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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.14 no.27 São Paulo  2009

 

DOSSIÊ
A ADOLESCÊNCIA ENTRE A PSICANÁLISE E A EDUCAÇÃO

 

Cama de gato: um breve ensaio sobre a subjetivação juvenil na atualidade

 

Cat's cradle: a brief essay on contemporary juvenile subjectivation

 

Cama de gato: un breve ensayo sobre la subjetividad juvenil en la actualidad

 

 

Roselene Gurski

Psicanalista, Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenadora da Clínica Maud Mannoni e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). roselenegurski@terra.com.br

 

 


RESUMO

Discutimos os modos "violentos" de representação, utilizados por jovens de classe média e alta. A análise, realizada a partir do filme Cama de gato e de episódios de violência noticiados na mídia (1997-2007), junto a alguns conceitos da Psicanálise e de Walter Benjamin, leva a interrogar: quais os vetores da brutalidade protagonizada por jovens que não padecem de privações extremas? Que condições sociais participam destes episódios? Ao tensionar acontecimentos e conceitos, vimos que estes atos, além de funcionarem como um modo do jovem devolver o mal-estar que sente frente ao vazio da experiência familiar e social, são, também, uma forma de legitimação de si no social.

Descritores: juventude; representação de si; violência; psicanálise; experiência.


ABSTRACT

This article discusses the "violent" means of representation of the social aspect employed by middle and upper-class young people. The analysis is based on the movie Cat's cradle and on some violent episodes broadcasted by the media (1997-2007). Such material, along with concepts from psychoanalysis and others by Walter Benjamin, lead to the following questions: what are the vectors of the brutality perpetrated by young people who do not suffer with extreme social privation? What conditions contribute towards the rise of such episodes? As episodes and concepts are integrated and fully discussed, comes the realization that such acts have a double function: they are means through which young people return the ill-being caused by the void in their experiences with family and society, and they also work as means to legitimate their self-representation in social contexts

Index terms: youth; self-representation; violence; psychoanalysis; experience.


RESUMEN

Discutimos aquí los modos "violentos" de representación utilizados por jóvenes de las clases media y alta. El análisis, efectuado a partir de la película Cama de gato, de noticias de diarios y revistas (1997-2007) y de algunos conceptos de la Psicoanálisis y de Walter Benjamin, nos lleva a interrogarnos: ¿cuáles son los vectores de la brutalidad protagonizada por jóvenes que no padecen de privaciones sociales? ¿Qué condiciones contribuyen para el surgimiento de estos episodios? Al tensar acontecimientos y conceptos, constatamos que tales actos funcionan como la forma que los jóvenes tienen de devolver su malestar al confrontarse con el vacío de la experiencia familiar y social, así como una forma de representarse en lo social.

Palabras clave: juventud; violencia; psicoanálisis; experiencia; representación de si.


 

 

A filmagem que Stanley Kubrick (1971) fez do romance A clockwork orange (Laranja mecânica) foi recebida no Brasil com inúmeras reações, especialmente pelas fortes cenas de violência praticadas pelos jovens atores. A fala inicial de Alex Delarge, o líder da gangue que aterrorizava a Londres futurista de Kubrick, apresenta já de início o teor da narrativa: "uma coisa que nunca suportei era ver um velho bêbado e sujo uivando as imundas canções de seus pais".

Ao relatar o que sente por um dos mendigos que vaga pela cidade, Alex é interrompido pela voz do homem de rua que pergunta aos rapazes: "Podem me dar um troco, irmãos?". A questão endereçada pelo mendigo, desde um lugar fraterno, enseja um cruel espancamento por parte de Alex e de sua gangue. O andarilho, em meio à violência que sofre, diz: "Acabem comigo, seus covardes. Eu não quero viver mesmo, não neste mundo fedorento onde a lei e a ordem não existem mais".

Na busca de notícias (1997-2007) que associavam jovens de classe média e alta a episódios de violência extrema, constatamos que passados quase três décadas do lançamento do filme, o fantasma da gangue de jovens delinquentes acabou tomando vulto de fato nas histórias cotidianas de nossas cidades.

Na década de 90, vivemos no Brasil uma situação que lembra os jovens de Laranja mecânica. Refiro-me ao episódio ocorrido em Brasília, no ano de 1997, que acabou por vitimar em pleno 21 de abril o índio Galdino. O pataxó estava na cidade para as comemorações alusivas ao dia; ele dormia em frente a uma parada de ônibus quando cinco rapazes, todos oriundos de famílias de classe média e alta de Brasília, passando por lá, tiveram a ideia de queimá-lo. O inusitado do ato foi a justificativa que deram: "Só queríamos dar um susto em um mendigo. Não sabíamos que era um índio" (Hollanda & Andrade, 1997). Ora, o que será que estava em questão para esses jovens? Um mendigo é uma pessoa de valor humano menor? Esse episódio parece ter despertado a consciência de que a violência, sempre associada às classes menos privilegiadas, não se configura em uma prerrogativa de pobres e negros.

Além da mídia, a filmografia recente vem mostrando que a preocupação com o tipo de comportamento dos jovens de classe média da atualidade está também no cinema. Tivemos, ao longo da última década, narrativas fílmicas que demonstram a relevância da problemática; dentre alguns, destacamos Cama de gato (2002), Tiros em Columbine (2002), Aos treze (2003), Alpha Dog (2006) e Meu nome não é Johnny (2008).

Neste ensaio, vamos trabalhar especialmente com Cama de Gato, uma produção nacional do grupo TRAUMA1, que tratou de questões de jovens da classe média paulista. O filme, realizado pelo diretor de teatro Alexandre Stokler, faz uma crítica aos valores e comportamentos deste segmento juvenil, denunciando uma espécie de vazio de referências em suas vidas.

Stokler (Eduardo, 2004) reuniu alguns episódios que testemunhou como professor em escolas de ensino médio de São Paulo e os narrou construindo um pré-roteiro para o cinema. Após a construção deste roteiro inicial, a produção foi para as ruas e recolheu desfechos que os jovens dariam à trama construída, em relação ao que Stokler comentou: "O surpreendente foi que eles, com suas respostas, superaram em crueldade toda a 'loucura e exagero' da trama ficcional" (Eduardo, 2004).

 

Labirintos juvenis

"É essa 'normalidade' que torna escandalosa a outra face dos adolescentes 'médios' de 'Cama de Gato' .... Para não contar o filme, direi apenas que, juntando várias cenas, saí presenteado por uma extraordinária imagem da adolescência. E vai levar um bom tempo para que eu encontre uma melhor." (Calligaris, 2004, para.7 e para.10).

Narrada como perdida, "metida" em uma espécie de vácuo de valores e referências, a juventude protagonizada pelo trio de atores ilustra a dificuldade de alguns jovens da atualidade em encarregar-se dos efeitos de seus atos. As experiências contadas no filme seguem um ritmo alucinado, no qual parece não sobrar espaço para a reflexão, tampouco para o silêncio. Em nome do prazer e da diversão – fala que se repete no enredo –, os três cometem atos cujas consequências são realmente fatais.

Um aspecto pontuado pela narrativa é uma pergunta sobre o lugar dos adultos. Onde estão as famílias desses jovens? De que modo os pais e responsáveis exercem suas funções? Que transmissão a adultez contemporânea atual faz na direção dos que estão chegando ao mundo?

O filme explora, especialmente, o que deveria ter sido o primeiro dia de aula dos recém-chegados à Universidade, porém o que vemos é que o rito de passagem sai às avessas; o trio não vai para a faculdade e vive este dia com os elementos que, de algum modo, estão licenciados a eles: drogas, festas, bebidas, sexo e violência.

É preciso sublinhar que todo sintoma individual também revela algo da ordem social; neste sentido, perguntamos: como os jovens acabaram nesse lugar? Como os discursos do laço social capturam os adolescentes? Há realmente um empobrecimento da dimensão da experiência e de sua transmissão em suas vidas?

Desde os trabalhos de Ariès (1981), sabemos que as fases da vida são social e culturalmente datadas. A própria configuração da adolescência como uma etapa marcada por hábitos, comportamentos e nuanças singulares é recente. Se atualmente, os adolescentes formam um grupo social tacitamente identificado, nem sempre foi assim.

Dentre as inúmeras modificações, é preciso dar uma atenção especial à desvalorização dos rituais: o laço social, ao subtrair o valor dos rituais de passagem, instalou uma espécie de dúvida quanto à legitimidade do reconhecimento dos jovens, prolongando-se assim a espera pela posse do tão esperado passaporte para a vida adulta. Quais os efeitos desta espera dilatada? Será que as manifestações literalmente "barulhentas" dos adolescentes de nossa época podem estar relacionadas a essa demanda de reconhecimento?

Interessante pensar em algumas falas dos jovens de Cama de gato. Num certo momento, eles discutem acerca de determinadas condições de sua geração, então, um dos personagens diz: "nós achamos tudo engraçado, tu tens todo o espaço do mundo para se expressar e não tem o que dizer" (Stokler, 2002). Ao que ele se refere quando enuncia que "não tem o que dizer"? Como atualmente se constrói a possibilidade de ter o que dizer, de ter uma fala própria, de ser reconhecido?

 

Sabes com quem estás falando? Rastros, marcas e grifes

"Treino em clube de tiro, munição com alto poder destrutivo, plano de sequestro e até o lugar para jogar o corpo. Os detalhes do planejamento traçado em conversas pela Internet por quatro jovens da classe média de Brasília ... mostram cálculo e frieza.... Os diálogos flagrados pelos investigadores revelam que eles chegaram a calcular como escapar de uma punição.... 'o advogado que eu conheço absolveu um cara que matou a mulher com 75 facadas nas costas'." (Bernardes, 2007, para.1).

Este recorte de jornal refere-se a um crime que quase aconteceu em Brasília, no ano de 2007. O que começou como uma briga de ciúmes e rivalidade entre dois jovens por pouco não se transformou em tragédia. Imbuído de raiva, o jovem que planejava o assassinato do rival disse a um amigo em diálogo na Rede (Bernardes, 2007, para.3): "eu vou matar ele essa semana. Eu naum (sic) quero pesar pro lado de ninguém", ao que o outro respondeu: "pra fazer o mal tem q te a manha veeiih...cabeça fria...tem que ser na filosofia de makiavel...pasa no carro sem placa...mete 5 silver point. Amanhã vai tá tudo do mesmo jeito. A gente tá d boa eu q fui agredido to d boa (sic)".

Há na adolescência uma demanda urgente de representação de si; é o momento em que o sujeito busca inserir no social sua atividade pulsional. Este movimento de "ganhar corpo" a partir das pulsões ganha o nome de representação em função de um trabalho psíquico específico ao qual o sujeito pulsional é levado a realizar. Neste quadro, sabemos que a grande faceta traumática desta etapa é a mirada da genitalidade, os enigmas do outro sexo (Rassial, Bidaud & Douville, 2002).

Lacan (1985) diz que o real do sexo é o grande enigma a que temos de responder, pois no psiquismo não há nada pelo qual o sujeito possa situar-se como macho, tampouco como fêmea. Pois será a ignorância com relação a este real que colocará o adolescente em posição de produzir intensamente enredos imaginários. Para Rassial et al. (2002), tais condições participam da espécie de inflação do imaginário que costuma acometer os adolescentes. Situação que parece esclarecer as inúmeras tentativas de transpor limites e a busca pela inscrição de um lugar desde o qual possam se fazer ouvir e representar.

Neste sentido, importa lembrar que cada época e cada cultura legam diferentes modos de o sujeito se afirmar e ser legitimado na esfera social e pública. Segundo Rego (2004), Brasília, por exemplo, além de estar se consolidando como uma cidade com altos índices de violência urbana, apresenta números de criminalidade que evidenciam cada vez mais o envolvimento de jovens de classe média e alta. Segundo o Correio Braziliense, citado por Rego (2004), os filhos de famílias do Distrito Federal com maior poder aquisitivo, respondem por 70% dos casos de furto no interior de veículos, tráfico de entorpecentes, porte e uso de armas.

Pelas reportagens dos jornais, os jovens que planejavam o assassinato estavam convictos da impunidade, já sabiam inclusive com quem falar para livrá-los das consequências do ato queplanejavam executar. É fundamental lembrar que posições como essas revelam traços do antigo clientelismo, velho conhecido nacional que, além de pautar atos ilícitos de nossos efebos, estão cotidianamente presentes na condução da política brasileira.

Segundo reportagem da Revista IstoÉ (Hollanda & Andrade, 1997), não é de hoje que Brasília abriga descalabros no que se refere às questões legais. Em 1973, Ana Lídia Braga, de sete anos, foi estuprada e morta sem que nenhum dos acusados fosse punido, dentre eles estava o filho do então Ministro da Justiça (Hollanda & Andrade, 1997).

Parece que a solução dos jovens "aprendizes de Maquiavel", citados na notícia anterior, está em acordo com o que vivenciam: os pais não se furtam em dar um jeitinho, mostrando que é preciso sempre evidenciar "com quem se está falando". Na cena final do filme Cama de gato, no meio do lixão, ao buscarem nos pais uma forma de resolver o que fizeram, os três jovens escutam que eles estão liberados; não precisarão pagar qualquer preço pelos atos cometidos, pois, afinal, como diz uma voz ao fundo, eles não queriam fazer o que fizeram e devem viver de acordo com o "livre-arbítrio".

Ora, sabemos que o adolescente, ao inscrever seus traços, busca um reconhecimento da ordem social, um lugar desde o qual seus atos possam adquirir legitimidade. Logo, se nos perguntamos sobre o teor violento dos jovens da atualidade, temos de simultaneamente nos perguntar o que temos ofertado como fonte de representação para eles?

Lacan (1998a; 1985) teorizou sobre a importância do simbólico na determinação do sujeito, dizendo que o homem está sujeitado às condições do símbolo já que a Ordem Simbólica o antecede e o constitui. Quando fez uso do conto A carta roubada de Edgar Allan Poe (1844/2003), Lacan (1998a), pretendeu, através da analogia com o jogo do par e do ímpar, achar uma fórmula de escrita deste registro. Ao dizer que o automatismo de repetição ocorre em função da insistência da cadeia significante, ele provou que o sujeito, em seus atos, sofre de uma determinação que é anterior e exterior a ele, ou seja, há uma submissão do imaginário ao simbólico.

 

A representação e os caminhos da pulsão

"Demos 108 facadas porque ela custava a morrer" (Menores matam mulher com 80 facadas, 1992). Esta foi a fala de um dos três rapazes que, em 1992, trucidou Angelita Bom de Araújo, uma garota de programa. Segundo os policiais, os rapazes, ao serem questionados pelo ato, prontamente responderam que não conseguiram chegar a um acordo com relação ao valor dos serviços da moça, então decidiram matá-la.

O tema das formas de representação deve nos ajudar a discutir de modo mais complexo as condições de emergência de atos como o acima referido. No filme Cama de gato (Stokler, 2002), os jovens, após estuprarem uma moça, vendo-a imóvel, supõem-na morta e começam a pensar no que fazer com o corpo: queimá-la, jogá-la no rio, cortá-la em pedaços? Em meio a algumas circunstâncias, eles acabam fazendo um outro cadáver. Resolvem então levar os dois corpos para o lixão da cidade. A cena descrita nos jornais em 1992, por ocasião do assassinato de Angelita, não é muito diferente deste recorte do filme.

Como vimos acima, a demanda de representação do sujeito, intensa na adolescência, responde a uma necessidade do campo pulsional. Porém, há sempre um gap, uma espécie de falha que se constitui no encontro do sujeito com o real do sexo e da morte, pois, afora o fato das representações infantis serem insuficientes para garantir uma significação na seara social, não existem sentidos plenos para dar conta desse encontro. Torna-se preciso ligar as atividades pulsionais a um modo legítimo a fim de fazê-las desfilar no palco social. Tais necessidades psíquicas nos ajudam a entender melhor porque a via sintomática é tão intensa na adolescência.

É neste movimento de fazer-se representar que o sujeito equaciona corpo e linguagem. Escreve e inscreve no corpo as marcas de seu tempo, de sua cultura, dos significantes que lhe concernem. Lacan (2005) pergunta-se sobre o que permite que o simbólico, o significante se encarne. Essa questão nos importa porque, apesar de reconhecer que o significante nada significa fora de uma cadeia, trabalhamos com a hipótese de que as formas de representação do sujeito estão associadas aos sentidos que a cultura oferta.

Se desde Freud, sabemos que o humano é efeito das determinações simbólicas sobre o corpo, Lacan (1998b) deixa claro que a linguagem, ao invés de ponto de chegada, é ponto de partida: "é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas", pois será na queda do objeto que se dará a sua construção. A palavra, ao assassinar a coisa, inaugura a polissemia e, ao mesmo tempo, a representação como aquilo que veio no lugar do que não está.

Podemos dizer que as representações do sujeito constituem-se a partir do que decanta da inscrição. Para abordar este momento mítico da inscrição, Lacan, no texto Lituraterra (1986), compôs a expressão dos heterogêneos: a terra e o mar, de cujo encontro surge o litoral. O litoral é literal o que revela a marca deste encontro: "Eu o disse a propósito do traço unário: é pelo apagamento do traço que se designa o sujeito. Ele é marcado, pois, em dois tempos; eis o que faz terra do litoral. Litura pura é o literal. Produzir esta rasura é reproduzir esta metade de que subsiste o sujeito." (Lacan, 1986, p. 26).

Disso compreende-se que a rasura inscreve o primeiro tempo da constituição do sujeito. Freud (1950 [1896 ] /1980), na Carta 52, preconiza, através dos diferentes tipos de neurônios, um modo de inscrição anterior ao inconsciente. O que nos leva a pensar que, na mítica da subjetivação, esse tempo inicial da inscrição da rasura carrega a história de um momento primordial, de um texto de traço nenhum, cuja leitura implica uma criação, a criação da origem.

Pois será em torno dessa possível origem do sujeito que se criarão as ficções, as ficções do si mesmo (Costa, 1998). O caos pulsional inicial, através da linguagem, dá lugar ao corpo submetido ao simbólico. As bordas construídas a partir deste encontro do corpo com a linguagem desenham o vazio e retém em seu traçado as marcas pulsionais, lugar do sujeito por excelência.

Ao falar das bordas do corpo como a fronteira com o Outro, com o social, Costa (2001) diz que os objetos pulsionais podem ser tomados como internos e externos, pois, ao mesmo tempo em que eles contêm os traços do corpo próprio, também contêm os traços do Outro. Ou seja, todo laço discursivo de algum modo é o que faz funcionar a pulsão.

Costa (2001), ao tratar dos quatro discursos preconizados por Lacan (1992), diz que a impossibilidade de tudo representar é o que produz os atos na cultura. Ou seja, todo ato mostra a relação do sujeito com as pulsões, revelando assim que os discursos contêm a história dos modos de gozo que cada cultura e cada tempo legam aos sujeitos.

 

Cultura e formas de representação

Arendt (2001a) diz que os objetos de consumo, a tecnologia e os regimes totalitários foram responsáveis pela redução e achatamento da experiência humana. A filósofa buscou compreender as raízes do que ela identificava como isolamento e desenraizamento do homem moderno, pois, em sua visão, estas condições destroem a capacidade política e a faculdade de agir, dificultando a inserção dos sujeitos na esfera pública. Conforme sugere Costa (2001), a discussão ensejada por Arendt carrega um relativo desconforto com a passagem das condições da Antiguidade para a Modernidade, especialmente no que se refere aos avanços tecnológicos.

Não há como negligenciar que, desde o declínio das sociedades tradicionais, a autoridade passou a não mais designar lugares fixos, o que produziu um efeito imaginário de que a representação do sujeito está dada no domínio da potência pessoal. Ora, se o laço social não antecipa lastros de reconhecimento precedentes e suficientes para reconhecer o lugar do sujeito, este acaba esperando que os próprios atos legitimem suas representações.

Neste ponto, parece que nos aproximamos daquilo que buscamos problematizar: que tipo de experiência é possível aos jovens em um laço social que incita o achatamento da dimensão da experiência humana? Será que a necessidade de produzir atos ou ações cada vez mais intensos do ponto de vista da violência pode estar associada à ausência de uma precedência de representação desde o laço social?

Agamben (2005) sugere que no tempo presente a experiência é vivida de modo exterior, fora do homem. Ele observa que, apesar dos múltiplos eventos na vida contemporânea, poucas são as experiências que deles se deduzem. Para o filósofo italiano, a incapacidade de traduzir em experiência a infinidade de acontecimentos a que o sujeito contemporâneo está exposto é a dimensão insuportável do cotidiano atual. Na esteira de Benjamin, propõe que se busque a experiência do tempo presente. Este ponto importa, pois parece que a impossibilidade de construir uma experiência, na concepção de Benjamin (1933/ 1994a), está associada à dificuldade dos jovens atuais em criar o novo em termos geracionais.

Benjamin, em seus questionamentos sobre os caminhos do historicismo e da contemporaneidade, demonstrou que o privilégio da história una e explicativa, em detrimento da narratividade, constitui uma via empobrecedora para o homem (Benjamin, 1940/1994b). Ao distanciar sua prosa do objeto e aproximar o leitor das reflexões, permitiu que o real fosse lido como um texto, fazendo com que a emergência do novo pudesse vir de lugares outros que não do sujeito lógico. Para Benjamin (1933/1994a; 1936/1994c), a experiência2 estava em total liquidação, pois via o seu declínio como correlato da intensificação da vivência.

Ao destacar que o trabalho do crítico é o de devolver ao presente a experiência verdadeira do novo, Benjamin (1940/1994b) destacava a juventude, como o período propício ao compromisso com a crítica e, portanto, com o espírito. Desde os textos juvenis, Benjamin (1913/1993) rejeitou a concepção de experiência como a repetição do passado, reconciliando o conceito com a dimensão do novo, assim recuperando seu aspectooriginal de tentativa e de risco. É, portanto, desde as categorias benjaminianas de vivência e experiência que perguntamos: qual é a disposição da juventude atual? Como lidam com as vivências? Será que de suas vivências decantam experiências?

 

O lixão e a modernidade: os detritos como substâncias vitais

"Cala a minha boca esse gesto desumano. Dar a luz a uma criança. Vejo a beleza, nela existe dor. Cala a minha boca esse gesto descontrolado, botar fogo em uma pessoa. Calamidade, calamidade, a Modernidade não se concretizou. (Fragmento da música Calamidade, citada por Stokler, 2002).

Benjamin recolheu tal qual um colecionador, as marcas do passado como elementos de uma verdadeira herança. Ele via nas formas esquecidas e aparentemente sem importância os esclarecimentos sobre a sua época, os detritos de cada tempo, os depositários das substâncias vitais para a atualidade (Muricy, 1999). Tomemos o tema dos detritos, do lixo da história a partir do filme Cama de gato para pensar algumas questões da juventude contemporânea.

Na narrativa, o diretor escolhe como cenário final dos três rapazes, o lixão de São Paulo. São Paulo, a capital brasileira do dinheiro, da velocidade e do sucesso. Cidade do desenvolvimento, paradigma maior da Modernidade. Mesmo emoldurada por luxo e riquezas, sabemos que não há abundância que apague a necessidade de um espaço para guardar os restos. Ainda que se configure como o lugar do que não vale mais, o lixão de uma cidade é o local do dejeto; pois foi para lá que o trio escolheu levar os cadáveres.

Interessa-nos problematizar essa alegoria do filme, pois Benjamin trabalhou com os detritos como um modo de sobreviver à cultura de sua época. No campo das artes, por exemplo, as colagens constituíram um modo de os artistas lidarem com o caos urbano e com as ruínas de civilidade presentes no início do século XX.

A questão que nos inquieta neste estudo refere-se exatamente a pensar de que modo a juventude contemporânea vem lidando com o empobrecimento da experiência. Será que a beira da cidade e as margens sociais são os espaços que a cultura reserva aos jovens que chegam? Por que, na atualidade, vemos os atos marginais multiplicarem-se? O que os jovens fazem com a pouca densidade e o vazio que se apresenta nas condições do laço social atual?

Em uma das cenas do filme, o trio, ao chegar a uma festa, é recebido pelo porteiro do edifício e indigna-se pela ausência da pergunta sobre suas identidades: "Como tu nos deixa entrar, se nem a gente tem certeza se somos ladrões ou não?!". A surpresa pela ausência de questionamento revela a inquietação que portam acerca de si: afinal, quem são eles? O que demarca as suas identidades? Como fazer marcas hoje?

Interessante inquietação, pois um dos grandes trabalhos de Benjamin na sua arqueologia da Modernidade foi debruçar-se sobre o tema do anonimato. A atrofia da experiência e o anonimato eram, em sua análise, sintomas da vida moderna. Benjamin evocou o tema através da figura do burguês do final do século XIX, que, amputado de referências coletivas, passou a compensar o anonimato social através de um duplo processo de interiorização, no qual os valores privados corroíam a crença nas premissas coletivas (Gagnebin, 1999).

Em O narrador, Benjamin (1936/1994c) refletiu, sobretudo, acerca das novas produções culturais que marcavam a passagem do século XIX para o XX. O texto foi uma espécie de sequência, apesar de algumas divergências de Experiência e pobreza, escrito em 1933. Em ambos, Benjamin discorreu sobre a relação entre narratividade e empobrecimento da experiência, explicitando sua preocupação com a crescente incapacidade de contar e o esgotamento das histórias.

É importante entender que Benjamin, ao referir-se à ausência de narrativas, apontava para uma dimensão da transmissão que se encontrava perdida. Ele via na plenitude vazia das inúmeras vivências a imagem da pobreza da experiência. Em "Sobre alguns temas em Baudelaire" (Benjamin, 1989), ele compara o que chamava de choque da Modernidade sentida pelo sujeito das multidões com a vivência do operário na fábrica. Será que as condições a partir da industrialização crescente, da mecanização do labor e da imposição das leis de mercado provocaram uma idealização na relação com os objetos, cujo efeito foi uma colagem a eles e, por consequência, às imagens?

Importa nos perguntarmos sobre os efeitos desta primazia dos objetos e das imagens; será que nesta configuração armam-se condições para que se produzam experiências? A busca dos objetos e das imagens como resposta à angústia frente ao tempo e à morte parece exatamente confrontar-se com a questão evocada por Benjamin em sua teoria sobre as narratividades: a possibilidade de produzir uma fala, um dizer, um recorte do real. Assim, perguntamos, junto a Benjamim, quem é, hoje, o jovem pós-moderno, desprovido de marcas que ele, elegantemente, denunciou nas primeiras décadas do século XX?

 

O empobrecimento da transmissão da experiência e os modos de representação na atualidade

Em Cama de gato (Stokler, 2002), há uma cena, na qual os amigos saem do "aquecimento" para uma festa a fim de fazerem o que talvez se pudesse chamar de uma anti-flânerie contemporânea3. Refiro-me ao modo como eles passeiam pela cidade. Dentro de um carro e não mais com as tartarugas4, eles vagueiam na velocidade imposta por sua época: voam pelas ruas e avenidas, denunciando as cicatrizes que restaram do anonimato visionado por Benjamin. Diferente do flâneur da Paris do século XIX, que se deliciava com a fruição da cidade, eles parecem não desfrutar de nada, simplesmente consomem as imagens e o tempo: insultam os travestis, desconfiam dos andarilhos e são violentos com os mendigos e meninos de rua. Na pressa absurda de se divertir a qualquer preço, catalogam todos os que veem. Parecem desesperadamente buscar um espaço, um lugar que os acolha e os represente. Nominam violentamente os que vivem nas margens da cidade, como se com isso afirmasse suas identidades: eles são outros, não são os desviantes que encontram.

A pouca importância que dão aos efeitos de seus atos revela uma espécie de desumanização com os sujeitos das margens que não aparece só nas telas. Já foi referido que a morte do índio Galdino teria como justificativa o fato de ser um mendigo, enquanto a agressão à doméstica Sirley (Agressão à doméstica, 2007) seria um equívoco, pois o grupo supunha tratar-se de uma prostituta. Nessas expressões brutais de interpelação do outro marginal parece residir uma pergunta sobre quem são eles afinal.

Ora, sabemos, desde Lacan (1998c), que a agressividade é sempre uma tentativa de tomada de posição por parte do sujeito. A constituição do Eu é frágil e, muitas vezes, posta em questão, pois o Eu se constitui a partir de uma imagem do outro e serão sucessivas identificações a esta imagem que consolidarão o trajeto da subjetivação (Lacan, 1998c). Tal condição cria uma instabilidade ao sujeito, como se o risco de perder os limites do Eu levasse a uma constante tentativa de afirmação através de movimentos de agressivização ou mesmo de violência.

No caso dos jovens dos quais falamos, trabalhamos com a hipótese de que a violência presente em seus atos funcionaria como um modo de resgatar uma alteridade e uma afirmação de si, que o empobrecimento da experiência na vida contemporânea impossibilita. Parece que há atualmente uma dificuldade do sujeito entrar em contato com a necessidade da perda de gozo. Nesse contexto, a ordem passa a se aproveitar ao máximo, sem perder nada (Lebrun & Melman, 2007).

Muitos dispositivos da esfera social parecem dificultar que das vivências decantem experiências. De acordo com Benjamin (1933/1994a), tal questão não se dá somente pelo vivido, mas especialmente pelo narrado, pelo que fica de transmissível da vivência.

Benjamin, no texto O narrador, clama pela narrativa tradicional em sua dimensão polissêmica, isso, especialmente, quando sublinha que o historiador materialista deve fundar uma outra experiência com o tempo do agora, o Jetztzeit, cuja função seria construir uma experiência com o passado, onde este possa emergir do tempo presente (Benjamin, 1936/1994c; Gagnebin, 1994).

A pergunta sobre como viver a experiência do tempo presente sem abandonar o laço com a tradição, com a memória e com o passado importa, pois queremos problematizar o declínio da autoridade da experiência desde a noção da erosão da função simbólica – enquanto operador do lugar de representação do sujeito – no cenário social (Costa, 2001).

Na já comentada cena final de Cama de gato (Stokler, 2002), os três protagonistas, após engendrarem atos que acabam por criar um verdadeiro massacre privado, pedem aos pais uma solução ao impasse de como se livrar dos cadáveres que produziram. Como se estivessem frente a um roteiro de cinema hollywoodiano (Eduardo, 2004), eles buscam os pais na expectativa de que algo mude o destino de suas responsabilidades pelos atos cometidos.

O mais interessante, considerando o lugar dos genitores como representantes da adultez, é a indicação, por parte deles, de que os jovens se "livrem dos cadáveres". A atitude evoca o que Arendt (2001b, p. 239) chama de ausência de responsabilidade dos adultos na educação contemporânea: "o educador está em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade". Com esta reflexão, a filósofa nos leva a refletir sobre a relação atual dos adultos com os jovens e na natalidade, como fonte de renovação do mundo.

Evocar o lugar dos adultos na transmissão educativa é propor o necessário encontro com a dívida simbólica5, ou seja, a necessidade de os adultos apresentarem aos mais jovens a dimensão desta dívida que se arma com o mundo ao se ganhar uma vida.

 

À guisa de conclusão

Para Agamben (2005), o ideário científico moderno nasceu de uma desconfiança em relação à experiência tal qual era tradicionalmente concebida. A ciência, e seus pressupostos de demonstração ilustram a perda de certeza e mostram a transferência da experiência para fora do homem.

Montaigne (1580/1980), nos Ensaios, sugere que a experiência é incompatível com a certeza, pois uma experiência que se torna calculável e certa perde sua autoridade. Mais recentemente, o filósofo francês Lyotard (2002) retomou a discussão acerca do lugar da verdade, da experiência e das narrativas, sugerindo que a crise de relatos na Pós-Modernidade ocorre em função da ciência tomar as narrativas como fábulas retirando, assim, a legitimidade do saber narrativo na atualidade.

A própria dificuldade que os rapazes de Cama de gato apresentam para lidar minimamente com o que aparece da dimensão de seu Desejo6 nos faz pensar que a pobreza subjetiva revelada em suas falas e em seus atos, constitui um dos efeitos do esvaziamento da dimensão da experiência e da narratividade.

Na lente de Agamben (2005), a saída para este vazio (da experiência) seria encontrar modos de habitar o não experienciável, ou seja, a busca do novo promovida por Benjamin não deveria apresentar-se como a procura de um novo objeto da experiência, mas sim como uma suspensão da experiência. Neste sentido, o filósofo italiano faz da poesia moderna de Baudelaire o paradigma deste caminho. Baudelaire abordava a banalidade emergente de um modo inusitado: retirava do estranhamento sobre os objetos comuns e do choque provocado pelas condições da Modernidade o procedimento exemplar de um projeto poético e criativo.

A pobreza simbólica que advém das condições sociais e culturais problematizadas neste escrito parece levar o jovem que chega ao social a uma espécie de labirinto ou, para acompanhar a metáfora resgatada por Stokler, a uma cama de gato. Sem condições favorecedoras da elaboração simbólica, assistindo, à fragilização das estruturas discursivas que costumam suportar o vínculo social, muitos jovens se desorganizam psiquicamente e acabam, frente ao desamparo que encontram e aos poucos recursos simbólicos presentes no tecido social, buscando o acesso ao reconhecimento de si através de vias extremas (Rosa, 2004).

Ora, se sofremos de uma quase anomia no que se refere ao laço social atual, o que poderíamos esperar dos descendentes? A "banalidade do mal" que vemos em nossos efebos não será o retrato da banalização e do achatamento da experiência humana e social presentes nos laços sociais, políticos e afetivos?

Nesse escrito, buscamos ensaiar um outro modo de ver as problematizações acerca da violência juvenil de nosso tempo; um modo de pensar as questões dos jovens que suporte, simultaneamente, articular o saber e a falta. Pensamos que, talvez, um dos caminhos para pensar os impasses aqui discutidos seja fazer como Baudelaire: transformar o choque e o estranhamento sobre os atuais modos de experiência em criação. Isso porque, nosso maior desafio, em meio às tramas e labirintos das camas de gatos da atualidade, seja inventar outras estéticas de vida, criando novos modos de experiências éticas que sejam potentes para o sujeito e seus laços.

 

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NOTAS

1 TRAUMA é a sigla para "Tentativa de Realizar Algo Minimamente Audacioso", uma resposta irônica ao DOGMA 95, criado por cineastas dinamarqueses.

2 A Erfahrung seria o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula e desdobra-se, tal qual uma viagem; este seria o caso de um sujeito integrado numa comunidade que dispõe de critérios que permitem sedimentar as experiências no tempo, enquanto a Erlebnis seria a vivência do indivíduo privado e isolado, a impressão forte assimilada às pressas (Benjamin, 1989).

3 Expressão cunhada pela autora em alusão à figura do flâneur evocada nos escritos do poeta e escritor francês Charles Baudelaire.

4 O flâneur do século XIX irreverentemente passeava com suas tartarugas fazendo deste ato um claro contraponto à velocidade e à aceleração imposta pelo ritmo industrial (Benjamin, 1989).

5 A dívida simbólica com o Outro se estabelece a partir da operação simbólica do Nome-do-Pai, cuja função é permitir que o sujeito tenha acesso ao falo enquanto significante da falta. Ou seja, o estabelecimento da dívida simbólica faz com que o sujeito coloque-se em posição de satisfazer às consequências da instalação da falta.

6 O Desejo estrutura a relação do sujeito com o objeto e com o Outro. Para Freud, o Desejo do sujeito está sempre remetido ao Desejo sexual; segundo ele, o desconhecimento do Desejo pela operação do recalque é a causa do sintoma. Para Lacan, o Desejo do sujeito é sempre o Desejo do Outro (Chemama, 1995).

 

 

Recebido em março/2009.
Aceito em junho/2009.

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