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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH v.8 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005
ARTIGOS
O paciente renal crônico e o transplante de órgãos no Brasil: aspectos psicossociais
Elisa Kern de Castro*
Universidad Autónoma de Madrid
RESUMO
Este trabalho apresenta uma revisão sobre os aspectos psicossociais relacionados à doença crônica renal e transplante de órgãos no Brasil e analisa o papel do psicólogo da saúde. Atualmente, menos de 10% dos pacientes com insuficiência renal crônica são encaminhados para o transplante enquanto 60% poderiam ser transplantados. Além disso, o trabalho do psicólogo ainda está predominante dentro da psicologia clínica tradicional. A necessidade de mudanças no trabalho do psicólogo com estes pacientes e de participar no debate de políticas de saúde são discutidas, especialmente nos programas de saúde para favorecer condutas saudáveis. As informações deste estudo poderão ser úteis para os psicólogos para desenvolver guias e políticas para aumentar a qualidade de vida relacionada à doença crônica renal e transplante.
Palavras-chave: Doença renal terminal, Transplante de órgãos, Aspectos psicossociais, Psicologia da saúde.
ABSTRACT
This article presents an overview of the psychosocial aspects of kidney chronic disease and organ transplantation in Brazil and analyses the health psychologist role. Nowadays, less than 10% of patients with kidney chronic disease are derive to the transplant while 60% could be transplanted. Besides, the traditional clinical psychology still is predominant among psychologists. The work with renal patients requires a change in the psychologist role and an active participation in the policies health, especially in programs to enhance the healthy behaviours. The information from this study might be useful to psychologists develop guidelines and policies that increase the quality of life involved with the kidney chronic disease and transplantation.
Keywords: End-stage kidney disease, Organ transplantation, Psychosocial aspects, Health psychology.
Introdução
O presente artigo trata de uma análise relacionada aos aspectos psicossociais da doença crônica renal e transplante de órgãos no Brasil e analisa o papel do psicólogo da saúde. Inicialmente serão examinados alguns aspectos da situação do doente renal no país e, posteriormente, serão analisadas as possibilidades de transformação do trabalho do psicólogo no âmbito da saúde.
Situação dos enfermos renais no Brasil
O número de pessoas que sofrem de doenças renais em todo o mundo é enorme. No Brasil, a quantidade de pessoas em com insuficiência renal terminal em lista de espera para transplante em outubro de 2003 era de 30.282 pessoas, e essa é apenas uma parcela dos enfermos renais1 (SNT, 2003). Quanto ao tratamento destas doenças, é sabido que quando um dos rins não funcionam corretamente existe a necessidade de um tratamento dialítico. Em muitos casos este tratamento deverá ser realizado durante toda a vida do paciente se não existe a possibilidade de um transplante renal.
A insuficiência renal pode ser aguda (quando os rins param de funcionar de maneira rápida mas por um período determinado) ou crônica (quando a perda da função renal é lenta, progressiva e irreversível). Os sintomas da disfunção renal podem passar desapercebidos pelo indivíduo até que haja uma perda de aproximadamente 50% de sua função. A partir de então, podem aparecer sintomas que nem sempre são incômodos a ponto de chamar-lhes atenção. O tratamento com diálise peritoneal, hemodiálise ou transplante é recomendado quando o funcionamento dos rins é inferior a 10-12% (ALCER, 2003; SBN, 2003).
O transplante de rim é apropriado para pacientes com doenças em fase terminal devido a diversas causas. Dentre estas, as mais freqüentes são diabetes, hipertensão, glomerulonefrite e anomalias congênitas (Reed, Baz, McGinn y Schofield, 2001). O transplante com êxito está associado à liberdade da diálise/hemodiálise. Os pacientes transplantados têm uma expectativa de vida prolongada em comparação com pacientes em diálise e/ou hemodiálise.
Milhares de pessoas necessitam órgãos para transplantes na América Latina, mas na maioria dos paises da região a diferença entre o número de doadores e a quantidade de pacientes em lista de espera é preocupante. Enquanto em alguns países europeus como a Espanha o número de doadores por milhão de habitantes é de 33,9, na Bélgica de 25,2 e na Áustria de 23,7, as cifras nos países latino-americanos são muito mais baixas. De acordo com as estatísticas do Sistema Nacional de Transplantes (SNT, 2003), as melhores taxas de doação por milhão de habitantes na América Latina são de 8,8 no Chile, 6,9 na Argentina e 4,5 no Brasil.
De acordo com Duro (2001), para aumentar a doação e o transplante na América Latina seria necessário aumentar a solidariedade da sociedade para a doação, adaptar as estruturas organizacionais para garantir o desenvolvimento de programas de transplante e unificar esforços dos profissionais na busca de soluções, em colaboração com o governo. No entanto, parece ser um tanto utópico pensar em aumentar a solidariedade da população quando os serviços de saúde oferecidos são precários e muitas vezes não é possível ter acesso ao tratamento e à medicação adequada. Igualmente, a situação laboral de muitos profissionais da saúde é precária, com baixos salários e necessidade de ter vários empregos simultaneamente, o que pode deixar-lhes sem tempo e energia para trabalhar por uma mudança na conjuntura atual da saúde.
Para compreendermos melhor o sistema de saúde e a atenção ao enfermo renal, examinemos alguns dados relativos ao nosso país. O Brasil tem uma alta renda per capita mas, por outro lado, grande parte da população vive em situação de extrema pobreza devido à grande desigualdade social, que reflete no atendimento à saúde da população (WHO, 2003). Com relação ao enfermo renal, até 1980, a maior parte das pessoas que sofriam de doenças desse tipo falecia antes do início da diálise ou durante seu curso (Coelho, 2003). Poucos tinham a oportunidade de submeter-se a um transplante, pois o governo não tinha elaborado um programa adequado de atendimento ao paciente renal crônico. Tal situação vem se alterando desde então, e em 1999 dos 75.000 pacientes renais crônicos, 43.000 recebiam tratamento de diálise e 2.381 foram transplantados. Por outro lado, estima-se que grande parte destes doentes nem sequer são diagnosticados.
Os brasileiros em geral são solidários e doam seus órgãos. Existem também equipes de saúde bem preparadas e instalações satisfatórias para aumentar o número de transplantes (Coelho, 2003). Apesar do aumento ocorrido nos últimos anos, a taxa de doação brasileira ainda é muito baixa se comparamos a países já citados anteriormente. Por que isto acontece?
Segundo a mesma autora (Coelho, 2003; Coelho, 2000), o número de transplantes no Brasil não é suficiente para dar conta da demanda porque há problemas sérios relativos a integração dos recursos destinados ao tratamento do paciente com insuficiência renal crônica. Além disso, existe, uma insuficiência sistemática de recursos para a saúde que faz com que a Constituição Brasileira não seja cumprida.
Com relação aos tratamentos para os doentes renais crônicos, os profissionais de saúde e os governos sabem, a partir de diversos estudos, que o transplante é o procedimento mais barato e que garante uma melhor qualidade de vida aos pacientes com insuficiência renal crônica (Arredondo, Rangel & Icasa, 1998; Néri & Soares, 2002). No entanto, ainda que os serviços de atenção ao enfermo renal tenham melhorado e a atividade transplantadora aumentado nos últimos anos, é evidente que a diferença dos recursos invertidos na diálise/hemodiálise e transplante é preocupante.
Atualmente 75% dos tratamentos para doença renal no Brasil são financiados com recursos públicos (Adote, 2003). Se o transplante é a solução mais econômica e que permite uma melhor qualidade e tempo de vida em comparação com outros tratamentos, é a opção preferida por especialistas e pacientes. Contudo, de cada cem pacientes com insuficiência renal que recebem tratamento, somente seis são encaminhados para transplante quando aproximadamente 60 estariam aptos para a cirurgia. Isso acontece, de acordo com Coelho (1998), porque o setor privado tem grandes interesses para que a situação se mantenha, já que a maior parte dos centros de hemodiálise são controlados por este. Esta idéia é baseada na interpretação do fato de que o tratamento dialítico para a insuficiência renal crônica cresceu muito mais que o número de transplantes em termos proporcionais desde 1976.
O crescimento da atividade transplantadora em alguns países como Espanha esteve associado à criação e desenvolvimento de organizações locais e nacionais de captação de distribuição de órgãos juntamente com campanhas para esclarecimentos à população sobre a doação e leis eficazes sobre o assunto (Matesanz & Miranda, 1995; ONT, 2003). Além disso, por razões históricas o sistema de saúde espanhol se transformou e passou do enfoque curativo à medicina preventiva (Ortega, 1995). No Brasil, apesar de que existam leis e equipes que visam gerenciar e aumentar o número de doações e de transplante (SNT, 2003), é mais freqüente a atuação e organização independente de equipes e centros (Coelho, 1998; 2003).
A criação da lei de transplantes no Brasil é bastante recente, de 1997, quando foi criado o Sistema Nacional de Transplantes para desenvolver o processo de captação e distribuição de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para finalidades terapêuticas e transplantes (SNT, 2003). A partir de então o Ministério da Saúde começou o trabalho de implementação de medidas como lista única de transplantes, a criação de centrais estaduais de transplante, criação de normas para a atividade, registro e autorização de serviços e equipes especializadas e estabelecimento de critérios de financiamento. Porém, apesar dos esforços realizados até o momento por vários órgãos e profissionais da saúde brasileiros, ainda existe muito trabalho neste campo. A lista de espera para transplantes no Brasil é a maior do mundo (Adote, 2003). Entre abril e maio de 2003 a lista de espera para transplantes aumentou em 1059 novos casos, o que significa a entrada de 35 novas pessoas por dia. O número de transplantes com doadores vivos de rim atualmente já representa 60% dos casos, o que pode prejudicar a procura e captação de doadores com morte encefálica. Igualmente, enquanto o número de transplantes com doador vivo cresce desde 1995, a identificação de potenciais doadores diagnosticados com morte encefálica não segue a mesma tendência. Segundo dados do Sistema Nacional de Transplantes (2003), em outubro deste mesmo ano 58.032 esperavam por transplantes de distintos órgãos no país, sendo que 30.282 pessoas esperavam transplante de rim. A projeção do número de transplantes a serem realizados em 2003 era de 8077 transplantes, o que significa que 49.955 pessoas seguiriam na lista de espera ou faleceriam em decorrência do agravamento do estado de saúde. Com relação ao transplante renal, a estimativa era de que 2.594 pessoas receberiam um rim e permaneceriam 27.688 pessoas na espera.
Atuação do psicólogo da saúde diante desta situação
É inegável que o psicólogo como profissional da saúde tem um papel muito importante junto às pessoas doentes para ajudar a melhorar seu bem-estar e qualidade de vida. Entretanto, no campo real das atividades de atenção à saúde nem sempre está clara a importância de seu trabalho.
Nossa formação profissional é deficiente em ações coletivas em saúde e ferramentas de prevenção e intervenção, sendo ainda fortemente fundamentada no modelo clinico vinculado à psicoterapia individual. (Dimenstein, 2000; Sebastiani, Pelicioni & Chiattone, 2002). Assim, muitos psicólogos que atuam no âmbito da saúde trabalham utilizando um tipo de modelo clínico que é incapaz de dar conta da demanda existente e que dificulta a intervenção com grupos, instituições e órgãos da administração pública. Simultaneamente, a cada dia se reforça a necessidade de um incremento das atividades de educação em saúde, melhora na formação dos psicólogos, aumento de pesquisas no âmbito interdisciplinar para que se possa ajudar a transformar a situação da saúde, dentro de um modelo de atenção integral ao paciente da Psicologia da Saúde (Angerami-Camon, 2000). Por ser uma área abrangente que compreende o indivíduo dentro do modelo biopsicossocial, ela requer uma construção contínua de novos parâmetros de atuação que reflita as transformações pelas quais passa o individuo e a nossa sociedade.
A atenção psicológica ao paciente com doenças crônicas, como é o caso dos pacientes renais e transplantados, portanto deveria estar também vinculada a programas de saúde destinados ao fomento de condutas saudáveis, adesão ao tratamento médico, programas de controle da dor e da ansiedade, incremento do trabalho em cuidados paliativos, melhora da qualidade de vida, entre outros. As intervenções comportamentais seguem sendo o foco de atividade principal para a redução de riscos e prevenção de doenças, e os fatores psicossociais relacionados à enfermidade são componentes essenciais que devem ser manejados e que podem ter um valor adicional para a eficácia de um tratamento médico (Smith, Kendall & Keefe, 2002). Assim, Besteiro e Barreto (2003) referem que o trabalho do psicólogo da saúde dentro do hospital alude fundamentalmente ao restabelecimento do estado de saúde do doente ou ao menos ao controle dos sintomas que prejudicam seu bem-estar, enquanto o psicólogo da saúde que atua no âmbito comunitário pode trabalhar com aspectos da prevenção de doenças e/ou complicações e promoção da saúde. Uma ferramenta de intervenção considerada bastante eficaz nesta área é o aconselhamento (“counselling”), que centra-se na problemática e necessidades atuais dos pacientes, concebendo as relações interpessoais desde uma ética baseada no reconhecimento da capacidade do outro para tomar suas próprias decisões, com responsabilidade e liberdade de escolha (Arranz & Cancio, 2003; Nettleton & cols., 2000). Este processo interativo fomenta a saúde, reduz os estados emocionais adversos e favorece a adaptação pessoal e social, resultando de grande ajuda em momentos de crise onde a comunicação é difícil e é preciso enfrentar decisões e problemas delicados (Arranz & Cancio, 2003).
Considerações finais
Como vimos, a situação da atenção à saúde ao enfermo renal no Brasil tem muitos problemas, apesar de que nos últimos anos alguns avanços foram alcançados como aumento do número de pacientes que recebem tratamento em diálise/hemodiálise e no número de transplantes (principalmente com doadores vivos no caso de transplantes de rim), com financiamento público. No entanto, falta uma política de saúde mais elaborada e com mais recursos que a atual, para que as necessidades da população possam ser melhor atendidas.
Com relação ao psicólogo, seu trabalho poderia ter maior implicação política no que diz respeito à participação ativa em associações e órgãos públicos e privados que busquem uma mudança neste âmbito, contribuindo para que a atenção ao paciente realmente seja integral e integrada. Além disso, é necessário um contínuo aprimoramento de sua atuação que abarque ações coletivas de acordo com as necessidades reais dos pacientes e as mudanças que ocorrem na sociedade. A partir da promoção de trabalhos inovadores associados à pesquisa dentro de uma concepção de saúde que integre o bem-estar físico, emocional e social, nós, psicólogos, podemos contribuir para melhorar a saúde de muitas pessoas.
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Endereço para correspondência
E-mail: elisa.kern@uam.es
O presente artigo é parte do trabalho “Modelo latinoamericano y europeo en las perspectivas psicológicas aplicadas a la enfermedad renal – semejanzas y diferencias”, apresentado no I Congresso Nacional de Técnicos Psicossociais A.L.C.E.R. em Toledo, Espanha, no dia 13 de setembro de 2003.
* Psicóloga graduada pela PUC-RS, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS e atualmente cursa Doutorado em Psicologia Clínica e da Saúde na Universidad Autónoma de Madrid, Espanha) como bolsista da CAPES (Proc. 1129-01/5, 2002-2006).
1 Não foram encontrados dados atualizados junto ao Ministério da Saúde sobre o número de pessoas diagnosticadas com insuficiência renal que estão em tratamento de diálise ou hemodiálise. No entanto, estima-se que os pacientes em lista de espera constituem apenas 6% do total de pacientes enfermos renais (ADOTE, 2003).