dizer que a intervenção pode ser também uma conversa com os pais, e nesse encontro, apenas pelo fato do pai falar sobre a questão e ter algumas de suas dúvidas respondidas, há um deslocamento no sentido de fazer com que alguns nós que poderiam estar alimentando a construção sintomática sejam desfeitos.
Há ainda um outro tipo de atendimento aos pais que a escola pode lançar mão e que é absolutamente diferente do que foi apresentado até aqui. O orientador pode, em ocasiões absolutamente precisas, mudar de posição e vestir-se do saber que a ele é atribuído. Essa manobra é validada pela explicitação da necessidade de uma interdição formal.
Certa vez, a mãe de um menino de 5 anos procurou a orientação, para, em suas palavras: "tirar uma dúvida. Bem rápido." Ela queria saber se deveria ou não deixar o filho mexer em seus seios, roçar-se em suas pernas até atingir a ereção e dar beijos em sua boca. Quando essa mulher se interroga sobre o comportamento de seu filho em relação ao seu corpo deixa aparecer que essas cenas, muito possivelmente, se desenrolam temperadas por sua dúvida e, neste caso, basta que o representante do saber se coloque do lado da lei e diga: "Não, não pode." para que ela se levante e responda: "Muito obrigada, era só isso que eu precisava escutar." Poucos dias depois ela retoma o tema da conversa para contar que tinha tirado bom proveito do encontro anterior, pois tinha medo era de traumatizar o filho se dissesse "não", mas já que soube que deveria fazer isso, fez sem culpa e notou que a exitação do menino na relação com diferentes coisas do mundo tinha diminuído, parecia que o furacão tinha acalmado.
Porém, há situações em que nada disso opera: o deslocamento produzido pelo trabalho na cadeia significante a partir de intervenções em grupos ou individuais não é suficiente para dar conta da questão, e as possíveis interdições não tem efeito. Nesse caso a intervenção institucional chegou ao seu limite. Não há o que, respeitando a ética que orienta esta prática, possa ser feito.
Nestas ocasiões, o orientador faz um encaminhamento para fora da instituição, o que quer dizer que ele sublinha junto aos pais que entende ser necessário que a questão em jogo seja tratada de outro modo e tenta, sem êxito garantido, construir junto aos pais alguma demanda para o saber inconsciente pois só assim terá garantia de que o encaminhamento feito tome o rumo desejado, ou seja, que os pais procurem esse outro profissional. Há também a possibilidade que seja formulado um pedido de análise por parte dos pais ou, muito mais raramente, pela própria criança. Nestes casos, obviamente, o encaminhamento também é feito.
Parece porém, que há muitas coisas em jogo quando decidimos mandar uma criança ou uma família para uma análise. Há um cuidado especial para ser tomado e, que se levado a sério, reduz muito a necessidade de procedermos encaminhando pessoas à análise: não podemos comprar a idéia de produzir crianças-ideais em série. Não podemos jamais esquecer que trabalhamos com estes pequenos seres num tempo cronológico de suas vidas que coincide com o tempo lógico da constituição do sujeito e, nesse sentido, sendo a educação um espaço possível para que esse processo se dê, há muito a ser feito antes que a análise seja imperativa.
É preciso todo um cuidado para que não sejamos engolidos no exercício da função profissional pelo discurso moderno regulado pela ciência que pleiteia a possibilidade de construção de um padrão de verdade que não deixa espaço para a diferença, para a falha, para o não saber.
João tinha 4 anos quando se pôs a segurar um fio sem que pudesse soltá-lo, fazia-se acompanhar do fio em todos os espaços da escola. (Esse fio podia ser um pedaço de barbante, um fiapo de tecido, ou qualquer outro objeto mais ou menos parecido com isso). Tentamos os mais diferentes recursos oriundos do mundo pedagógico: fizemos uma caixa para as coisas trazidas de casa, tentamos acordos verbais, apresentamos regras institucionais tais como: "na hora de desenhar não dá pra ficar com o fio na mão porque atrapalha". Jõao não conseguia ficar longe do fio e quando questionado a respeito do sentido desse objeto respondia: "eu não vou contar o que é." Optamos por chamar os pais para saber se isso também estava acontecendo em casa e escutar um pouco a família já que se somava a esse evento o fato do menino, há mais de um ano na escola, só desenhar figuras femininas e quando questionado a respeito de sua produção tratava de esconder em suas palavras o óbvio explicitado no desenho. "Conta sobre o que você fez" (estávamos diante do desenho de uma mulher). "Eu desenhei uma casa. Aqui (olhos) é a janela, aqui a porta (nariz)..." e assim seguia sua fala. "Nossa, mas eu poderia jurar que é uma mulher." "Mas não é", respondia ele.
Ao ser questionada a respeito do sentido que poderia atribuir ao famoso fio, a mãe responde: "Eu acho que é uma saia de mulher." Diante da interrogação a cerca da construção que faz, conta-. Quando estava grávida queria muito que o bebê fosse uma menina, e, ao saber que esperava um menino, tomou uma atitude drástica. Escondeu em uma mala debaixo de sua cama sua coleção de bonecas e todo o arsenal de coisas que possuía como fã da Xuxa. Tomou essa atitude pois temia que o filho homem, em contato com esses objetos, "ficasse bicha". Porém, muito espantada, ao longo dos quatro anos de vida do filho foi constatando que ele, mesmo longe de sua mala de segredos, tornara-se absolutamente fã da Xuxa e desde que começou a falar não perdia oportunidades para pedir que a mãe o presenteasse com bonecas.
A mãe parecia contar essa história como quem narra um filme, tamanha a desconexão que podia operar entre o que acontecia com o filho e suas atitudes de preparação relativas ao lugar em que o esperou.
Num segundo encontro com a mãe foi feito um encaminhamento. Ela procurou a analista recomendada para tentar "fazer o Jõao falar sobre seus segredos" e parou de falar comigo. Passou a evitar encontros, comprimentos, e todo tipo de contato possível. Quando soubemos que havia, em menos de um mês, interrompido o trabalho com a analista foi chamada para uma conversa na escola. Tive a oportunidade de esperá-la em cinco entrevistas desmarcadas poucos minutos antes do que deveria ser o início do encontro.
Ficou claro que essa mulher não queria mais falar, as aulas continuaram, João não mais andava balançando seu fio (desde a primeira conversa com a mãe) mas outras coisas aconteciam: ela mandava bilhetes mal educados para a professora, ameaçando tirar o menino da escola caso não seguissemos suas determinações acerca do número de malhas de lã que ele deveria usar em dias que considerava frios ou sobre a quantidade de lanche que o menino deveria ingerir, e o menino, por sua vez, dizia para os colegas que queria ser mulher e que iria cortar o pinto, entre outros eventos. Como já estava claro que essa mãe não falaria mais com o orientador educacional, a condução do caso foi delegada à direção da escola. Quem conversaria com a mãe seria a diretora, e o orientador interveria apenas nos "bastidores". Após algumas entrevistas com a diretora em que foram postos limites institucionais para os desmandos dessa mãe em relação ao corpo do filho, as conversas a respeito da sexualidade do garoto voltaram.
Neste momento nós já sabíamos que não havia o que fazer dentro do grupo de crianças: o garoto pleiteava um lugar de quem "vai virar mulher" e bancava sua escolha diante dos colegas. Esses, com certo estranhamento, acabavam por deixá-lo ocupar esse lugar. A mãe, apesar do nível de explicitação da questão, tratava tudo de modo a não ter que se deparar com um problema e fazia muitas manobras para não ter que falar sobre o assunto. E nós, na escola, nos peguntávamos a respeito da posição desse menino: teria uma questão de estrutura em jogo ou tratava-se de uma escolha homossexual?
Estava abolutamente claro que o que víamos se desdobrar era afastado pela mãe de seu campo de visão, e mais ainda, a escola não era o espaço adequado para tratar da questão. Mas como fazer outro encaminhamento que não tivesse o mesmo destino do primeiro?
Optou-se pela explicitação da questão: apresentar à mãe a dúvida a respeito da posição de seu filho e recomendar a análise. Este trabalho foi conduzido pela diretora da escola, com quem, atualmente, a mãe do garoto não fala mais, do mesmo modo que procedeu com a orientadora. A diferença é que, recentemente, a família iniciou a análise recomendada pela escola. Demoramos 1 ano para conseguir dar um encaminhamento para o caso, e mais do que isso, o encaminhamento se mostrou eficaz na medida em que a escola reconheceu que não tinha recursos para tratar da questão, que ela mesma se deparava com a possibilidade de não poder fazer tudo, de não saber tudo. Junto com o garoto, encaminhamos para a analista que o recebeu uma dúvida, algo que nós, especialistas, também não sabíamos responder.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CALLIGARIS, C. (1994) "Três conselhos para a educação de crianças". In: Associação Psicanalítica de Porto Alegre(org.) Educa-se uma criança? Porto Alegre: Artes e Ofícios, p. 25-30. [ Links ]
JERUSALINSKY, A. (1998) "O sujeito infantil e a infância do sujeito". Estilos da Clínica- revista sobre a infância com problemas, anoIII, nº4, p146-159. [ Links ]
de LAJONQUIERE, L. (1997) "A escolarização de crianças com DGD". Estilos da Clínica- Revista sobre a infância com problemas, anoII, nº3, pl 116-129. [ Links ]
MARTINS de Oliveira, L. G.(1996) "A transfência no trabalho com pais na instituição". Estilos da Clínica- revista sobre a infância com problemas, anoI, nº1, p.34-45. [ Links ]
MELMAN, C.Q994) "Sobre a educação das crianças". In: Associação Psicanalítica de Porto Alegre(org.) Educa-se uma criança? Porto Alegre: Artes e Ofícios, p.31-40. [ Links ]
NOTAS
1 Texto organizado para aula ministrada no curso da professora Isabel Kanh Marin-Núcleo de Família, 5ºano da faculdade de psicologia da PUC/SP, em 21/09/98
2 Este trabalho foi desenvolvido em uma escola regular de educação infantil que atende a crianças de 0 a 7 anos de idade.
3 Ao longo do texto uso "pai" e paterno" para referir-me a movimentos do casal parental, não importando, neste momento, distinguir as figuras do pai e da mãe.
4 Neste mesmo artigo Jerusalinsky nos lembra que "o sintoma individual se alimenta do imaginário social e é ali e a partir disso que faz sua invenção."
5 Neste artigo a autora discute especificamente o trabalho com grupos de pais em uma instituição que atende a crianças autistas e psicóticas. Creio porém, que as conclusões a que chega a respeito do trabalho com pais no âmbito institucional possam ser utilizadas em outras práticas, como por exemplo nesta a que este texto se refere.