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versão impressa ISSN 1415-8809
Psicol inf. vol.17 no.17 São Paulo dez. 2013
Artigo
A subjetividade na clínica psicológica: introdução temática e histórica
The Subjectivity In Clinical Psychology: historical and thematic introduction
Conrado Neves Sathler*
*Professor do Curso de Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) – MS; Tutor na Residência Multiprofissional em Saúde no Hospital Universitário da UFGD. Doutor em Linguística Aplicada pela UNICAMP e Mestre em Psicopatologia e Psicologia Aplicada pelo ISPA (Lisboa, Portugal).
RESUMO
Este trabalho discorre sobre a subjetividade em sua relação com a clínica psicológica. Procura apontar um conceito de sujeito, assinalar sua identificação com o início da história clínica da Psicanálise e com os métodos atuais de diagnóstico e tratamento. Identifica também o sujeito como sujeito da ausência da linguagem e assinala o discurso dos manuais diagnósticos e das abordagens terapêuticas baseadas em técnicas interventivas estabelecidas a priori como representantes das práticas provenientes de uma política de enfraquecimento das subjetividades.
Palavras-chave: Discurso; Linguagem; Psicanálise; Subjetividade.
ABSTRACT
This paper discusses the subjectivity in its relation to the psychological clinic. Discusses the concept of subject and identified with the early history of clinical psychoanalysis as well as the current methods of diagnosis and treatment. It also identifies the subject as the subject and the lack of language and speech signals of diagnostic manuals and therapeutic approaches based on the established interventional techniques-priori as representatives of practices from a policy of weakening of subjectivities.
Keywords: Speech; Language; Psychoanalysis; Subjectivity.
Introdução
O início da Clínica Terapêutica pode ser identificado na história da Psicanálise e da Psicologia como uma experiência científica em sua emergência. Estamos nos referindo aos primeiros casos clínicos de Freud, quando ainda era associado ao médico clínico e fisiologista Josef Breuer, no final do século XIX. Mesmo lá, a subjetividade do paciente já emergia como fator primordial do tratamento, bem como logo foram observadas as interferências da subjetividade do terapeuta, como pôde ser visto no caso Anna O. (BREUER, FREUD: 1980 [1885]). No entanto, o começo das bases da atuação clínica focada na subjetividade é anterior a esse acontecimento. Esse início ocorreu no estudo sobre as afasias, estudo cujo texto foi considerado pré-psicanalítico pelos compiladores das obras completas de Freud e, por isso, excluído da edição inglesa das obras completas.
A rigor, "A interpretação das Afasias: um estudo crítico" (FREUD, 1977 [1891]) é um texto de um jovem neurologista que busca empreender esforços na direção de um conhecimento inédito a partir da problematização das obras de seus mais notáveis professores. Na universidade de Viena, nesta época, desenvolveram grandes pesquisas em Neurologia e Freud trabalhou no Laboratório do austero professor Ernest Brücke, pesquisando enguias, mas entre os destacados professores estavam Theodor Hermann Meynert, Herman Ludwig F. Von Helmholtz e Karl Wernicke. Simultaneamente, em Paris, estavam Pierre Paul Broca, estudioso da Afasia e Martin Charcot, pesquisador em Salpêtrière e estudioso da histeria que recuperou a técnica da hipnose nas investigações psicopatológicas (GARCIA-ROZA, 2004, p. 33; GAY, 1989).
O que Freud postulava, em seu livro, era a possibilidade de problemas psicológicos ligados ao aparelho de memória ou de linguagem se apresentarem como causas dos transtornos de fala, sendo, portanto, o elemento funcional, e não somente o estrutural, o responsável pelos transtornos afásicos. Solitário, Freud defendeu essa tese na contramão do pensamento dos neurologistas da época que buscavam localizar no cérebro os pontos exatos dos distúrbios de linguagem. Isto é, despontava, com Freud, um indicativo de subjetividade em oposição à objetividade positivista dos iluministas da época.
Além de introduzir um estudo da psicologia na etiologia das neuroses, campo até então exclusivo da neurologia, Freud propõe, nessa mesma obra, um modelo compreensivo para a aprendizagem de línguas (FREUD, 1977 [1891], p. 41-46) e a noção de "concomitante dependente", quando afirma que "o psíquico é um processo paralelo ao fisiológico" (p. 31).
O sujeito psicanalítico vai emergindo, deste modo, dos estudos relativos aos transtornos da linguagem e se desligando aos poucos da medicina. Esse processo de desligamento passa da demonstração da lógica, que rege os problemas apresentados por sujeitos lesionados neurologicamente nos centros da linguagem, para a comprovação da ocorrência do mesmo sintoma em outros sujeitos não lesionados, ou seja, com os sujeitos normais. Essa ocorrência segue outra lógica na qual o desvio de fala surge como uma consequência de conflitos psicológicos ou como um sintoma ligado aos afetos. Nasce, assim, o conceito de representação e abre-se caminho para o estudo.
Daí ao estudo da "Psicopatologia da vida cotidiana" (FREUD, 1980 [1901]) foi um pequeno passo, com seu método explicativo posto em um texto fortemente ilustrado. Nesse livro Freud mostra como qualquer indivíduo pode manifestar, na sua normalidade, desvios como esquecimentos e trocas de palavras, além de produzir sintomas físicos que fazem algum sentido sem que o próprio sujeito do desvio se dê conta do significado ali contido. Mas, para essa ocorrência, o sujeito da linguagem já estava razoavelmente compreendido.
Para finalizar esta introdução, vamos esclarecer o uso do léxico "sujeito", termo chave para este texto. "Sujeito", etimologicamente, é uma palavra derivada do latim sub-jectum, cujo significado indica – o que está posto abaixo de –. Seriam sinônimos de sujeito os termos: suposto, fundamento, básico e substância. No sentido que damos a ele, sujeito é qualquer elemento que se constitui a partir de uma ideologia, conceito, teoria ou poder que o defina. Assim, o sujeito psicanalítico é um sub-jectum por ser um elemento definido por sua relação com o inconsciente (SATHLER, 2008). Para exemplificar, podemos apontar o cidadão como o sujeito subordinado ao Estado, da mesma forma que o sujeito psicanalítico é regido pelo seu inconsciente.
Nos parágrafos seguintes vamos apresentar, resumidamente, a construção do sujeito psicanalítico com bases na linguagem, o modo de fazer a clínica da subjetividade e a concepção da análise como um processo de construção de um sujeito (logo, construção subjetiva) em busca de uma verdade.
Sujeito Psicanalítico e Sujeito da Linguagem
Em seu trabalho sobre as afasias, Freud (1977 [1891]) contrapõe as hipóteses de Wernicke e Lichtheim, sobretudo na posição localizacionista desses autores. Nesse texto, é apresentado um esquema de associações neuronais no qual apareciam lesões causadoras da perda da capacidade de falar espontaneamente, e esse esquema Lichtheim chamou de aparelho de linguagem. Segundo Garcia-Roza (2001, p. 26-27), termo semelhante (aparelho da alma) já havia sido utilizado por Meynert e Wernicke, embora não muito frequentemente.
Ao refutar o aparelho de linguagem de Lichtheim, Freud constrói o seu próprio modelo. A intenção não era dissociar o problema da fala de suas bases orgânicas, mas excluí-lo da concepção vinculada à lesão localizada (GARCIA-ROZA, 2001, p. 24-25). De tal modo, Freud propõe um modelo que servia tanto aos sujeitos lesionados quanto aos não lesionados. A capacidade de observação clínica apontava que não é somente quando há problemas fisiopatológicos que ocorrem os problemas de esquecimento, as fusões de palavras e as trocas de letras são, também, quando há afetos confusos envolvidos na mesma representação da palavra.
Ao avançar criticamente sobre a análise de um esquema do aparelho de linguagem, Freud não refutou a existência de problemas relacionados à condução dos estímulos, nem às lesões localizadas, no entanto indicou que esses problemas ultrapassavam os limites mecânicos do aparelho e afetavam o funcionamento global do sistema neurológico, determinando a gênese de problemas de natureza dinâmica ou, em outras palavras, de natureza psicológica (ligada às representações, às associações de estímulos e às intensidades). A observação nascida da prática da atenção clínica permitiu a ressalva de que sujeitos normais e patológicos – os afásicos – se aproximavam no resultado final da verbalização sintomática. Era preciso apresentar, a partir dessa notação, nova argumentação, uma arguição que tratasse de ambos os casos, dos casos afásicos e dos parafásicos, definidos por Freud como:
Por parafasia devemos entender uma perturbação da linguagem em que a palavra apropriada é substituída por uma outra não apropriada que tem no entanto uma certa relação com a palavra exata. [...] trata- -se (de parafasia)... quando troca palavras que tem som semelhante, [...] quando comete erros de articulação, [...] quando duas intenções verbais são fundidas, [...] (FREUD, 1977 [1891]. p. 9,10).
Podemos identificar, entretanto, a definição de parafasia como a mesma das utilizadas nas descrições de atos falhos, chistes e esquecimentos. O que as difere, linguisticamente, e isso é um corte radical, é o transporte de sentido (de afasia) do nível da patologia anatômica para o nível da normalidade, dos casos corriqueiros, esporádicos e banais. A segunda diferença é que esse mesmo esquema servido ao esclarecimento dos problemas da fala é útil à interpretação dos sonhos. Por fim, como balizamento, ressaltamos a articulação de palavras, ou de gestos, seguindo a mesma lógica da linguagem falada e de seus desvios. Isso serve para apontar, então, que aqueles que se expressam pelas linguagens de sinais também cometem atos falhos e esquecimentos, e o corpo-linguagem envolvido nos processos de comunicação verbal segue a mesma regência do sintoma corporal histérico, por exemplo. Vale, em síntese, afirmar que de aparelho da linguagem o modelo vai evoluindo, ampliando e ganhando complexidade, para tornar-se o aparelho do pensar, termo tão caro a Bion.
O aparelho do pensar se identifica, portanto, com a linguagem desde o princípio da clínica. Mas de que linguagem nós estamos falando? A máxima enunciada pelos seguidores de Lacan é: "o inconsciente se estrutura na forma de uma linguagem" ou "o inconsciente é, em seu fundo, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem" (LACAN, 1981, p. 135). Essa é a linguagem que nos constitui e que aqui focamos.
A estruturação do pensamento na forma de linguagem, em Freud (1980 [1896]), relatada na carta 52 a Fliess, com elaboração bem articulada de um gráfico, aponta signos, traços mnêmicos e sistema inconsciente desenvolvidos a partir do registro de simultaneidade de estímulos e da associação entre esses registros, percepções e sensações. Mais tarde, outras noções foram compreendidas como o registro pela negatividade e a reorganização desses registros de tempos em tempos.
O aparelho de pensar é um aparelho de memória e de linguagem, embora não seja um aparelho sucessivo ou substitutivo um ao outro, advertimos serem todas essas identificações abstrações do mesmo aparelho, cuja elaboração foi gradativa. Nessa linha, pensar é, quase sempre, lembrar, e a lembrança é o registro linguístico do que podemos acessar ou reconstituir pela via associativa (FRAYZE- -PEREIRA, 1999).
Da mesma forma, não temos um aparelho de sonhar. Em "A Interpretação dos Sonhos" (FREUD, 1980 [1900]), é apresentada uma forma de interpretação baseada em uma escritura subjetiva, em um registro cujo próprio sonhador constituiu pelas percepções, memórias mnêmicas e sensações associadas que, reprimidas no decorrer do dia, retornam em forma de imagens nos sonhos. Mas essas imagens são constituídas a partir de registros impressos no inconsciente.
O aparelho psíquico é, portanto, um aparelho cognitivo se tomado por esse vértice, e pode servir de modelo para a interpretação não somente de sonhos e de desvios de linguagem, mas de todo o comportamento, considerando sua formação a partir da estrutura que funda o próprio sujeito, a estrutura inconsciente.
Discurso: O sujeito e a linguagem
Nossas tradições filosóficas nos conduzem a pensar em um sujeito possuidor de uma essência. Essa essência humana hipotética pode ser identificada em várias correntes de forma bastante evidente. Para o homem grego pré-socrático, o homem era uma substância formada a partir dos elementos básicos: água, terra, fogo e ar, ou, um pouco mais à frente, formado por elementos básicos que se organizavam a partir de uma inteligência cósmica chamada nôus. Para o homem socrático, a natureza essencial estava ligada aos deuses. O "conhece-te a si mesmo" socrático tinha o sentido de: conheça a centelha divina que te constitui. Para o homem medieval, a natureza humana era espiritual, devido seu pecado o homem foi jogado num vale de lágrimas e deveria peregrinar para se religar (religião) a Deus (NANCY, 2001).
Mais próximo a nós e ainda nos constituindo, na modernidade, a razão foi tomada como essência humana. Desta forma, o racional era o humano, o irracional era o animalizado, bestificado, louco...
Nas abordagens psicológicas mais frequentes, em nosso meio, também há a presença de um sujeito essencialista – um sujeito antropológico –. Alguns exemplos disso são: os arquétipos, a tendência ao amadurecimento, a genética, o corpo, o gênero, a mente e a espontaneidade. Mesmo aqueles que alegam a existência preceder a essência reafirmam haver algo essencial.
As abordagens da subjetividade não consideram haver uma essência humana, consideram, ao contrário, que o homem seja uma construção sócio-histórica, constituído na linguagem e pela linguagem. Desta forma, é pela linguagem que o sujeito se autodefine, se compreende e se configura na cotidianidade. Essa concepção daria corpo à possibilidade da diversidade cultural humana.
Considerando haver uma cultura que concebe a maternidade como possuidora de uma essência e que toda mãe naturalmente, essencialmente, cuida de seu filhote, outra cultura vai mostrar mães abandonando seus filhos corriqueiramente, desmascarando a naturalidade da primeira. Se a cultura do amor romântico aponta para a exclusividade do amor do casal monogâmico, outras culturas e outras épocas mostram a artificialidade dessa construção.
Da mesma forma que o homem é constituído pela linguagem, a virada linguística, nome dado ao movimento fundado na filosofia da linguagem responsável por essa concepção, afirma ser o mundo constituído pela linguagem. Muito brevemente, podemos citar a afirmação de Amaral Dias (2003): o nome mata o objeto. Isso significa que ao nomear qualquer objeto este passa a uma categoria linguística e a ele se agrega algo da linguagem e não de sua natureza. Dar um nome é também dar um significado, uma ordem, uma categorização. Nomear é pôr em relação com outros objetos, gerar novos sentidos e gerar uma identidade.
Mas não é aqui que termina essa história, ao contrário, começa o problema a ser examinado. Os símbolos e os signos não são criadores do homem, mas criados pelo homem, e não há uma ditadura da linguagem que nos condiciona a olhar o mundo de um único modo. Como, então, elaborar o modo de subjetivação e o papel da linguagem nessa constituição do sujeito?.
O exercício exigido para responder a essa pergunta é o do abandono de outra forma de ver o mundo já naturalizada, com a racionalidade moderna – o positivismo –. O positivismo permite ao sujeito a pretensão de viver em um mundo no qual as variáveis sejam controladas, como se pode notar em todo o experimentalismo. O problema aqui consiste em se pensar que o sujeito tem um acesso direto ao mundo, um acesso não mediado pela linguagem. A concepção formalista da linguagem tem a ver com isso, na medida em que propõe a leitura do mundo plena de significação e sem equívocos. Desta forma, o objeto representado coincide exatamente com a representação (A=A).
A linguagem, no entanto, pode ser compreendida de forma aberta, quer dizer, ser um ponto de conexão entre objetos e sujeitos onde caibam a criatividade e a imaginação. Considerando a linguagem como incompleta, como não plena ou não positiva, a hipótese de sermos constituídos por uma falta ou por uma negatividade ganha espaço em nossa abordagem.
Ser constituído pela falta implica na razão dos movimentos de eterna insatisfação constitutiva humana. Para esse sofrimento não há cura. Esse sofrimento nos joga à procura de algo mais, e sempre há um mais, sempre há algo a se compreender ou algo de incompleto e, então, nos momentos mais importantes da vida diremos: não tenho palavras para expressar !... pois as palavras jamais serão suficientes para traduzir ou representar o mundo, não somente o mundo mental, mas também o mundo dos objetos materiais.
A subjetividade na Clínica: um sujeito em (re)construção
A subjetividade no diagnóstico
A concepção de diagnóstico está se massificando nos últimos anos, parece que diagnosticar significa unicamente, agora, atribuir um código por meio de identificação de sintomas disciplinares ou normativos, sem nada saber a respeito da constituição histórica, da função e dos mecanismos presentes no curso de uma resistência aos diversos atravessamentos discursivos em uma vida (FIGUEIREDO, MACHADO: 2000; FIGUEIREDO, TENÓRIO, 2002).
Isso se deve ao fato de haver alguma confusão entre as concepções das ciências médicas e as concepções das ciências do sujeito, isto é, entre a Psiquiatria e a Psicopatologia. Até certo ponto, a judicialização dos comportamentos consequentes da sociedade disciplinar e da sociedade do controle direciona este processo (cf. FOUCAULT, 1987; DELEUZE: 1992). Mas, não podemos deixar de lado a força da indústria farmacêutica que promete a cura das dores psíquicas com a administração das pílulas da felicidade (cf. ROSE, NOVAS: 2005; ROSE, MARTINS: 2010) que somadas à tentativa de unificação das linguagens sobre o sofrimento humano, na figura dos Manuais Diagnósticos, sejam da Organização Mundial da Saúde (CID) ou da Associação Americana de Psiquiatria (DSM), são responsáveis pela captura do sofrimento humano e pela tentativa de tornar qualquer sofrimento um problema médico.
Até o final da década de 1960, a psicanálise representava o saber mais apropriado para a compreensão do funcionamento psíquico e, por consequência, os Manuais Diagnósticos inseriam em sua nomenclatura termos como neurose e psicose. Com a tendência à objetivação dos diagnósticos, a partir do DSM III, que excluía a base teórica de uma abordagem psicológica, essas definições conceituais da psicanálise foram banidas como categorias diagnósticas e apagadas dos seus critérios. Mas a objetividade não tratava somente o sofredor como objeto positivo, tratava-o, sobretudo, como destituído de subjetividade (RUSSO, VENÂNCIO: 2006).
Os manuais diagnósticos cumprem, então, o papel de atribuir a qualquer portador de um sofrimento humano um código identificatório e um destino, independentemente de sua história, de suas resistências e de seus desejos. Desta forma, há uma psicopatologia sem sujeito e um diagnóstico sem histórico, nem singularidade. A linguagem é codificada e inserida no universo digital dos controles dos indivíduos.
Para ser singular, agora, o sujeito precisa de uma nova atitude, precisa buscar um novo comportamento que não seja previamente classificado, mas também que não seja algo muito assustador, sob pena de exclusão social. Daí surge um novo comportamento, um modo razoavelmente transgressor do establishment, uma singularidade visual, marcada no próprio corpo. Com suporte tecnológico, as drogas e as próteses corporais de todos os tipos (de escaras e tatuagens até as cirurgias plásticas) vêm preencher este espaço não possível, portanto utópico, de busca de singularidade e expressão da insatisfação consigo mesmo.
Tal qual um artista sem talento que ao filiar-se a uma escola de arte reproduz determinadas linhas de expressão e seus traços, ao invés de tornarem-se uma demonstração criativa de uma época, tornam-se uma repetição rígida e previsível do mundo imediato, os profissionais do campo psicológico estabelecem diagnósticos que nada dizem respeito ao (do) sujeito que sofre, dizem apenas de seus índices normativos, de seus desvios da média e de seus neurotransmissores deficitários.
Com esse modelo médico, o poder médico-disciplinar controla o sujeito, enquanto no modelo das ciências da subjetividade o sujeito aprende algo sobre si e o poder exercido sobre ele esmaece, tornando o diagnóstico, para além de uma avaliação classificatória, um ato de liberdade.
A subjetividade na direção do tratamento
No tratamento psicológico estão envolvidas diversas linhas de subjetividade e há disputas de poder (sobre si e sobre um saber) e, portanto, de resistência em todos os momentos. A psicoterapia não pode tornar-se mais uma ou até mesmo a poderosa linha de subjetivação da atualidade, nem enveredar-se pelos caminhos de objetivação na direção do mercado dos saberes sobre o indivíduo. Por princípio, então, o psicoterapeuta não tem nada a dizer para o seu paciente e, retomando Winnicott (1975), o papel do terapeuta é o de aprendizagem com seus pacientes, e assim se manifestava na dedicatória de seus livros: agradeço aos meus pacientes por me pagarem para que eu aprendesse com eles.
Bion também se expressava de forma semelhante, afirmando que o paciente só cresce se o terapeuta aprende algo novo com ele. A capacidade de reverie e de suportar a frustração torna o analista apto ao enfrentamento da realidade (BION, 1991), e, desta forma, apto a auxiliar o paciente. O significado que tanto Bion, quanto Winnicott dão à interpretação psicanalítica é o de que uma interpretação tem validade apenas uma única vez, e se uma interpretação se repete, o terapeuta está confundindo pacientes, no significado mais radical do termo "com-fusão", ou dizendo de si e apagando a alteridade do paciente.
Na situação terapêutica tradicional estão presentes os sujeitos terapeuta e cliente. Esses são construções circunscritas ao espaço, ao tempo e a um conjunto de práticas discursivas e não discursivas. Esse cenário enunciativo impele o primeiro à escuta, e o segundo à fala confessional. O discurso é performativo, do discurso nasce o sujeito, ele próprio e, nessa relação, sobre a fala, o psicoterapeuta produz um saber compartilhado e problematizado por ambos.
A subjetividade do terapeuta pode estar carregada de desejos, memórias e teorias (compreensões) e, se isso ocorre, sua produção será sobre seu referencial particular, sobre seu desejo, sobre sua história e, principalmente, sobre sua teoria e sua filiação institucional. Por esse motivo, Bion (1991) afirma que o terapeuta deve atuar sem desejo e sem memória.
Ainda, antes de abordar a subjetividade do paciente, cabe lembrar que o atendimento de Freud a Anna O., acompanhado de Breuer, foi motivo de um acontecimento valiosíssimo à história da psicanálise. A partir de determinado ponto do atendimento, Anna O. manifestou afetos de desejo sexual em relação a Breuer, e ele, em resposta, suspendeu suas visitas à paciente, dando-a como curada e alegou que se sua esposa soubesse do acontecimento, se aborreceria (BREUER, FREUD: 1980 [1885]). Sem o aprofundamento que merece este tema, deixando-o para outro texto, vimos aí a mostra de que a subjetividade não nasce dos atravessamentos, mas, sobretudo, das defesas. É ao dizer não a uma sedução, a um prazer, a uma intensidade ou a um atravessamento qualquer que se delineia a subjetividade. Encaminho o leitor à leitura de Birman (2005) que trata desse tema com profundidade e clareza.
O que se nota nessa passagem freudiana é que a subjetividade de Breuer, que certamente se achava merecedor desse afeto, emergiu com uma resposta do tipo: "já sou comprometido!" O que Freud compreendeu dessa passagem foi identificado como a presença da contratransferência que afeta o tratamento e, somente a partir daí, elaborou a transferência. Observa-se, na história da psicanálise, então, a presença da subjetividade do terapeuta antes mesmo de se elaborar a subjetividade do paciente.
Da mesma forma que a subjetividade do terapeuta está posta em prova em sua interpretação, a subjetividade do paciente pode ser reconstruída a partir de sua fala. A busca da verdade de sua história, dos movimentos e consequências deles na sua construção de si mesmo, de suas escolhas e vínculos, das repetições na forma de sintomas e de pensamentos rígidos, é a tarefa a se realizar. De nada adianta substituir suas próprias crenças pela crença do terapeuta, pois o pensamento do terapeuta sendo rígido, do ponto de vista da teoria ou mesmo das práticas, é, igualmente, um mecanismo de defesa contra a realidade, uma barreira de contato.
A construção de si, a partir da reconstituição de sua subjetividade, implica necessariamente em liberdade e na busca de restos deixados de lado por escolhas passadas, mas que significaram alianças consigo e com outros de natureza desleal. É neste sentido que dizemos, concordando com Birman (2001), que todo sintoma é uma formação de compromisso e uma negociação que precisa ser analisada e desfeita sob pena de não crescimento e ausência de liberdade subjetiva.
Considerações finais
A clínica da subjetividade é, enquanto prática terapêutica, uma experiência cuja proposta se faz desde as origens da psicanálise. No entanto, hoje, encontra fortes resistências devido ao discurso prevalente no meio profissional, seja do ponto de vista do diagnóstico ou do processo clínico.
A emergência do sujeito como um fator de resistência à sociedade do controle e aos discursos disciplinares, com toda sua sutileza, força o enfraquecimento das posições subjetivas e favorece as resoluções objetivas, pragmáticas e, como dispositivo de bem-estar, abastece o sujeito pela proposta do prazer estético, dificultando as práticas de introspecção, tidas como desnecessárias e prejudiciais por permitirem o contato do sujeito a uma dor incurável e à insatisfação proveniente de sua falta constitutiva.
As práticas de diagnósticos sindrômicos – baseados nos sintomas – preconizadas pelo uso dos manuais diagnósticos refletem a ausência da subjetividade como valor a ser desenvolvido na contemporaneidade e as abordagens terapêuticas que são fundamentadas em métodos e práticas de supressão de sintomas, seja via medicamentosa ou práticas de si, a despeito da história e do significado desse sintoma, corroboram a exclusão da subjetividade na clínica.
Portanto, tal qual o sujeito emerge na sua resistência aos discursos, a prática da clínica da subjetividade só pode se efetivar no enfrentamento das técnicas que propõem o controle dos comportamentos e das práticas utilizadas independentemente de quem seja o terapeuta ou o cliente. O desenvolvimento da clínica da subjetividade opõe-se ao tipo de intervenção que funciona na exclusão do saber subjetivo e que não funciona se um de seus elementos, terapeuta ou cliente, emerge como sujeito.
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Contato do Autor
Universidade Federal Grande Dourados
Depto. De Psicologia
R. João Rosa Góes, 1761 - Vila Progresso
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Email: conradosathler@ufgd.edu.br
Recebido em: 07/02/2013
Aceito em: 01/05/2013