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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.8 n.14 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre inibição e sintoma: Distinções e articulações para destacar um conceito do outro

 

Considerations on inhibition and symptoms: Distinctions and relationships in order to recognize the diferences between the two concepts

 

 

Marciela Henckel *;Manoel Tosta Berlinck **

 

*Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro pesquisador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP.

*Sociólogo, psicanalista, Ph.D. pela Universidade Cornell (EUA), professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental desta universidade.

 

 


RESUMO

Já dizia Freud que existem casos apresentando somente inibições, e não sintomas. Na nossa experiência clínica com crianças apresentando graves manifestações psicopatológicas, não poucas vezes nos perguntamos se pudemos considerar como sintomas certas manifestações. Pretendemos com este artigo discutir distinções e articulações entre ambas as noções. Destacar um conceito do outro, para além de objetivar a busca por um rigor teórico, contribui para repensar diferentes manifestações psicopatológicas na clínica. Com isso, pretendemos manter uma posição necessariamente cautelosa com relação ao diagnóstico diante de uma criança em constituição.

Palavras Chave: Inibição, Sintoma, Educação, Criança.

 


ABSTRACT

Freud said that some cases show inhibitions, but no symptoms. In clinical experience with children having serious psychopathological manifestations, we often ask ourselves if certain manifestations can be described as symptoms. This article discusses the distinctions and articulations between the two concepts. This distinction, besides seeking theoretical precision, may serve as a contribution to a reconsideration of the various psychopathological expressions seen in the clinic. With this in mind, the authors argue for maintaining a necessarily cautious position on when diagnosing children in constitution.

Keywords: Inhibition, Symptom, Education, Child.

 


 

INTRODUÇÃO

Apresentar um texto comentando inibição e sintoma revela controvérsias, principalmente quando se objetiva compreender a distinção entre um conceito e outro. Não poucas vezes, deparamos com a interrogação sobre o sentido de distinguir inibição de sintoma: mas inibição não é um sintoma?, peguntam alguns. O "não" aqui talvez já denuncie algo.

Para fazer uma distinção, é necessário explicitar se estamos falando a partir de um campo fenomenológico, quer dizer, das manifestações psicopatológicas, ou se estamos falando a partir dos mecanismos psíquicos envolvidos na inibição e no sintoma. Do lugar em que nos posicionamos podemos perceber, por vezes, importantes articulações entre um e outro dos conceitos e, por outras, distinções necessitando ser sublinhadas. Dessa maneira, com uma certa lógica de oposição, é possível encontrar um caminho para dar destaque à inibição, especialmente quando, na clínica com crianças, observam-se graves manifestações psicopatológicas, ocorrendo, ao mesmo tempo, uma construção subjetiva. Nesses casos, surge a seguinte questão: inibições ou sintomas?

INIBIÇÃO E SINTOMA: ALGUMAS DISTINÇÕES

Do ponto de vista das manifestações psicopatológicas, daquilo que é da ordem do observável, do fenômeno, nas neuroses, por exemplo, pode-se encontrar o sintoma expresso por uma fobia, um ritual obsessivo, uma conversão histérica. A inibição na fobia manifesta-se quando o sujeito não consegue sair de casa, uma inibição no trabalho apresenta-se diante de uma neurose obsessiva perturbando sua realização em função de distração ou perda de tempo com demoras e repetições, um impedimento (inibição) de prosseguir uma atividade apresenta-se quando ocorre uma conversão histérica, e assim por diante. Levando-se em consideração os mecanismos psíquicos em jogo nessas manifestações, pode-se especificar melhor cada uma das situações. A inibição e o sintoma estão intrinsecamente relacionados nas neuroses, não implicando isso que a primeira fique subsumida no segundo quando cada qual ganha um estatuto particular.

Freud, em Inibição, sintoma e angústia, aborda a formação do sintoma e o define como:

"Um indício e um substituto de uma satisfação pulsional não consolidada; um resultado do processo de recalcamento. O recalcamento parte do Eu, que, eventualmente por encargo do Supereu, não quer tomar parte em um investimento pulsional incitado pelo Isso. Por meio do recalcamento, o Eu consegue que a representação [Vorstellung], que era a portadora da moção [Re- gung] desagradável, seja mantida afastada do devir-consciente [Bewusstwerden]. A análise comprova com freqüência que a representação se manteve como formação inconsciente" (Freud, 1926 [1925], p. 5).

O recalque seria, então, o processo psíquico por excelência da formação do sintoma. Um processo de defesa do Eu contra uma moção pulsional atestando, por um lado, o poder de influência do Eu sobre o acesso da representação à consciência; por outro lado, justamente pela formação do sintoma como substituição, ou seja, pelo seu resultado, apontando para um enfraquecimento, uma debilidade do Eu. O Eu sempre se enfraquece no recalcamento, ou seja, quando entra num conflito, num jogo de forças - ele inibe e lesiona parte do Isso, mas também lhe dá uma porção de independência, abdicando de sua soberania. Além disso, "o processo que se tornou sintoma por obra do recalcamento afirma agora sua existência fora da organização do eu e independente dela..." (Freud, 1926 [1925], p. 11).

A partir da definição dada por Freud à inibição, observa-se, ao contrário do ocorrido no sintoma, uma debilidade no Eu, que não implica um trabalho de resolução dos conflitos como no sintoma. Diz Freud:

"A inibição é a expressão de uma limitação funcional do eu [Funktionseinschränkung des Ichs] que, por sua vez, pode ter causas muito diversas. Diversos mecanismos desta renúncia [Verzicht] à função nos são muito conhecidos..." (Freud, 1926 [1925], p. 3).

Na inibição, de saída, há um Eu enfraquecido, pois a renúncia realizada requer dele a força da ação inibidora. O Eu, então, não se aventura a entrar em conflito com as demais instâncias, a fim de encontrar uma solução, uma formação de compromisso. A renúncia se põe como a defesa possível, por excelência, promovedora da inibição, dispensando o trabalho de um (novo) recalcamento. A partir deste Verzicht, desta renúncia, o Eu evita entrar em conflito com o isso ou com o supereu, e a inibição se dá no âmbito do Eu.

Freud relaciona essa limitação funcional do Eu com um aspecto sexual, ao exemplificar uma série de inibições em diferentes perturbações neuróticas: "...a função do Eu de um órgão é danificada quando aumenta a sua erogeneidade, sua significação sexual" (1926 [1925], p. 3). Quando um ato de escrever, por exemplo, assume um significado simbólico de coito, algo da ordem de uma ação sexual fica proibido. O Eu faz uma renúncia, a fim de não precisar empreender um novo recalcamento e a fim de evitar um conflito com o Isso.

Outras vezes ocorrem inibições do tipo autopunitivas ligadas freqüentemente a atividades profissionais. Muitas vezes, também, aparecem ligadas às atividades escolares. O Eu não deve fazer determinadas coisas proporcionando proveito e êxito, pois um severo supereu não permite. Então, "o Eu desiste dessas atividades a fim de não entrar em conflito com o Supereu" (Freud, 1926 [1925], p. 4).

A inibição ocorre, então, como uma medida de precaução utilizando-se de diversos procedimentos para perturbar uma função. Escreve Freud: "O afastamento da libido; a piora no exercício da função; a dificuldade mediante condições particulares e a modificação da função através do desvio para outros alvos; a prevenção mediante medidas de segurança; a interrupção mediante o desenvolvimento de angústia; uma reação de protesto, que tenta desfazer o acontecimento, ainda que a função tenha sido executada" (1926 [1925], p. 2).

Assim, a partir de distinções e articulações entre inibição e sintoma, no que diz respeito às distinções, nota-se um determinado trabalho psíquico no sintoma - de deslocamento, formação de compromisso -, o qual, na inibição, está impedido ou congelado, quando justamente sua ação leva a uma renúncia desse trabalho. Aliás, a definição mais geral de inibição dada por Kaufmann (1996), relacionando-a a "todo entrave imposto ao desenrolar de um processo no estado nascente", vem ao encontro dessas observações.

INIBIÇÕES E SINTOMAS: ALGUMAS ARTICULAÇÕES ENCONTRADAS NA NEUROSE

Após as importantes distinções entre sintoma e inibição, podem-se, agora, retomar as relações entre si, pois num sujeito não raro se encontram simultaneamente inibições e sintomas. Assim, quando Freud vai se ocupar de casos singulares de neuroses para aprofundar a compreensão relativa ao Eu e suas lutas defensivas, ao sintoma e ao problema da angústia observada por ele à espreita como pano de fundo de todo esse tema que vem abordando, recomenda, ele mesmo, iniciar pela neurose histérica. O primeiro caso apresentado é o de uma zoofobia histérica infantil no pequeno Hans.

O tratamento do pequeno Hans é dirigido por Freud, por intermédio do pai do menino que, em transferência para com o "Caro Professor" - como ele escreve nas cartas -, dispõe-se a observar a vida sexual de seu filho e enviar o material obtido, com o intuito inicial de confirmar as teorias freudianas sobre a sexualidade infantil. Algum tempo depois, no entanto, lamenta o pai, o material enviado transforma-se em material para um caso clínico:

"Como o senhor verá, nesses últimos dias ele vem apresentando um distúrbio nervoso que nos tem preocupado muito, a mim e a minha esposa...

Sem dúvida, o terreno foi preparado por uma superexcitação sexual devida à ternura da mãe de Hans; mas não sou capaz de especificar a causa real da excitação. Ele receia que um cavalo vá mordê-lo na rua...

(...) Com exceção do fato de estar receoso de sair à rua e de ficar com desânimo à noite, ele de resto é o mesmo Hans, tão alegre e animado como sempre foi" (Freud, 1909, p. 33).

Evitando uma discussão pormenorizada do caso, das implicações das observações do pai sobre o menino, dos efeitos de aplicação do método psicanalítico à criança e da concepção disto na época, voltemos nosso olhar para a manifestação tanto da inibição como do sintoma. Ao trabalhar essas relações, associadas à angústia, no seu texto Inibição, sintoma e angústia, Freud observa inicialmente a situação psíquica do pequeno Hans, a qual se caracteriza, segundo ele, pelo fato de o menino encontrar-se numa atitude edípica de amor e ódio (ciúmes) em relação ao pai, este último sentimento manifestado enquanto sua mãe amada é posta em questão. Freud observa um conflito de ambivalência em relação à mesma pessoa, ou seja, o pai, e supõe que a fobia do menino seja uma tentativa de solucionar tal conflito. Eis o sintoma? A angústia indefinida, pergunta Freud, diante do cavalo?

Antes de responder a isso, adverte que o conhecimento superficial do caso não nos ensina nem sequer a expressão do suposto como sintoma. Este implica transformações da moção pulsional, recalcamento e substituições, podendo-se deduzir que mais uma vez Freud nos indica uma trabalhosa elaboração psíquica presente na formação do sintoma, diferentemente do afirmado para a inibição. Esta, aliás, é logo deixada de lado na discussão quando conclui: "A incapacidade de sair às ruas é uma manifestação de inibição, uma limitação que o eu se impõe para não despertar... angústia" (Freud, 1926 [1925], p. 15).

O fato de o pequeno Hans estar apaixonado pela mãe e, então, demonstrar angústia diante do pai não é, observa Freud, suficiente para considerar esta última como sintoma. "Não podemos designar a angústia dessa fobia como sintoma", diz ele, concluindo que o que torna a fobia uma neurose é "a substituição do pai pelo cavalo. Este deslocamento produz, portanto, algo justificando o nome de sintoma" (Freud, 1926 [1925], p. 17).

Antes de concluir o caso, no entanto, Freud problematiza algumas de suas concepções, a partir de interrogações formuladas pelas observações do pequeno Hans; pergunta-se por que Hans não desenvolve simplesmente uma tendência de maltratar os cavalos, ao substituir o pai pelo animal? Por que Hans desenvolve angústias diante do cavalo, e não hostilidade? Se assim o fosse, responde Freud, o caráter agressivo da moção pulsional não teria sido modificado pelo recalcamento, tendo apenas mudado seu objeto. Em certos casos ocorre somente isso, mas no caso de Hans é preciso lembrar o conteúdo da sua fobia: a representação de ser mordido por um cavalo. Ocorre aqui uma transformação promovida pelo recalcamento de um caráter ativo da moção pulsional hostil para um caráter passivo. O recalcamento não atua somente sobre o objeto. E conclui:

"A representação [Vorstellung] de ser devorado pelo pai é um típico patrimônio infantil arcaico (...) A experiência analítica (...) nos ensina que a representação de ser devorado pelo pai é a expressão regressivamente rebaixada de uma moção afetuosa de caráter passivo, consistindo em desejar ser amado como objeto pelo pai, no sentido do erotismo genital" (Freud, 1926 [1925], p. 19).

O recalcamento recebe auxílio da regressão como meio de defesa do Eu diante de uma moção pulsional desagradável.

Freud alcança, então, alguns pontos de vista: a moção hostil em relação ao pai é recalcada por meio de um processo de transformação no contrário; ao mesmo tempo, a moção passiva afetuosa diante do pai, num nível de organização libidinal genital, também sucumbe ao recalcamento - onde se supõe somente um recalcamento pulsional, ocorrem na verdade dois. Ambas as moções pulsionais afetadas formam um par antitético. Finalmente, o investimento afetuoso de Hans para com sua mãe também é recalcado em função da fobia, não deixando esse amor transparecer. Em lugar de um único recalcamento, Freud observa um acúmulo deles. Por meio da fobia, Hans despacha os principais elementos do complexo de Édipo: o ódio contra o pai e o superafeto para com a mãe.

A fim de enriquecer suas observações referentes às neuroses da infância1, mais especificamente às zoofobias infantis, Freud realiza um breve estudo comparativo entre o caso do pequeno Hans e do Homem dos Lobos. No caso do Homem dos Lobos, analisado somente em sua terceira década de vida, angustiado com a idéia de ser devorado por um lobo, o problema parte de outro lugar:

"Sua relação com o objeto feminino foi perturbada precocemente por uma sedução, o lado passivo, feminino, constitui-se nele de forma intensa, e a análise de seu sonho dos lobos desvela pouco sobre agressões intencionais contra o pai; ... o recalcamento atinge a atitude passiva, afetuosa diante do pai" (Freud, 1926 [1925], p. 21).

Apesar das diferenças entre os casos, o motor do recalcamento em ambos é o mesmo: Hans, em função da angústia de castração, desiste da agressão contra o pai; o Homem dos Lobos desiste do desejo de ser amado como objeto sexual pelo pai, devido ao mesmo fator, pois um relacionamento de tal ordem pressupõe o sacrifício dos genitais masculinos, que o diferenciam da mulher. Os conteúdos angustiantes - ser mordido pelo cavalo e ser devorado pelo lobo - substituem a idéia de "ser castrado pelo pai".

"A angústia da fobia de animais é a angústia de castração imutada, portanto, uma angústia real [Realangst], angústia diante de um perigo realmente ameaçador, ou julgado real. Aqui a angústia faz o recalcamento, e não, como eu supus anteriormente, o recalcamento faz a angústia" (Freud, 1926 [1925], p. 22).

INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGÚSTIA

Inibição e sintoma articulam-se, então, como a angústia. Trata-se de uma intrínseca relação apontada por Freud nesses casos de fobia. Segundo ele, o reconhecimento do perigo da castração, pelo sinal da angústia dado pelo Eu, inibe [inhibiert], por meio da instância prazer-desprazer, o processo de investimento ameaçador no Isso. A angústia de castração recebe um outro objeto e uma expressão distorcida (ou seja, ocorre uma formação substitutiva denominada sintoma). Ao mesmo tempo, é justamente essa formação substitutiva do perigo de castração que possibilita o controle sobre o perigo, quando permite evitar ou suspender o desenvolvimento da angústia (denominada inibição). O pequeno Hans, ao substituir o temido pai pelo cavalo, controla sua angústia, evitando a visão do cavalo, evitando sua presença, livrando-o, assim, do perigo da ameaça de castração. Por isso, Freud vai dizer que, na fobia, a angústia é facultativa - ela só surge quando seu objeto torna-se tema da percepção. "O pequeno Hans impõe, portanto, uma limitação ao seu eu, ele produz a inibição de sair para não se encontrar com cavalos" (Freud, 1926 [1925], p. 40).

Diante de um Eu capaz de subtrair-se da angústia, Freud vai considerar esse fato como um sintoma de inibição [Hemmungssymptom]. Eis a inibição como sintoma, quando sua manifestação ocorre como na formação do sintoma, resultando em uma defesa contra a situação de perigo, ou, dito de outro modo, em uma medida encobridora da angústia. Isso, porém, cria um impasse, quando o objetivo deste trabalho é sublinhar a inibição a partir de uma relação de distinção do sintoma. Cabe, então, perguntar: quando Freud aproxima dessa maneira inibição e sintoma, relacionando-os à angústia, faz isso apenas pelos seus resultados? Sua consideração abrange parte dos mecanismos psíquicos envolvidos, quando concebe a formação do sintoma pelo processo de recalcamento, que tem dois lados:

um permanecendo, porque fica afastado da consciência; outro revelando-se por meio da formação substituta (Freud, 1926 [1925], p. 57). Neste sentido, todo sintoma tem, contido nele, uma inibição efetuada pelo processo de recalcamento sobre a moção pulsional emergindo como ameaçadora - esta, tendendo à satisfação, é mantida distante da descarga por meio da motilidade, ou seja, o Eu, além de dominar seu acesso à consciência, impede sua passagem para a ação diante do mundo exterior. Isso, no entanto, diz respeito a apenas um lado do processo.

Em Inibição: Lugar de uma pergunta Albuquerque Lopes realiza uma leitura do texto de Freud de 1926 e aí aponta para a idéia de que, no caso da inibição processada como possibilidade de barrar a emergência do perigo, não se trata, de modo algum, de defesa contra a angústia. Trata-se "de proteção e anteparo ao que a angústia denuncia. Uma dialética presente desde os primeiros escritos de Freud" (Lopes, 1999, p. 84).

Mas, então, o que a angústia denuncia? Qual o perigo sinalizado por ela, além da ameaça de castração? Para Berlinck (2000), a angústia é o sinal de uma discrepância. A partir de uma falta de harmonia entre o animal humano e o ambiente2, que revela uma relativa independência daquele em relação a este, emerge uma sexualidade especificamente humana, regida pelo princípio do prazer, que "(...) é errante, desejante, e, por isso, discrepante do ambiente, sendo, também, incomodamente livre" (Berlinck, 2000, p. 234). O humano torna-se um ser angustiado diante dessa discrepância, manifestando o mais primitivo afeto psíquico. Assim, a angústia "(...) não dispensa o psiquismo, ainda que se inscreva no corpo, revelando, assim, a natureza corporal do psiquismo" (p. 235). Ela se dá no âmbito do aparelho psíquico.

"Resultado de um acúmulo de excitação ou tensão física sexual, não podendo ser devidamente descarregada, ou ab-reagida - não por falta do aparelho psíquico, âmbito no qual a excitação sexual pode se ligar, graças ao trabalho de Eros, a representantes pulsionais, que lhe dão uma significação psíquica, e que a transformam num verdadeiro afeto -, a angústia pode ser pura descarga de excitação sexual acumulada, já que é testemunha da liberdade humana" (Rocha, citado em Berlinck, 2000, p. 235).

Ligação, trabalho de Eros, significação psíquica, eis a elaboração psíquica, a qual requer uma série de mecanismos de defesa, capazes de formar um sintoma ou de, por exemplo, configurar um distúrbio neurótico. Incluímos a inibição aqui também?

Ao considerar a inibição como proteção e anteparo contra o denunciado pela angústia, como possibilidade de barrar a emergência do perigo, estamos diante de uma, entre tantas, defesas do aparelho psíquico. Que espécie de defesa é essa? Que espécie de significação psíquica pode ser elaborada, a partir de um mecanismo levando ao impedimento, ao entrave do desenrolar de um processo de elaboração de um conflito? Quando a inibição produz no eu uma evitação de entrar em conflito com as demais instâncias psíquicas, retomamos o considerado inicialmente com relação ao trabalho psíquico envolvido na inibição e no sintoma, quando foi dito ser possível observar um trabalho psíquico no sintoma, o qual, na inibição, apresenta-se impedido.

IN-CONCLUSÕES

Retornemos agora à afirmação freudiana sobre a existência de casos de doença que apresentam somente inibições, e não sintomas. Ao que Freud estaria se referindo aqui? Não encontramos a resposta em seu texto. Neste, encontramos apenas indicações para pensarmos algumas de suas condições, diferentes para o caso da formação dos sintomas, como tentamos mostrar até aqui.

Em nossa experiência clínica com crianças apresentando graves manifestações psicopatológicas, não poucas vezes nos perguntamos se podemos considerar como sintomas certas manifestações. Formulamo-nos esta pergunta devido à complexidade do processo psíquico envolvida na formação do sintoma, exigindo do Eu uma operação em sua defesa, somente possível por este ter se tornado uma organização que entra numa luta defensiva, diante do conflito com outras instâncias. Esta organização, por sua vez, indica a natureza do Eu diante de um conflito, quando, então, se empenha em fazer uma tentativa de restauração e reconciliação.

"O eu é uma organização, baseia-se no livre intercâmbio e na possibilidade de influência recíproca entre todos os seus componentes; sua energia dessexualizada revela ainda a sua origem em sua aspiração à ligação e à unificação, e esta compulsão à síntese cresce tanto mais, quanto mais fortemente o eu se desenvolve" (Freud, 1926 [1925], p. 12).

A inibição pode, então, estar relacionada a graves manifestações psicopatológicas, como o autismo, a psicose, a debilidade, pois estas apresentam-se com um Eu frágil em seu funcionamento pela sua constituição mesma. Tais manifestações indicam problemas na formação do Eu, desde a sua organização implicando um investimento inicial por um agente da função materna, até a construção de possibilidades de diferenciação desse outro. Tem-se, portanto, um Eu frágil no funcionamento pela sua constituição mesma.

Brauer (2000, p. 81) observa: "De fato, a clínica com crianças graves tem nos mostrado que suas deficiências devem ser situadas com maior precisão como conseqüência de inibições".

Se nessa clínica apresenta-se um Eu debilitado, por uma limitação funcional [funktionseinschränkung des Ichs], isso permite nos situarmos diante de duas relações possíveis a partir do problema das inibições, em níveis diferentes: uma relação de comparação entre a inibição e o sintoma, no nível das manifestações na clínica; outra relação de associação ou comparação entre a inibição e o recalque, no nível dos processos psíquicos, dos conceitos, da metapsicologia.

Por ora, quanto ao primeiro nível de relação, cujas distinções realizamos com a intenção de dar destaque à inibição, é possível concluir:

- com relação à dinâmica psíquica, enquanto na formação do sintoma observa-se um trabalho psíquico em ação, na inibição nota-se um trabalho psíquico impedido;

- com relação ao Eu, na formação do sintoma, o Eu utiliza seu poder de influência sobre a moção pulsional indesejada, entra em conflito, num jogo de forças, para depois se enfraquecer; a inibição justamente é a expressão de uma limitação funcional do Eu;

- o sintoma afirma sua existência fora da organização do Eu; enquanto a inibição dá-se no Eu;

- com relação à angústia, o sintoma resulta de um processo de defesa contra a angústia, por obra do recalcamento; a inibição surge como um anteparo contra a angústia, como medida de precaução, por meio de uma renúncia (Verzicht).

Essas considerações contêm, obviamente, importantes conseqüências para a clínica psicoterapêutica com crianças. Em primeiro lugar, é necessário evitar precipitações diagnósticas. Muitas vezes, aquilo que médicos, pedagogos, psicólogos, psicopedagogos denominam autismo, surdez, distúrbios fonoaudiológicos etc. nada mais é do que uma grave inibição manifestando-se na criança. Em segundo lugar, o procedimento psicoterapêutico com crianças gravemente inibidas é diferente do procedimento com crianças apresentando sintomas.

Quando o psicoterapeuta trata o desamparo de crianças com inibição, resultados espetaculares freqüentemente ocorrem, revelando um "falso autismo", "uma falsa surdez" etc. (Fráguas & Berlinck, 2001), e a precipitação diagnóstica pode ser reconhecida.

As raras crianças que apresentam autismo não reagem da mesma maneira que crianças inibidas. Elas respondem, na melhor das hipóteses, de forma muito mais lenta e parcial ao tratamento psicoterapêutico.

Finalmente, é preciso prestar certa atenção à crescente agressividade manifestada em crianças inibidas com tratamento psicoterapêutico. Com o enfraquecimento da inibição, a criança sente-se capaz de enfrentar situações desprazerosas agredindo aquilo ou aquele considerado responsável pelo desprazer. Elas tornam-se mais corajosas, ousadas mesmo, enfrentando as dificuldades diante das quais, antes, se inibiam.

Nessas circunstâncias, os pais e professores podem ficar assustados, especialmente porque, nas sociedades ocidentais atuais, a agressividade é vista como grave distúrbio. Cria-se, dessa forma, um certo paradoxo: a criança não deve ser inibida, pois isso prejudica seu rendimento escolar; mas não deve ser agressiva, pois isto é tomado com reprovação pelos adultos. Qual, então, a posição da criança?

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Berlinck, M. T. (2000). Aspectos metapsicológicos das psicopatologias contemporâneas. Psicopatologia Fundamental.         [ Links ]

Brauer, J. F. (2000). Entre a inibição e o ato. In A psicanálise e os impasses da educaçao. São Paulo, SP: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Fráguas, V. & Berlinck, M. T. (2001). Entre o pedagógico e o terapêutico: Algumas questões sobre o acompanhamento terapêutico dentro da escola. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, VI (11).         [ Links ]

Freud, S. (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.) (Vol. 10). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1972.         [ Links ]

______ (1926 [1925]). Inibição, sintoma e angústia (M. A. Götze, trad.). Edição não comercial da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, RS, p. 5.         [ Links ]

Kaufmann, P. (1996). Dicionário encicolpédico de psicanálise - Legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lopes, B. L. A. (1999). Inibição: Lugar de uma pergunta. Revista Letra Freudiana:  A criança e o saber, no 23.         [ Links ]

 

 

NOTAS

1 Freud (1926 [1925]), p. 20) observa no meio do capítulo que sua intenção de partir de casos simples de formação de sintoma em conseqüência de um recalcamento foi de encontro com a idéia de fazer isso estudando as mais iniciais e aparentemente transparentes neuroses da infância.

2 "Trata-se, antes de mais nada, do meio, daquilo que envolve o humano e é percebido sem qualquer especificação. Quando o ambiente é especificado, perde a característica de meio e passa a ser uma sucessão de objetos. O ambiente é, assim, o meio no qual nos realizamos nossa existência, em que somos" (Belinck, 2000, p. 233).

 

 

Recebido em março/2002.

Aceito em julho/2002.

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