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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.18 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015

 

ARTIGOS

 

O serviço de psicologia no hospital: modelo assistencial de cuidado na busca pela promoção de saúde.

 

The psychology division at the hospital: care model of assistance with the aim of health promotion

 

 

Andreia Mutarelli1

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como principal objetivo ampliar a compreensão da prática do psicólogo no hospital, revelando alguns de seus fundamentos, tais como tomar o paciente na sua integralidade enquanto um indivíduo bio-psicosocial e, baseado nisso, atuar em prol da promoção de saúde. Para tanto, ilustramos com cenas clínicas que o psicólogo na equipe multidisciplinar dá lugar à promoção de saúde dentro da instituição hospitalar, embora esta instituição tenha como fundamento o modelo curativo. Primeiramente, contextualizamos o papel do psicólogo na equipe multidisciplinar. Discutiu-se o conceito de promoção de saúde e, finalmente, estas ideias foram articuladas a partir das cenas observadas em um hospital infantil em São Paulo. No presente artigo, enfatizamos, então, a importância do trabalho em equipe multiprofissional, considerando que os olhares das diferentes disciplinas partem de fundamentos diversos e que podem se complementar para um atendimento que atinja as dimensões biológica, psicológica e social do paciente.

Palavras-chave: psicologia hospitalar; promoção de saúde; abordagem de tratamento multidisciplinar.


ABSTRACT

This article aims to broaden the understanding regardimg the psychologist's practice in hospital, revealing some of its foundations, such as, to consider the patient a bio-psycho-social individual. Based on that, the hospital psychologist acts in favor of health promotion. Therefore, we illustrate with clinical scenes how psychologists in the multidisciplinary team enhances health promotion within the hospital, although this institution was founded on the curative model. First, we will contextualize the psychologist's role in the multidisciplinary team. We will discuss the concept of health promotion and, ultimately, we will articulate these ideas using scenes from a children's hospital in São Paulo. In this article, we emphasize the importance of working in multidisciplinary team, considering that the vision from different disciplines have different foundations and they can complement each other contributing for a service that reaches the biological, psychological and social dimensions of the patients.

Keywords: hospital psychology; Health promotion; multidisciplinary treatment approach.


 

 

Introdução

O presente artigo foi desenvolvido a partir da experiência de psicóloga em um hospital particular infantil na cidade de São Paulo, que atende classes sociais diversas, principalmente por meio de convênios de saúde. O serviço de psicologia foi inaugurado há 2 anos com a primeira psicóloga contratada. Depois de um ano e meio desta primeira contratação, considerou-se importante ampliar a equipe. No momento contamos com dois psicólogos e seis estagiários. Neste contexto, observamos que na equipe multiprofissional o psicólogo se fundamenta na ética do cuidado em contrapartida ao modelo curativo que alicerça a prática dos profissionais de outras disciplinas que atuam no hospital.

Na literatura encontramos com frequência a constatação de que o psicólogo tem um olhar estrangeiro na instituição de saúde em que ele entra (Moretto, 1999; Moreira et. al. 2007). "A Psicologia Hospitalar já existe há mais de cinco décadas no Brasil, mas muitas das questões colocadas em supervisão dizem respeito ao tema da inserção, em sua maioria por profissionais que não são, exatamente, iniciantes" (Moretto & Prizskulnik, 2014, p. 289). Em qualquer que seja a instituição de saúde, o psicólogo tem como objetivo tratar do sofrimento, que podemos traduzir pelo cuidar, sendo este a abordagem ao sofrimento. A orientação clínica deste profissional se fundamenta em princípios diferentes da clínica médica (incluo aqui a enfermagem, fisioterapia e fonoaudiologia), o que traz um olhar de estrangeiro para o psicólogo. Isto porque para o psicólogo, quem detém o saber sobre o corpo do paciente é o próprio paciente, enquanto que para a medicina (e para as outras disciplinas citadas acima) quem detém o saber sobre o corpo do paciente é o médico ou o profissional que se ocupa da especialidade, que poderá encontrar o caminho da cura (Moreira et al., 2007).

É importante fazer uma diferenciação: enquanto a clínica médica aprimora seus métodos diagnósticos, por via da observação e de complexas tecnologias que sustentam múltiplas possibilidades de intervenção na direção da cura orgânica, a clínica freudiana, embora também se debruce sobre o cliente na busca diagnóstica, enfatiza mais a escuta do sofrimento do que a visão do mesmo, e propõe, como método de intervenção, a psicoterapia/análise (Moreira et al., 2007, p. 612).

Ao enfocar a escuta, há a valorização do saber do paciente sobre si. Esta diferença de paradigma entre a prática dos profissionais da equipe multidisciplinar, que se ampara nos sinais visíveis e mensuráveis, e do psicólogo, que tem como material de seu trabalho a escuta do sofrimento, faz com que o psicólogo fique em um "entre" dois lugares. O psicólogo seria o tecelão, que deve juntar as linhas tecidas pela equipe e a trama da história do paciente, tecendo um novo lugar em que a história do paciente caiba no seu tratamento e na instituição de saúde. Sabemos que o psicólogo é contratado para ter este olhar dentro da equipe, e a partir do momento que temos um profissional específico contratado para isso, corremos o risco de delegar este olhar para o singular apenas para ele. Então, para que este olhar para o singular tenha seu lugar no cuidado com o paciente o psicólogo precisa de alianças na equipe, seu trabalho está circunscrito dentro do trabalho da equipe.

Ao remontar a história da clínica, Moreira et al. (2007) observam que a complexidade das demandas e tecnologias da clínica médica vem aumentando e, com isso, ocorre um movimento de maior especialização, em que as demandas são atendidas com as novas tecnologias. A especificidade de "inclinar-se" sob o paciente, origem da palavra clínica, vai tendo menos espaço do que os estudos teóricos de especialização (Moreira et al., 2007), e o olhar para o sujeito vai ficando mais distante do fazer médico.

O incremento dos dispositivos diagnósticos, a abundância de tratamentos sofisticados e o elevado nível de especificidade médica conduzem à seguinte premissa: quanto maior a complexidade, maior a necessidade de especializar-se. Aqui, portanto, a clínica médica se perde entre inúmeras fragmentações e ainda delega ao paciente a decisão sobre qual especialista buscar. É como se a clínica estivesse se abstendo do leito, do debruçar-se sobre, uma vez que o paciente, a partir de seu sintoma, avalia a quem deve recorrer (Moreira et al., 2007, p. 612).

O psicólogo hospitalar, na sua prática clínica, debruça-se sob o paciente enquanto sujeito (Moretto, 1999). Ele abre espaço para que este sujeito possa se manifestar dentro do ambiente hospitalar. Dessa forma, o psicólogo acompanha o sujeito no seu modo singular de enfrentar aquela doença e, como parte da equipe de assistência, dá lugar a esta manifestação no raciocínio clínico da equipe multidisciplinar. "É tão frequente quanto compreensível que o profissional 'psi' interesse à equipe de saúde pelo que ele pode fazer com o 'lado' do doente que a Medicina não se propõe a tratar" (Moretto & Prizskulnik, 2014, p.291).

Podemos observar esta especificidade do psicólogo na equipe quando, recorrentemente, somos chamados para contribuir com a nossa visão em casos em que há incompatibilidade entre a reação das famílias/paciente e o diagnóstico. Algumas famílias ficam muito aflitas em casos que são simples e, ao contrário, existem famílias que não demonstram sentimentos de tristeza quando o caso é grave. O psicólogo busca garantir na equipe multidisciplinar um olhar para a singularidade, diferente do modelo curativo da medicina em que o universal toma o lugar do singular.

O discurso institucional hospitalar tem como referência o universal, ou seja, todos os pacientes devem ser atendidos de acordo com os protocolos utilizados na instituição e com os procedimentos previstos nestes protocolos. Quando o universal é o fundamento para a intervenção, espera-se que o paciente tenha uma reação afetiva correspondente ao que está previsto para a evolução daquela doença. Já o psicólogo, ele tem como objeto de trabalho a singularidade deste paciente que está sendo atendido na referência da medicina. Enfatizo que não criticamos o fato de que a medicina e as outras disciplinas da instituição de saúde tenham como referência o universal, pois sua formação e ciência é fundamentada neste critério. No entanto, quando o psicólogo integra uma equipe multidisciplinar em um hospital e está inserido nesta instituição, ele vai se localizar entre esta visão institucional fundamentada no universal e sua inclinação sob a singularidade, pois deve se comunicar apontando o que há de específico e que pode ajudar nas decisões das outras disciplinas, além de oferecer escuta ao paciente que está passando pela experiência de internação e adoecimento.

A nossa hipótese é que a prática do psicólogo no hospital corresponde a um modelo assistencial de cuidado, tendo a promoção de saúde como um de seus objetivos, em contrapartida a um modelo curativo da medicina. O objetivo deste artigo é ilustrar com cenas clínicas que o psicólogo na equipe multidisciplinar dá lugar à promoção de saúde dentro da instituição hospitalar mesmo que esta instituição tenha como referência o modelo curativo. Assim, o trabalho da psicologia se situa também no lugar da promoção de saúde. É importante ressaltar que percebemos a tradição histórica do modelo biomédico em contrapartida ao modelo biopsicossocial, mas isto não deve ser assumido como um obstáculo ao trabalho (Toneto & Gomes, 2007). "Por sua vez, os avanços da prática psicológica estão associados à qualificação do psicólogo, mais especificamente à capacidade de justificar procedimentos e ações" (Toneto & Gomes, 2007, p.97).

A relevância do presente artigo consiste em ampliar a compreensão da prática do psicólogo no hospital, revelando alguns de seus fundamentos como tomar o sujeito na sua integralidade enquanto um indivíduo bio-psico-social e, baseado nisso, atuar em prol da promoção de saúde.

A especificidade do trabalho do psicólogo no hospital

Em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a saúde como: "o completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de enfermidade" (WHO, 2008). Esta definição amplia o entendimento das instituições de saúde, considerando que "expressa a associação entre qualidade de vida e saúde da população. A saúde, nesse sentido, é resultado de um processo de produção social e sofre influência de condições de vida adequadas de bens e serviços." (ANVISA, 2009). Dessa forma, a saúde é um fator essencial para que haja desenvolvimento humano. Com isto, o campo da saúde deixa de ser exclusivo da medicina, pois para se estar no melhor estado físico temos que passar a considerar o estilo de vida da pessoa e com isso seus hábitos alimentares, práticas esportivas, sua inserção social etc. Então, há uma ampliação do campo de trabalho no setor da saúde.

A aceitação cada vez maior do modelo biopsicossocial fortalece o trabalho em equipe multidisciplinar, e concomitantemente a noção de saúde deixa de ser ausência de doença e passa a ser bem-estar físico, mental e social (Toneto & Gomes, 2007).

A constituição de equipes multiprofissionais no hospital é recente. Com isso, frequentemente, os profissionais que fazem parte da equipe multidisciplinar não têm clareza da especificidade das disciplinas alheias. Os psicólogos estão cada vez mais inseridos nestas equipes e, no entanto, eles têm dificuldades de comunicação com os outros profissionais (Toneto & Gomes, 2007).

Moretto e Prizskulnik (2014) afirmam que a entrada do psicólogo no hospital não coincide com a sua inserção na equipe multidisciplinar necessariamente:

A entrada de um psicanalista numa Instituição de Saúde não corresponde, necessariamente, à sua inserção, assim como o lugar do psicanalista numa equipe de saúde não corresponde a uma vaga disponível no quadro funcional de uma instituição. É um lugar que precisa ser construído de modo a que ele, o psicanalista, possa operar. Chamemos de inserção o processo de construção desse lugar (Moretto & Prizskulnik, 2014, p. 289).

Alberti (2008), ao tratar sobre as especificidades do psicólogo na equipe multidisciplinar, divide a equipe em dois grupos:

1) aqueles que verdadeiramente são capazes de centrar suas intervenções – tanto práticas, quanto de ensino – no sujeito, privilegiando uma clínica do sujeito sem, no entanto, sabê-lo sempre, por falta de um instrumental teórico que lhes permita essa referência, na medida em que são médicos, fisioterapeutas, e enfermeiros, ocupados em estudar outras coisas, e 2) aqueles que não têm o menor interesse em privilegiar uma clínica do sujeito e que, às vezes, até mesmo a consideram da ordem de um incômodo em função das subversões que necessariamente promove no regulamento de um hospital (Alberti, 2008, p.149)

A autora adverte que este segundo grupo, que não tem sua prática focada no sujeito, não é menos preocupado com o paciente do que o primeiro grupo. No entanto, as manifestações dos pacientes enquanto sujeitos são lidas por estes profissionais como parte de manifestações de grupos de pertencimentos (Alberti, 2008). Podemos observar esta constatação, no hospital infantil, em falas como: "Esta é uma mãe de crônico, já sabe né?!", "Aquela família é daquelas que não dão vacina para o filho e tem parto natural, sabe?", "Esses são os cardiopatas", "Isso é uma família de neuropata", etc. Estas são pequenas generalizações que fazem com que o que se manifestou de singular possa ser encaixado em uma visão mais universal. A intervenção do psicólogo na equipe multidisciplinar dá subsídios para os profissionais do primeiro grupo poderem argumentar a favor de práticas que levem em conta o sujeito. Já com o segundo grupo, a intervenção do psicólogo é pontual, considerando que dificilmente haverá uma mudança no referencial e no discurso desses profissionais (Alberti, 2008).

Coadunar trabalho psi e trabalho médico visando uma prática transdisciplinar produz um espaço de trocas que acabam de exigir da psicologia um novo (re)posicionamento, seja diante de antigas questões, seja diante de questões de outras bases. Por conseguinte, o hospital não pode ser pensado como um lugar de impossibilidade apenas pelos atravessamentos que ali espocam, precisa ser pensado como um espaço inequivocadamente necessário, apesar das exigências e peculiaridades que cria (Alberti, 2008, p.151).

Moretto e Prizskulnik (2014) também apresentam a divisão dos profissionais da equipe multidisciplinar entre os que levam em conta a subjetividade e os que delegam este olhar para o psicólogo. De qualquer forma, o psicólogo é o profissional que olha e se ocupa com o sofrimento do paciente, enquanto os outros profissionais da equipe multiprofissional enfocam suas práticas no desaparecimento do sintoma ou no sinal que indica que o paciente continua enfermo.

O conceito de "Promoção de Saúde"

O conceito de "promoção de saúde" surge alguns anos após a definição que ampliou o conceito de saúde conforme explicitado acima. "O conceito moderno de promoção da saúde, assim como sua prática, surge e se desenvolve de forma mais vigorosa nos últimos 25 anos, em países em desenvolvimento" (Buss, 2009, p.19). Tal conceito tem como fundamento a concepção ampla do processo saúde-doença e não a ideia de que saúde seria a simples ausência de doença, conforme a primeira definição de saúde da OMS.

Nas primeiras definições do termo "promoção de saúde" de Sigerist (1946) dizia-se que a "saúde se promove proporcionando condições de vida decentes, boas condições de trabalho, educação, cultura física e formas de lazer e descanso" (Buss, 2009, p. 21). Ou seja, desde o início na promoção de saúde olha-se para o indivíduo em sua integralidade.

No final dos anos 80, novas concepções do processo saúdeenfermidade-cuidado surgem e articulam saúde e condições de vida de modo mais integrativo. "Para além das motivações ideológicas e políticas dos seus principais formuladores, presentes nas referidas conferências, a promoção de saúde surge, certamente, como reação à acentuada medicalização da saúde na sociedade e no interior do sistema de saúde" (Buss, 2009, p.19).

No Brasil, após a ditatura, no período de transição democrática a demanda da sociedade por um sistema de saúde, para todos e integral, ganha força e inicia-se a construção desta proposta (Oliveira et al., 2004).

O novo projeto implicava, entre outras coisas, uma reformulação dos conceitos de saúde e práticas assistenciais. A atenção integral era o novo objetivo e trazia implícita a necessidade de incorporação de novos profissionais ao atendimento. Esse conceito, ao impor o acesso igualitário de todos aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, colocou como uma das questões fundamentais da política pública a integralidade da atenção à saúde e a participação social, reconhecendo a imprescindibilidade das ações realizadas pelos diferentes profissionais de nível superior (Oliveira et al, 2004, p. 73).

Está no cerne do conceito de promoção de saúde a máxima que entende que problemas multideterminados reivindicam "múltiplas estratégias, medidas e atores" (Buss, 2009, p.20). A promoção da saúde passou a representar mais recentemente, um "enfoque" político e técnico em torno do processo saúde-doença-cuidado. Hoje em dia, decorridos mais de vinte anos da divulgação da Carta de Ottawa em 1986 (Brasil, 2002), um dos documentos fundadores do movimento atual da promoção da saúde, este termo está associado inicialmente a um 'conjunto de valores': vida, saúde, solidariedade, equidade, democracia, cidadania, desenvolvimento, participação e parceria, entre outros. Refere-se a uma "combinação de estratégias" (Buss, 2009, p.19).

No hospital, equipamento de saúde de nível de atenção terciária, o principal objetivo não é a promoção de saúde, considerando que o paciente que ali está, já está doente e precisa de cuidados para curar-se da enfermidade. A "promoção de saúde" é protagonista em equipamentos de atenção básica e primária da saúde, como Unidades Básicas de Saúde e afins. No entanto, o psicólogo no hospital, ao seguir fundamentos do cuidado, está também promovendo saúde. A equipe de psicologia, no ambiente hospitalar, busca dar condições para que o paciente passe pelo período de internação de maneira saudável do ponto de vista psíquico e que ele possa integrar a experiência de adoecimento a sua própria história.

A saúde é mencionada como fator essencial para o desenvolvimento humano; um dos campos de ação propostos no contexto da promoção da saúde é a criação de ambientes favoráveis; o desenvolvimento sustentável coloca o ser humano como agente central do processo de defesa ao meio ambiente e tem, no aumento da expectativa de vida saudável e com qualidade, um de seus principais objetivos (Buss, 2009, p. 20).

A "criação de ambientes favoráveis", enquanto uma atribuição da promoção de saúde, aponta na direção de considerarmos a ética do cuidado como promotora de saúde, o que corrobora com a ideia de o psicólogo ser o profissional que tem como um de seus objetivos a "promoção de saúde" dentro do ambiente hospitalar. Neste sentido, um exemplo de uma intervenção possível e comum do psicólogo é a sugestão para a equipe assistencial de algumas quebras da rotina normal do hospital, a fim de favorecer uma menor ruptura na rotina do paciente em questão, como a mudança do horário do banho para um determinado paciente. Conforme dito, sabemos que os profissionais de outras disciplinas na instituição hospitalar também podem ter suas práticas voltadas para o sujeito, no entanto, o psicólogo é o único que terá como objeto de intervenção o sofrimento do paciente e não a doença a ser tratada.

Ressaltamos que os profissionais que têm a doença como objeto de trabalho também têm diversas ações na direção da promoção de saúde. Isto acontece principalmente, quando há orientações para a família/paciente após a alta, para que alterem hábitos anteriores à internação.

A orientação sanitária nos exames de saúde periódicos e o aconselhamento para a saúde em qualquer oportunidade de contato entre o médico e o paciente, com extensão ao resto da família, estão entre os componentes da promoção. Trata-se, portanto, de um enfoque centrado no indivíduo, com uma projeção para a família ou grupos, dentro de certos limites (Buss, 2009, p. 22).

Portanto, a promoção de saúde está presente tanto no modelo curativo de assistência quanto no modelo de cuidado. "O enfoque da promoção da saúde é mais amplo e abrangente, procurando identificar e enfrentar os macrodeterminantes do processo de saúde-doença, e buscando transformá-los favoravelmente na direção da saúde" (Buss, 2009, p. 37).

No hospital prevalece o modelo curativo, no entanto, a promoção de saúde está presente na prática de profissionais que atuam nesta instituição e tem como fundamento o modelo de cuidado.

Cenas de um psicólogo no hospital

Para a prevenção, evitar a enfermidade é o objetivo final e, portanto, a ausência de doenças seria um objetivo suficiente. Para a promoção da saúde, objetivo contínuo é um nível ótimo de vida e de saúde registrado em um indivíduo sempre haverá algo a ser feito para promover um nível de saúde melhor e condições de vida satisfatórias .(Guitierrez et al., 1997, citado por Buss, 2009)

As cenas descritas abaixo aconteceram em um hospital particular infantil na cidade de São Paulo. Os nomes são fictícios para respeitar a privacidade dos pacientes e suas famílias.

Amanda

Amanda foi internada no hospital com 7 meses e com o diagnóstico de neoplasia cerebral. O tumor encontrado há menos de uma semana ocupava ¾ do cérebro da criança. Após procurarem a opinião de um neurocirurgião, o qual disse que o tumor era inoperável, os pais buscaram um expert no assunto e foram encaminhados para o hospital em questão. Amanda passaria pela cirurgia de ressecção do tumor em caráter de urgência. Nesta cirurgia, aproximadamente, uma parte considerável do tumor pôde ser retirado. Durante a internação, a criança passou por muitas intercorrências como aumento de pressão intracraniana e a necessidade de colocação de válvula, crises convulsivas e infecções no cateter. Em uma das vezes em que teve que trocar o cateter, era necessário que ela ficasse em jejum por seis horas. Neste dia, entrei no quarto de Amanda sem saber que este procedimento seria feito. Os pais estavam muito aflitos porque a filha já estava em jejum há 8 horas. Ela estava chorando de fome, incomodada, e o procedimento havia atrasado. O principal prazer de Amanda no hospital e na vida era comer. Adorava todas as papinhas e sempre chorava querendo mais quando estas acabavam. Os pais davam a papinha considerando este o maior cuidado que poderiam oferecer em meio a tantos procedimentos invasivos e sofridos para a filha. Eles me contaram que haviam falado com os médicos sobre o atraso e estes não tinham previsão de quando o procedimento começaria. Procurei, então, uma das médicas de plantão. Expliquei a situação e finalizei expondo que, do ponto de vista psicológico, seria importante priorizar este caso pois o sofrimento da criança e dos pais com a espera era enorme e o único recurso que os pais tinham de compartilhar prazer com sua filha e cuidar dela era através da alimentação. Com esta ação, o intuito do profissional de psicologia era promover o bem-estar psíquico e social tanto dos pais quanto da criança. A médica responde que o cirurgião que colocaria o cateter estava atrasado, por conta de uma intercorrência, e que a criança não morreria por conta disso. Peço que a médica vá até o quarto para situar para os pais o tempo de atraso e dar uma previsão, pois isto já seria apaziguador para a família e paciente. A médica consente e conversa com os pais. Nesta cena, a médica plantonista está preocupada com o que lhe cabe no momento do plantão: a sua prioridade de atendimento tem como critério o risco de vida. Na UTI, os médicos respeitam este critério para organizar a sua intervenção e é baseado nisto que organizam seu raciocínio clínico dentro da UTI. Assim, o psicólogo, ao ter outro critério de urgência de intervenção, busca ampliar o olhar do profissional para além do critério médico. Busca-se que, na equipe multidisciplinar, estes dois saberes se somem, uma aliança. Vale lembrar que o olhar para o singular deixa de ter sentido, caso não haja antes o olhar para a urgência do corpo doente.

Marina

Marina é uma criança de 6 anos com câncer cerebral. Na segunda vez que vou ao seu quarto a encontro acordada, estava internada por conta do efeito da quimioterapia que havia feito na semana anterior e sonolenta por causa dos anticonvulsivantes. Marina estava com febre, uma provável infecção. Ela reage à minha presença da forma como os pais haviam me advertido que ela faria: não se dirige à minha pessoa nem com o olhar nem com a fala. Ela estava debilitada por conta dos medicamentos anticonvulsivantes que estava tomando. Com o celular na mão, Marina começa a me mostrar o que estava vendo no aparelho. Vou nomeando em voz alta tudo o que estamos fazendo. Na tela do celular estava a foto de uma calopsita. Pergunto para a mãe quem era aquela calopsita, a mãe conta que Marina está com muita saudade da calopsita dela que está em casa. O pai também participa da conversa e conta que naquele mesmo dia havia ido até a casa deles para alimentar e cuidar do animal. Marina presta atenção em toda conversa. Chamo um deles de lado e falo da possibilidade de negociar com a equipe para trazermos a calopsita para Marina vê-la. Os pais acham uma boa ideia, mas inesperada. Converso com a enfermeira, com o médico diarista, com a oncologista e com o setor de controle de infecção hospitalar. Todos permitem e se envolvem na visita da calopsita, e depois perguntam-me como foi, se deu certo, passam a querer notícias sobre esta intervenção. A calopsita foi trazida pelo tio de Marina. A mãe conta que ela estranhou em um primeiro momento por vê-la naquele contexto e depois de um tempo gostou e brincou com ela. No dia seguinte a mãe perguntou para Marina se ela havia gostado da visita. Marina responde que sim. A mãe relata que no dia seguinte à visita ela sentou na cama, o que não fazia há alguns dias. A mãe relaciona esta melhora à visita da calopsita. Nesta situação, o olhar para o singular agrega toda a equipe que fica mais animada com a visita da calopsita do que a própria criança. A ideia de permitir que esta intervenção acontecesse uniu a equipe em torno de um mesmo objetivo que era dar possibilidades da criança acessar suas potencialidades. A intenção, com a ida da calopsita, foi de trazer para Marina uma referência do mundo saudável dela, um ambiente menos hostil e potencializar o que havia de saudável na criança.

Fernanda

Fernanda era uma recém nascida que foi internada por causa de uma bronqueolite. Fui chamada pela enfermeira que ficou preocupada com a mãe, pois esta chorava constantemente e desesperadamente. Quando entrei no quarto de UTI, a mãe e a avó materna contextualizaram a internação, contaram a história de vida da criança e a história da doença. Naquela noite, a mãe, que era um desespero em pessoa, voltaria para casa para dormir com o objetivo de descansar. Incentivei esta decisão, sabendo da dificuldade de se afastar do bebê e da necessidade de a mãe sair daquele ambiente. A mãe estava esperando a visita da médica da noite para poder ir para casa. A ansiedade era enorme. Terminei o atendimento e procurei a médica de plantão para pedir que ela priorizasse este quarto no momento da visita. A médica me respondeu rapidamente que a prioridade de atendimento segue a ordem de risco de vida na UTI, os mais graves primeiro. Respondi que compreendia que esta era a prioridade e concordava com isso e que caso todos estivessem com uma gravidade equivalente do ponto de vista orgânico, a visita deveria priorizar o quarto de Fernanda levando em conta a dimensão psicológica. A médica concordou com este critério.

 

Discussão

A saúde é produto de um amplo espectro de fatores relacionados com a qualidade de vida, incluindo um padrão adequado de oportunidades de educação ao longo de toda a vida, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos, estilo de vida responsável e um espectro adequado de cuidados de saúde; suas atividades estariam, então, mais voltadas ao coletivo de indivíduos e ao ambiente, compreendido, num sentido amplo, por meio de políticas públicas e de ambientes favoráveis ao desenvolvimento da saúde e do reforço da capacidade dos indivíduos e das comunidades (empowerment) (Buss, 2009, p. 23).

A ideia que gostaríamos de ilustrar com as cenas do psicólogo no hospital consiste no fato dele ter sua prática fundamentada no olhar para o singular e para o sujeito, diferente das outras especialidades direcionadas para curar a doença. Conforme visto, esses profissionais podem se deslocar dos fundamentos de suas disciplinas e olhar para o indivíduo, mas essencialmente sua formação é do modelo curativo. Assim, toda a equipe multidisciplinar pode promover saúde no hospital, mas para o psicólogo este é um dos objetivos da sua prática.

O psicólogo no hospital tem o papel de potencializar o que há de saudável no paciente, para que ele possa passar pela experiência de adoecimento "tendo seu corpo" e não se reduzindo a experiência de "ser um corpo". Isto significa que apostamos na possibilidade de manter a integridade do indivíduo enquanto sujeito singular, apesar da cultura institucional hospitalar dirigir-se ao paciente na lógica do universal.

A criação de ambientes favoráveis à saúde implica o reconhecimento da complexidade das nossas sociedades e das relações de interdependência entre diversos setores. A proteção do meio ambiente e a conservação dos recursos naturais, o acompanhamento sistemático do impacto que as mudanças no meio ambiente produzem sobre a saúde, bem como a conquista de ambientes que facilitem e favoreçam à saúde, como o trabalho, o lazer, a escola e a própria cidade, passam a compor, centralmente a agenda da saúde (Buss, 2009, p. 31).

Em um hospital, ao considerarmos o ser humano na sua integralidade, para além de tratar o paciente, promovemos um ambiente favorável á saúde. Na instituição hospitalar temos um modelo curativo que tem por objetivo a cura da doença. Este modelo curativo desvaloriza informações subjetivas, não mensuráveis. Além disso, no modelo curativo busca-se a prevenção no sentido de curar e mitigar. "Neste contexto, a saúde tem sido entendida, centralmente como ausência de doença." (Buss, 2009, p. 38). O psicólogo hospitalar faz parte da equipe que segue este modelo, mas sua atuação vai na direção do modelo de cuidado, que olha para as especificidades daquela família e paciente. O modelo assistencial de cuidado tem como um de seus fundamentos a promoção da saúde, tendo como foco a "saúde propriamente dita" (Buss, 2009, p.38). A equipe de psicologia no ambiente hospitalar, busca dar condições para que o paciente passe pelo período de internação, de modo que ele possa, posteriormente, integrar esta experiência de adoecimento à sua historia de vida. O olhar do psicólogo auxilia na criação de ambientes favoráveis à saúde estendida para além do período de internação.

No presente artigo, enfatizamos, então, a importância do trabalho em equipe multiprofissional, considerando que os olhares das diferentes disciplinas partem de fundamentos diversos e que podem se complementar para um atendimento que vá na direção do que a Organização Mundial da Saúde preconiza, isto é, abranger as dimensões biológica, psicológica e social do paciente.

 

Referências

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1 Doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo no departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano e psicóloga do Hospital Infantil Sabará, São Paulo, SP. E-mail: andreiamutarelli@gmail.com

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